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sábado, 16 de outubro de 2021

Os militares alemães podem comemorar sua história?


Por Katja Hoyer, Spectator, 16 de outubro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 16 de outubro de 2021.

Imagine as tropas alemãs marchando em frente ao Reichstag em Berlim. Suas botas pretas polidas batem no chão no ritmo dos tambores. A noite caiu e os soldados carregam tochas acesas que lançam um brilho assustador sobre o espetáculo.

Mas esses não são nazistas. Esta cerimônia foi realizada na última quarta-feira em homenagem à campanha da Alemanha no Afeganistão. O furor inevitável ofuscou o propósito do evento - lembrar os 59 alemães caídos - expondo o dilema das forças armadas alemãs: eles podem ter um senso de história e tradição, apesar de seu papel imperdoável nos crimes nazistas?

Os políticos alemães têm estado ocupados debatendo o propósito da campanha afegã desde a marcha do Reichstag. O ministro da defesa cessante disse que as expectativas "eram maiores do que o Bundeswehr estava em posição de alcançar". Enquanto isso, o presidente falou de "questões difíceis e amargas", mas acrescentou que "elas devem ser dirigidas ao parlamento e ao governo que enviou o Bundeswehr ao Afeganistão", e não aos próprios militares.
Os comentários do presidente Steinmeier foram lidos como uma republicação de um dos argumentos contra a cerimônia. Este não foi um evento para o país se elogiar, mas para os soldados homenagearem seus veteranos e seus camaradas caídos. Independentemente dos erros e acertos da campanha, eles e suas famílias merecem uma cerimônia digna.

No entanto, o debate em torno da procissão da tocha vai além do Afeganistão. É uma questão de história alemã e do lugar dos militares nela. Na realidade, a chamada cerimônia "Zapfenstreich" tem suas raízes nas Guerras Napoleônicas. O rei prussiano, Friedrich Wilhelm III, amava tanto um ritual noturno russo que queria um para seu próprio exército. A cerimônia tem sido realizada desde pelo menos 1838 pelos exércitos da Prússia, o Império Alemão, a República de Weimar, o Terceiro Reich e as Alemanhas Ocidental e Oriental em sucessão. É uma tradição alemã, não nazista.

O Bundeswehr protestou contra a 
comparação anacrônica com o nazismo

Mas aí está o problema do Bundeswehr. Durante os 12 anos do reinado de Hitler, o predecessor do exército, a Wehrmacht, cometeu crimes indescritíveis. Mas também usou a história da Alemanha para legitimar o regime. Esses símbolos e tradições pré-nazistas foram cooptados por Hitler, manchando-os de uma forma que deixa muitos alemães desconfortáveis, independentemente de suas verdadeiras origens.

Esse desconforto tem implicações políticas reais. Quando Horst Köhler, o então presidente da Alemanha, voltou de uma visita às tropas no Afeganistão em 2010, ele se atreveu a sugerir que "um país do nosso tamanho e dependente das exportações... precisa entender que, em alguns casos, se necessário, vai ter que se envolver militarmente”. Ele foi chamado de "extremista" pela imprensa e condenado por grande parte do público alemão. Köhler ficou chocado com a hostilidade, que contribuiu para sua repentina renúncia apenas nove dias depois.

Cruz de Ferro da Guerra Franco-Prussiana de 1870.

Críticas semelhantes foram feitas contra as propostas para restaurar a Cruz de Ferro (Eisernes Kreuz, EK). O parlamento alemão debateu o retorno da medalha em 2007, acabando por passar a decisão ao próprio ministério da defesa. O emblema já é usado em aviões militares, navios e veículos em qualquer caso e os proponentes argumentaram que há muito havia perdido sua associação com o nazismo. Mas eles estavam errados. O presidente cedeu à pressão pública e disse ao Bundeswehr para criar uma nova medalha em vez disso, para evitar a associação com o Terceiro Reich. Na realidade, os nazistas estavam apenas continuando a usar uma honra alemã que existia por bem mais de cem anos antes de Hitler chegar ao poder.

O Bundeswehr protestou contra as comparações anacrônicas com o nazismo. Ele divulgou um comunicado reiterando que os militares alemães são uma "força parlamentar" que serve ao povo. Como tal, "temos um lugar na sociedade - e em ocasiões especiais também em frente ao edifício do Reichstag".

A tradição sempre foi um elemento central da vida militar. Une soldados e inspira lealdade coletiva. Por que outro motivo os Guardas Coldstream - vestidos com peles de urso arcaicas e túnicas vermelhas - são encontrados espalhados pelos palácios e edifícios estatais de Londres? Mas a Alemanha continua pouco à vontade com sua história militar. Talvez, à medida que a memória do nazismo se desvanece na história profunda, esses sentimentos de inquietação e vergonha também desapareçam. Mas há poucos sinais de que esse desconforto vai desaparecer em breve.

Desfile completo


Sobre a autora:

Katja Hoyer é uma historiadora anglo-alemã, seu último livro é Sangue e Ferro: A Ascensão e Queda do Império Alemão 1871-1918.

Bibliografia recomendada:

Blood and Iron: The Rise and Fall of the German Empire 1871–1918
(Sangue e Ferro: A Ascensão e Queda do Império Alemão 1871-1918).

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

COMENTÁRIO: O Narcisismo Estratégico Americano


Por Michael Shurkin, Shurbros Global Strategies LLC, 14 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 7 de outubro de 2021.

