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domingo, 5 de setembro de 2021

O estranho marxismo do governo americano e seu fracasso no Afeganistão


Por Michael Shurkin, Linkedin, 23 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

Enquanto nos atropelamos para chegar a um acordo sobre o que deu errado no Afeganistão, eu gostaria de destacar certas imitações intelectuais que tiveram consequências importantes sobre como o governo e os militares americanos abordaram o Afeganistão e suas ações no terreno. Muitas vezes ouve-se a alegação de que erramos ao tentar ocidentalizar o Afeganistão porque subestimamos a inadequação dos afegãos para a modernização. O oposto era verdadeiro: minando nossos próprios esforços de modernização, muitas vezes caros, estava um ceticismo profundamente arraigado que atrapalhava esses esforços e nos encorajava a nos concentrarmos em outro lugar. Membros do governo e das forças armadas dos Estados Unidos, apesar da retórica do Departamento de Estado, tinham uma visão estranhamente marxista da política afegã que encorajava o desconto do valor da democratização e nos confortava em nossa ignorância. Já sabíamos tudo o que havia para saber sobre os afegãos e a política afegã.

A visão abrangente do Afeganistão e da política afegã ecoou as opiniões de Marx sobre o que distinguia a política pré-moderna da moderna. O primeiro trata das necessidades imediatas de pessoas isoladas, sem noção do quadro geral, seja do mercado nacional e internacional ou da dinâmica de classes. Pessoas que se revoltam com o preço do pão porque estão com fome é um exemplo clássico. A política moderna é outra coisa: elas revelam uma consciência do quadro mais amplo, muitas vezes resultante de estar conectado ao mundo mais amplo. Marx usou essa distinção em sua análise dos padrões de votação na França em 1848, quando se esforçou para explicar por que os franceses votariam em Louis-Napoléon Bonaparte [Napoleão III], um homem que claramente, ele pensava, se opunha aos interesses de classe da maioria dos eleitores franceses. A resposta de Marx foi denegrir os eleitores franceses, muitos se não a maioria dos quais eram agricultores, como arcaicos pré-modernos. Vale a pena repetir as passagens-chave do 18º Brumário:

Os pequenos camponeses formam uma enorme massa cujos membros vivem em condições semelhantes, mas sem estabelecer relações múltiplas entre si. Seu modo de produção os isola um do outro, em vez de colocá-los em relações mútuas. O isolamento é agravado pelos meios de comunicação deficientes da França e pela pobreza dos camponeses...

Uma pequena propriedade, o camponês e sua família; ao lado, outra pequena propriedade, outro camponês e outra família. Algumas vintenas destas constituem uma aldeia e algumas vintenas das vilas constituem um departamento. Assim, a grande massa da nação francesa é formada pela simples adição de magnitudes homólogas, assim como batatas em um saco formam um saco de batatas...

Eles são, portanto, incapazes de afirmar seus interesses de classe em seu próprio nome, seja por meio de um parlamento ou de uma convenção. Eles não podem representar a si mesmos, eles devem ser representados. Seu representante deve, ao mesmo tempo, aparecer como seu mestre, como uma autoridade sobre eles, um poder governamental ilimitado que os protege das outras classes e lhes envia chuva e sol do alto. A influência política dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no poder executivo o qual subordina a sociedade a si mesma.

Essas linhas, embora escritas para descrever a França de meados do século XIX, dão voz às percepções dos afegãos do início do século XXI comumente dominadas por americanos no governo e nas forças armadas dos EUA. Os afegãos são primitivos isolados cuja política arcaica e pré-moderna poderia ser reduzida às necessidades materiais, à hierarquia de Maslow e ao senhorio-da-guerra, pois era um dado adquirido que a maioria dos afegãos se ligaria aos senhores-da-guerra. Sim, supervisionamos o estabelecimento de uma legislatura, mas consideramos a democracia representativa uma piada e nos concentramos em trabalhar com e por meio de senhores-da-guerra. Presumimos que os senhores-da-guerra eram tudo o que importava, garantindo assim que eles eram tudo o que importava. Bloqueamos os afegãos interessados em outras formas de governo e impedimos o desenvolvimento de políticas democráticas liberais, ao mesmo tempo que garantimos que o Estado não detivesse o monopólio do uso legítimo da violência.

Marx estava certo? De jeito nenhum. Os historiadores franceses separaram as suposições de Marx sobre os eleitores franceses, os camponeses franceses e a política francesa, demonstrando que mesmo as comunidades aparentemente mais arcaicas muitas vezes estavam conectadas ao mundo maior em graus surpreendentes e tinham uma compreensão sofisticada do quadro mais amplo, ou pelo menos não menos sofisticado do que o que se pode encontrar entre atores políticos aparentemente modernos. Quanto ao Afeganistão do início do século XXI, a visão dos americanos de um Afeganistão arcaico ignorou totalmente as profundas consequências da Guerra Soviética e da guerra civil subsequente, que deslocou milhões e forçou muitos deles a residirem em campos no Paquistão e no Irã, onde encontraram-se uns aos outros e o mundo exterior. Ignorou os efeitos da mídia de massa e, subsequentemente, dos telefones celulares. Ignorou os efeitos da urbanização e, em seguida, o rápido crescimento da alfabetização. Aquele Afeganistão arcaico pré-moderno que os americanos imaginaram, se é que algum dia existiu, se foi. Claro, era possível encontrar muitas comunidades aparentemente arcaicas, especialmente nas áreas infestadas pelo Talibã que os soldados da ISAF frequentavam, mas as aparências frequentemente enganavam e, em qualquer caso, esses afegãos não eram a maioria dos afegãos da mesma forma que os habitantes empobrecidos indigentes dos Apalaches não representam a maioria dos americanos.

