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segunda-feira, 13 de setembro de 2021

EXCLUSIVO: Acordo que permite mercenários russos no Mali foi fechado

Malinenses seguram uma fotografia com uma imagem do Coronel Assimi Goita, líder da junta militar do Mali, e a bandeira da Rússia durante uma manifestação pró-Forças Armadas Malinenses (FAMA) em Bamako, no Mali, 28 de maio de 2021.
(REUTERS / Amadou Keita / Arquivo de foto )

Por John Irish e David Lewis, Reuters, 13 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de setembro de 2021.

Sumário
  • Acordo permitindo mercenários russos no Mali - fontes próximas
  • Paris quer evitar que o acordo seja assinado, dizem fontes
  • Pelo menos 1.000 mercenários podem estar envolvidos - duas fontes

PARIS, 13 de setembro (Reuters) - Está fechado um acordo que permitirá que mercenários russos entrem no Mali, estendendo a influência russa sobre os assuntos de segurança na África Ocidental e provocando a oposição da França, ex-potência colonial, disseram sete fontes diplomáticas e de segurança.

Paris deu início a uma campanha diplomática para impedir que a junta militar do Mali promulgasse o acordo, que permitiria que contratados militares privados russos, o Grupo Wagner, operassem na ex-colônia francesa, disseram as fontes.

Uma fonte europeia que rastreia a África Ocidental e uma fonte de segurança na região disse que pelo menos 1.000 mercenários podem estar envolvidos. Duas outras fontes acreditam que o número é menor, mas não forneceram números.

Quatro fontes disseram que o Grupo Wagner receberá cerca de 6 bilhões de francos CFA (US$ 10,8 milhões; US$ 1 = 0,8455 euros) por mês por seus serviços. Uma fonte de segurança que trabalha na região disse que os mercenários treinariam militares malinenses e forneceriam proteção para altos oficiais.

Insígnia não-oficial de caveira do Grupo Wagner.

A Reuters não pôde confirmar independentemente quantos mercenários poderiam estar envolvidos, quanto seriam compensados ou estabelecer o objetivo exato de qualquer acordo envolvendo mercenários russos para a junta militar do Mali.

A Reuters não conseguiu entrar em contato com o Grupo Wagner para comentar. O empresário russo Yevgeny Prigozhin, cujos meios de comunicação, incluindo a Reuters, estão ligados ao Grupo Wagner, nega qualquer conexão com a empresa. Seu serviço de imprensa também diz em seu site de rede social Vkontakte que Prigozhin não tem nada a ver com nenhuma companhia militar privada, não tem interesses comerciais na África e não está envolvido em nenhuma atividade lá.

Seu serviço de imprensa não respondeu imediatamente a um pedido da Reuters para comentar esta história.

Ameaça potencial ao esforço de contra-terrorismo

Mercenários Wagner na Síria.
Notar a insígnia de caveira no braço do homem de pé.

A ofensiva diplomática da França, disseram as fontes diplomáticas, inclui a ajuda de parceiros, incluindo os Estados Unidos, para persuadir a junta do Mali a não levar adiante o acordo, e o envio de diplomatas de alto escalão a Moscou e Mali para conversações.

A França teme que a chegada de mercenários russos prejudique sua operação contra-terrorista de uma década contra a al-Qaeda e os insurgentes ligados ao Estado Islâmico na região do Sahel, na África Ocidental, em um momento em que busca diminuir sua missão Barkhane de 5.000 homens para reformulá-la com mais parceiros europeus, disseram as fontes diplomáticas.

O Ministério das Relações Exteriores da França também não respondeu, mas uma fonte diplomática francesa criticou as intervenções do Grupo Wagner em outros países.

"Uma intervenção deste ator seria, portanto, incompatível com os esforços realizados pelos parceiros sahelianos e internacionais do Mali envolvidos na Coalizão pelo Sahel para a segurança e o desenvolvimento da região", disse a fonte.

Um porta-voz do líder da junta do Mali, que assumiu o poder por meio de um golpe militar em agosto de 2020, disse não ter informações sobre o acordo. "São rumores. As autoridades não comentam rumores", disse o porta-voz, Baba Cisse, que não quis comentar mais.

Um retrato do mercenário russo Maxim Kolganov, morto em combate na Síria, é retratado em um túmulo em sua cidade natal de Togliatti, Rússia, 29 de setembro de 2016.
(REUTERS / Maria Tsvetkova)

O porta-voz do ministério da defesa do Mali disse: "A opinião pública no Mali é a favor de mais cooperação com a Rússia, dada a situação de segurança em curso. Mas nenhuma decisão (sobre a natureza dessa cooperação) foi tomada."

Os ministérios da defesa e do exterior da Rússia não responderam aos pedidos de comentários, nem o Kremlin ou a presidência francesa.

A presença dos mercenários colocaria em risco o financiamento do Mali pelos parceiros internacionais e missões de treinamento aliadas que ajudaram a reconstruir o exército do Mali, disseram quatro fontes diplomáticas e de segurança.

