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quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Disputa dos submarinos: a França tem "todo o direito de ficar com raiva", diz o ex-primeiro-ministro australiano


Por Marc Perelman, The Interview/France 24, 22 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 22 de setembro de 2021.

O ex-primeiro-ministro australiano Kevin Rudd classificou a atual disputa de submarinos com a França como um "desastre de política externa e segurança nacional" para seu país. Rudd disse ao FRANCE 24 que a França tinha "todo o direito de ficar com raiva" com a perda repentina de um contrato de submarino multibilionário com a Austrália, depois que Canberra optou por comprar submarinos nucleares dos Estados Unidos. Ele também pediu uma investigação parlamentar sobre a decisão do primeiro-ministro Scott Morrison.

O ex-premier australiano Kevin Rudd rejeitou o argumento do primeiro-ministro Scott Morrison de que uma mudança para a aliança AUKUS (Australia-UK-US/Austrália-Reino Unido-EUA) atenderia aos interesses de segurança nacional da Austrália, principalmente a crescente ameaça da China. Rudd disse que quando estava no poder há uma década, a ameaça da China já era uma grande prioridade e a principal razão por trás do acordo inicial de submarinos com a França. Rudd disse que a França tem "todo o direito de ficar com raiva" com o acordo cancelado, expressando preocupação de que a crise diplomática tenha efeitos duradouros e prejudiciais sobre o relacionamento bilateral.

Rudd disse ao FRANCE 24 que o governo australiano deveria ter notificado o governo francês e a empresa francesa que construiu os submarinos sobre suas intenções de trocar os submarinos movidos a diesel por submarinos nucleares. Ele acrescentou que, em vez de simplesmente escolher a oferta americana, Canberra deveria ter deixado a França concorrer em uma nova licitação. Além disso, afirmou que a decisão atrasaria a entrega dos submarinos e deixaria seu país “nu” durante a década de 2030.

Finalmente, Rudd pediu uma investigação parlamentar sobre a decisão, enfatizando que os contribuintes australianos precisam saber exatamente como a decisão se desenrolou e quanto ela vai custar-lhes.

O caso dos submarinos: "Macron fez bem em agir com firmeza", defende Sarkozy


Por Wally Bordas, Le Figaro, 22 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 22 de setembro de 2021.

O ex-Presidente da República considera que o incumprimento deste contrato internacional de mais de 56 bilhões de euros "não é admissível".

A quebra do "contrato do século" não foi digerida. Após as inúmeras reações de toda a classe política, após o torpedeamento da venda de submarinos franceses para a Austrália, é a vez de Nicolas Sarkozy se manifestar. “Acho que o presidente Macron teve razão em reagir com firmeza”, determinou o ex-presidente da República, poucos minutos antes da sessão de autógrafos de seu novo livro Promenades (Ed. Herscher), em Neuilly-sur-Seine.

“Entre aliados, isso não se faz. (...) Quando se é amigo, dá-se direitos e cria-se deveres, e agir assim não é inadmissível. Teremos que tirar as consequências”, acrescentou Nicolas Sarkozy.

“Macron estava certo em agir com firmeza”, disse Nicolas Sarkozy.

"Era uma mentira"

Durante vários dias, o cancelamento deste megacontrato esteve no centro das notícias. A França acusa os Estados Unidos de ter concluído uma nova aliança pelas suas costas, que fará com que a Austrália se equipe com submarinos americanos, o que afunda uma encomenda gigantesca de mais de 56 bilhões de euros feita pelos australianos aos franceses há alguns anos.

Jean-Yves Le Drian, ministro das Relações Exteriores, falou de uma "grave crise" entre os Estados Unidos, Austrália e França. O chefe da diplomacia anunciou a retirada dos embaixadores franceses em Canberra e Washington. Um primeiro “ato simbólico” na história das relações entre Paris e Washington.

“Chamamos de volta os nossos embaixadores para tentar compreender e mostrar aos nossos antigos países parceiros que temos uma insatisfação muito forte, que existe realmente uma grave crise entre nós”, explicou. E para acrescentar: "Houve uma mentira, houve duplicidade, houve uma grande quebra de confiança, houve desacato, então as coisas não vão bem entre nós".

O governo australiano defendeu-se, afirmando que a França tinha sido avisada "na primeira oportunidade possível, antes que o assunto se tornasse público". Por sua vez, os Estados Unidos indicaram que desejam continuar a trabalhar "em estreita colaboração com a França na zona do Indo-Pacífico". O presidente Joe Biden e Emmanuel Macron também concordaram em uma entrevista por telefone, incluindo "impaciente" para se encontrar com o presidente da República Francesa.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Impondo custos por outros meios: opções de guerra estratégica irregular para responder à agressão russa

"Homenzinhos verdes" na Ucrânia, março de 2014.

Por Steve Ferenzi, Small Wars Journal, 18 de maio de 2016.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de setembro de 2021.

A vantagem comparativa da América em poder militar convencional garante que seus adversários procurarão enfrentá-la abaixo do limiar da “guerra” tradicional para alcançar seus objetivos. A recente agressão da Rússia na Ucrânia demonstra um aspecto deste campo de batalha com implicações preocupantes para a viabilidade da aliança da OTAN. A eliminação de santuários de impunidade, sejam eles dentro do espaço político da "zona cinzenta" manipulada pela Rússia ou em território físico utilizado pela al-Qaeda ou pelo Estado Islâmico para lançar ataques à pátria americana, exige que os Estados Unidos empreguem medidas não convencionais para competir e vencer.

É hora de liberar as capacidades de guerra irregular dos Estados Unidos. Toda a controvérsia sobre os desafios da “zona cinzenta” de hoje leva a crer que os Estados Unidos são um jogador amador neste jogo. Ao longo da década de 1980, os Estados Unidos competiram com sucesso abaixo do limiar da guerra convencional no âmbito do "conflito de baixa intensidade". Enquanto o caso Irã-Contras e o retorno do apoio aos mujahideen afegãos continuam a ser olhos negros para o prestígio dos EUA, os Estados Unidos sangraram com sucesso a União Soviética sem recorrer ao Armagedom nuclear ou à escalada convencional. Pode-se debater as minúcias, mas os EUA alcançaram seus objetivos estratégicos a um custo relativamente baixo. Como os EUA podem obter resultados semelhantes no ambiente operacional de hoje, onde a vontade política é o fator limitante? A resposta é possibilitar o que a Rússia mais teme: movimentos de resistência nativa ao longo das linhas das “revoluções coloridas” que destruíram a influência russa pós-soviética em seu quintal tradicional.