O general francês André Beaufre, talvez o melhor pensador estratégico daquele país no século passado, definiu estratégia como a "arte da dialética das vontades que empregam a força para resolver seus conflitos". Sua definição contém algo que parece óbvio, embora tragicamente, pelo menos na minha experiência, esteja ausente do pensamento estratégico americano, especialmente no Afeganistão: a ideia de que o inimigo tem vontade e age. Ele terá uma estratégia. Em vez disso, o pensamento americano tem sido consistentemente solipsista*. Houve pouca discussão sobre a estratégia do inimigo e como combatê-la. Os debates quase sempre foram sobre nós. Isso tem sido notavelmente verdadeiro nas últimas semanas, enquanto lutamos para digerir os acontecimentos no Afeganistão: Onde erramos? O que poderíamos ter feito melhor? Quais foram nossos erros? Raramente alguém disse muito sobre o que o Talibã tem feito de certo nos últimos 20 anos.

*Nota do Tradutor: O solipsismo é a ideia filosófica de que apenas a mente da própria pessoa tem a certeza de existir. Do latim "solu-, «só» +ipse, «mesmo» +-ismo".

O próprio Beaufre deu algumas dicas básicas para uma espécie de análise estratégica que não me lembro de ter ouvido entre os americanos sobre derrotar o Talibã. Ele sugeriu identificar os seus próprios pontos fracos e fortes, bem como os do inimigo. Como o inimigo pode tentar explorar nossas fraquezas? Ele deu grande ênfase ao papel crítico da liberdade de ação. O adversário procurará limitar nossa liberdade de ação; teremos que preservar a nossa enquanto limitamos a do inimigo. O lado que mais limita a liberdade de ação do outro é o lado que vence. Como é que alguém faz isso? Forçando-nos a usar helicópteros. Ou ficar atrás das barreiras Hesco. Ou manter-se nas estradas. Ou manter-se fora das estradas. Ou limitar a aplicação de poder de fogo por medo de baixas civis. Assim, o inimigo se abriga entre os civis, ou do outro lado da fronteira, em um condado que não ousamos penetrar. Beaufre também observou que, em conflitos assimétricos, os insurgentes costumam adotar a estratégia da "manobra de lassidão".

O General André Beaufre.

Em outras palavras, o lado fraco se esforça para sobreviver por tempo suficiente para que a parte mais forte se canse e decida que está de saco cheio. O lado fraco, portanto, evita a batalha. O lado forte seria sábio se fizesse o mesmo. Mais importante, o lado forte precisa se segurar em posição e, para isso, precisa se organizar para sustentar o conflito pelo máximo tempo possível. É um teste de vontade. Simplesmente não me lembro de nenhuma discussão honesta sobre a estratégia do Talibã, sobre o que precisávamos fazer para combatê-lo. Como podemos aguentar enquanto cansamos o Talibã? E se isso não fosse possível, onde estava a discussão franca do que fazer ao invés disso? Beaufre também escreveu sobre a necessidade de uma estratégia total que envolvesse todo o governo atuando em vários domínios. Como exatamente isso foi feito no Afeganistão?

Nenhum inimigo é louco o suficiente para enfrentar as forças armadas dos Estados Unidos em uma batalha aberta. Eles vão pensar em outra coisa. Foi isso que o Talibã fez, que por sinal não aplicou uma estratégia significativamente diferente daquela que os comunistas vietnamitas fizeram. No entanto, de alguma forma, estamos surpresos com o resultado.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:

COMENTÁRIO: Por que ler Beaufre hoje?, 12 de fevereiro de 2021.

domingo, 3 de outubro de 2021

FOTO: Spetsnaz com fuzil M1 Garand capturado no Afeganistão

Capitão Pavel Bekoev do 177º Destacamento Spetsnaz soviético com um M1 Garand capturado no Afeganistão, 1986.
Seu companheiro tem um silenciador PBS1. (Colorizada)


A região do Hindu Kush não é estranha aos armamentos jurássicos, os americanos até mesmo capturaram um Lebel da Primeira Guerra Mundial alguns anos atrás. Este M1 Garand pode ter sido fornecido como ajuda, tanto dos americanos e seus aliados, quanto da hostil República Islâmica do Irã; que herdou esses fuzis do exército do Xá Reza Pahlevi.

O Afeganistão é particularmente conhecido por apresentar uma coleção fascinante de armamentos antigos, legados de compras oficiais ou de posse privada remontando até antes da Terceira Guerra do Afeganistão, ocorrida em 1919 contra os britânicos. As oficinas locais dos dois lados da fronteira afegã-paquistanesa apresentam criações exóticas, principalmente na região do Passo de Khyber/Khaibar.

Original em preto e branco (já postado antes).

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

FOTO: Exercício de mulheres soldados do antigo Exército Nacional Afegão

Mulheres soldados com capacetes de kevlar sobre véus negros,
22 de outubro de 2014.

A foto mostra soldados do antigo Exército Nacional Afegão (ANA) participando de um exercício de treinamento em Cabul, em 22 de outubro de 2014.

Fotos de treinamento de mulheres no ANA são famosas e eram incluídas na quase totalidade das matérias sobre a guerra no Afeganistão. O Ministério da Defesa afegão chegou a apresentar um plano de expansão para 5 mil soldados femininas afegãs.