Rivalidade na África

Mercenários Wagner na República Centro-Africana, janeiro de 2021.

Ter mercenários russos no Mali fortaleceria a pressão da Rússia por prestígio e influência globais e seria parte de uma campanha mais ampla para sacudir a dinâmica de poder de longa data na África, disseram as fontes diplomáticas.

Mais de uma dúzia de pessoas com laços com o Grupo Wagner disseram anteriormente à Reuters que o grupo realizou missões de combate clandestinas em nome do Kremlin na Ucrânia, Líbia e Síria. As autoridades russas negam que os contratados da Wagner cumpram suas ordens.

A junta militar do Mali disse que supervisionará uma transição para a democracia que levará às eleições em fevereiro de 2022.

Como as relações com a França pioraram, a junta militar do Mali aumentou os contatos com a Rússia, incluindo o ministro da Defesa, Sadio Camara, visitando Moscou e supervisionando os exercícios com tanques em 4 de setembro.

Uma fonte importante do Ministério da Defesa do Mali disse que a visita foi no "quadro de cooperação e assistência militar" e não deu mais detalhes. O Ministério da Defesa da Rússia disse que o vice-ministro da Defesa, Alexander Fomin, se encontrou com Camara durante um fórum militar internacional e "discutiu projetos de cooperação de defesa em detalhes, bem como questões de segurança regional relacionadas à África Ocidental". Nenhum detalhe adicional foi divulgado.

O principal diplomata africano do Ministério das Relações Exteriores da França, Christophe Bigot, foi enviado a Moscou para conversações em 8 de setembro com Mikhail Bogdanov, representante de Putin no Oriente Médio e na África. O Ministério das Relações Exteriores da Rússia confirmou a visita.

Bibliografia recomendada:

Bush Wars:
Africa 1960-2010.

Leitura recomendada:











domingo, 12 de setembro de 2021

COMENTÁRIO: O Exército de Madeira Compensada

Por Elliot Ackerman, The Atlantic, 17 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de setembro de 2021.

Uma década depois que as forças americanas chegaram ao Afeganistão, o quartel-general da Força-Tarefa de Operações Especiais Combinadas ainda era feito de madeira compensada, assim como a maioria dos outros edifícios que abrigavam as tropas americanas. Os recursos existiam para construir de concreto, mas por que faríamos isso? Em qualquer ponto da nossa odisséia de 20 anos no Afeganistão, estávamos sempre - em nossas mentes, pelo menos - apenas um ou dois anos fora de uma diminuição de tropas seguida por uma eventual retirada total. Claro, os afegãos perceberam isso. Em um posto avançado remoto perto da fronteira iraniana onde servi, o contratado afegão que trabalhava ao lado da minha equipe de operações especiais sempre zombava toda vez que uma aeronave trazia paletes de madeira compensada para nossos projetos de construção. “Guerras”, dizia ele, “não se ganham com madeira compensada”.

Muitos alegaram que a desintegração das forças de segurança afegãs prova que eram um exército de papel. Isso não é muito preciso. Eles provaram ser um exército de madeira compensada. A diferença entre os dois explica como um exército que antes era capaz de lutar contra o Talibã se dissolveu em questão de dias.

Em 8 de julho, em uma coletiva de imprensa na Casa Branca, quando Joe Biden foi questionado se uma tomada pelo Talibã no Afeganistão era inevitável, ele respondeu: “Não, não é. Porque as tropas afegãs têm 300.000 soldados bem equipados - tão bem equipados quanto qualquer exército do mundo - e uma força aérea contra algo em torno de 75.000 talibãs. Não é inevitável.” Durante anos, as forças de segurança afegãs travaram sua própria guerra civil contra o Talibã, sofrendo baixas e mantendo-se firme. Um exército de papel, que possui pouca ou nenhuma capacidade de luta, nunca poderia ter feito tanto. Seu desempenho permitiu que o número de tropas americanas e internacionais diminuísse de quase 150.000 há uma década para 2.500 este ano, sem a implosão total do país.

E ainda assim as forças foram e sempre foram um exército de madeira compensada, com a capacidade de cumprir a missão, mas com problemas fundamentais de recrutamento, administração e liderança. Os militares afegãos eram, por definição, uma força recrutada nacionalmente, o que significa que, normalmente, os soldados afegãos não lutavam em suas províncias nativas. Por causa da história de senhoria da guerra do Afeganistão, a decisão de criar um exército recrutado nacionalmente (em oposição a um recrutado regionalmente) foi tomada no início, com a ideia de que um exército afegão com fortes afiliações regionais e tribais ameaçaria sua própria existência.