Dilemas do Artigo 5

A questão mais urgente em relação à Rússia hoje é o compromisso dos Estados Unidos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O Artigo 5 da Carta da OTAN exige que:

“As Partes concordam que um ataque armado contra um ou mais deles na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque contra todos eles e, consequentemente, concordam que, se tal ataque armado ocorrer, cada um deles, no exercício do direito da legítima defesa individual ou coletiva reconhecida pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas, ajudará a Parte ou as Partes assim atacadas, tomando imediatamente, individualmente e em conjunto com as outras Partes, as ações que julgar necessárias, incluindo o uso de força armada, para restaurar e manter a segurança da área do Atlântico Norte.

Qualquer ataque armado e todas as medidas tomadas como resultado dele serão imediatamente relatados ao Conselho de Segurança. Essas medidas serão encerradas quando o Conselho de Segurança tiver tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança internacionais.”

A anexação da Crimeia pela Rússia revigorou o debate sobre a utilidade da OTAN na era pós-Guerra Fria. A resposta desdentada dos EUA pode ter sido justificável dada a falta de compromissos legais com a Ucrânia, não-membro, mas e se a Rússia tomar a fraqueza americana percebida como um convite para um desempenho repetido nos Estados Bálticos, membros de fato da OTAN?

Tanto a doutrina de guerra híbrida de "nova geração" da Rússia quanto os aliados de Moscou na região exortam o uso de meios não-militares assimétricos e "quinta colunas" em áreas-alvo para alcançar resultados estratégicos. A solução da América é mais marchas blindadas em estradas pela Europa Oriental e exercícios de treinamento combinados? Os EUA têm vontade política para realmente puxar o gatilho em uma resposta militar convencional com potencial de escalada? Improvável. Outros conceitos como "defesa híbrida" e variantes ressuscitadas da dissuasão estendida da Guerra Fria oferecem soluções alternativas, mas não otimizam os recursos fiscais e militares limitados para enfrentar a Rússia.

Soldados russos e sírio diante de retratos de Vladimir Putin e Bashar al-Assad.

A mentalidade tradicional leva a crer que quando você precisa de um tanque, você precisa de um tanque. A destreza dos blindados americanos, especialmente quando casada com o poder aéreo dos Estados Unidos, é inegável. Ela esmagou a tentativa de Saddam Hussein de tomar o Kuwait em 1991 e, mais uma vez, deu um golpe esmagador nas fases iniciais da Operação Liberdade do Iraque. Ao validar seletivamente o complexo de superioridade inato dos EUA, os adversários da América, no entanto, perceberam que se expor a um projétil de 120 milímetros disparado de um tanque Abrams não é do seu interesse. A solução? Guerra por outros meios. No Iraque, isso significou insurgência à la Che Guevara, Mao Zedong e Carlos Marighella, revestida com um verniz jihadista. Na Ucrânia, isso significava que a Rússia empregava “homenzinhos verdes” para capitalizar as queixas da etnia russa indígena e tomar a Crimeia por meio de táticas de salame projetadas para permanecer abaixo do limite de induzir a intervenção ocidental. O ingrediente principal? Evite a superioridade militar convencional americana e paralise sua força de vontade política para empregar opções não-convencionais para enfrentá-la com sucesso.

O Artigo 5 exige uma defesa coletiva contra um ataque armado; não obriga uma resposta contra a guerra híbrida, nem estipula como uma defesa em ambos os casos deve ser executada. Em vez de fingir que os EUA realmente entrarão em guerra com a Rússia por causa de uma invasão do Báltico possibilitada por subterfúgios e desinformação, por que não estabelecer as condições para que os movimentos indígenas frustrem a ocupação russa e bloqueiem seus objetivos estratégicos? Se a Rússia quiser invadir o Báltico, nenhuma resposta militar estatal convencional na região terá chance. A Rússia demonstrou isso na Geórgia em 2008. A beleza da guerra irregular é sua capacidade de impor custos significativos com um gasto mínimo de recursos. Robert Taber fez a analogia de pulgas atacando um cachorro durante um conflito prolongado para erodir a determinação política do oponente. Grandes potências ao longo da história, incluindo os EUA, sofreram isso ao confrontar inimigos nominalmente mais fracos.

Aumente os custos: algumas insurgências são boas para os Estados Unidos

Essa abordagem teria sucesso ao elevar os custos da invasão russa a um nível inaceitável. Executado secretamente, envolve a construção de uma infraestrutura de resistência indígena a ser desencadeada assim que a Rússia cruzar a linha, atolando o grande urso em um pântano de insurgência projetado para anular sua vantagem convencional comparativa. Isso tem precedentes históricos da Guerra Fria na região: AECOB/ZRLYNCH era um programa da Agência Central de Inteligência (CIA) que apoiava o Movimento de Resistência Letão anti-soviético como parte da estratégia mais ampla de permitir movimentos de resistência clandestina na Europa Oriental.

Combatentes da resistência lituana (da esquerda para a direita) Klemensas Širvys-Sakalas, Juozas Lukša-Skirmantas e Benediktas Trumpys-Rytis na floresta por volta de 1949.
(Centro de Pesquisa do Genocídio e Resistência da Lituânia)

Executado abertamente, o desenvolvimento da infraestrutura de resistência procederia de forma análoga à abordagem secreta, mas serviria como um sinal para deter a agressão russa, transmitindo totalmente as capacidades do ninho de vespas que a Rússia estaria invadindo. O apoio recente à rebelião síria abriu um precedente para o apoio aberto aos elementos de resistência pelas Forças de Operações Especiais dos EUA. No entanto, o desastre da Síria oferece lições significativas que devem ser aprendidas para o futuro, nomeadamente a importância de desenvolver capacidade subterrânea e auxiliar, além de elementos de guerrilha armada, um elemento crítico, mas muitas vezes ignorado da doutrina da guerra não convencional, bem como o significado de medidas deliberadas para mitigar ações divergentes resultantes da seleção adversa de forças de procuração (proxies).