As matérias geralmente giravam em torna das conquistas das mulheres afegãs e do orgulho de serviram nas Forças Armadas da República Islâmica do Afeganistão. Havia sempre a narrativa de estarem "ao lado dos homens", apesar das mulheres servirem apenas em funções internas.

Apesar de todo marketing, a eficiência tática real das mulheres soldados afegãs foi insignificante e não teve qualquer peso na ofensiva final do Talibã em sua marcha para Cabul.

O atual Califado Islâmico do Afeganistão não emprega mulheres em suas forças armadas.


Bibliografia recomendada:

A Mulher Militar:
Das origens aos nossos dias.
Raymond Caire.

domingo, 12 de setembro de 2021

COMENTÁRIO: O Exército de Madeira Compensada

Por Elliot Ackerman, The Atlantic, 17 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de setembro de 2021.

Uma década depois que as forças americanas chegaram ao Afeganistão, o quartel-general da Força-Tarefa de Operações Especiais Combinadas ainda era feito de madeira compensada, assim como a maioria dos outros edifícios que abrigavam as tropas americanas. Os recursos existiam para construir de concreto, mas por que faríamos isso? Em qualquer ponto da nossa odisséia de 20 anos no Afeganistão, estávamos sempre - em nossas mentes, pelo menos - apenas um ou dois anos fora de uma diminuição de tropas seguida por uma eventual retirada total. Claro, os afegãos perceberam isso. Em um posto avançado remoto perto da fronteira iraniana onde servi, o contratado afegão que trabalhava ao lado da minha equipe de operações especiais sempre zombava toda vez que uma aeronave trazia paletes de madeira compensada para nossos projetos de construção. “Guerras”, dizia ele, “não se ganham com madeira compensada”.

Muitos alegaram que a desintegração das forças de segurança afegãs prova que eram um exército de papel. Isso não é muito preciso. Eles provaram ser um exército de madeira compensada. A diferença entre os dois explica como um exército que antes era capaz de lutar contra o Talibã se dissolveu em questão de dias.

Em 8 de julho, em uma coletiva de imprensa na Casa Branca, quando Joe Biden foi questionado se uma tomada pelo Talibã no Afeganistão era inevitável, ele respondeu: “Não, não é. Porque as tropas afegãs têm 300.000 soldados bem equipados - tão bem equipados quanto qualquer exército do mundo - e uma força aérea contra algo em torno de 75.000 talibãs. Não é inevitável.” Durante anos, as forças de segurança afegãs travaram sua própria guerra civil contra o Talibã, sofrendo baixas e mantendo-se firme. Um exército de papel, que possui pouca ou nenhuma capacidade de luta, nunca poderia ter feito tanto. Seu desempenho permitiu que o número de tropas americanas e internacionais diminuísse de quase 150.000 há uma década para 2.500 este ano, sem a implosão total do país.

E ainda assim as forças foram e sempre foram um exército de madeira compensada, com a capacidade de cumprir a missão, mas com problemas fundamentais de recrutamento, administração e liderança. Os militares afegãos eram, por definição, uma força recrutada nacionalmente, o que significa que, normalmente, os soldados afegãos não lutavam em suas províncias nativas. Por causa da história de senhoria da guerra do Afeganistão, a decisão de criar um exército recrutado nacionalmente (em oposição a um recrutado regionalmente) foi tomada no início, com a ideia de que um exército afegão com fortes afiliações regionais e tribais ameaçaria sua própria existência.

Essa decisão também teve suas desvantagens. As estruturas tribais e familiares que formam a espinha dorsal da responsabilidade na sociedade afegã não foram transferidas para os militares. Isso criou desafios disciplinares consistentes dentro das fileiras. Também provou ser um problema ao travar uma contra-insurgência. Um soldado afegão etnicamente tadjique de Mazar-i-Sharif com a missão de lutar na província fortemente pashtun de Helmand se veria ali tão estrangeiro quanto qualquer americano. Nunca conseguimos integrar lealdades tribais e regionais em um exército nacional. Se tivéssemos feito isso, as forças de segurança afegãs teriam sido construídas sobre uma base muito mais sólida.

As duas outras áreas onde as forças de segurança afegãs se mostraram endemicamente fracas - administração e liderança - estão intimamente ligadas. Servi como conselheiro de várias unidades afegãs e vi como a negligência em sua administração - listas de tropas imprecisas e estoques de equipamentos incompletos, por exemplo - alimentou a corrupção endêmica. Com muita frequência, como americanos, comparamos a corrupção no Afeganistão com o fracasso moral da parte dos afegãos, embora raramente questionemos nossa própria cumplicidade na criação de condições que fomentassem a corrupção. Mais tragicamente, nossa mensagem consistente de que estávamos saindo do Afeganistão encorajou os afegãos em posições de poder a abraçarem a corrupção - especificamente, o desvio de recursos para ganho pessoal - como o único meio claro e seguro de sobrevivência. A corrupção tornou-se um plano de contingência financeira, a escolha que qualquer afegão razoável faria para garantir um futuro seguro para seus filhos. Quando, a cada ano, os americanos prometiam que o ano seguinte traria uma retirada americana e eventual abandono ao Talibã, que escolha você faria?