Essa decisão também teve suas desvantagens. As estruturas tribais e familiares que formam a espinha dorsal da responsabilidade na sociedade afegã não foram transferidas para os militares. Isso criou desafios disciplinares consistentes dentro das fileiras. Também provou ser um problema ao travar uma contra-insurgência. Um soldado afegão etnicamente tadjique de Mazar-i-Sharif com a missão de lutar na província fortemente pashtun de Helmand se veria ali tão estrangeiro quanto qualquer americano. Nunca conseguimos integrar lealdades tribais e regionais em um exército nacional. Se tivéssemos feito isso, as forças de segurança afegãs teriam sido construídas sobre uma base muito mais sólida.

As duas outras áreas onde as forças de segurança afegãs se mostraram endemicamente fracas - administração e liderança - estão intimamente ligadas. Servi como conselheiro de várias unidades afegãs e vi como a negligência em sua administração - listas de tropas imprecisas e estoques de equipamentos incompletos, por exemplo - alimentou a corrupção endêmica. Com muita frequência, como americanos, comparamos a corrupção no Afeganistão com o fracasso moral da parte dos afegãos, embora raramente questionemos nossa própria cumplicidade na criação de condições que fomentassem a corrupção. Mais tragicamente, nossa mensagem consistente de que estávamos saindo do Afeganistão encorajou os afegãos em posições de poder a abraçarem a corrupção - especificamente, o desvio de recursos para ganho pessoal - como o único meio claro e seguro de sobrevivência. A corrupção tornou-se um plano de contingência financeira, a escolha que qualquer afegão razoável faria para garantir um futuro seguro para seus filhos. Quando, a cada ano, os americanos prometiam que o ano seguinte traria uma retirada americana e eventual abandono ao Talibã, que escolha você faria?

A deterioração das forças de segurança afegãs não ocorreu no campo de batalha tanto quanto ocorreu nas salas de negociação, nas quais os principais líderes tribais - como Ismail Khan em Herat - ou se renderam sem lutar ou fizeram acordos com o Talibã enquanto eles avançavam antes que qualquer batalha substancial por essas cidades pudesse ocorrer. O exército afegão estava lá - bem treinado, bem equipado - mas sem liderança política, pelo menos não mais.

No Afeganistão, existe um ditado: “Os americanos têm os relógios, mas o Talibã tem o tempo”. Desde a decisão do presidente George W. Bush de desviar as tropas do Afeganistão para o Iraque como parte da invasão de 2003, os Estados Unidos sempre tiveram um pé fora da porta. Nunca convencemos nossos aliados - ou adversários - de que possuíamos os relógios e o tempo. Ironicamente, isso nos levou a passar mais tempo no Afeganistão do que passaríamos se tivéssemos uma postura diferente. Se não tivéssemos insistido em construir em madeira compensada.

O anúncio do presidente Biden de uma retirada americana completa do Afeganistão no início deste ano desencadeou uma crise de moral entre os afegãos que resultou em suas forças de segurança desistirem sem lutar. Eles podem ter possuído superioridade numérica e material, mas sua crença em si mesmos desapareceu quando partimos.

O que estamos vendo agora no Afeganistão é o acúmulo de centenas de decisões erradas ao longo de duas décadas. No entanto, o que não consigo tirar da minha cabeça hoje é que escolhemos madeira compensada.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:




domingo, 5 de setembro de 2021

Qual é a aparência da "Defesa Europeia"? A resposta pode estar no Sahel


Por Quentin Lopinot, War on the Rocks, 19 de março de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

Algumas semanas atrás, o governo dinamarquês anunciou que apresentaria ao seu parlamento um pedido para o desdobramento de dois helicópteros de média capacidade de carga AW101 e cerca de 70 militares para a região do Sahel como parte da operação de contraterrorismo "Barkhane", liderada pela França. Assim que o desdobramento for aprovada pelos legisladores, como parece provável, os ativos dinamarqueses se juntariam à operação no final de 2019.

Este anúncio recebeu pouca atenção, mas é significativo - tanto para a luta contra grupos jihadistas na região do Sahel quanto para o futuro da cooperação de defesa europeia. Ele fornece uma visão sobre uma nova abordagem para o projeto de construção da defesa europeia, que não depende necessariamente das estruturas ou configurações institucionais complexas da União Europeia, mas se concentra na cooperação pragmática e operacional entre os Estados.

O estado do jogo

As operações de combate continuam intensas no Sahel. Dos 600 combatentes neutralizados pelas forças francesas desde 2014, 200 foram mortos apenas em 2018. Algumas das figuras jihadistas mais importantes da região foram recentemente abatidas.

Nesse contexto, as capacidades de transporte aéreo são cruciais por pelo menos três razões. Em primeiro lugar, dada a amplitude da área de operações da Barkhane, as capacidades de transporte aéreo são necessárias para sustentar e rotacionar as forças em uma vasta rede de bases permanentes (Gao no Mali, N'Djamena no Chade, Niamey no Níger) e plataformas operacionais temporárias (Kidal e Tessalit no Mali; Abeche e Faya-Largeau no Chade; Madama e Aguelal no Níger) a partir dos quais as forças operam. Em segundo lugar, essas capacidades são decisivas para conservar tempo e espaço preciosos, de modo que a postura da força possa ser rapidamente adaptada, e incursões contra alvos altamente móveis podem ser executados. Terceiro, as capacidades de transporte aéreo reduzem significativamente os riscos para as tropas, em particular a exposição a dispositivos explosivos improvisados e emboscadas, que são inerentes aos movimentos terrestres.