Uma consideração importante para os formuladores de políticas é o papel da resistência não-violenta e violenta dentro de tal plano de defesa do Báltico. O ministério da defesa da Lituânia publicou recentemente um manual intitulado "Como agir em situações extremas ou instâncias de guerra", que discute especificamente o papel de organizar a desobediência civil para combater a guerra híbrida. A resistência não-violenta tem precedentes históricos no Báltico contra a União Soviética, e as evidências apóiam sua eficácia potencial contra a Rússia hoje. Até mesmo o Escritório de Serviços Estratégicos (Office of Strategic Services, OSS), o predecessor da CIA durante a Segunda Guerra Mundial, emitiu orientações sobre como sabotar as forças de ocupação com resistência civil. No entanto, o resultado do levante sírio demonstra que tanto a resistência não-violenta quanto a violenta devem ser planejadas como parte de uma estratégia abrangente.

O Paradoxo da Guerra Irregular Estratégica

Boina Verde do 5th SFG com o camuflado listras de tigre (tiger stripes) durante um exercício no Fort Campbell, 2019.

As opções de guerra irregular geralmente apresentam um paradoxo debilitante para os Estados Unidos e outras democracias estáveis. De acordo com o Coronel (Reformado) Mark Mitchell, ex-comandante do 5º Grupo de Forças Especiais (5th Special Forces Group, 5th SFG), os políticos são mais resistentes à implementação de medidas de guerra irregular quando elas têm maior probabilidade de sucesso. Quando introduzidos antes ou muito no início de um conflito, os gastos mínimos de recursos podem ter efeitos positivos exagerados sobre os resultados estratégicos; no entanto, a ambigüidade informativa e os perigos duplos de escalada e consequências não-intencionais criam hesitação política que impede a implementação das ações necessárias nos estágios iniciais. Quando os formuladores de políticas percebem que a situação degenerou em um problema real que afeta os interesses nacionais dos EUA (pense na Síria hoje) e decidem agir, a oportunidade de implementar uma solução decisiva ou mesmo eficaz de baixa visibilidade/baixo custo há muito tempo já passou. Essas soluções ainda podem ser implementadas, mas é altamente improvável que forneçam os resultados desejados.

Alguns podem apontar para a invasão do Afeganistão em 2001 como um exemplo de uma solução eficaz de guerra irregular executada sem uma longa vanguarda. Tal avaliação ignora os efeitos das relações dos EUA com os grupos de resistência afegãos como resultado dos esforços para impor custos aos soviéticos nos anos 80. Sem essas relações, construídas e sustentadas ao longo de quase duas décadas e exploradas pelos “soldados a cavalo” como o Coronel Mitchell, os Estados Unidos não teriam sido capazes de implementar rapidamente um esforço de guerra irregular em 2001.

Forças especiais (Boinas Verdes e CCT) à cavalo com a Aliança do Norte, outubro de 2001.

Em 1948, George F. Kennan reconheceu a necessidade de empregar "guerra política" contra a União Soviética, integrando todos os meios nacionais, ocultos e abertos, para atingir os objetivos de segurança nacional "na ausência de guerra declarada ou força de força aberta hostilidades”. Este requisito permanece o mesmo hoje. A eliminação de santuários de impunidade, sejam eles dentro do espaço político da "zona cinzenta" manipulada pela Rússia ou em território físico utilizado pela al-Qaeda ou pelo Estado Islâmico para lançar ataques à pátria americana, exige que os EUA empreguem medidas não convencionais para competir e vencer.

O Major Steve Ferenzi é estrategista do Exército e oficial das Forças Especiais da Divisão de Planejamento Estratégico G-5 do Comando de Operações Especiais do Exército dos EUA. Ele serviu anteriormente nos 3º e 5º Grupos de Forças Especiais (Aerotransportados) e na 82ª Divisão Aerotransportada e possui um mestrado em Assuntos Internacionais pela Escola de Relações Internacionais e Públicas da Universidade de Columbia.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:

Operações especiais não são um substituto para a estratégia


Por Stewart Parker e Ari Cicurel, Breaking Defense, 19 de março de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de setembro de 2021.

Usadas demais e sobrecarregadas na "guerra global contra o terror" desde o 11 de setembro, as Forças de Operações Especiais precisam que Biden lhes dê uma pausa para que possam se concentrar na Rússia, China e na "zona cinzenta".

De filmes a livros que contam tudo, a América adora seus operadores especiais. Mas um ritmo esmagador de operações e uma definição cada vez maior do que constitui uma “operação especial” esticou muito as Forças de Operações Especiais (Special Operations Forces, SOF), tornando mais importante do que nunca definir de forma restrita as missões SOF. A Orientação Provisória de Segurança Nacional do Presidente Joe Biden é um passo importante para redirecionar a política militar do contra-terrorismo no Oriente Médio para a competição estratégica contra a China.

Mas a emissão da orientação provisória em si não resolve os problemas das SOF. É possível para Biden criar uma pegada militar mais inteligente e sustentável no exterior, mas o sucesso estratégico requer a adaptação do modelo americano para contra-terrorismo e contra-insurgência enquanto muda a forma como utiliza as SOF.

A estratégia de Biden para o Oriente Médio busca "dimensionar nossa presença militar ao nível necessário para interromper redes terroristas internacionais, deter a agressão iraniana e proteger outros interesses vitais dos EUA" para que a América possa redirecionar recursos militares para ameaças cada vez mais perigosas como a China.

Após o choque histórico dos ataques de 11 de setembro, o contra-terrorismo e a contra-insurgência no Oriente Médio se tornaram os principais desafios para os planejadores de defesa americanos. Diante de terroristas ou insurgentes que rapidamente atacavam civis e depois se escondiam entre eles, os líderes dos Estados Unidos se apaixonaram por raides de operações especiais e ataques de drones.

Operador especial (CCT/USAF) à cavalo na invasão do Afeganistão, outubro de 2001.

Os EUA já tentaram se afastar da "guerra global contra o terrorismo" antes, começando com o "pivô para a Ásia" do presidente Obama, que nunca se materializou. Em seguida, veio a Estratégia de Defesa Nacional de 2018 da administração Trump e o Anexo de Guerra Irregular de 2020 que priorizou o Indo-Pacífico. Agora, a mudança estratégica de Biden indica que a primazia do contra-terrorismo e da contra-insurgência na segurança nacional americana está acabando.