A deterioração das forças de segurança afegãs não ocorreu no campo de batalha tanto quanto ocorreu nas salas de negociação, nas quais os principais líderes tribais - como Ismail Khan em Herat - ou se renderam sem lutar ou fizeram acordos com o Talibã enquanto eles avançavam antes que qualquer batalha substancial por essas cidades pudesse ocorrer. O exército afegão estava lá - bem treinado, bem equipado - mas sem liderança política, pelo menos não mais.

No Afeganistão, existe um ditado: “Os americanos têm os relógios, mas o Talibã tem o tempo”. Desde a decisão do presidente George W. Bush de desviar as tropas do Afeganistão para o Iraque como parte da invasão de 2003, os Estados Unidos sempre tiveram um pé fora da porta. Nunca convencemos nossos aliados - ou adversários - de que possuíamos os relógios e o tempo. Ironicamente, isso nos levou a passar mais tempo no Afeganistão do que passaríamos se tivéssemos uma postura diferente. Se não tivéssemos insistido em construir em madeira compensada.

O anúncio do presidente Biden de uma retirada americana completa do Afeganistão no início deste ano desencadeou uma crise de moral entre os afegãos que resultou em suas forças de segurança desistirem sem lutar. Eles podem ter possuído superioridade numérica e material, mas sua crença em si mesmos desapareceu quando partimos.

O que estamos vendo agora no Afeganistão é o acúmulo de centenas de decisões erradas ao longo de duas décadas. No entanto, o que não consigo tirar da minha cabeça hoje é que escolhemos madeira compensada.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:




domingo, 5 de setembro de 2021

Carlos Magno: Depois do Afeganistão, a Europa se pergunta se a França estava certa sobre a América


Da The Economist, 4 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

O ritual anual do Dia da Bastilha é um momento para os franceses colocarem bandeirinhas, beberem champanhe e celebrarem os mitos da fundação da república. Em 14 de julho deste ano, porém, quando o embaixador francês  em Cabul, David Martinon, gravou uma mensagem aos concidadãos, a gravidade esmagou a festa. “Mes chers compatriotes”, ele começou, “a situação no Afeganistão é extremamente preocupante”. A embaixada francesa, disse ele, concluiu a evacuação de funcionários afegãos. Os franceses foram instruídos a partirem em um vôo especial três dias depois. Depois disso, dada a “evolução previsível” dos eventos no Afeganistão, ele declarou - um mês inteiro antes da queda de Cabul - que a França não poderia mais garantir-lhes uma saída segura.

Quando os franceses começaram a retirar funcionários afegãos e suas famílias em maio, até amigos os acusaram de derrotismo e de apressar o colapso do regime. O esforço de evacuação em agosto (de 2.834 pessoas, em 42 vôos) foi imperfeito e deixou alguns afegãos vulneráveis para trás. Enquanto os aliados lutavam para tirar seus funcionários afegãos de Cabul, os franceses se viram tão dependentes quanto qualquer outro da segurança americana. No entanto, tem havido uma satisfação silenciosa em Paris. Seus planos mostraram “uma previsão impressionante”, diz Lord Ricketts, um ex-embaixador britânico na França.

Se os franceses agiram cedo, fazendo sua própria avaliação da inteligência compartilhada, isso se deveu em parte a uma pegada menor no solo. A França lutou no Afeganistão ao lado de aliados da OTAN em 2001. “Somos todos americanos”, publicou a primeira página do Le Monde após o 11 de setembro. Em seguida, retirou todas as tropas até 2014, em parte para se concentrar em seu próprio esforço de contra-insurgência no Sahel. No entanto, a decisão em Cabul também foi mais fácil de tomar porque os franceses têm menos escrúpulos em fazer suas próprias coisas, mesmo quando isso irrita os Estados Unidos. Enquanto os europeus pensam nas implicações perturbadoras do fiasco afegão e no que ele diz sobre a dependência de uma América unilateral, o clima na Grã-Bretanha e na Alemanha é de choque e mágoa. Para os franceses, que tiraram da crise de Suez em 1956 a lição de que nunca poderiam confiar totalmente nos Estados Unidos, uma conclusão reforçada sob as presidências de Obama e Trump, o Afeganistão serviu para confirmar o que há muito suspeitavam.

Reembarque de um tanque M47 Patton francês do 8º Regimento de Dragões no Porto Said, no Egito, em 21 de dezembro de 1956.

Não é segredo que nem todos os europeus compartilham da opinião da França. Quando Emmanuel Macron subiu ao palco de painéis de madeira no anfiteatro da Sorbonne logo após sua eleição em 2017 e implorou por "soberania europeia" e uma "capacidade de agir autonomamente" em questões de segurança caso a Europa precisasse, sua voz era solitária. Na Alemanha e em pontos a leste, o apelo de Macron foi visto com irritação: mais uma incômoda tentativa gaullista de minar a OTAN e suplantar a América como fiador da segurança europeia.

As mentes mudaram um pouco desde então, pois Macron procurou tranquilizar os amigos de que sua ideia não é substituir, mas complementar a aliança transatlântica. Mesmo assim, no ano passado, Annegret Kramp-Karrenbauer, Ministra da Defesa da Alemanha, escreveu sem rodeios que "as ilusões de autonomia estratégica europeia devem acabar." Enquanto isso, na Grã-Bretanha, as ligações de Macron foram desconsideradas como irrelevantes para uma nação-ilha recentemente livre para forjar seu próprio papel global. A união da soberania europeia sobre a Defesa era algo que o Brexit foi projetado para evitar.