Nenhum país europeu - nem mesmo a França e sua estrutura de força amplamente expedicionária - possui capacidade de transporte aéreo tático suficiente para sustentar uma operação tão exigente por muitos anos. Isso é ainda mais válido quando se considera o quão difícil é o ambiente do Sahel para os equipamentos. Como resultado, as taxas de disponibilidade das principais capacidades desdobradas na área caíram, em particular os helicópteros de transporte, conforme relatado recentemente pelo Senado francês (embora este não seja o único fator explicativo). As forças armadas dos EUA têm fornecido transporte aérea indispensável para a Barkhane no nível estratégico, mas os requisitos no teatro continuam altos.

Dadas essas limitações, o sucesso na luta contra os grupos jihadistas no Sahel exigirá alguma cooperação internacional séria e sustentada.

Um cadinho para a Defesa Europeia 2.0


Os soldados dinamarqueses são esperados para desdobrarem-se com 4.500 soldados franceses atualmente participando da operação Barkhane, bem como outras forças europeias que se juntaram no verão passado. O Reino Unido está fornecendo transporte aéreo estratégico com três helicópteros CH-47 Chinook e a Estônia está destacando 50 soldados de seu Batalhão de Escoteiros para proteger a base estratégica de Gao, no Mali. Além disso, as forças alemãs, espanholas e americanas fornecem apoio logístico essencial para a operação geral. Muitos outros países europeus também estão envolvidos em missões distintas, mas relacionadas, incluindo a Missão de Estabilização Integrada Multidimensional da ONU no Mali (MINUSMA) chefiada pela Suécia - que fornece importantes capacidades de inteligência, vigilância e reconhecimento - a Missão de Treinamento no Mali da UE e missões de capacitação da União Europeia em Níger e Mali.

Esta cooperação operacional entre os Estados europeus para fazer face a uma ameaça comum à sua segurança, num formato ad hoc, desmascara alguns mitos sobre a defesa europeia. Esses mitos impedem uma melhor compreensão dos benefícios potenciais desta cooperação europeia.

Em primeiro lugar, está a ideia de que os países da Europa do Norte e do Leste têm os olhos voltados para o Oriente (ou seja, a Rússia), enquanto os da Europa Ocidental e do Sul se concentram apenas no Sul (ou seja, a África e o Oriente Médio). Obviamente, a realidade da ameaça representada por grupos jihadistas no Sahel é sentida em toda a Europa. Claro que seria absurdo negar nuances ou mesmo diferenças nas avaliações de ameaças em todo o continente, mas inferir que os europeus limitam suas áreas operacionais de acordo com sua história e geografia é um mero clichê. Os europeus têm uma percepção ampla e cada vez mais comum de seu ambiente de segurança. Itália e Espanha desdobram forças na Letônia como parte da presença avançada da OTAN, e a França desdobra 4.000 soldados franceses na Europa Oriental todos os anos. A Noruega adotou no ano passado uma estratégia nacional específica para o Sahel, e a Finlândia desdobra mais de 190 soldados no Líbano.

Em segundo lugar, vem o mito de que europeu (defesa) significa União Europeia (defesa) - e que a tomada de decisões complexas, arranjos institucionais obscuros e siglas desagradáveis necessariamente se seguem. A União Europeia possui alguns instrumentos únicos de apoio à base industrial e tecnológica europeia, à investigação e desenvolvimento e ao desenvolvimento de capacidades. Sua Política Comum de Segurança e Defesa oferece uma vasta gama de ferramentas para o gerenciamento de crises. Mas a “defesa europeia” vai muito além disso e deve agora ser entendida como englobando todas as formas de cooperação de defesa entre europeus - seja em formatos da UE, OTAN, ONU ou ad hoc - que tornam as forças armadas europeias mais capazes.


O terceiro e último preconceito é que os europeus são bons apenas em operações de não-combate (manutenção da paz, prevenção de conflitos, capacitação, etc.), mas não desejam e/ou não são capazes de conduzir operações de combate, especialmente em um ambiente exigente. A Operação Barkhane, com seu alto ritmo operacional, desafios logísticos drásticos e ataques agressivos para neutralizar alvos de alto valor e destruir grupos jihadistas, demonstra que isso não é verdade. Pelo contrário, uma das razões pelas quais os europeus estão a fornecer forças a uma operação nacional francesa é precisamente para adquirir essa experiência num complexo teatro de operações. O que é feito e aprendido com o Sahel hoje tornará as forças mais capazes e interoperáveis em qualquer outro cenário que possa ocorrer amanhã.