Isso é importante por vários motivos. Primeiro, a visão marxista minou os esforços americanos para democratizar e promover a política moderna. Fizemos essas coisas sem acreditarmos nelas; não fizemos um esforço sério para desenvolver políticas democráticas; fizemos muitas coisas que minaram diretamente a democratização. Por exemplo, supervisionamos a elaboração e implementação de uma lei eleitoral desastrosa e, subsequentemente, não fizemos nenhum esforço para corrigi-la, não estando convencidos, ao que parece, de sua importância. Da mesma forma, as eleições de 2004 e 2005 geraram milhares de páginas de relatórios bem documentados detalhando todas as maneiras pelas quais as falhas no processo eleitoral minaram a credibilidade eleitoral, mas o governo americano as ignorou, assim como mais tarde ignorou a trapaça de Hamid Karzai em 2009. Por quê? Porque se os afegãos realmente fossem tão arcaicos quanto se acreditava, as eleições não importavam. A legitimidade do Estado não importava.

Por último, é importante porque a doutrina COIN que imaginávamos estar aplicando deixa claro que a legitimidade é tudo; a política é tudo. Tratava-se de fortalecer a legitimidade do Estado afegão e cultivar o máximo que pudéssemos políticas que fortalecessem a república afegã e reunissem para ela todos os incontáveis afegãos que tinham interesse em seu sucesso. Isso significava, entre outras coisas, encorajar a política democrática. Também significava focar na 'maioria' dos afegãos, em vez dos habitantes indigentes, e engajar-se com aqueles que habitavam nossas "manchas de petróleo" [zonas de influência] para ajudar a mobilizá-los, em vez de ignorá-los com a sensação de que eles não poderiam ser mobilizados por estarem presos na base da pirâmide de Maslow e do senhorio-da-guerra. Na verdade, para nós, a política afegã não importava; não havia política, mas apenas uma questão de quem controlava qual distrito. Focaríamos nos ataques “cinéticos” e na construção de forças de segurança cuja unidade e motivação nunca atendemos. Talvez tenha sido impossível fazer com que a política democrática criasse raízes no Afeganistão, mas graças em parte à nossa visão marxista dos afegãos, nós quase não tentamos.

Michael Shurkin é um ex-oficial da CIA e cientista político sênior da RAND. Ele é diretor de programas globais da 14 North Strategies e fundador da Shurbros Global Strategies.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:







FOTO: Graduação da primeira classe de policiais especiais femininas afegãs

Mulheres policiais afegãs graduadas em 5 de abril de 2018.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 1º de setembro de 2021.

Seis mulheres da Polícia Nacional Afegã graduaram-se no Comando Geral de Unidades Especiais de Polícia pela primeira graduação do Curso Básico Feminino no Centro de Treinamento da Polícia Especial, no Campo Wak em Cabul, capital do Afeganistão, 5 de abril de 2018.

As mulheres policiais concluíram o curso de sete semanas consistindo em táticas e técnicas policiais especiais, manuseio de evidências, estado de direito, pontaria e aptidão física.

Autoridades do esforço ocidental no país elogiaram o esforço, com o então vice-embaixador da Noruega no Afeganistão, John Almster, disse que o serviço das mulheres policiais ao povo não é apenas necessário, mas vital para o futuro do Afeganistão.

“Vocês devem se orgulhar de sua realização. Admiro sua determinação e coragem durante esses tempos difíceis, porque a reforma da segurança não pode ser bem-sucedida sem a inclusão das mulheres”, disse Almster. O então embaixador da Austrália no Afeganistão, Nicola Gordon-Smith, ecoou os comentários de Almster, declarando: “Ter as mulheres como parte da força policial é fundamental para a segurança do país”.

“O crescimento das forças de segurança afegãs, com a adição de mulheres, é uma prioridade para o presidente do Afeganistão, e hoje estamos um passo mais perto de tornar sua visão uma realidade”, disse o Major-General Sayed Mohamed Khan Roshindal, Comandante  do Comando Geral das Unidades Especiais de Polícia.

A policiais do sexo feminino que se juntaram às Unidades de Missão Nacional da GCPSU desempenharam um papel culturalmente vital nas operações de busca e apreensão e em cenários de alto risco onde mulheres e crianças estão presentes.

Como parte da estratégia da Polícia Nacional Afegã, o governo de Cabul pretendia recrutar mais 5.000 mulheres policiais nos próximos cinco anos (até 2023). No ano anterior de 2017, 190 mulheres afegãs participaram de um curso intensivo de treinamento policial de quatro meses em Sivas, na Turquia.

Bibliografia recomendada:

A Mulher Militar:
Das origens aos nossos dias.
Raymond Caire.


Leitura recomendada:






quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Três lições para a Europa com a queda do Afeganistão

Pessoas embarcam em um avião A400 da Força Aérea Espanhola como parte de um plano de evacuação no aeroporto de Cabul, no Afeganistão, na quarta-feira, 18 de agosto de 2021.
(Picture Alliance)

Por Jean-Marie GuéhennoEuropean Council on Foreign Relations, 19 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 2 de setembro de 2021.

Os europeus nunca levaram a sério o Afeganistão.