Paraquedistas da 82ª Divisão Aerotransportada "All American" provendo a segurança do aeroporto de Cabul.

O desastre no Afeganistão mudou a retórica. Tom Tugendhat, um parlamentar conservador que serviu no Afeganistão, exortou a Grã-Bretanha “a se certificar de que não dependemos de um único aliado”, nomeando a França e a Alemanha como parceiros em potencial. Ben Wallace, Secretário de Defesa da Grã-Bretanha, sugeriu que suas forças armadas deveriam estar prontas para "aderir a coalizões diferentes e não depender de uma única nação". Ele não precisou dizer qual. “Todos nós fomos humilhados da mesma forma pelos americanos”, disse um diplomata britânico, que aponta para um interesse comum em garantir que isso não aconteça novamente. Para a Alemanha tímida em relação à conflitos, o Afeganistão foi uma experiência formativa. A decepção foi dolorosa. Armin Laschet, o candidato conservador à chancelaria da Alemanha, descreveu a retirada como “o maior desastre que a OTAN já experimentou desde a sua fundação”.

Em suma, a Europa parece perceber que terá de fazer mais por si mesma. Quer os céticos entendam ou não, isso é exatamente o que o Monsieur Macron tem dito, e dirá novamente em um discurso antes da presidência rotativa da França no Conselho da UE em 2022. Ninguém, mas ninguém, vai dizer isso em voz alta. Mas o reconhecimento implícito é que, zut alors, o Monsieur Macron estava certo.

Aux armes, Européens

Sniper francês da Força Barkhane no Sahel malinense.

Duas grandes questões para os europeus decorrem desse pensamento desconcertante, no entanto, e nenhuma resposta fácil existe para nenhuma delas. Em primeiro lugar, o que a Europa realmente quer dizer com “soberania europeia” ou “autonomia estratégica”? A maioria dos países promete gastar mais em defesa, embora a Alemanha (ao contrário da Grã-Bretanha e da França) ainda falhe em cumprir a referência da OTAN de 2% do PIB. Além disso, há pouca clareza e ainda menos acordo, até porque o Brexit não deixou a Grã-Bretanha com vontade de trabalhar institucionalmente com a UE.

Devem os europeus aspirar apenas a uma gestão limitada de um conflito regional, como o Sahel ou o Iraque? Ou esperam enfrentar a defesa coletiva de seu continente? Os realistas defendem o primeiro, e apenas até certo ponto. Os entusiastas sugerem o último. No entanto, mesmo no Sahel, a França ainda precisa dos americanos para inteligência e logística. Em segundo lugar, a Europa está realmente preparada para fazer o que for preciso para sobreviver por conta própria? A evidência não é convincente. A Europa é melhor na criação de siglas do que na construção de capacidades. “Se não podemos nem cuidar do aeroporto de Cabul, existe uma grande lacuna entre nossa análise e nossa capacidade de ação”, diz Claudia Major, do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança.

O esforço implícito seria enorme. “Não tenho certeza se os europeus estão psicologicamente preparados para enfrentar o desafio”, escreveu Gérard Araud, um ex-embaixador francês na América, para o Conselho do Atlântico. O Monsieur Macron, como seu embaixador em Cabul, pode ter feito a escolha certa. Mas os europeus estão prontos para dar atenção a isso?

Bibliografia recomendada:

L'emergence d'une Europe de la défense:
Difficultés et perspectives.
Dejana Vukcevic.

Leitura recomendada:






FOTO: Fuzis SKS capturados, 1º de janeiro de 2021.


O estranho marxismo do governo americano e seu fracasso no Afeganistão


Por Michael Shurkin, Linkedin, 23 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

Enquanto nos atropelamos para chegar a um acordo sobre o que deu errado no Afeganistão, eu gostaria de destacar certas imitações intelectuais que tiveram consequências importantes sobre como o governo e os militares americanos abordaram o Afeganistão e suas ações no terreno. Muitas vezes ouve-se a alegação de que erramos ao tentar ocidentalizar o Afeganistão porque subestimamos a inadequação dos afegãos para a modernização. O oposto era verdadeiro: minando nossos próprios esforços de modernização, muitas vezes caros, estava um ceticismo profundamente arraigado que atrapalhava esses esforços e nos encorajava a nos concentrarmos em outro lugar. Membros do governo e das forças armadas dos Estados Unidos, apesar da retórica do Departamento de Estado, tinham uma visão estranhamente marxista da política afegã que encorajava o desconto do valor da democratização e nos confortava em nossa ignorância. Já sabíamos tudo o que havia para saber sobre os afegãos e a política afegã.