Estas três lições podem constituir a base para uma nova abordagem à defesa europeia, centrada na cooperação pragmática, realizações operacionais e formatos flexíveis. É a mesma filosofia que inspirou a Iniciativa de Intervenção Europeia (European Intervention Initiative, EI2), um grupo informal de dez países europeus (Bélgica, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Holanda, Portugal, Espanha e Reino Unido) que pretende promover intercâmbios militares-para-militares e planejamento operacional conjunto, sem filiação na União Europeia.

“Só o difícil inspira os nobres de coração”


Os desafios para o futuro da Barkhane e o envolvimento europeu na região do Sahel não devem ser subestimados. Os grupos jihadistas permanecem ativos e agressivos. Apesar do envolvimento planejado da Dinamarca, as principais capacidades permanecem escassas e o transporte aéreo estratégico dos EUA continuará a ser vital para apoiar a Barkhane. A estreita coordenação com a operação de manutenção da paz MINUSMA da ONU deve ser mantida. A Força Conjunta criada em 2017 por membros do “G5 Sahel” (Burkina Faso, Mali, Mauritânia, Níger e Chade) para lutar contra grupos terroristas e tráfico de pessoas fez alguns progressos importantes, mas ainda enfrenta problemas de financiamento. E, em última análise, a estabilidade no Sahel não pode ser alcançada apenas por meios militares. Isso exigirá uma solução política e uma estratégia abrangente para abordar as causas profundas da instabilidade - combinando abordagens políticas, econômicas, de desenvolvimento e de direitos humanos.

No entanto, a intenção da Dinamarca de se juntar à Operação Barkhane ilustra que os europeus estão adotando uma abordagem mais pragmática e voltada para os resultados da defesa europeia, tanto em operações quanto em outras áreas, e estão fazendo mais por sua própria segurança. Em uma discussão cada vez mais tóxica sobre a divisão de encargos, o esforço europeu no Sahel pelo menos merece ser reconhecido e encorajado.

Quentin Lopinot é Visitante no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, onde se concentra em questões de segurança europeias. Anteriormente, atuou em diferentes funções no Ministério das Relações Exteriores da França, cobrindo a não proliferação nuclear, política de defesa da UE e da OTAN.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

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O estranho marxismo do governo americano e seu fracasso no Afeganistão


Por Michael Shurkin, Linkedin, 23 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

Enquanto nos atropelamos para chegar a um acordo sobre o que deu errado no Afeganistão, eu gostaria de destacar certas imitações intelectuais que tiveram consequências importantes sobre como o governo e os militares americanos abordaram o Afeganistão e suas ações no terreno. Muitas vezes ouve-se a alegação de que erramos ao tentar ocidentalizar o Afeganistão porque subestimamos a inadequação dos afegãos para a modernização. O oposto era verdadeiro: minando nossos próprios esforços de modernização, muitas vezes caros, estava um ceticismo profundamente arraigado que atrapalhava esses esforços e nos encorajava a nos concentrarmos em outro lugar. Membros do governo e das forças armadas dos Estados Unidos, apesar da retórica do Departamento de Estado, tinham uma visão estranhamente marxista da política afegã que encorajava o desconto do valor da democratização e nos confortava em nossa ignorância. Já sabíamos tudo o que havia para saber sobre os afegãos e a política afegã.

A visão abrangente do Afeganistão e da política afegã ecoou as opiniões de Marx sobre o que distinguia a política pré-moderna da moderna. O primeiro trata das necessidades imediatas de pessoas isoladas, sem noção do quadro geral, seja do mercado nacional e internacional ou da dinâmica de classes. Pessoas que se revoltam com o preço do pão porque estão com fome é um exemplo clássico. A política moderna é outra coisa: elas revelam uma consciência do quadro mais amplo, muitas vezes resultante de estar conectado ao mundo mais amplo. Marx usou essa distinção em sua análise dos padrões de votação na França em 1848, quando se esforçou para explicar por que os franceses votariam em Louis-Napoléon Bonaparte [Napoleão III], um homem que claramente, ele pensava, se opunha aos interesses de classe da maioria dos eleitores franceses. A resposta de Marx foi denegrir os eleitores franceses, muitos se não a maioria dos quais eram agricultores, como arcaicos pré-modernos. Vale a pena repetir as passagens-chave do 18º Brumário:

Os pequenos camponeses formam uma enorme massa cujos membros vivem em condições semelhantes, mas sem estabelecer relações múltiplas entre si. Seu modo de produção os isola um do outro, em vez de colocá-los em relações mútuas. O isolamento é agravado pelos meios de comunicação deficientes da França e pela pobreza dos camponeses...

Uma pequena propriedade, o camponês e sua família; ao lado, outra pequena propriedade, outro camponês e outra família. Algumas vintenas destas constituem uma aldeia e algumas vintenas das vilas constituem um departamento. Assim, a grande massa da nação francesa é formada pela simples adição de magnitudes homólogas, assim como batatas em um saco formam um saco de batatas...