No entanto, a retirada das tropas não encerrará os conflitos regionais nem eliminará a exposição dos Estados Unidos ao terrorismo. As demandas pelos recursos exclusivos fornecidos pelas SOF não vão diminuir, mesmo com a redução de sua presença no Oriente Médio.

No futuro, será um desafio para o Comando de Operações Especiais dos EUA (U.S. Special Operations CommandUSSOCOM) equilibrar as operações de contra-terrorismo e contra-insurgência em curso, enquanto também se prepara para envolver a China e a Rússia na "zona cinzenta" legal e estrategicamente obscura entre guerra e paz.

Durante grande parte das últimas duas décadas, os operadores especiais funcionaram como uma força não-convencional apoiada por forças convencionais, com as SOF frequentemente no papel principal. O combate contra forças semelhantes provavelmente inverteria esse relacionamento, exigindo que as SOF cumprissem missões de apoio à força combinada mais ampla, aliados e parceiros.

Contra-terrorismo e Contra-insurgência Sustentáveis

As Forças Especiais dos EUA (Boinas Verdes) atacam um objetivo em um evento de treinamento.

Mesmo que as forças americans se retirem do Afeganistão ou de todo o Oriente Médio, os terroristas não irão embora. O presidente Biden, portanto, pretende manter algum foco no contra-terrorismo e na contra-insurgência, mesmo enquanto reduz o engajamento militar em conflitos relacionados. A adoção de um modelo menos focado no combate cinético (poder de fogo) e mais focado no que é acessível e sustentável a longo prazo reduzirá o papel dos militares e contribuirá para melhores resultados de segurança. A Estratégia Nacional de Contraterrorismo de 2018, que exige "todos os instrumentos disponíveis do poder dos Estados Unidos para combater o terrorismo", é um ponto de partida para o plano sustentável do novo governo. Os raides das SOF e ataques aéreos podem atrair atenção descomunal, mas também têm um registro imperfeito de transparência. Para melhor abordar as preocupantes descobertas da comissão do 11 de setembro, os EUA devem continuar a desenvolver seu potente portfólio de capacidades não-militares.

A análise do Centro Nacional de Diplomacia e Contra-terrorismo deve moldar os programas de contra-terrorismo e contra-insurgência, com a aplicação da lei civil e agências de inteligência muitas vezes assumindo a liderança. Os formuladores de políticas devem definir claramente suas prioridades, limitando os esforços apenas contra os grupos terroristas que mais ameaçam a América, seus interesses e seus parceiros. Uma estratégia de recursos sustentáveis requer colaboração proativa, atribui funções claras a departamentos e agências para evitar redundância ineficiente e estimula parceiros e aliados a se apropriarem das missões globais de contra-terrorismo. Mais importante ainda, um modelo de contra-terrorismo com recursos sustentáveis libera cada vez mais Forças de Operações Especiais para se reorientarem contra os atores estatais e seus representantes (proxies).

Adaptando as Forças de Operações Especiais

Operadores especiais russos (Spetsnaz), conhecidos como "Homenzinhos Verdes", na Ucrânia em março de 2014.

O combate efetivo à China, Rússia e outros Estados malignos exige que os formuladores de políticas adaptem o papel das SOF. Embora o contra-terrorismo e a contra-insurgência com foco restrito continuem sendo um esforço duradouro, as SOF não se concentraram historicamente nessas missões. Os Rangers de Roger dominaram as táticas de raides de estilo indígena na Guerra Revolucionária - o que os teóricos hoje chamariam de um conflito "híbrido" envolvendo guerrilheiros e forças regulares, incluindo o Exército Continental de Washington e seus aliados franceses. O presidente Kennedy autorizou os Boinas Verdes a responderem às insurgências apoiadas pelos soviéticos, e uma das principais funções das SOF na Guerra Fria era preparar movimentos de resistência em nações aliadas em risco de serem ocupadas por Moscou. Foram os fracassos conjuntos na tentativa de resgate de reféns iranianos em 1980 e o sucesso superficial na invasão de Granada em 1983 que impulsionaram a criação do USSOCOM - não o terrorismo.

Somente depois do 11 de setembro as SOF foram totalmente absorvidas por raides de “ação direta” contra terroristas e insurgentes, à medida que o USSOCOM se tornou o comando apoiado na guerra global contra o terror, em vez de um elemento de apoio em uma campanha basicamente convencional. As Forças Armadas são mais hábeis dentro da caixa de operações convencionais, mas as atividades centrais das SOF serão indispensáveis para campanhas futuras bem-sucedidas em todo o espectro do conflito. No mês passado, os legisladores reconheceram isso criando um novo subcomitê para supervisionar as SOF.

Operadores Delta e Ranger no momento do choque entre o Bluebeard 3 e o Republic 4 durante a fracassada Operação Eagle Claw, em 1980.
(Ilustração de Jim Laurier e Johnny Shumate/Osprey Publishing)

A redução das atividades de CT melhorará a capacidade das SOF de competirem abaixo do nível de conflito armado, responderem a crises, recuperarem americanos sequestrados e criarem prontidão para a guerra em um ambiente operacional altamente contestado e desordenado.

Para se preparar para a competição estratégica, os Estados Unidos precisam adaptar suas missões de contraterrorismo e contra-insurgência. As SOF serão vitais nas operações contra a China e a Rússia, embora permaneçam cruciais contra as ameaças duradouras no Oriente Médio. Sem rodeios, não há guerra que os militares americanos possam vencer sem Forças de Operações Especiais eficazes.

O Tenente-Coronel Stewart “PR” Parker é um participante do Programa de Líderes Militares dos EUA de 2020 do Instituto Judaico para a Segurança Nacional (Jewish Institute for National Security of America, JINSA) e atualmente está designado para o Comando de Operações Especiais da Força Aérea. Ari Cicurel é um analista de política sênior no Gemunder Center for Defense and Strategy da JINSA.

Bibliografia recomendada:

Special Operations Forces in Afghanistan.
Leigh Neville e Ramiro Bujeiro.

Special Operations Forces in Iraq.
Leigh Neville e Richard Hook.

Leitura recomendada:


As lições de Mogadíscio, 7 de outubro de 2018.


quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Soldado da Guarda Nacional de NY é aprovado no CIGS

O 3º Sargento Thomas Carpenter, da Guarda Nacional do Exército de Nova York, segundo da direita, e outros soldados formados no Curso Internacional de Operações na Selva, realizado pelo Centro de Treinamento em Guerra na Selva do Exército Brasileiro, brandem seus facões.