A visão abrangente do Afeganistão e da política afegã ecoou as opiniões de Marx sobre o que distinguia a política pré-moderna da moderna. O primeiro trata das necessidades imediatas de pessoas isoladas, sem noção do quadro geral, seja do mercado nacional e internacional ou da dinâmica de classes. Pessoas que se revoltam com o preço do pão porque estão com fome é um exemplo clássico. A política moderna é outra coisa: elas revelam uma consciência do quadro mais amplo, muitas vezes resultante de estar conectado ao mundo mais amplo. Marx usou essa distinção em sua análise dos padrões de votação na França em 1848, quando se esforçou para explicar por que os franceses votariam em Louis-Napoléon Bonaparte [Napoleão III], um homem que claramente, ele pensava, se opunha aos interesses de classe da maioria dos eleitores franceses. A resposta de Marx foi denegrir os eleitores franceses, muitos se não a maioria dos quais eram agricultores, como arcaicos pré-modernos. Vale a pena repetir as passagens-chave do 18º Brumário:

Os pequenos camponeses formam uma enorme massa cujos membros vivem em condições semelhantes, mas sem estabelecer relações múltiplas entre si. Seu modo de produção os isola um do outro, em vez de colocá-los em relações mútuas. O isolamento é agravado pelos meios de comunicação deficientes da França e pela pobreza dos camponeses...

Uma pequena propriedade, o camponês e sua família; ao lado, outra pequena propriedade, outro camponês e outra família. Algumas vintenas destas constituem uma aldeia e algumas vintenas das vilas constituem um departamento. Assim, a grande massa da nação francesa é formada pela simples adição de magnitudes homólogas, assim como batatas em um saco formam um saco de batatas...

Eles são, portanto, incapazes de afirmar seus interesses de classe em seu próprio nome, seja por meio de um parlamento ou de uma convenção. Eles não podem representar a si mesmos, eles devem ser representados. Seu representante deve, ao mesmo tempo, aparecer como seu mestre, como uma autoridade sobre eles, um poder governamental ilimitado que os protege das outras classes e lhes envia chuva e sol do alto. A influência política dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no poder executivo o qual subordina a sociedade a si mesma.

Essas linhas, embora escritas para descrever a França de meados do século XIX, dão voz às percepções dos afegãos do início do século XXI comumente dominadas por americanos no governo e nas forças armadas dos EUA. Os afegãos são primitivos isolados cuja política arcaica e pré-moderna poderia ser reduzida às necessidades materiais, à hierarquia de Maslow e ao senhorio-da-guerra, pois era um dado adquirido que a maioria dos afegãos se ligaria aos senhores-da-guerra. Sim, supervisionamos o estabelecimento de uma legislatura, mas consideramos a democracia representativa uma piada e nos concentramos em trabalhar com e por meio de senhores-da-guerra. Presumimos que os senhores-da-guerra eram tudo o que importava, garantindo assim que eles eram tudo o que importava. Bloqueamos os afegãos interessados em outras formas de governo e impedimos o desenvolvimento de políticas democráticas liberais, ao mesmo tempo que garantimos que o Estado não detivesse o monopólio do uso legítimo da violência.

Marx estava certo? De jeito nenhum. Os historiadores franceses separaram as suposições de Marx sobre os eleitores franceses, os camponeses franceses e a política francesa, demonstrando que mesmo as comunidades aparentemente mais arcaicas muitas vezes estavam conectadas ao mundo maior em graus surpreendentes e tinham uma compreensão sofisticada do quadro mais amplo, ou pelo menos não menos sofisticado do que o que se pode encontrar entre atores políticos aparentemente modernos. Quanto ao Afeganistão do início do século XXI, a visão dos americanos de um Afeganistão arcaico ignorou totalmente as profundas consequências da Guerra Soviética e da guerra civil subsequente, que deslocou milhões e forçou muitos deles a residirem em campos no Paquistão e no Irã, onde encontraram-se uns aos outros e o mundo exterior. Ignorou os efeitos da mídia de massa e, subsequentemente, dos telefones celulares. Ignorou os efeitos da urbanização e, em seguida, o rápido crescimento da alfabetização. Aquele Afeganistão arcaico pré-moderno que os americanos imaginaram, se é que algum dia existiu, se foi. Claro, era possível encontrar muitas comunidades aparentemente arcaicas, especialmente nas áreas infestadas pelo Talibã que os soldados da ISAF frequentavam, mas as aparências frequentemente enganavam e, em qualquer caso, esses afegãos não eram a maioria dos afegãos da mesma forma que os habitantes empobrecidos indigentes dos Apalaches não representam a maioria dos americanos.

Isso é importante por vários motivos. Primeiro, a visão marxista minou os esforços americanos para democratizar e promover a política moderna. Fizemos essas coisas sem acreditarmos nelas; não fizemos um esforço sério para desenvolver políticas democráticas; fizemos muitas coisas que minaram diretamente a democratização. Por exemplo, supervisionamos a elaboração e implementação de uma lei eleitoral desastrosa e, subsequentemente, não fizemos nenhum esforço para corrigi-la, não estando convencidos, ao que parece, de sua importância. Da mesma forma, as eleições de 2004 e 2005 geraram milhares de páginas de relatórios bem documentados detalhando todas as maneiras pelas quais as falhas no processo eleitoral minaram a credibilidade eleitoral, mas o governo americano as ignorou, assim como mais tarde ignorou a trapaça de Hamid Karzai em 2009. Por quê? Porque se os afegãos realmente fossem tão arcaicos quanto se acreditava, as eleições não importavam. A legitimidade do Estado não importava.