Eles são, portanto, incapazes de afirmar seus interesses de classe em seu próprio nome, seja por meio de um parlamento ou de uma convenção. Eles não podem representar a si mesmos, eles devem ser representados. Seu representante deve, ao mesmo tempo, aparecer como seu mestre, como uma autoridade sobre eles, um poder governamental ilimitado que os protege das outras classes e lhes envia chuva e sol do alto. A influência política dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no poder executivo o qual subordina a sociedade a si mesma.

Essas linhas, embora escritas para descrever a França de meados do século XIX, dão voz às percepções dos afegãos do início do século XXI comumente dominadas por americanos no governo e nas forças armadas dos EUA. Os afegãos são primitivos isolados cuja política arcaica e pré-moderna poderia ser reduzida às necessidades materiais, à hierarquia de Maslow e ao senhorio-da-guerra, pois era um dado adquirido que a maioria dos afegãos se ligaria aos senhores-da-guerra. Sim, supervisionamos o estabelecimento de uma legislatura, mas consideramos a democracia representativa uma piada e nos concentramos em trabalhar com e por meio de senhores-da-guerra. Presumimos que os senhores-da-guerra eram tudo o que importava, garantindo assim que eles eram tudo o que importava. Bloqueamos os afegãos interessados em outras formas de governo e impedimos o desenvolvimento de políticas democráticas liberais, ao mesmo tempo que garantimos que o Estado não detivesse o monopólio do uso legítimo da violência.

Marx estava certo? De jeito nenhum. Os historiadores franceses separaram as suposições de Marx sobre os eleitores franceses, os camponeses franceses e a política francesa, demonstrando que mesmo as comunidades aparentemente mais arcaicas muitas vezes estavam conectadas ao mundo maior em graus surpreendentes e tinham uma compreensão sofisticada do quadro mais amplo, ou pelo menos não menos sofisticado do que o que se pode encontrar entre atores políticos aparentemente modernos. Quanto ao Afeganistão do início do século XXI, a visão dos americanos de um Afeganistão arcaico ignorou totalmente as profundas consequências da Guerra Soviética e da guerra civil subsequente, que deslocou milhões e forçou muitos deles a residirem em campos no Paquistão e no Irã, onde encontraram-se uns aos outros e o mundo exterior. Ignorou os efeitos da mídia de massa e, subsequentemente, dos telefones celulares. Ignorou os efeitos da urbanização e, em seguida, o rápido crescimento da alfabetização. Aquele Afeganistão arcaico pré-moderno que os americanos imaginaram, se é que algum dia existiu, se foi. Claro, era possível encontrar muitas comunidades aparentemente arcaicas, especialmente nas áreas infestadas pelo Talibã que os soldados da ISAF frequentavam, mas as aparências frequentemente enganavam e, em qualquer caso, esses afegãos não eram a maioria dos afegãos da mesma forma que os habitantes empobrecidos indigentes dos Apalaches não representam a maioria dos americanos.

Isso é importante por vários motivos. Primeiro, a visão marxista minou os esforços americanos para democratizar e promover a política moderna. Fizemos essas coisas sem acreditarmos nelas; não fizemos um esforço sério para desenvolver políticas democráticas; fizemos muitas coisas que minaram diretamente a democratização. Por exemplo, supervisionamos a elaboração e implementação de uma lei eleitoral desastrosa e, subsequentemente, não fizemos nenhum esforço para corrigi-la, não estando convencidos, ao que parece, de sua importância. Da mesma forma, as eleições de 2004 e 2005 geraram milhares de páginas de relatórios bem documentados detalhando todas as maneiras pelas quais as falhas no processo eleitoral minaram a credibilidade eleitoral, mas o governo americano as ignorou, assim como mais tarde ignorou a trapaça de Hamid Karzai em 2009. Por quê? Porque se os afegãos realmente fossem tão arcaicos quanto se acreditava, as eleições não importavam. A legitimidade do Estado não importava.

Por último, é importante porque a doutrina COIN que imaginávamos estar aplicando deixa claro que a legitimidade é tudo; a política é tudo. Tratava-se de fortalecer a legitimidade do Estado afegão e cultivar o máximo que pudéssemos políticas que fortalecessem a república afegã e reunissem para ela todos os incontáveis afegãos que tinham interesse em seu sucesso. Isso significava, entre outras coisas, encorajar a política democrática. Também significava focar na 'maioria' dos afegãos, em vez dos habitantes indigentes, e engajar-se com aqueles que habitavam nossas "manchas de petróleo" [zonas de influência] para ajudar a mobilizá-los, em vez de ignorá-los com a sensação de que eles não poderiam ser mobilizados por estarem presos na base da pirâmide de Maslow e do senhorio-da-guerra. Na verdade, para nós, a política afegã não importava; não havia política, mas apenas uma questão de quem controlava qual distrito. Focaríamos nos ataques “cinéticos” e na construção de forças de segurança cuja unidade e motivação nunca atendemos. Talvez tenha sido impossível fazer com que a política democrática criasse raízes no Afeganistão, mas graças em parte à nossa visão marxista dos afegãos, nós quase não tentamos.