Provavelmente porque, no fundo, eles sabiam que a responsabilidade não parava com eles. Agora parece provável que a tomada do país pelo Talibã deixará os europeus ainda mais introvertidos e temerosos de um mundo que eles não entendem. E o consenso emergente de que a construção do Estado é impossível pode aumentar sua ansiedade em relação a engajamentos estrangeiros.

A Europa precisa olhar atentamente para o que funcionou e o que não funcionou no Afeganistão. Só então ela pode gradualmente e de forma realista construir suas próprias capacidades, em vez de almejar esquemas grandiosos que carecem de apoio público.

Essa mentalidade é um ácido que destrói os laços que deveriam unir os europeus, levando aos tipos de atitudes xenófobas que estavam em evidência durante a crise migratória criada pela guerra na Síria. Enquanto os refugiados fugiam da violência na Síria, os europeus foram confrontados com uma escolha desagradável entre construir muros cada vez mais altos, fechar acordos desagradáveis com os chamados países-tampão ou perder o controle dos fluxos migratórios. No entanto, há apenas uma pequena distância entre aceitar que algumas pessoas não podem ser ajudadas e pensar que não vale a pena ajudá-las. A autoconfiança da Europa - que é essencial para moldar ativamente o seu próprio futuro - foi prejudicada não apenas por suas fracas capacidades operacionais, mas, e mais ainda, pela crise ética de um continente que se diz universalista, mas que reserva isso universalismo para suas tribos privilegiadas.

No entanto, há lições melhores a tirar da débâcle do Afeganistão, que em breve poderá se repetir em outros países no soro - como a Somália, um Estado com o qual os europeus se engajaram há anos. Há o risco de que a enormidade da missão dos Estados Unidos no Afeganistão - custando trilhões de dólares - convença os europeus de que é inútil para eles se envolverem em tais missões, visto que têm muito menos recursos do que seu aliado americano. Mas isso seria uma leitura muito superficial da situação. Nos últimos anos, a presença americana no terreno foi limitada a menos de 5.000 soldados. E o custo humano para as forças armadas dos Estados Unidos terá sido de menos de 5.000 baixas em duas décadas, em comparação com mais de 58.000 em uma década durante a Guerra do Vietnã.

A Europa precisa olhar atentamente para o que funcionou e o que não funcionou no Afeganistão. Só então ela pode gradualmente e de forma realista construir suas próprias capacidades, em vez de almejar esquemas grandiosos que carecem de apoio público.

Ajudar as sociedades a se transformarem é um empreendimento geracional. É impossível ter sucesso nisso se, como diz o ditado, temos os relógios e o inimigo tem o tempo.

A reforma do setor de segurança é um bom ponto de partida. Esse domínio está no cerne de qualquer estratégia de construção do Estado (se aceitarmos a definição weberiana de um Estado como uma organização que detém o monopólio do uso legítimo da força). Todos os outros aspectos da consolidação do Estado - educação, saúde, infraestrutura - dependem dela. Sem fornecer segurança, o Estado não pode alcançar nenhum progresso duradouro. Este é também um domínio em que, da Somália ao Mali e à República Centro-Africana, a União Europeia e os Estados europeus desempenham um papel significativo - através de missões de formação e cooperação bilateral. Os eventos recentes no Afeganistão fornecem três lições cruciais a esse respeito.

Base da Força-Tarefa Takuba, de forças especiais europeias, no Sahel.

A primeira lição é que uma presença estrangeira muito limitada, combinada com apoio aéreo aproximado às forças nacionais, manteve o Talibã sob controle por vários anos e criou um impasse durante o qual uma sociedade mais aberta poderia ganhar força. O exoesqueleto fornecido por uma presença militar estrangeira limitada permite que um frágil exército se mantenha firme. É um modelo que os europeus deveriam estudar e possivelmente replicar no Sahel. Isso pode não exigir um grande aumento militar, mas atualmente está além das capacidades da Europa.

A segunda lição diz respeito ao que deu errado no esforço americano para construir o exército afegão. As forças armadas dos países ricos - especialmente os Estados Unidos - não sabem como encontrar o equilíbrio certo entre modernizar os exércitos dos Estados pobres e garantir que a modernização seja sustentável. Os exércitos padrão OTAN dependem de um sistema de apoio crítico no qual os batalhões de infantaria são apenas a ponta da lança. Os componentes essenciais do sistema incluem consciência situacional por meio de recursos de inteligência integrados, cadeias de logística complexas e caras, capacidade de evacuação médica rápida e apoio aéreo aproximado. Quando as forças locais contam com o apoio de uma força expedicionária ocidental, como foi o caso no Afeganistão por muitos anos, essas capacidades fornecem a elas uma vantagem considerável. Mas, se o aliado ocidental puxar o plugue, a força local ficará fraca e despreparada, tendo perdido a capacidade de operar de forma independente. Se, além disso, o sistema de folha de pagamento da força é disfuncional por causa da corrupção, os soldados ficam totalmente desmoralizados e sem vontade de lutar.

Soldados franceses no Mali.

A terceira lição da experiência afegã para a Europa diz respeito ao cronograma dos compromissos estrangeiros. O apoio externo a um exército frágil dá aos Estados o espaço e o tempo de que precisam para transformar a sociedade. Esse é um ganho importante: ao contrário do que muitos agora dizem sobre o Afeganistão, muita coisa mudou para melhor no país. E pode ter sido um equívoco insistir em uma estratégia de saída - impulsionada por considerações políticas domésticas em vez de fatores objetivos - considerando o custo relativamente baixo de uma pequena pegada militar e o custo potencialmente alto do colapso do governo afegão. Ajudar as sociedades a se transformarem é um empreendimento geracional. É impossível ter sucesso nisso se, como diz o ditado, temos os relógios e o inimigo tem o tempo.