Por Eric Durr, Guarda Nacional de Nova York, 10 de dezembro de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 16 de setembro de 2021.

Soldado da Guarda Nacional de NY é aprovado em difícil curso de guerra na selva brasileira.

LATHAM, N.Y. - O 3º Sargento Thomas Carpenter, da Guarda Nacional do Exército de Nova York, sabia que iria afundar ou nadar quando apareceu no Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) do Exército Brasileiro em outubro de 2019.

Ele foi inscrito no Curso Internacional de Operações na Selva de seis semanas que o Exército Brasileiro oferece para soldados estrangeiros. Mas o NCO em treinamento, de 38 anos, do 2º Batalhão, 108º Regimento de Infantaria, sabia que precisava passar no teste inicial de natação ou voltaria para casa.

"Foi uma grande luta conseguir nadar", lembrou o graduado da Escola de Rangers do Exército dos EUA. "Foi um pesadelo."

Por uma semana depois de chegar no quartel-general da escola em Manaus, no Brasil, ele ficou na piscina trabalhando com instrutores até que pudesse nadar de uniforme completo, com sua arma e rebocando uma mochila.

Seis semanas depois, o aspirante, residente de N.Y., não apenas conquistou o cobiçado Brevê de Onça do guerreiro de selva emitido pela escola, como também foi o terceiro graduado com honra no curso internacional.

"Eu era burro demais para desistir", disse Carpenter.

Insígnia do 2º Batalhão, 108º Regimento de Infantaria, Guarda Nacional de Nova York.

Passar pela escola é grande coisa, de acordo com o tenente-coronel do Exército Rob Santamaria, um militar de ligação na Embaixada dos Estados Unidos no Brasil. "A maioria dos especialistas militares na selva considera a Escola de Guerra na Selva do Exército Brasileiro a principal escola de selva do mundo", disse Santamaria.

“A graduação do 3º Sargento Carpenter no Curso Internacional da da Escola de Guerra na Selva do Exército Brasileiro deu credibilidade instantânea à Guarda Nacional do Exército de Nova York e conquistou muito respeito junto ao Exército Brasileiro”, acrescentou.

O desempenho de Carpenter não surpreendeu ninguém que o conheça, disse o Sargento-Mor David Piwowarski, principal suboficial da Guarda Nacional do Exército de Nova York.

"O 3º Sargento Carpenter incorpora o espírito do homem-minuto [minuteman, miliciano colonial]", disse Piwowarski. "Num prazo muito curto, sem nenhum treinamento específico, ele respondeu com dureza a este percurso exigente apenas com o treinamento que já tinha sob o cinto e com muita coragem."

A Guarda Nacional de Nova York foi convidada a enviar soldados para a escola de guerra na selva do Brasil como parte da nova parceria de treinamento e intercâmbio entre a Guarda Nacional de Nova York e as forças armadas do Brasil, rubricada em março de 2019.

Ser capaz de nadar bem é uma parte vital do curso de guerra na selva porque os rios substituem as estradas na floresta tropical, explicou Carpenter.

“Onde eles operam na selva amazônica existem apenas duas estradas”, disse Carpenter. "Quase tudo é feito através do sistema fluvial. Eles usam as redes fluviais para transportar suprimentos e pessoas."

A onça é o símbolo do CIGS.

Ao chegar à escola, todos os participantes devem passar por testes de habilidades básicas, incluindo os requisitos de natação, para indicar que eles podem enfrentar o curso. Em seguida, eles se vão para a selva.

A primeira fase do curso de seis semanas concentra-se em viver e sobreviver na selva, disse Carpenter. Os soldados aprenderam o que podiam ou não comer. "Nós não comemos cobras, mas eu tive que pegar uma", disse ele.

Eles também aprenderam a evitar insetos mortais, animais e cobras. Lidar com a umidade constante foi outra habilidade que aprenderam, disse Carpenter. "A chuva não é como a chuva daqui", disse ele. "É como a chuva da monção. É uma batalha constante para manter a ferrugem longe e manter tudo em boas condições operacionais." Navegar na selva densa também é uma habilidade especial, disse Carpenter.

Dependendo da estação, os níveis de água nos riachos e rios podem ser drasticamente diferentes. Os brasileiros emitem mapas diferentes para diferentes épocas do ano refletindo essas mudanças, disse ele. E o dossel da selva torna difícil criar mapas com características de contorno precisas, disse ele.

Os soldados aprenderam a seguir a "linha seca" durante a navegação, explicou. Eles ficariam em terreno elevado e evitariam as ravinas, o que significava que demorariam mais para ir a qualquer lugar.

Essas habilidades de sobrevivência e navegação foram testadas em um exercício de quatro dias em que cada grupo de combate foi lançado na selva e recebeu uma distância, uma direção e tarefas para realizar ao longo do caminho. "Eles nos lançaram em um lugar onde sabiam que não havia frutas e vegetais para comer", disse ele. "Nós praticamente morremos de fome."

Brevê de Onça do guerreiro de selva.

As duas semanas seguintes foram passadas na água. Eles voaram de helicóptero - saltando de um helicóptero para a Amazônia - e aprenderam a fazer jangadas e a impermeabilizar equipamento. Por fim, Carpenter e sua equipe - que incluía soldados da China, Canadá, França e Paraguai - realizaram uma inserção de dois quilômetros no rio. “Ficamos na água por três horas naquela noite”, lembrou. "Estávamos molhados 24 horas por dia, 7 dias por semana", disse Carpenter. "Se não estivéssemos na água, chovia todos os dias. Se não estivesse chovendo, você estava suando através do uniforme."

A fase final do treinamento focou em táticas militares na floresta tropical. Esse treinamento foi semelhante ao da Escola de Rangers do Exército, disse Carpenter. Os homens planejaram e conduziram patrulhas e missões táticas. Eles desceram de rapel na selva de helicópteros pairando no ar. Esta fase foi culminada com uma patrulha de longo alcance.

A principal diferença entre a Escola de Rangers e o treinamento na selva brasileira é que a selva é várias vezes mais densa do que a floresta e os pântanos da Flórida onde os Rangers treinam, disse Carpenter. "Uma força inimiga pode estar no topo de uma patrulha antes deles perceberem", disse ele.

Cerimônia do facão de selva.