Por último, é importante porque a doutrina COIN que imaginávamos estar aplicando deixa claro que a legitimidade é tudo; a política é tudo. Tratava-se de fortalecer a legitimidade do Estado afegão e cultivar o máximo que pudéssemos políticas que fortalecessem a república afegã e reunissem para ela todos os incontáveis afegãos que tinham interesse em seu sucesso. Isso significava, entre outras coisas, encorajar a política democrática. Também significava focar na 'maioria' dos afegãos, em vez dos habitantes indigentes, e engajar-se com aqueles que habitavam nossas "manchas de petróleo" [zonas de influência] para ajudar a mobilizá-los, em vez de ignorá-los com a sensação de que eles não poderiam ser mobilizados por estarem presos na base da pirâmide de Maslow e do senhorio-da-guerra. Na verdade, para nós, a política afegã não importava; não havia política, mas apenas uma questão de quem controlava qual distrito. Focaríamos nos ataques “cinéticos” e na construção de forças de segurança cuja unidade e motivação nunca atendemos. Talvez tenha sido impossível fazer com que a política democrática criasse raízes no Afeganistão, mas graças em parte à nossa visão marxista dos afegãos, nós quase não tentamos.

Michael Shurkin é um ex-oficial da CIA e cientista político sênior da RAND. Ele é diretor de programas globais da 14 North Strategies e fundador da Shurbros Global Strategies.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:







FOTO: Graduação da primeira classe de policiais especiais femininas afegãs

Mulheres policiais afegãs graduadas em 5 de abril de 2018.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 1º de setembro de 2021.

Seis mulheres da Polícia Nacional Afegã graduaram-se no Comando Geral de Unidades Especiais de Polícia pela primeira graduação do Curso Básico Feminino no Centro de Treinamento da Polícia Especial, no Campo Wak em Cabul, capital do Afeganistão, 5 de abril de 2018.

As mulheres policiais concluíram o curso de sete semanas consistindo em táticas e técnicas policiais especiais, manuseio de evidências, estado de direito, pontaria e aptidão física.

Autoridades do esforço ocidental no país elogiaram o esforço, com o então vice-embaixador da Noruega no Afeganistão, John Almster, disse que o serviço das mulheres policiais ao povo não é apenas necessário, mas vital para o futuro do Afeganistão.

“Vocês devem se orgulhar de sua realização. Admiro sua determinação e coragem durante esses tempos difíceis, porque a reforma da segurança não pode ser bem-sucedida sem a inclusão das mulheres”, disse Almster. O então embaixador da Austrália no Afeganistão, Nicola Gordon-Smith, ecoou os comentários de Almster, declarando: “Ter as mulheres como parte da força policial é fundamental para a segurança do país”.

“O crescimento das forças de segurança afegãs, com a adição de mulheres, é uma prioridade para o presidente do Afeganistão, e hoje estamos um passo mais perto de tornar sua visão uma realidade”, disse o Major-General Sayed Mohamed Khan Roshindal, Comandante  do Comando Geral das Unidades Especiais de Polícia.

A policiais do sexo feminino que se juntaram às Unidades de Missão Nacional da GCPSU desempenharam um papel culturalmente vital nas operações de busca e apreensão e em cenários de alto risco onde mulheres e crianças estão presentes.

Como parte da estratégia da Polícia Nacional Afegã, o governo de Cabul pretendia recrutar mais 5.000 mulheres policiais nos próximos cinco anos (até 2023). No ano anterior de 2017, 190 mulheres afegãs participaram de um curso intensivo de treinamento policial de quatro meses em Sivas, na Turquia.

Bibliografia recomendada:

A Mulher Militar:
Das origens aos nossos dias.
Raymond Caire.


Leitura recomendada:






quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Três lições para a Europa com a queda do Afeganistão

Pessoas embarcam em um avião A400 da Força Aérea Espanhola como parte de um plano de evacuação no aeroporto de Cabul, no Afeganistão, na quarta-feira, 18 de agosto de 2021.
(Picture Alliance)

Por Jean-Marie GuéhennoEuropean Council on Foreign Relations, 19 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 2 de setembro de 2021.

Os europeus nunca levaram a sério o Afeganistão.

Provavelmente porque, no fundo, eles sabiam que a responsabilidade não parava com eles. Agora parece provável que a tomada do país pelo Talibã deixará os europeus ainda mais introvertidos e temerosos de um mundo que eles não entendem. E o consenso emergente de que a construção do Estado é impossível pode aumentar sua ansiedade em relação a engajamentos estrangeiros.

A Europa precisa olhar atentamente para o que funcionou e o que não funcionou no Afeganistão. Só então ela pode gradualmente e de forma realista construir suas próprias capacidades, em vez de almejar esquemas grandiosos que carecem de apoio público.

Essa mentalidade é um ácido que destrói os laços que deveriam unir os europeus, levando aos tipos de atitudes xenófobas que estavam em evidência durante a crise migratória criada pela guerra na Síria. Enquanto os refugiados fugiam da violência na Síria, os europeus foram confrontados com uma escolha desagradável entre construir muros cada vez mais altos, fechar acordos desagradáveis com os chamados países-tampão ou perder o controle dos fluxos migratórios. No entanto, há apenas uma pequena distância entre aceitar que algumas pessoas não podem ser ajudadas e pensar que não vale a pena ajudá-las. A autoconfiança da Europa - que é essencial para moldar ativamente o seu próprio futuro - foi prejudicada não apenas por suas fracas capacidades operacionais, mas, e mais ainda, pela crise ética de um continente que se diz universalista, mas que reserva isso universalismo para suas tribos privilegiadas.