Podem as democracias, europeias ou não, terem tamanha paciência estratégica? Qualquer estratégia de saída depende da disposição dos soldados de um exército nacional de darem suas vidas por um país em cuja liderança eles confiam. Se eles não respeitarem seus oficiais, se desprezarem seus líderes, ou se suspeitarem que eles perseguem apenas seus próprios interesses pessoais ou étnicos, um colapso é sempre possível - mesmo depois de décadas de esforços. É por isso que, se os europeus tirarem as lições certas do Afeganistão e se prepararem para engajamentos estrangeiros limitados, mas contínuos, eles devem ficar de olho no contexto político dessas missões. Eles nunca devem esquecer que o processo de consolidação política é vital para o sucesso a longo prazo.

Jean-Marie Guéhenno é professor de práxis e diretor do Programa de Liderança em Resolução de Conflitos Global Kent na Columbia SIPA. Ele também é membro do Conselho Consultivo de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Mediação. Ele está publicando um novo livro de ensaios em setembro de 2021 - "Le Premier XXIème siècle, de la globalization à l’émiettement du monde".

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

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quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Atirando pedras em um incêndio: uma história de meus nove meses treinando soldados afegãos

O autor com dois soldados ANA.
(Cortesia do autor)

Por Dustin Gladwell, SOFREP, 23 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de agosto de 2021.

“O quartel dos seus soldados afegãos está pegando fogo.”

Eu tinha acabado de me sentar com meu café da manhã em nossa pequena sala de jantar na Firebase Cobra, na província de Uruzgan, no norte, quando o capitão da equipe ODA do 3º Grupo de Forças Especiais se aproximou casualmente de mim. Parei no meio da mastigação, meu garfo pendurado no ar, a meio caminho entre minha boca e meu prato. Reconheço que demorei um pouco para processar o que ele acabou de dizer, especialmente devido à natureza relaxada de seu comportamento e à expressão cômica em seu rosto.

"O quê?" Eu perguntei a ele.

“Claro que está”, pensei. “Por que não estaria?”

Ele ficou lá, claramente ainda se divertindo, e provavelmente curtindo o momento ao máximo.

“Roger, senhor. Obrigado!" Eu pulei, joguei meu prato quase cheio de café da manhã no lixo no caminho para fora da porta e corri pela área de preparação para o nosso lado da Firebase (base de fogo), através do grande portão de metal que separava nosso lado da base do lado afegão. Ao chegar ao portão e dobrar a esquina, vi a fumaça. Com certeza, assim como o capitão havia dito, o pequeno quartel, feito de blocos de concreto e madeira compensada, pertencente ao Exército Nacional Afegão (Afghan National ArmyANA) estava, na verdade, em chamas. Até aquele momento, eu meio que esperava que ele estivesse apenas brincando comigo.

Atirar pedras em um incêndio não ajudará a apagá-lo

Logo depois que vi a fumaça e as chamas começando a sair do quartel, vi três dos meus homens ANA parados do lado de fora da entrada do quartel. Eles estavam pegando pedras do chão e jogando-as na porta do quartel na tentativa de apagar o fogo.

Eu prometo que não estou inventando isso. Não apenas fiquei surpreso ao saber que seu quartel estava em chamas, mas provavelmente fiquei mais surpreso ao vê-los atirando pedras para apagar o incêndio.

Quando cheguei à porta e disse-lhes para pararem, entrei parcialmente pela porta para ter certeza de que os outros soldados estavam sendo evacuados. Eu só podia ver alguns deles parados do lado de fora, então eu sabia que muitos mais ainda deviam estar lá. Eu também estava tentando dar uma olhada rápida em quão sério estava o fogo.

Quando olhei para dentro, pude ver que os cobertores no chão e nas paredes estavam em chamas. As paredes de compensado também estavam começando a pagar fogo.

Nesse momento, a maioria dos soldados ANA começou a correr pelo corredor, passando pelo fogo e saindo pela porta. Felizmente, alguns deles tinham mais presença de espírito do que seus amigos gênios atiradores de pedras e ajudaram o resto a sair. Algumas pequenas queimaduras foram os únicos feridos.

Acontece que eles estavam tomando seu chá da manhã e um dos afegãos chutou o queimador de gás propano que estava sendo usado para ferver a água. Que rapidamente acendeu os cobertores no chão. Em vez de simplesmente pegar o queimador pelo tanque e começar a abafar as chamas com seus outros cobertores ou com a água, eles simplesmente o deixaram ali no chão, queimando e acendendo mais cobertores. A grande ideia deles era sair correndo e começar a atirar pedras. Não pegar o queimador, nem tentar apagar o fogo, nem contar aos colegas, nem pedir ajuda. Nada. Pedras.

Só no Afeganistão.

Cobertores e madeira compensada seca queimam muito rapidamente no deserto

Companhia de infantaria do Exército Nacional Afegão na Firebase Cobra, em Uruzgan.
(Cortesia do autor)

Nesse ponto, o fogo já estava queimando por alguns minutos. Alguns dos soldados afegãos mais hábeis perceberam que todos haviam fugido sem seus pertences e equipamentos. Pude ver que o fogo estava se espalhando rapidamente e, como havia começado na sala bem ao lado da porta da frente, não haveria maneira segura de entrar ou sair. Assim que eles tentaram correr para dentro e recuperar seus equipamentos e pertences, eu intervi.