Michael Shurkin é um ex-oficial da CIA e cientista político sênior da RAND. Ele é diretor de programas globais da 14 North Strategies e fundador da Shurbros Global Strategies.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:







FOTO: Graduação da primeira classe de policiais especiais femininas afegãs

Mulheres policiais afegãs graduadas em 5 de abril de 2018.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 1º de setembro de 2021.

Seis mulheres da Polícia Nacional Afegã graduaram-se no Comando Geral de Unidades Especiais de Polícia pela primeira graduação do Curso Básico Feminino no Centro de Treinamento da Polícia Especial, no Campo Wak em Cabul, capital do Afeganistão, 5 de abril de 2018.

As mulheres policiais concluíram o curso de sete semanas consistindo em táticas e técnicas policiais especiais, manuseio de evidências, estado de direito, pontaria e aptidão física.

Autoridades do esforço ocidental no país elogiaram o esforço, com o então vice-embaixador da Noruega no Afeganistão, John Almster, disse que o serviço das mulheres policiais ao povo não é apenas necessário, mas vital para o futuro do Afeganistão.

“Vocês devem se orgulhar de sua realização. Admiro sua determinação e coragem durante esses tempos difíceis, porque a reforma da segurança não pode ser bem-sucedida sem a inclusão das mulheres”, disse Almster. O então embaixador da Austrália no Afeganistão, Nicola Gordon-Smith, ecoou os comentários de Almster, declarando: “Ter as mulheres como parte da força policial é fundamental para a segurança do país”.

“O crescimento das forças de segurança afegãs, com a adição de mulheres, é uma prioridade para o presidente do Afeganistão, e hoje estamos um passo mais perto de tornar sua visão uma realidade”, disse o Major-General Sayed Mohamed Khan Roshindal, Comandante  do Comando Geral das Unidades Especiais de Polícia.

A policiais do sexo feminino que se juntaram às Unidades de Missão Nacional da GCPSU desempenharam um papel culturalmente vital nas operações de busca e apreensão e em cenários de alto risco onde mulheres e crianças estão presentes.

Como parte da estratégia da Polícia Nacional Afegã, o governo de Cabul pretendia recrutar mais 5.000 mulheres policiais nos próximos cinco anos (até 2023). No ano anterior de 2017, 190 mulheres afegãs participaram de um curso intensivo de treinamento policial de quatro meses em Sivas, na Turquia.

Bibliografia recomendada:

A Mulher Militar:
Das origens aos nossos dias.
Raymond Caire.


Leitura recomendada:






quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Três lições para a Europa com a queda do Afeganistão

Pessoas embarcam em um avião A400 da Força Aérea Espanhola como parte de um plano de evacuação no aeroporto de Cabul, no Afeganistão, na quarta-feira, 18 de agosto de 2021.
(Picture Alliance)

Por Jean-Marie GuéhennoEuropean Council on Foreign Relations, 19 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 2 de setembro de 2021.

Os europeus nunca levaram a sério o Afeganistão.

Provavelmente porque, no fundo, eles sabiam que a responsabilidade não parava com eles. Agora parece provável que a tomada do país pelo Talibã deixará os europeus ainda mais introvertidos e temerosos de um mundo que eles não entendem. E o consenso emergente de que a construção do Estado é impossível pode aumentar sua ansiedade em relação a engajamentos estrangeiros.

A Europa precisa olhar atentamente para o que funcionou e o que não funcionou no Afeganistão. Só então ela pode gradualmente e de forma realista construir suas próprias capacidades, em vez de almejar esquemas grandiosos que carecem de apoio público.

Essa mentalidade é um ácido que destrói os laços que deveriam unir os europeus, levando aos tipos de atitudes xenófobas que estavam em evidência durante a crise migratória criada pela guerra na Síria. Enquanto os refugiados fugiam da violência na Síria, os europeus foram confrontados com uma escolha desagradável entre construir muros cada vez mais altos, fechar acordos desagradáveis com os chamados países-tampão ou perder o controle dos fluxos migratórios. No entanto, há apenas uma pequena distância entre aceitar que algumas pessoas não podem ser ajudadas e pensar que não vale a pena ajudá-las. A autoconfiança da Europa - que é essencial para moldar ativamente o seu próprio futuro - foi prejudicada não apenas por suas fracas capacidades operacionais, mas, e mais ainda, pela crise ética de um continente que se diz universalista, mas que reserva isso universalismo para suas tribos privilegiadas.

No entanto, há lições melhores a tirar da débâcle do Afeganistão, que em breve poderá se repetir em outros países no soro - como a Somália, um Estado com o qual os europeus se engajaram há anos. Há o risco de que a enormidade da missão dos Estados Unidos no Afeganistão - custando trilhões de dólares - convença os europeus de que é inútil para eles se envolverem em tais missões, visto que têm muito menos recursos do que seu aliado americano. Mas isso seria uma leitura muito superficial da situação. Nos últimos anos, a presença americana no terreno foi limitada a menos de 5.000 soldados. E o custo humano para as forças armadas dos Estados Unidos terá sido de menos de 5.000 baixas em duas décadas, em comparação com mais de 58.000 em uma década durante a Guerra do Vietnã.