No entanto, há lições melhores a tirar da débâcle do Afeganistão, que em breve poderá se repetir em outros países no soro - como a Somália, um Estado com o qual os europeus se engajaram há anos. Há o risco de que a enormidade da missão dos Estados Unidos no Afeganistão - custando trilhões de dólares - convença os europeus de que é inútil para eles se envolverem em tais missões, visto que têm muito menos recursos do que seu aliado americano. Mas isso seria uma leitura muito superficial da situação. Nos últimos anos, a presença americana no terreno foi limitada a menos de 5.000 soldados. E o custo humano para as forças armadas dos Estados Unidos terá sido de menos de 5.000 baixas em duas décadas, em comparação com mais de 58.000 em uma década durante a Guerra do Vietnã.

A Europa precisa olhar atentamente para o que funcionou e o que não funcionou no Afeganistão. Só então ela pode gradualmente e de forma realista construir suas próprias capacidades, em vez de almejar esquemas grandiosos que carecem de apoio público.

Ajudar as sociedades a se transformarem é um empreendimento geracional. É impossível ter sucesso nisso se, como diz o ditado, temos os relógios e o inimigo tem o tempo.

A reforma do setor de segurança é um bom ponto de partida. Esse domínio está no cerne de qualquer estratégia de construção do Estado (se aceitarmos a definição weberiana de um Estado como uma organização que detém o monopólio do uso legítimo da força). Todos os outros aspectos da consolidação do Estado - educação, saúde, infraestrutura - dependem dela. Sem fornecer segurança, o Estado não pode alcançar nenhum progresso duradouro. Este é também um domínio em que, da Somália ao Mali e à República Centro-Africana, a União Europeia e os Estados europeus desempenham um papel significativo - através de missões de formação e cooperação bilateral. Os eventos recentes no Afeganistão fornecem três lições cruciais a esse respeito.

Base da Força-Tarefa Takuba, de forças especiais europeias, no Sahel.

A primeira lição é que uma presença estrangeira muito limitada, combinada com apoio aéreo aproximado às forças nacionais, manteve o Talibã sob controle por vários anos e criou um impasse durante o qual uma sociedade mais aberta poderia ganhar força. O exoesqueleto fornecido por uma presença militar estrangeira limitada permite que um frágil exército se mantenha firme. É um modelo que os europeus deveriam estudar e possivelmente replicar no Sahel. Isso pode não exigir um grande aumento militar, mas atualmente está além das capacidades da Europa.

A segunda lição diz respeito ao que deu errado no esforço americano para construir o exército afegão. As forças armadas dos países ricos - especialmente os Estados Unidos - não sabem como encontrar o equilíbrio certo entre modernizar os exércitos dos Estados pobres e garantir que a modernização seja sustentável. Os exércitos padrão OTAN dependem de um sistema de apoio crítico no qual os batalhões de infantaria são apenas a ponta da lança. Os componentes essenciais do sistema incluem consciência situacional por meio de recursos de inteligência integrados, cadeias de logística complexas e caras, capacidade de evacuação médica rápida e apoio aéreo aproximado. Quando as forças locais contam com o apoio de uma força expedicionária ocidental, como foi o caso no Afeganistão por muitos anos, essas capacidades fornecem a elas uma vantagem considerável. Mas, se o aliado ocidental puxar o plugue, a força local ficará fraca e despreparada, tendo perdido a capacidade de operar de forma independente. Se, além disso, o sistema de folha de pagamento da força é disfuncional por causa da corrupção, os soldados ficam totalmente desmoralizados e sem vontade de lutar.

Soldados franceses no Mali.

A terceira lição da experiência afegã para a Europa diz respeito ao cronograma dos compromissos estrangeiros. O apoio externo a um exército frágil dá aos Estados o espaço e o tempo de que precisam para transformar a sociedade. Esse é um ganho importante: ao contrário do que muitos agora dizem sobre o Afeganistão, muita coisa mudou para melhor no país. E pode ter sido um equívoco insistir em uma estratégia de saída - impulsionada por considerações políticas domésticas em vez de fatores objetivos - considerando o custo relativamente baixo de uma pequena pegada militar e o custo potencialmente alto do colapso do governo afegão. Ajudar as sociedades a se transformarem é um empreendimento geracional. É impossível ter sucesso nisso se, como diz o ditado, temos os relógios e o inimigo tem o tempo.

Podem as democracias, europeias ou não, terem tamanha paciência estratégica? Qualquer estratégia de saída depende da disposição dos soldados de um exército nacional de darem suas vidas por um país em cuja liderança eles confiam. Se eles não respeitarem seus oficiais, se desprezarem seus líderes, ou se suspeitarem que eles perseguem apenas seus próprios interesses pessoais ou étnicos, um colapso é sempre possível - mesmo depois de décadas de esforços. É por isso que, se os europeus tirarem as lições certas do Afeganistão e se prepararem para engajamentos estrangeiros limitados, mas contínuos, eles devem ficar de olho no contexto político dessas missões. Eles nunca devem esquecer que o processo de consolidação política é vital para o sucesso a longo prazo.

Jean-Marie Guéhenno é professor de práxis e diretor do Programa de Liderança em Resolução de Conflitos Global Kent na Columbia SIPA. Ele também é membro do Conselho Consultivo de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Mediação. Ele está publicando um novo livro de ensaios em setembro de 2021 - "Le Premier XXIème siècle, de la globalization à l’émiettement du monde".

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Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
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