"Deixem. Vamos substituí-los”, eu disse por meio do meu intérprete, enquanto os empurrava fisicamente para trás pelo peito.

Foi aí que a munição começou a disparar sozinha. A munição de fuzil e metralhadora de cinta começou a disparar como fogos de artifício, e não muito tempo depois, as granadas e foguetes RPG. Nós nos mudamos para trás da parede para o complexo apenas esperando e observando. Embora todos estivessem preocupados com o fato de terem perdido seus equipamentos, roupas e os poucos dólares e bens que tinham em vida, não havia mais nada a fazer a não ser observar. Não podíamos chegar perto o suficiente para tentar apagar o fogo com água também.

Longa história resumida, eles perderam tudo. Assim que o fogo se extinguiu e esperamos várias horas para que toda a munição disparasse, borrifamos água sobre tudo por garantia e começamos a avaliar os danos. Em um dia, substituímos todos os uniformes, armas, munições e equipamentos e fornecemos a eles um pouco de dinheiro extra. Felizmente, ninguém ficou ferido.

Encontramos todos os fuzis, pistolas, metralhadoras e lançadores de RPG. Cada um foi queimado, carbonizado e parcialmente derretido. Não havia como salvar nenhum deles. Prestamos contas de cada um, carregamo-los em um palete e os colocamos em um helicóptero com destino a Kandahar. Lembre-se deste ponto, porque é importante: nós contabilizamos cada um e nós, os americanos, os carregamos no helicóptero.

Quatro meses depois...

Negociando no mercado da vila de Oshay fora da Firebase Cobra.
(Cortesia do autor)

Eu tinha sido rotacionado para outra base de fogo e depois para a base aérea de Kandahar. A companhia de infantaria afegã, cujo quartel havia pegado fogo quatro meses atrás, também foi transferida de volta para a base aérea de Kandahar.

Um dia, enquanto eu estava cuidando de algumas coisas na base afegã, perto da base aérea, cruzei com a companhia por acidente. Eu não esperava vê-los lá e não sabia que eles haviam sido rotacionados. Após uma rápida saudação, um dos intérpretes pediu para falar comigo.

Após o evento com o incêndio e por meio de missões de combate e patrulhas, esta companhia afegã passou a confiar um pouco em nós. Mais do que seus outros conselheiros, inclusive.

Eles eram novos em nossa base de fogo quando atearam fogo no quartel deles, e havia tensão entre nós. Nos primeiros dias, eles testaram a água comigo e com meus colegas e tentaram ver até onde poderiam nos empurrar. Eles tiveram experiências ruins com outros conselheiros e Instrutores Táticos Embutidos (Embedded Tactical Trainers, ETT) no passado e muitas vezes se sentiram negligenciados, abusados ou simplesmente que não se importavam com eles.

Este incêndio se tornou um evento fortuito. Eu havia ganhado a confiança deles e eles sabiam que eu estava protegendo-os, já que não os deixei - ou os fiz - correr no fogo para recuperar suas armas, e substituímos tudo muito rapidamente. Também não os culpamos nem os punimos. Foi um acidente estúpido e bobo. E pelo lado bom, eles ganharam coisas novas. Ganha, ganha, ganha.

Então, agora, alguns deles, junto com o intérprete, puxaram-me de lado e, em voz baixa, pediram minha ajuda. Eles sabiam que eu os ajudaria.

Seja corrupto ou tenha suas mãos cortadas

Um suboficial do Exército Afegão observa a multidão de moradores e talibãs reunidos durante uma MEDCAP (patrulha de socorro médico), na AO da Firebase Cobra.
(Cortesia do autor)

Como conselheiro do ANA, experimentei essa corrupção da parte dos afegãos regularmente; frequentemente diariamente. Muitas vezes, era um problema tão grande quanto o Talibã e outras forças anti-coalizão. Os oficiais frequentemente roubavam dinheiro, recursos e suprimentos das fileiras de seus subordinados e soldados alistados. O dinheiro acabava em seus bolsos e os suprimentos muitas vezes iam para o mercado negro. Era um sistema de corrupção generalizado e uma regra não-escrita da política dos oficiais. O pensamento é, alguém de cima vai tirar de mim, então eu vou tirar daqueles abaixo.

No Exército dos EUA, diz-se que “há apenas um ladrão no Exército; todo mundo está apenas tentando acompanhar.” Agora multiplique isso por 1.000 em um sistema fermentado por milhares de anos de corrupção, e aí está.

A corrupção mata o moral e a cultura de comando. O soldado médio mal pago, mal treinado e mal equipado não pode arcar com quaisquer razões adicionais para não lutar. Quando você tira a crença deles na causa e no comando, os resultados são desastrosos - como estamos vendo agora.

Agora, vamos falar sobre o Capitão Mohammed. Mohammed foi um dos melhores oficiais e soldados afegãos que já encontrei. Não porque ele fosse necessariamente um oficial de altamente operacional ou estrategista, ou possuísse habilidades incríveis de soldado. Ele nem mesmo saiu em muitas missões. Foi porque ele era honesto. Ele era um bom homem e era bom para seus homens. Na verdade, ele nunca nos deixou dar-lhe dinheiro para sua companhia de infantaria, nem para seus soldados, seu pagamento, nem comida. Ele não queria ser tentado nem acusado de ter feito malversação de fundos. Ele era um muçulmano devoto, moderado, não simpatizava com o Talibã e tinha quatro filhos. Resumindo, ele não era corrupto.