A Europa precisa olhar atentamente para o que funcionou e o que não funcionou no Afeganistão. Só então ela pode gradualmente e de forma realista construir suas próprias capacidades, em vez de almejar esquemas grandiosos que carecem de apoio público.

Ajudar as sociedades a se transformarem é um empreendimento geracional. É impossível ter sucesso nisso se, como diz o ditado, temos os relógios e o inimigo tem o tempo.

A reforma do setor de segurança é um bom ponto de partida. Esse domínio está no cerne de qualquer estratégia de construção do Estado (se aceitarmos a definição weberiana de um Estado como uma organização que detém o monopólio do uso legítimo da força). Todos os outros aspectos da consolidação do Estado - educação, saúde, infraestrutura - dependem dela. Sem fornecer segurança, o Estado não pode alcançar nenhum progresso duradouro. Este é também um domínio em que, da Somália ao Mali e à República Centro-Africana, a União Europeia e os Estados europeus desempenham um papel significativo - através de missões de formação e cooperação bilateral. Os eventos recentes no Afeganistão fornecem três lições cruciais a esse respeito.

Base da Força-Tarefa Takuba, de forças especiais europeias, no Sahel.

A primeira lição é que uma presença estrangeira muito limitada, combinada com apoio aéreo aproximado às forças nacionais, manteve o Talibã sob controle por vários anos e criou um impasse durante o qual uma sociedade mais aberta poderia ganhar força. O exoesqueleto fornecido por uma presença militar estrangeira limitada permite que um frágil exército se mantenha firme. É um modelo que os europeus deveriam estudar e possivelmente replicar no Sahel. Isso pode não exigir um grande aumento militar, mas atualmente está além das capacidades da Europa.

A segunda lição diz respeito ao que deu errado no esforço americano para construir o exército afegão. As forças armadas dos países ricos - especialmente os Estados Unidos - não sabem como encontrar o equilíbrio certo entre modernizar os exércitos dos Estados pobres e garantir que a modernização seja sustentável. Os exércitos padrão OTAN dependem de um sistema de apoio crítico no qual os batalhões de infantaria são apenas a ponta da lança. Os componentes essenciais do sistema incluem consciência situacional por meio de recursos de inteligência integrados, cadeias de logística complexas e caras, capacidade de evacuação médica rápida e apoio aéreo aproximado. Quando as forças locais contam com o apoio de uma força expedicionária ocidental, como foi o caso no Afeganistão por muitos anos, essas capacidades fornecem a elas uma vantagem considerável. Mas, se o aliado ocidental puxar o plugue, a força local ficará fraca e despreparada, tendo perdido a capacidade de operar de forma independente. Se, além disso, o sistema de folha de pagamento da força é disfuncional por causa da corrupção, os soldados ficam totalmente desmoralizados e sem vontade de lutar.

Soldados franceses no Mali.

A terceira lição da experiência afegã para a Europa diz respeito ao cronograma dos compromissos estrangeiros. O apoio externo a um exército frágil dá aos Estados o espaço e o tempo de que precisam para transformar a sociedade. Esse é um ganho importante: ao contrário do que muitos agora dizem sobre o Afeganistão, muita coisa mudou para melhor no país. E pode ter sido um equívoco insistir em uma estratégia de saída - impulsionada por considerações políticas domésticas em vez de fatores objetivos - considerando o custo relativamente baixo de uma pequena pegada militar e o custo potencialmente alto do colapso do governo afegão. Ajudar as sociedades a se transformarem é um empreendimento geracional. É impossível ter sucesso nisso se, como diz o ditado, temos os relógios e o inimigo tem o tempo.

Podem as democracias, europeias ou não, terem tamanha paciência estratégica? Qualquer estratégia de saída depende da disposição dos soldados de um exército nacional de darem suas vidas por um país em cuja liderança eles confiam. Se eles não respeitarem seus oficiais, se desprezarem seus líderes, ou se suspeitarem que eles perseguem apenas seus próprios interesses pessoais ou étnicos, um colapso é sempre possível - mesmo depois de décadas de esforços. É por isso que, se os europeus tirarem as lições certas do Afeganistão e se prepararem para engajamentos estrangeiros limitados, mas contínuos, eles devem ficar de olho no contexto político dessas missões. Eles nunca devem esquecer que o processo de consolidação política é vital para o sucesso a longo prazo.

Jean-Marie Guéhenno é professor de práxis e diretor do Programa de Liderança em Resolução de Conflitos Global Kent na Columbia SIPA. Ele também é membro do Conselho Consultivo de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Mediação. Ele está publicando um novo livro de ensaios em setembro de 2021 - "Le Premier XXIème siècle, de la globalization à l’émiettement du monde".

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