Ao final das seis semanas, Carpenter e os demais estudantes internacionais, inclusive um outro americano, foram presenteados com seu Brevê de Onça - o símbolo oficial de um guerreiro de selva brasileiro - e um facão.

"É um facão muito legal", disse Carpenter. "No final do curso, você tem uma cerimônia do facão."

“Alguém já qualificado te presenteia e então você o batiza agitando-o através da fumaça de uma fogueira”, acrescentou.

Desde que o Brasil fundou sua escola de guerra na selva em 1964, mais de 6.300 soldados conseguiram passar pelo curso, disse Santamaria. São 530 formandos do curso internacional do Exército brasileiro uma vez por ano.

A fogueira.

Carpenter é o 30º membro do Exército dos EUA a passar pelo curso, disse ele. Seu objetivo agora, disse Carpenter, é trazer as habilidades que aprendeu de volta para sua unidade e outras formações da Guarda Nacional do Exército de Nova York. "Não sou um bom sargento a menos que treine soldados e os torne melhores do que eu", disse ele.

O principal conselho que ele daria a outros soldados da guarda em direção ao curso de selva é se concentrarem na natação e, em seguida, nadar um pouco mais. "Todos que foram lá estavam preparados", disse Carpenter. "Eu era o único idiota que não fazia ideia das coisas."

O 3º Sargento Thomas Carpenter, da Guarda Nacional do Exército de Nova York, à direita, está ao lado de outros dois soldados homenageados pelo Curso Internacional de Operações na Selva realizado pelo CIGS, brandindo a estatueta do guerreiro da selva.

Bibliografia recomendada:

A History of Jungle Warfare:
From the earliest days to the battlefields of Vietnam.
Bryan Perrett.

Jungle Warriors:
Defenders of the Amazon.
Carlos Lorch.

Leitura recomendada:

Um soldado americano se forma na selva brasileira, 30 de setembro de 2018.

FOTO: Conferência de selva com o Exército Americano no Panamá, 23 de agosto de 2020.

Chineses buscam assistência brasileira com treinamento na selva9 de julho de 2020.

Alguns soldados estão agora autorizados a usar o novo brevê de selva do Exército Americano23 de maio de 2020.

Retorno à Selva: Um renascimento da guerra em terreno fechado17 de julho de 2019.

Bem vindo à selva11 de julho de 2020.

Membros do 3º Batalhão, Royal 22e Régiment se preparam para a guerra na selva30 de setembro de 2019.

Relatório Pós-Ação de participação na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro, 5 de janeiro de 2020.

domingo, 5 de setembro de 2021

Carlos Magno: Depois do Afeganistão, a Europa se pergunta se a França estava certa sobre a América


Da The Economist, 4 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

O ritual anual do Dia da Bastilha é um momento para os franceses colocarem bandeirinhas, beberem champanhe e celebrarem os mitos da fundação da república. Em 14 de julho deste ano, porém, quando o embaixador francês  em Cabul, David Martinon, gravou uma mensagem aos concidadãos, a gravidade esmagou a festa. “Mes chers compatriotes”, ele começou, “a situação no Afeganistão é extremamente preocupante”. A embaixada francesa, disse ele, concluiu a evacuação de funcionários afegãos. Os franceses foram instruídos a partirem em um vôo especial três dias depois. Depois disso, dada a “evolução previsível” dos eventos no Afeganistão, ele declarou - um mês inteiro antes da queda de Cabul - que a França não poderia mais garantir-lhes uma saída segura.

Quando os franceses começaram a retirar funcionários afegãos e suas famílias em maio, até amigos os acusaram de derrotismo e de apressar o colapso do regime. O esforço de evacuação em agosto (de 2.834 pessoas, em 42 vôos) foi imperfeito e deixou alguns afegãos vulneráveis para trás. Enquanto os aliados lutavam para tirar seus funcionários afegãos de Cabul, os franceses se viram tão dependentes quanto qualquer outro da segurança americana. No entanto, tem havido uma satisfação silenciosa em Paris. Seus planos mostraram “uma previsão impressionante”, diz Lord Ricketts, um ex-embaixador britânico na França.

Se os franceses agiram cedo, fazendo sua própria avaliação da inteligência compartilhada, isso se deveu em parte a uma pegada menor no solo. A França lutou no Afeganistão ao lado de aliados da OTAN em 2001. “Somos todos americanos”, publicou a primeira página do Le Monde após o 11 de setembro. Em seguida, retirou todas as tropas até 2014, em parte para se concentrar em seu próprio esforço de contra-insurgência no Sahel. No entanto, a decisão em Cabul também foi mais fácil de tomar porque os franceses têm menos escrúpulos em fazer suas próprias coisas, mesmo quando isso irrita os Estados Unidos. Enquanto os europeus pensam nas implicações perturbadoras do fiasco afegão e no que ele diz sobre a dependência de uma América unilateral, o clima na Grã-Bretanha e na Alemanha é de choque e mágoa. Para os franceses, que tiraram da crise de Suez em 1956 a lição de que nunca poderiam confiar totalmente nos Estados Unidos, uma conclusão reforçada sob as presidências de Obama e Trump, o Afeganistão serviu para confirmar o que há muito suspeitavam.

Reembarque de um tanque M47 Patton francês do 8º Regimento de Dragões no Porto Said, no Egito, em 21 de dezembro de 1956.

Não é segredo que nem todos os europeus compartilham da opinião da França. Quando Emmanuel Macron subiu ao palco de painéis de madeira no anfiteatro da Sorbonne logo após sua eleição em 2017 e implorou por "soberania europeia" e uma "capacidade de agir autonomamente" em questões de segurança caso a Europa precisasse, sua voz era solitária. Na Alemanha e em pontos a leste, o apelo de Macron foi visto com irritação: mais uma incômoda tentativa gaullista de minar a OTAN e suplantar a América como fiador da segurança europeia.

As mentes mudaram um pouco desde então, pois Macron procurou tranquilizar os amigos de que sua ideia não é substituir, mas complementar a aliança transatlântica. Mesmo assim, no ano passado, Annegret Kramp-Karrenbauer, Ministra da Defesa da Alemanha, escreveu sem rodeios que "as ilusões de autonomia estratégica europeia devem acabar." Enquanto isso, na Grã-Bretanha, as ligações de Macron foram desconsideradas como irrelevantes para uma nação-ilha recentemente livre para forjar seu próprio papel global. A união da soberania europeia sobre a Defesa era algo que o Brexit foi projetado para evitar.