De volta à corrupção que assola e devasta as fileiras da liderança do Exército Nacional Afegão. O Capitão Mohammed não só não tirou dinheiro de seus homens... ele não iria contribuir com a corrupção e suborno de sua cadeia de comando. Ele também não enviaria dinheiro pela cadeia, como era de se esperar. No brilhantismo de sua corrupção, foi determinado por seu comando que, assim que ele voltasse para Kandahar, ele precisava ser punido. Eles precisavam de um exemplo. Ou seu dinheiro.

Lembra de todas as armas queimadas e destruídas no incêndio? Agora, os homens da companhia de infantaria me disseram que de acordo com o S-4 (oficial de suprimentos) do seu batalhão e o comandante do batalhão, havia um AK-47 “desaparecido”. De acordo com esses bons e íntegros oficiais do Exército Afegão, o Capitão Mohammed roubou este AK-47 desaparecido e "deve tê-lo vendido no mercado e levado o dinheiro". E a menos que ele pudesse produzir esta arma, ou o dinheiro, e dar a eles, eles iriam prendê-lo, colocá-lo na prisão e cortar suas mãos por roubo.

Só no Afeganistão.

"Se você tentar prendê-lo, terá que passar por mim"

Assim que soube o que estava acontecendo, fui imediatamente procurar o Capitão Mohammed. Ele estava em seu beliche, cercado por mais alguns de seus soldados. Todos eles pareciam bastante preocupados. Ele corroborou tudo o que acabei de ouvir.

“Eu não fiz isso”, disse-me ele por meio do intérprete. Ele estendeu as mãos como se estivessem algemadas na sua frente. "Eles vão cortar minhas mãos."

“Eu sei,” eu disse. E eu estava furioso. Ele não tinha muito tempo.

Assad, o intérprete, também defendeu o caso do capitão e tentou me convencer a ajudar e fazer alguma coisa. Eu assegurei a ele que sim.

Olhando para trás, tenho sorte de não ter me colocado em problemas também. Fui direto ao meu comandante, um alto e velho Rapaz Sulista da Geórgia. Ele era um major de infantaria e éramos próximos. Contei tudo a ele. Disse-lhe também que era eu quem tinha prestado contas de tudo, não o ANA. Em seguida, fomos ao nosso oficial de suprimentos, outro major, que conhecia aquele bosta oficial de suprimentos afegão. Assim que lhe contamos a história, ele imediatamente foi conosco conversar com ele.

Como você pode imaginar, o oficial de suprimentos afegão agiu com indiferença e como se estivéssemos enganados, em todos os níveis. Não houve “mal-entendido” e a história era que eles simplesmente não podiam aceitar roubo nas fileiras. Ele era um babaca gordo e presunçoso. Ele dispensou a mim e minha história e tentou apenas falar com meus oficiais. Se a memória não falha, acho que o segundo em comando do batalhão também estava lá. Mesmo assim, não conseguimos falar diretamente com o comandante do batalhão.

É importante notar, neste ponto, que mesmo na base aérea de Kandahar, eu estava sempre armado. Certo. Mas todo mundo também. Eu, no entanto, estava sempre travado e carregado (meio que contra as regras). Eu passava um tempo na borda da base aérea e em torno de muitos contratados afegãos, deixava o perímetro da base aérea e saía às ruas para chegar à base afegã e estava sempre com soldados afegãos. Além disso, você simplesmente “nunca sabia” [se algo ruim iria acontecer].

Então, eu me aproximei da mesa daquele oficial de suprimentos idiota, coloquei minhas mãos em sua mesa, certificando-me de que estava claro que eu estava armado mesmo naquele momento. Eu olhei nos olhos dele e disse: “se você tentar prender o capitão Mohammed, você terá que passar por mim primeiro e eu irei impedi-lo”.

Essa foi a melhor coisa que pude pensar naquele momento. Mas... foi na cara e direto ao ponto.

Meus oficiais parecem surpresos, e meu comandante colocou as mãos em meus ombros e gentilmente, mas com força, puxou-me de volta para perto dele.

"Está tudo bem, Sargento Gladwell", disse ele.

O oficial de suprimentos afegão estava claramente perplexo e sem palavras. Ele entendeu. Ele disse que iria "investigar". E então, nós partimos. Terminada a conversa.

Resolvendo as coisas: seja criativo para fazer a coisa certa

Um soldado ANA pratica tiro ao alvo com seu AK-47 fora da base de fogo, na província de Uruzgan.
(Cortesia do autor)

Naquela altura, ninguém tinha ideia do que havia acontecido com aquele carregamento de armas queimadas. Ninguém poderia descobrir o que tinha acontecido depois que elas foram entregues e retiradas dos livros. O que também tornou a situação difícil é que, embora tivéssemos muita autoridade operacional e de combate sobre os afegãos, e eles geralmente fizessem o que queríamos ou sugeríamos, não tínhamos autoridade militar formal sobre eles. E certamente não poderíamos interferir nos procedimentos internos afegãos como este. Mas precisávamos proteger o Capitão Mohammed.

Após a conversa com os oficiais afegãos, voltei para o Capitão Mohammed e sua turma. Contei a eles o que havia acontecido e assegurei que ajudaria a protegê-lo. Dei a eles meu número de celular local. Dei instruções aos seus sargentos e aos intérpretes de que, se o prendessem, ou mesmo tentassem prendê-lo durante a noite, me avisassem - imediatamente. Não seria a primeira vez que quase nos enfrentamos com soldados ou policiais afegãos, e eu estava preparado para fazer isso de novo. Principalmente para fazer a coisa certa e proteger um bom homem.

Lembrei-me de que, em nosso depósito, tínhamos um AK-47 quebrado que havia sido confiscado ou encontrado. Ele ficou lá por semanas. Procurei um dos meus capitães, que era o responsável pelos livros e por nossas coisas, e decidi ser criativo. Seu primeiro nome era Steve, e também éramos amigos.

“Ei, Capitão Steve. Você sabe aquele AK-47 quebrado que você tem em seu escritório... ele pertence a alguém?"

“Umm...” Ele pensou por um momento. "Não, eu acho que não. Eu nem tenho certeza de onde veio."

"Ele está... nos livros?"

"Não que eu saiba."

"Posso ficar com ele?"

Ele riu. "Sério?"

“Afirmativo. Eu vou queimá-lo.”

Depois de uma boa risada, contei-lhe o que estava acontecendo e dei todos os detalhes.

“Vou queimá-lo e direi que o encontrei - que foi meu erro. Então vou largá-lo bem na mesa daquele idiota. Pessoalmente."

"Pegue", disse ele. E então a diversão começou.

Um barril de queima de 50 galões e alguns galões de combustível diesel

Um fogo alimentado por um queimador de propano, uma tonelada de madeira seca e cobertores e munições 7,62 pipocando é realmente quente. Procurei um dos meus bons amigos, um sargento de primeira classe, que sempre atendia pelo nome de Fletch. Até sua esposa o chamava de Fletch.

Fletch era um daqueles caras que era bom com as pessoas e bom em fazer as coisas. Ele era o cara que conhecia todo mundo e podia “fazer as coisas aparecerem”. Por meio de negociações, negociações e negociações, e conversas doces à sua maneira, sempre funcionava do jeito dele. Se você precisava de algo, ele sabia onde e como conseguir. Ele poderia transformar um lápis em um tanque. Ou, pelo menos, um Humvee.

Na verdade, uma vez nós trocamos uma coisa velha ou outra (lixo que não tenho liberdade de divulgar), para colocar em nossas mãos uma caminhonete Ford Ranger semi-quebrada, para então trocar por um Humvee totalmente funcional... fora dos livros… Também uma história verdadeira. Não pergunte, apenas acredite.

Fui a Fletch com meu problema e ele disse: “Conte comigo, irmão”. Entreguei a ele o AK-47 quebrado e voltamos para nossa bebida. Quando voltamos, ele puxou uma Jerry can diesel da traseira de sua picape e jogou um monte de lixo no barril de combustão. Entraram o AK-47 e alguns galões de óleo diesel.

“Temos que deixar muito quente. Parecendo convincente”, disse ele.

Duas horas depois, tínhamos um AK-47 perfeitamente destruído, queimado de forma convincente e semi-derretido. Nós também derramamos água em cima dele, para aumentar a autenticidade - assim como no incêndio real. Na manhã seguinte, assim que esfriou o suficiente, dirigimos para o lado afegão da base aérea. Fletch e eu entramos direto no escritório do oficial de suprimentos, largamos o AK-47 queimado sem cerimônia em sua mesa e eu disse a ele, "encontrei".

Ele olhou para mim, riu nervosamente e disse algo que eu nem me lembro. Provavelmente foi algo bastante estúpido. Ele olhou para o outro cara em seu escritório e disse algo em dari. Não tenho ideia de quem eram os outros caras, ou o que eles disseram.

"Khoobas?" Eu perguntei: [“Tudo bem?” em Dari.] Eu olhei fixamente para ele.

“Khoobas”, ele afirmou. "Tudo certo".

Voltamos ao Capitão Mohammed e eu contei a ele tudo o que havia acontecido e tudo o que fizemos. Ele ficou com os olhos marejados. Ele me deu um abraço e me agradeceu de alma. Situação terminada. Problema resolvido.

Ninguém jamais prendeu o Capitão Mohammed. Ninguém cortou suas mãos também.

Corrupção. E atirar pedras em um incêndio... Exercícios de futilidade. Só no Afeganistão.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:



quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A morte invisível: snipers e a guerra de contra-insurgência


Por Martin Forgues, SOFREP, 8 de janeiro de 2017.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de agosto de 2021.

Muito tem sido escrito sobre as estratégias e táticas de contra-insurgência (COIN) sendo usadas no Afeganistão e no Iraque - ou melhor, não usadas. Em 2007-2008, durante meus dias de exército em Kandahar, lembro-me de comandantes se gabando incessantemente de como “nós acertamos totalmente essa coisa de COIN”, sempre gargarejando citações de especialistas como o estudioso de COIN David Galula. Ele foi um oficial do Exército Francês que lutou na Guerra da Independência da Argélia e é considerado o principal teórico de COIN. Ele é até citado como inspiração para a estratégia "Surge" de David Petraeus no Iraque, ajudando a tornar a guerra um pouco menos o fiasco do que acabou se tornando.