Paraquedistas da 82ª Divisão Aerotransportada "All American" provendo a segurança do aeroporto de Cabul.

O desastre no Afeganistão mudou a retórica. Tom Tugendhat, um parlamentar conservador que serviu no Afeganistão, exortou a Grã-Bretanha “a se certificar de que não dependemos de um único aliado”, nomeando a França e a Alemanha como parceiros em potencial. Ben Wallace, Secretário de Defesa da Grã-Bretanha, sugeriu que suas forças armadas deveriam estar prontas para "aderir a coalizões diferentes e não depender de uma única nação". Ele não precisou dizer qual. “Todos nós fomos humilhados da mesma forma pelos americanos”, disse um diplomata britânico, que aponta para um interesse comum em garantir que isso não aconteça novamente. Para a Alemanha tímida em relação à conflitos, o Afeganistão foi uma experiência formativa. A decepção foi dolorosa. Armin Laschet, o candidato conservador à chancelaria da Alemanha, descreveu a retirada como “o maior desastre que a OTAN já experimentou desde a sua fundação”.

Em suma, a Europa parece perceber que terá de fazer mais por si mesma. Quer os céticos entendam ou não, isso é exatamente o que o Monsieur Macron tem dito, e dirá novamente em um discurso antes da presidência rotativa da França no Conselho da UE em 2022. Ninguém, mas ninguém, vai dizer isso em voz alta. Mas o reconhecimento implícito é que, zut alors, o Monsieur Macron estava certo.

Aux armes, Européens

Sniper francês da Força Barkhane no Sahel malinense.

Duas grandes questões para os europeus decorrem desse pensamento desconcertante, no entanto, e nenhuma resposta fácil existe para nenhuma delas. Em primeiro lugar, o que a Europa realmente quer dizer com “soberania europeia” ou “autonomia estratégica”? A maioria dos países promete gastar mais em defesa, embora a Alemanha (ao contrário da Grã-Bretanha e da França) ainda falhe em cumprir a referência da OTAN de 2% do PIB. Além disso, há pouca clareza e ainda menos acordo, até porque o Brexit não deixou a Grã-Bretanha com vontade de trabalhar institucionalmente com a UE.

Devem os europeus aspirar apenas a uma gestão limitada de um conflito regional, como o Sahel ou o Iraque? Ou esperam enfrentar a defesa coletiva de seu continente? Os realistas defendem o primeiro, e apenas até certo ponto. Os entusiastas sugerem o último. No entanto, mesmo no Sahel, a França ainda precisa dos americanos para inteligência e logística. Em segundo lugar, a Europa está realmente preparada para fazer o que for preciso para sobreviver por conta própria? A evidência não é convincente. A Europa é melhor na criação de siglas do que na construção de capacidades. “Se não podemos nem cuidar do aeroporto de Cabul, existe uma grande lacuna entre nossa análise e nossa capacidade de ação”, diz Claudia Major, do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança.

O esforço implícito seria enorme. “Não tenho certeza se os europeus estão psicologicamente preparados para enfrentar o desafio”, escreveu Gérard Araud, um ex-embaixador francês na América, para o Conselho do Atlântico. O Monsieur Macron, como seu embaixador em Cabul, pode ter feito a escolha certa. Mas os europeus estão prontos para dar atenção a isso?

Bibliografia recomendada:

L'emergence d'une Europe de la défense:
Difficultés et perspectives.
Dejana Vukcevic.

Leitura recomendada:






FOTO: Fuzis SKS capturados, 1º de janeiro de 2021.


terça-feira, 24 de agosto de 2021

Confiar nos EUA? As lições para a Ásia enquanto Biden deserta o Afeganistão


Por Debasish Roy Chowdhury, TIME Magazine, 15 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 24 de agosto de 2021.

Foi um dia esperançoso de janeiro quando um novo presidente americano assumiu o cargo após quatro anos de uma montanha-russa chamada Donald Trump.

“Vamos consertar nossas alianças e nos envolver com o mundo mais uma vez”, disse Joe Biden a um mundo ansioso em seu discurso inaugural, declarando a intenção do líder do mundo livre de liderar mais uma vez. “Vamos liderar não apenas pelo exemplo de nosso poder, mas pelo poder de nosso exemplo. Seremos um parceiro forte e confiável para a paz, o progresso e a segurança.”

Os dias de isolacionismo do America First de Trump, que tinha visto os EUA rejeitarem um bloco comercial multilateral, rasgar antigos tratados e insultar aliados, acabaram. A América estava de volta.


Como no Vietnã e no Iraque, o Afeganistão mais uma vez serve como um lembrete da capacidade da América para o caos com suas intervenções mal-pensadas e recuos imprudentes.

Em nenhum lugar isso foi mais evidente do que na Ásia. As relações com a Coreia do Sul e o Japão, ambas abaladas pelas exigências de Trump de trazer mais dinheiro para a mesa, foram rapidamente corrigidas. O governo Biden reiterou seu compromisso de usar a força militar para defender os interesses de aliados como Japão e Taiwan. Uma década depois de Barack Obama formular pela primeira vez a política "Pivô para a Ásia" - mudando o foco histórico dos EUA da Europa, América Latina e Oriente Médio para a região do Indo-Pacífico a fim de restringir a China - o governo de Biden parecia pronto para assumir um entalhe.

Kurt Campbell, considerado o arquiteto da estratégia, foi trazido como o czar político da Ásia com o título de Coordenador do Indo-Pacífico no Conselho de Segurança Nacional. Uma aliança informal de quatro democracias marítimas na região da Ásia-Pacífico - compreendendo os Estados Unidos, Austrália, Japão e Índia e chamada Diálogo de Segurança Quadrilateral, ou “Quad” - foi cimentada após uma década de hesitação. Dois meses depois de assumir, Biden conseguiu que os líderes dessa suposta “OTAN asiática”, um baluarte contra uma China em ascensão e assertiva, chegassem ao cume, virtualmente, pela primeira vez.

Nem toda a Ásia é igual, porém, ordenada como agora, de acordo com sua relevância para o projeto de conter a China. O Afeganistão e vidas afegãs não figuram muito nesta nova hierarquia.