Exceto que não estávamos. Em absoluto. Este é o primeiro de uma série de três artigos que abordará questões sérias sobre a maneira como os Estados Unidos, Canadá e outros países da OTAN conduziam o que pensavam ser operações COIN. Vou sugerir novas abordagens que, em conflitos atuais e futuros, podem melhorar a eficiência e minimizar as mortes de civis de modo que as guerras não possam mais ser, nas palavras do meu ex-comandante de pelotão PSYOPS, "para ganhar tempo".

Parte 1: Snipers


Em outubro de 2007, uma equipe de morteiros talibã estava bombardeando posições canadenses perto de Gundhey Ghar. Uma patrulha de reconhecimento com uma equipe de snipers incorporada foi enviada e eles identificaram a localização dos insurgentes. Carregando um fuzil .50 McMillan TAC-50 (designado C15 no arsenal das Forças Canadenses) com alcance efetivo de 1.970 jardas, os snipers pediram permissão para engajar o inimigo. A autorização para snipers tinha que vir da brigada, ou seja, um general de brigada. Dado o calibre e a velocidade de 2.641 pés da arma, eliminar os insurgentes e desativar o tubo de morteiro estava dentro das capacidades da equipe de snipers, com quase nenhum risco de matar ou ferir civis. Mesmo assim, a permissão foi negada e uma bomba de 500 libras foi lançada sobre os insurgentes.

Objetivo destruído, missão cumprida, certo?

Errado. Vários aldeões afegãos ficaram feridos durante o ataque aéreo. Poucos dias depois, o número de IEDs triplicou na área ao redor da posição canadense. Toda a energia e recursos gastos no estabelecimento de relações vitais com as tribos locais foram destruídos pelos esforços de propaganda do Talibã.

Não está claro o que motivou a decisão de recorrer ao Apoio Aéreo Aproximado em vez de usar a equipe de snipers que já estava disponível e dentro do alcance. Mas se o efeito desejado era enviar uma mensagem sobre o poder de fogo da OTAN, isso significava que o Comando não havia compreendido os conceitos básicos da guerra COIN. Em guerras como a que travamos no Afeganistão, isto é más notícia.

Atirador canadense na Canadian International Sniper Concentration (CISC) em Gagetown, no Canadá.
Ele carrega seu C15A2 (McMillan Tac-50 com armação Cadex, bipé 
Falcon e gatilho DX2 de dois estágios).

Ainda assim, os atiradores de elite são provavelmente um dos muitos recursos militares que mostram o maior potencial ao conduzir operações baseadas em uma estratégia COIN. Ao contrário da guerra convencional, onde soldados uniformizados com capacidades em sua maioria iguais se enfrentam, guerras como a mais recente no Afeganistão envolvem um inimigo perverso que está escondido dentro de uma população local que pode ou não apoiá-los e, em caso afirmativo, frequentemente o faz por medo ou desespero.

Portanto, lutar contra um inimigo não-convencional como os insurgentes talibã e os combatentes estrangeiros da Al-Qaeda principalmente com meios convencionais - tanques, peças de artilharia, infantaria mecanizada - já semeia as sementes da derrota, pois infligem grandes baixas a civis e danos às infraestruturas, muitas vezes aqueles que participam de projetos de reconstrução têm como objetivo melhorar.

Os snipers, por outro lado, conseguem exatamente o oposto. Eles quase não causam vítimas civis, uma ressalva notável é o potencial de espectadores pegos em um fogo cruzado. Os fuzis de precisão modernos, como o TAC-50, têm um alcance incrível e são eficazes contra pessoal, veículos, armas e equipamentos inimigos. Eles são invisíveis, o que significa que a maioria dos civis não testemunha as mortes em larga escala e o inimigo não pode responder ao fogo. Essa última característica, combinada com uma campanha PSYOPS focada - outro recurso não-convencional - teria um efeito dissuasor em uma boa parte dos combatentes inimigos e asseguraria aos locais que os exércitos aliados tomam muito cuidado ao mirar apenas nos inimigos.

Dupla de snipers "canucks" (canadenses) no Afeganistão.

Agora, eu percebo que algumas pessoas por aí, veteranos ou não, podem ver isso como um pensamento positivo principalmente porque, e estou muito ciente disso, os franco-atiradores são escassos. Mas o Exército dos EUA já entendeu a necessidade e, de 2003 a 2011, a escola de atiradores de elite de Fort Benning abriu suas portas e aumentou o número de vagas abertas para alunos de 163 para 570.

Talvez seja a hora das Forças Canadenses fazerem o mesmo se quiserem continuar lutando em contextos de insurgência. E eles podem - além da turbulência cada vez maior na Ucrânia, a África é outro futuro teatro de operação altamente discutido para canucks de combate.

Martin Forgues é jornalista freelance e autor baseado em Montreal, Quebec, Canadá. Um veterano de 11 anos das Forças Armadas canadenses, ele serviu primeiro como soldado de infantaria, depois foi recrutado pela célula de Operações Psicológicas do Exército (Psychological Operations, PSYOPS) como Operador Tático e Analista de Público Alvo. Ele foi desdobrado na Bósnia em 2002 e no Afeganistão em 2007-2008. Seu primeiro livro, "Afghanicide", uma crítica abrangente da guerra do Canadá no Afeganistão, chegou às prateleiras em abril de 2014. Ele também tem interesses acadêmicos em Ciência Política e Filosofia em regime de meio período.

Bibliografia recomendada:

Out of Nowhere:
A History of the Military Sniper.
Martin Pegler.

Leitura recomendada:




FOTO: Canadenses no Mali, 13 de setembro de 2020.