Enquanto Biden estava acelerando o Quad, ele estava simultaneamente trabalhando em uma retirada total das tropas do Afeganistão, continuando com a política de Trump de sair do que os americanos agora chamam de "guerra sem fim". No ano passado, Trump fez um acordo de paz com o Talibã. Não apenas o governo afegão foi mantido fora do acordo, os EUA até pediram a Cabul que libertasse 5.000 prisioneiros do Talibã para atender às condições do Talibã. A escrita estava bem clara na parede: a América de Trump decidiu jogar o governo afegão debaixo do ônibus e fazer as pazes com as mesmas pessoas com quem entrou em guerra há 20 anos. Se a elite política do Afeganistão viu esperanças de uma mudança de atitude na ascensão de Biden ao poder, elas foram rapidamente frustradas.

Famílias afegãs carregando seus pertences fugindo da cidade de Cabul, Afeganistão, em 15 de agosto de 2021.
(Haroon Sabawoon / Agência Anadolu via Getty Images)

Quando Biden se encontrou com o presidente afegão Ashraf Ghani, seis meses depois de prometer "se comprometer com o mundo mais uma vez", os planos da América de se retirar do Afeganistão haviam sido gravados em pedra - não importa quais sejam as consequências. Mas os EUA não estavam abandonando o Afeganistão, ele reiterou, e divulgou que estava enviando três milhões de doses de vacinas ao país para ajudar seu povo na batalha contra a COVID-19. Para permanecer vivo até a chegada do Talibã.

E agora eles chegaram. Depois de um avanço rápido de tirar o fôlego em que província após província caíram nas mãos deles em rápida sucessão, o Talibã agora capturou Cabul. O presidente fugiu e os EUA evacuaram sua embaixada. Como agora é evidente, até a última hora, os EUA interpretaram mal a velocidade e a determinação do avanço do Talibã. A confusão desordenada pela saída do “parceiro de confiança para a paz, o progresso e a segurança” desfez agora todos os ganhos que sua presença conquistou ao longo de duas décadas no Afeganistão.

O retorno do Talibã significa o renascimento de sua interpretação primitiva das leis religiosas e da cultura tribal, revertendo anos de progresso em liberdade de expressão e direitos humanos. Nas áreas que capturaram, o Talibã já fechou a mídia, emitiu ordens proibindo os homens de rasparem a barba e as mulheres de saírem sem um companheiro. Os combatentes do Talibã estão indo de porta em porta, casando-se à força com garotas de 12 anos e obrigando as mulheres a deixarem o local de trabalho. É por isso que o Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) constata que 80% do quarto de milhão de afegãos que fugiram desde o final de maio, com o avanço do Talibã, são mulheres e crianças. Com o Talibã formalmente no comando do país, não haverá para onde fugir.

Além do próprio Afeganistão, o retorno do Talibã apresenta novos riscos de segurança para toda a região. Ele marca a criação de um novo foco de terror jihadista no coração da Ásia, atraindo combatentes islâmicos de todo o sul e sudeste da Ásia, até mesmo levantando o espectro de um reagrupamento do ISIS. A blitzkrieg do ISIS também acidentalmente seguiu outra retirada catastrófica dos Estados Unidos - a do Iraque em 2011.

Um helicóptero militar americano fotografado voando acima da embaixada dos EUA em Cabul em 15 de agosto de 2021.
(WAKIL KOHSAR / AFP via Getty Images)

O perigo do aumento da atividade jihadista no Afeganistão é particularmente agudo para os seis países que fazem fronteira com o Afeganistão, bem como a região próxima, incluindo a Índia e o sudeste da Ásia, que abrigam um grande número de populações muçulmanas, jovens muçulmanos insatisfeitos e insurgências islâmicas em andamento, como em Mindanao e Caxemira.

Os governos da Malásia, Indonésia e Filipinas - de onde milhares de jovens se juntaram ao ISIS - já estavam ansiosos pelo seu retorno da Síria. Ninguém sabe como os legisladores americanos vêem o mapa mundial, mas esses também são países asiáticos, e muitos deles são aliados dos EUA, que agora se encontram expostos a um risco muito maior de radicalização da jihad. Tudo porque a única superpotência do mundo não teve resistência suficiente para terminar o que começou.

A Índia, cuja capacidade naval em águas azuis, animosidade histórica com a China e mercado gigante a tornam um aliado americano particularmente importante na região, é um exemplo flagrante dos riscos das políticas caprichosas dos EUA. Sem nenhum acesso direto conhecido com o Talibã, a Índia está entre os muitos países da região menos preparados para a troca da guarda em Cabul. Apenas, sua situação é agravada infinitamente pelo conflito em curso com o arqui-inimigo Paquistão, que controla o Talibã. Sem mencionar os graves riscos de segurança que a ascensão de um Estado teocrático muçulmano militante na vizinhança agora representa para o governo nacionalista hindu da Índia, com um registro manifesto de discriminação contra a população muçulmana do país.

Capa do The New York Times de 16 de agosto de 2021.
"O Talibã captura Cabul, chocando os EUA enquanto 20 anos de esforço se desmancha em dias".

A perda total desses países na rápida mudança na geopolítica da região destaca os perigos que a extravagância americana cria para os aliados. Como no Vietnã e no Iraque, o Afeganistão mais uma vez serve como um lembrete da capacidade da América para o caos com suas intervenções mal-pensadas e recuos imprudentes.

Curiosamente, a abdicação irresponsável do Afeganistão pelos Estados Unidos ocorre em um momento em que tenta reafirmar sua liderança na Ásia e persuadir os países da região a escolherem um lado em sua competição de grande potência com a China. Os chineses foram rápidos em aproveitar o desastre para destacar a falta de confiabilidade dos Estados Unidos como parceiro. "Sr. Blinken, onde está sua frase favorita? Você não planeja anunciar sua posição ao lado do povo afegão?” twittou Hu Xijin, editor-chefe do Global Times, controlado pelo estado.

Pequim provavelmente não precisa se esforçar tanto. O poder do exemplo afegão de Biden tornou seu trabalho muito mais fácil.

Debasish Roy Chowdhur é coautor do livro To Kill A Democracy: India’s Passage to Despotism (Como matar uma democracia: a passagem da Índia para o despotismo).

To Kill A Democracy: India’s Passage to Despotism.
Debasish Roy Chowdhur e John Keane.

Bibliografia recomendada:

Introdução à Estratégia.
André Beaufre.

Leitura recomendada: