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segunda-feira, 14 de março de 2022

LIVRO: A Lei da Selva, de Hugo Studart


Por Euler de França Belém, Jornal Opção, 3 de junho de 2020.

Guerrilha do Araguaia: os vencedores rompem o silêncio.

O jornalista Hugo Studart publica livro explosivo sobre a batalha travada por guerrilheiros do PC do B contra militares entre Goiás (hoje Tocantins) e Pará.

“A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia”¹ (Geração Editorial, 383 páginas), do jornalista Hugo Studart, nasce clássico porque, como “Combate nas Trevas”, de Jacob Gorender, será objeto de consulta obrigatória para todo estudioso (ou curioso) do assunto. O mestre em história pela Universidade de Brasília prova que, quando falham ou faltam os documentos e a interpretação não pode forçar a realidade, é possível contar com depoimentos que — somados, comparados (com outros depoimentos) e avaliados — se tornam documentos. O que é um documento senão um depoimento escrito? Produto de uma dissertação de mestrado, o livro guarda traços acadêmicos, como o rigor no manuseio e articulação das fontes, mas o texto não é filho dos pedregulhos universitários (expressões como “em última instância” e “no limite” não aparecem). É claríssimo. Duas de suas virtudes — além das revelações e confirmações fartamente documentadas — são o equilíbrio da exposição dos fatos e a segurança no julgamento (Hannah Arendt, um dos suportes teóricos de Studart, dizia que julgar é fundamental, desde que mantido o equilíbrio). Os leitores acadêmicos certamente vão ficar atentos ao uso das ideias de filósofos, como Cornelius Castoriadis, na análise da questão do imaginário. Os leitores comuns vão direto às histórias. Ganham aqueles que prestarem atenção tanto no historiador quanto no repórter.

Até pouco tempo, a Guerrilha do Araguaia (1972-1974) era patrimônio do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que, ao constituir sua verdade, tendo como base sobretudo o Relatório Arroyo e seus filhotes, como um livrinho do sociólogo Clovis Moura, praticamente impôs, ainda que indiretamente, um silêncio sepulcral à voz dos vencedores, os militares. Ao examinar a Revolução de 1930, no livro “O Silêncio dos Vencidos”, o historiador Edgar de Decca disse ter descoberto que um discurso (o do grupo de Getúlio Vargas), ao se tornar hegemônico, gestou o silêncio dos que perderam. A respeito da Guerrilha do Araguaia, deu-se o oposto. Os militares venceram a guerra das armas e perderam a guerra do discurso. Nesse campo, diante da “omissão” dos militares, os comunistas — manipulando os fatos no melhor estilo stalinista (em novembro de 1974, segundo o Dossiê Araguaia, o PC do B enviou uma delegação para avisar o governo da Albânia sobre a vitória da guerrilha. Mentindo, os dirigentes do partido riram do trágico), mas também citando a verdade parcialmente (a manipulação só é eficiente se parte da verdade não for inteiramente desconsiderada) — impuseram a sua verdade de “santos” contra a “ausência” de verdade dos “demônios”.

Contra-capa do livro.

Emilio Garrastazu Médici (sobretudo)e Ernesto Geisel: jogo duro contra os guerrilheiros da esquerda.

O ponderado trabalho de Studart não é contra ou a favor dos militares ou dos guerrilheiros. É isento, a isenção possível — aquela que permite que todas as vozes falem e sejam ouvidas. A base são o Dossiê Araguaia — estudo elaborado por oficiais —, documentos das Forças Armadas, depoimentos de militares e de ex-guerrilheiros (como o Relatório Arroyo) e o Diário do Velho Mário (escrito pelo comandante-chefe da guerrilha, Maurício Grabois). A fonte secundária é a bibliografia, que, no geral, contesta a versão dos quartéis, mas sem ouvir os militares. Poucos pesquisadores abrem espaço para os militares. As exceções são Elio Gaspari, Eumano Silva e Taís Morais, no ótimo “Operação Araguaia — Os Arquivos Secretos da Guerrilha”, e Luiz Maklouf Carvalho.

A tese dominante é que os arquivos da Guerrilha do Araguaia foram queimados — em fins de 1974, por ordem do presidente Ernesto Geisel. Ao ouvir 27 militares (de soldado a general), alguns com posição de liderança no combate aos militantes do PC do B, como o coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel, Studart conclui que, sim, foram destruídos. Entretanto, seu livro prova que, se fazem falta, porque possivelmente detalhados, é possível contar a história sem eles. Studart, por assim dizer, “desparalisa” a história ao provar que os militares — vivíssimos (78 dos oficiais e sargentos que participaram da guerrilha estão vivos) — falam, e muito, apesar das reticências e cuidados (e suas precauções têm motivos justos, afinal, a esquerda julga ter o monopólio da verdade). São arquivos vivos. Sintomaticamente, os militares que colaboraram com Studart, por mais que queiram proteger a si mesmos (a maioria não revela seus nomes), familiares e as Forças Armadas, sobretudo o Exército e a Comunidade de Informações, estão preocupados com a exatidão histórica. O Dossiê Araguaia (elaborado entre 1998 e 2001), anexado ao livro, é um documento importante e indica que os militares conhecem bem aqueles que combatiam. O mesmo não se pode dizer dos “isolados” guerrilheiros.

Operação Araguaia:
Os Arquivos secretos da Guerrilha.

Estudo torna barulhento o silêncio da guerrilha

É provável que comunistas radicais digam: “Este livro é porta-voz dos militares”. Não é. O estudo de Studart torna barulhento o silêncio da guerrilha — recupera a voz dos militares, não para torná-la única a respeito do tema, mas sim para apontá-la como contradição enriquecedora para a constituição de uma história mais ampla do conflito. O objetivo é ampliar os sentidos da guerrilha. (“Trata-se, aqui, de relatar o significado do conflito sob a ótica de um dos lados envolvidos, os militares brasileiros que participaram da luta”, esclarece, sem meias palavras, Studart. Isto não quer dizer que o livro não seja nuançado.) Os comunistas ortodoxos precisam entender que a história só se completa — e reluto ao escrever “se completa” — com a exploração e conexão das divergências. Os militares têm informações que são úteis aos próprios esquerdistas. O livro revela, por exemplo, que, ao contrário do que apontam PC do B e Comissão dos Desaparecidos, morreram mais pessoas no Araguaia. Eis o saldo da guerrilha, na versão do Dossiê Araguaia: “Dos 107 guerrilheiros e camponeses que participaram, 64 teriam morrido; 18 teriam ‘paradeiro desconhecido’; 15 foram presos e sobreviveram; sete teriam desertado; dois teriam cometido suicídio; e um teria sido ‘justiçado’ pelos próprios companheiros”. De acordo com o Dossiê, morreram seis militares e oito foram feridos. Os números do PC do B são mais modestos: “Teriam tombado 75 pessoas — 58 guerrilheiros e 17 camponeses. Segundo a contabilidade dos militares, teriam sido 85. Ou seja, os militares admitem 10 mortos a mais”. (Não custa registrar que, juntos, o “soviético” Stálin e o chinês Mao Tsé-tung mataram 100 milhões de pessoas.)

Orlando Geisel: general, ministro do Exército: ordem era para jogar pesado no Araguaia.

Exemplo de documentação usada no livro.

Ao “entrar” nas histórias contadas por Studart, o leitor certamente ficará surpreso com o volume de revelações ou confirmações, agora iluminadas por dados novos, a respeito da Guerrilha do Araguaia.

Os militantes do PC do B foram para o Araguaia, na confluência dos Estados de Goiás (hoje Tocantins) e Pará, em 1966. Seis anos depois, os “paulistas” foram descobertos pelos militares. Durante anos, o PC do B sustentou que Pedro Albuquerque Neto e Lúcia Regina de Souza Martins foram os “traidores”. A apuração e a análise de Studart são ricas: “No imaginário dos militares quem teria sido o responsável pela chegada das Forças Armadas ao local onde resistiam os guerrilheiros? Pedro Albuquerque ou Lúcia Regina? Ambos, segundo descobri. Os militares primeiro tiveram notícia da guerrilha através de Lúcia Regina. Ao voltar para São Paulo, emocionalmente fragilizada, revoltada, sentindo-se culpada pelo aborto, conforme revelou depois, ela acabou desabafando com os pais. Falou tudo o que sabia. Foi seu pai quem procurou os militares para relatar o que Lúcia lhe havia contado, de acordo com a narrativa de um militar [Lício Maciel] que na época serviu no Centro de Informações do Exército. O informe, repassado da agência do CIE em São Paulo para a sede do Rio, teria sido colocado na gaveta. (…) O assunto só ganhou dimensão em fins de março, quando chegou à agência do CIE em Brasília o depoimento de Pedro Albuquerque à Polícia Federal em Fortaleza. De modo que, para os militares, prevaleceu a idéia generalizada de que Pedro teria revelado a existência da guerrilha”. Isto não quer dizer, ressalva Studart, que Albuquerque trabalhou como “colaborador” dos militares. “De todo modo, foi a partir do depoimento de Pedro que os militares precipitaram a reação que mais cedo ou mais tarde se desencadearia no Araguaia.” A conclusão de Studart: “… a descoberta da Guerrilha do Araguaia resulta não de uma ‘traição’, como registra o imaginário dos guerrilheiros; mas, sim, de diferentes interpretações do imaginário militar que, movido pelo ideário anticomunista e pela doutrina de segurança nacional, criou o Sistema de Informações e Segurança”.

Milton Tavares (Miltinho): general que seguiu as duras ordens de Orlando Geisel a respeito da Guerrilha do Araguaia, na primeira metade da década de 1970.

General Antônio Bandeira: um dos operadores no combate à Guerrilha do Araguaia.

Sob comando do coronel Carlos Sérgio Torres, chefe de Operações do CIE, a Operação Peixe (1ª fase da Primeira Campanha) — com 30 agentes da Inteligência — vasculha a região do Araguaia em busca de informações. Entre os militares estavam o major Lício Maciel (o Dr. Asdrúbal), o subtenente João Pedro do Rego (Javali Solitário, J. Peter) e o primeiro-tenente Cid (codinome).

Rapidamente, nos fins de abril de 1972, os militares identificam o codinome de 55 dos 69 guerrilheiros. Prendem o guerrilheiro Danilo Carneiro, o Nilo, na Transamazônica. “Os militares”, escreve Studart, “informam que ele tentava desertar. Segundo o Dossiê, no interrogatório Nilo teria revelado a base guerrilheira de Metade. Também teria revelado o codinome de cinco guerrilheiros de uma vez”. Em seguida, prenderam Eduardo José Monteiro Teixeira e Rioco Kayano, mais tarde mulher de José Genoino Neto. Próximo a ser preso, Genoino é tachado de delator por alguns militares. A versão de uma fonte de Studart, o Dr. George: “Seu depoimento foi fundamental para entender como a guerrilha estava estruturada e a real dimensão do inimigo. Mas nenhum guerrilheiro caiu por causa dele. Quando íamos checar suas informações, já não havia mais ninguém no local”. Outra fonte do jornalista, o Dr. Hoffmann, acrescenta: “Ele nos levou aos locais que havia indicado no depoimento. Mas avalio que não estava colaborando, simplesmente não tinha opção”.

Guerrilheiros religiosos

Na segunda campanha, a Operação Papagaio, o general Viana Moog era o manda-chuva. Mas quem operava mesmo era o general Antônio Bandeira. Há a tendência de ver as Forças Armadas como monolíticas, mas Studart apresenta dissensões entre o Alto Comando e tropas regulares, de um lado, e, de outro, a Comunidade de Informações, liderada pelos generais Bandeira e Milton Tavares, o Miltinho, chefe do Centro de Informações do Exército (CIE). 3.250 militares foram enviados ao Araguaia. Os primeiros a morrer são o guerrilheiro Miguel Pereira dos Santos, o Cazuza, e o sargento Mário Abrahim da Silva. Os militares matam mais sete militantes do PC do B. Antônio Carlos Monteiro Teixeira, o Antônio da Dina, José Toledo de Oliveira, Vitor, e Francisco Manoel Chaves, Preto Velho, foram mortos pelo grupo chefiado pelo sargento goiano José Pereira, que contou ao Jornal Opção, em 1997, como ocorreu o chafurdo. J. Pereira recebeu um elogio, por escrito e oficial, do general Bandeira.


Sem conseguir caçar todos os guerrilheiros, e apesar da resistência do general Bandeira, o comando em Brasília manda suspender as manobras. Um dos homens mais duros do regime, o general Milton Tavares, chamado de Miltinho por seus aliados, assumiu o controle das ações de contraguerrilha, depois passou o bastão para o general Confúcio de Paula Torres Avelino. O chefe de Operações do CIE, tenente-coronel Carlos Sérgio Torres, é o coordenador geral e o major Gilberto Zenkner, o Dr. Nunes, assume a coordenação da Operação Sucuri, trabalho de infiltração de agentes na região do Araguaia. Agora, os militares queriam conhecer mais a respeito dos guerrilheiros antes de combatê-los.

Enquanto os guerrilheiros apostavam numa trégua e cantavam vitória, os militares, disfarçados e reinventando táticas, vasculhavam o Araguaia. O relato de Studart: “Em fins de 1973, quando a tropa desceu na selva para a derradeira caçada, os militares já sabiam nome e endereço de cada guerrilheiro, suas redes de apoio, caminhos que cada um costumava traçar na mata, assim como nome e endereço de cada ‘estabelecido’ que simpatizava com os guerrilheiros ou que poderia apoiar os militares. (…) O Exército infiltrou 35 agentes no cotidiano dos guerrilheiros”.

Newton Cerqueira: general cuja atuação contra a Guerrilha do Araguaia era pouca conhecida.

Major Curió e coronel Lício Maciel: na linha de frente do combate aos guerrilheiros.

José Genoino, guerrilheiro do PC do B: preso, em 1972, por militares do Exército, na região do Araguaia.

Entre histórias tão terríveis, há pelo menos uma engraçada: “O Dossiê [Araguaia] faz surpreendentes revelações. Um agente se disfarçou de terecozeiro (benzedor, feiticeiro, no sincretismo que une o xamanismo afro-indígena-europeu). Grupos de guerrilheiros passaram a visitá-lo, com rapidez espantosa, em busca de suas rezas”. O ex-sargento J. Pereira relatou ao Jornal Opção que, quando examinou a bolsa do guerrilheiro Francisco Chaves, descobriu objetos típicos de mandinga.

Uma das infiltrações descobertas pelas investigações de Studart é surpreendente. Um militante do grupo guerrilheiro VAR-Palmares, preso em Brasília, ficou infiltrado entre os guerrilheiros do PC do B por 15 dias. O “informe” que passou aos militares é texto de semianalfabeto.

Com informações detalhadas sobre o cotidiano da guerrilha, as Forças Armadas enviam 750 militares de tropas especiais para o Araguaia. A Operação Marajoara, a Terceira Campanha, foi comandada primeiro pelo tenente-coronel Wilson Romão, Dr. Zico, e depois pelo tenente-coronel Flávio Demarco, o Tio Caco. No fim de 1973, o tenente-coronel Newton Albuquerque Cerqueira, o militar que comandou a operação que matou Carlos Lamarca, foi escolhido a dedo pelo general Milton Tavares para combater a guerrilha (“Tem que ser o Cerqueira”, sugeriu Miltinho ao general Hugo Abreu — o ministro do Exército, Orlando Geisel, avalizou). “Permaneceu na área por três meses, entre janeiro e março de 1974, justamente o período em que a guerrilha sofreu as maiores baixas — 22 guerrilheiros. (…) Guerrilheiro algum escapou no período em que Cerqueira atuou”, relata Studart. (A presença de Cerqueira no Araguaia foi revelada pelo jornalista Luiz Maklouf no livro “O Coronel Rompe o Silêncio”, longo depoimento do coronel Lício Maciel.)

Maurício Grabois: o líder da guerrilha do PC do B admite justiçamento de camponês.

Em novembro de 1973, com “38 guerrilheiros em condições de combate”, porém mais preocupados com comida do que com armas, os militares, como percebe Studart, terceirizam a batalha. Armados, os mateiros “iam à frente das patrulhas, como guias”. Com a terceirização, os mateiros “entrariam sozinhos na mata caçando guerrilheiros à velha moda dos jagunços”. Recebiam entre 5 e 10 mil cruzeiros por guerrilheiros. Ao contrário do que disseram outros militares, como o coronel Pedro Corrêa Cabral, em entrevista ao Jornal Opção, a pesquisa de Studart confirma que “os militares recrutaram uma tribo inteira de índios suruís” para combater os guerrilheiros.

Studart expõe uma cena espantosa: “… em fins de novembro [de 1973], um mateiro, caboclo que morava perto da reserva suruí, apareceu com uma sacola diante da equipe de paraquedistas que tomava café da manhã num acampamento perto de Xambioá. Perguntou quanto estavam pagando por cabeça de ‘povo da mata’. Um deles respondeu o valor. O mateiro abriu a boca da sacola, sacudiu-a e de dentro caiu uma cabeça entre os pratos dos soldados. A cabeça de Arildo Valadão. (…) Seis cabeças de guerrilheiros, talvez sete, chegaram em sacolas a Marabá ou Xambioá”. Studart conta a história de um militar que jogou três cabeças de guerrilheiros em cima de uma mesa, durante uma reunião, para afrontar militares burocratas.

Maurício Grabois, chefe da guerrilha, abandonado por Ângelo Arroyo, foi morto em dezembro de 1973. Em 1974, mesmo depois de ataque intenso, havia 27 guerrilheiros vivos. “Muitos se entregaram”, Studart constatou nas entrevistas orais com militares. “Outro foram presos. Nenhum sobreviveu para contar.” O jornalista-historiador diz que 20 guerrilheiros foram presos na caçada final. E foram “feitos”, mortos, pelos militares. As equipes Zebra e Jiboia eram encarregadas da limpeza. A Zebra matou 12 guerrilheiros; a Jiboia, sete (Dina é a mais célebre), nenhum em combate. No teatro da guerra, o militar conhecido como Tio Caco era o Senhor das Mortes.

Uma Equipe Zebra com dois guerrilheiros capturados no Araguaia.
Os "zebras" eram militares e mateiros atuando descaracterizados em missões de contra-guerrilha.


Hugo Studart: o pesquisador prova que militares são poderosos arquivos para se contar a história da Guerrilha do Araguaia.

Studart mostra que os militares, orientados para matar todos os guerrilheiros e não levar prisioneiros para Brasília (ou outra cidade), relutaram a respeito de Áurea Elisa Pereira Valadão. Ela “colaborou”, não era “perigosa”. “Mas, ao final, a KGB do Tio Caco achou por bem mandar cumprir à risca a ordem de não fazer prisioneiros.”

Uma das histórias mais comoventes é a de Telma Regina Cordeiro Corrêa, a Lia. Depois de escapar do Chafurdo de Natal, fugiu para uma região rochosa, onde não havia comida e água. Morreu de fome. Deixou um diário lancinante. Na iminência da morte, reagia e cantava a canção dos guerrilheiros:

“Nada teme, jamais se abate,
a afronta a bala a servir.
Ama a vida, despreza a morte
e vai ao encontro do porvir”.

Poderosos chefões foram presidentes e generais

Depois de relatar a história da guerrilha, Studart faz uma pergunta que não agrada a alguns militares: quem deu a ordem para executar os prisioneiros do Araguaia? “Nem mesmo aqueles que ‘fizeram’ pessoalmente o serviço sabem ao certo, explicam os militares em suas narrativas. Eram ordens vindas de cima, sempre ordens orais, dadas por um chefe no pé do ouvido a um subordinado de confiança, sempre com o subterfúgio do eufemismo do verbo fazer, ‘faz aí’, ‘faz’”, aponta Studart.

Osvaldão: o lendário guerrilheiro do Araguaia.

Os militares do Araguaia tinham liberdade para matar? Tinham, mas não eram autônomos. Studart recorre ao historiador Carlos Fico: “Não se deve confundir independência operacional com autonomia. Os membros dessas equipes [as que matavam os guerrilheiros capturados] não agiam contra a vontade de seus superiores, especialmente os generais. Portanto, não se pode alegar que no Araguaia alguns pequenos grupos militares tenham adquirido ‘autonomia’ e cometido os ‘excessos’ por conta própria, sem que os generais em Brasília, em especial os generais presidentes, tenham qualquer responsabilidade sobre esses atos”. (O texto entre aspas é de Studart, não de Carlos Fico.)

Os chefões então foram o Tio Caco, da Casa Azul, e o tenente-coronel Sérgio Torres? Eram chefes, mas, ressalva Studart, “durante o governo Médici, um chefe de operações dos serviços de inteligência tinha independência quase total para agir — mas não autonomia”. Os chefões eram, pela ordem, os presidentes Emílio Médici e Ernesto Geisel, os ministros do Exército Orlando Geisel e Sylvio Frota, os generais Milton Tavares de Souza e Confúcio de Paula Avelino e o brigadeiro Newton Vassallo de Silva.

Mas quem realmente deu a ordem para liquidar os guerrilheiros? Orlando Geisel disse a Milton Tavares: “Não sai ninguém da área”. Não era uma senha. Era uma ordem para matar. Todos entenderam.

Por que é tão difícil encontrar os corpos dos guerrilheiros? Os militares acenderam fogueiras na Serra das Andorinhas, com pneus, e supostamente queimaram alguns corpos. A versão apurada por Studart: as fogueiras “foram acesas, mas nem sempre haveria corpos sob as chamas. A maior parte dos corpos desenterrados teria desaparecido com ácido, no próprio local da exumação” (portanto, não na Serra das Andorinhas).

Apesar de longo, este texto não chega a ser uma síntese do conteúdo do excelente livro de Studart. Há mais, muito mais, que, sem dúvida, vai reverberar noutros livros e, se for lido com atenção, vai gerar polêmicas nos jornais e revistas. É um tributo à grande história. Sérgio Buarque de Holanda certamente aplaudiria. É provável que a turma mais dinossáurica do PC do B, mesmo com a apresentação de dados fartos sobre a crueldade militar, não aprove. Porque, para os comunistas, a verdade é uma só: a deles. Studart situa, com acerto, a Guerrilha do Araguaia num contexto de rebeliões mundiais, pós-Revolução Cubana de 1959 e mesmo a Chinesa de 1949 (os comunistas do PC do B tiveram a sua fase maoísta — antes de aderir ao socialismo das cabras, o “cabriolismo” albanês).

Dina Teixeira, a borboleta executora

Dina (com o marido Antônio), geóloga baiana: a guerrilheira matou um companheiro friamente.

Uma das histórias mais explosivas do livro de Hugo Studart tem a ver com Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, que o imaginário coletivo consagrou como Dina. Única mulher a ter posto de subcomandante, por ser inflexível, dura e corajosa, Dina, ao lado de Osvaldo Orlando Costa, o Osvaldão, é o maior mito da Guerrilha do Araguaia.

Durante anos, o PC do B sustentou que o guerrilheiro Rosalindo Cruz Souza, o Mundico, morreu quando a arma que limpava disparou acidentalmente. A versão tem sido desmentida, mas é no livro de Studart que se tem uma informação mais rica. Eis o relato: “Era um caso banal, adultério; triângulo amoroso entre Rosalindo e o casal de guerrilheiros Arildo Valadão, o Ari, e Áurea Elisa Pereira Valadão, a Áurea. Levado ao Tribunal Revolucionário das Forças Guerrilheiras do Araguaia — este, o nome oficial —, Rosalindo foi acusado de trair a revolução. Cinco companheiros participaram do julgamento, entre eles Dina [e também Osvaldão e André Grabois, o Zé Carlos]. Sete camponeses testemunharam. Amarrado numa árvore, com as mãos nas costas, Rosalindo escutou a acusação. Foi sentenciado a justiçamento por unanimidade dos votos. Quem o executaria?”

Rosalindo de Souza (Mundico): adultério provocou sua execução no Araguaia.

Poderia ser um homem, como o experimentado Osvaldão, mas não foi. Conta Studart: “Dina levantou-se em silêncio e caminhou em direção ao companheiro. Parou a dois metros de distância e apontou o Taurus calibre 38 para o coração de Rosalindo. Ele nada falou, não chorou, não pediu clemência. Apenas encarou Dina nos olhos na hora em que ela apertou o gatilho. Enterraram Rosalindo ali mesmo, num banco de areia a 250 metros da sede do sítio, enrolado numa rede. O corpo jamais foi encontrado. (…) Esses fatos ocorreram a 26 de agosto de 1973”. Infiltrado entre os camponeses, o agente Ivan viu a execução. Convém que o leitor perceba o detalhamento e a segurança das informações.

Em junho de 1974, uma patrulha de guerra do Exército prende a “perigosa” Dina, a mulher que virava borboleta, “numa localidade chamada Pau Preto. Estava em companhia da guerrilheira Luiza Augusta Garlipe, codinome Tuca. [Dina foi presa pelo capitão Curió, que a agarrou, pois queria pegá-la viva.] Levada para interrogatório em Marabá, permaneceu por cerca de duas semanas nas mãos de uma equipe da inteligência militar. Estava fraca, desnutrida, havia quase um ano sem comer sal ou açúcar. Por causa da tensão, fazia seis meses que não menstruava [Studart disse ao Jornal Opção que talvez daí derive a “informação” de que estivesse grávida]. No início de julho, o capitão Sebastião Rodrigues de Moura, codinome Dr. Luchini [Dr. Curió], retirou Dina. Levaram-na de helicóptero para algum ponto da mata espessa, perto de Xambioá. Um sargento do Exército, Joaquim Artur Lopes de Souza, codinome Ivan [uma homenagem inconsciente aos russos?], chefiava a pequena equipe, três homens. (A respeito dos homens-chave do combate à guerrilha, os militares ouvidos por Studart apontam os coronéis Torres, Demarco, Lício e Cerqueira. Marqueteiro, Curió levou a fama.)

“‘Vocês vão me matar agora?’, teria indagado Dina assim que pisou em solo.

“‘Não, mais na frente um pouco. Agora só quero que você reconheça um ponto ali adiante’, teria respondido Ivan.

“O grupo caminhou por cerca de 200 metros mata adentro.

“‘Vou morrer agora?’, perguntou a guerrilheira.

“‘Vai, agora você vai ter que ir’, respondeu Ivan.

“‘Eu quero morrer de frente’, pediu.

“‘Então vira pra cá.’

“Ela virou e encarou o executor nos olhos. Transmitia mais orgulho que medo. Ele se aproximou da guerrilheira, parou a dois metros de distância e lhe estourou o peito com uma bala de pistola calibre 45. O tiro pegou um pouco acima do coração. O impacto jogou Dina para trás. Levou um segundo tiro na cabeça. Foi enterrada ali mesmo”. A morte de Dina é um “retrato” da morte de Mundico.

Lúcia Maria de Souza, a Sônia: “Guerrilheiro não tem nome”

Lúcia Maria de Souza, a Sônia.

O relato da morte de Lúcia Maria de Souza, a Sônia, transformada em heroína pelos próprios militares, ganha textura ampliada no trabalho de Studart. Em 24 de outubro de 1973, o Dr. Asdrúbal [o então major Lício Maciel] lidera patrulha de oito militares que enfrenta e mata Sônia. Ferida, a guerrilheira reage, atira em Asdrúbal e em Luchini-Curió e arrasta-se pela mata. Encontrada pelo suboficial do Exército Javali Solitário, também chamado de J. Peter, e pelo sargento do Exército Cid, tenta levantar a arma. Cid pisa no seu braço e pergunta seu nome. “Guerrilheiro não tem nome”, replica Sônia. Cid retruca: “Nem nome nem vida”. Cid e Javali atiraram com suas metralhadoras. “Ela ficou com mais de 80 furos”, diz Cid.

Sobre a morte de Idalísio Soares Aranha, o Aparício, ocorrida a 13 de julho de 1972, o texto de Studart também é detalhado. Aparício levou “53 tiros de metralhadora, inclusive no rosto, e ainda assim conseguiu escapar pela mata. Foi apanhado dois quilômetros adiante, agonizando no chão, e executado com um tiro na cabeça, de espingarda, uma Winchester calibre 44. O tiro moeu-lhe a cabeça por completo. O corpo do guerrilheiro foi levado numa rede para identificação — ao vê-lo, um major da Aeronáutica teria vomitado abundantemente”.

A história da morte de Osvaldão é bem conhecida, mas Studart apresenta detalhes novos. “Na área de São Geraldo, a equipe encontrou pegadas enormes. Osvaldão calçava 48. As pegadas eram de um solado de pneu. Meses antes Osvaldão havia feito uma sandália com um pneu velho que ganhou de um militar [Ivan] infiltrado entre os moradores. O grupo [militares e o mateiro Arlindo Vieira, o Piauí] caminhou dois dias atrás do rastro. Em determinada hora notaram movimentos no capinzal e pararam. Osvaldão teve azar. Caminhou em direção à patrulha e entrou na clareira com o peito de frente para a espingarda A-12 do mateiro. Arlindo se mostrava apavorado, tremia de medo. Osvaldão foi abatido de braços abertos, enquanto afastava o capim. Urrou de dor. Um militar disparou outro tiro de pistola 45 na cabeça do guerrilheiro já caído no chão.”

Ivan: o agente secreto que enganou Osvaldão e matou Dina.

Dinaelza Santana Coqueiro, a Maria Diná, também é vista como “heroína” pelos militares. O agente Fernando contou a Studart: “Era braba pra cacete, aguentou um pau violento, uns cinco ou seis dias de pau. Aí contou a história dela. Então nossa equipe a levou. Na hora, minha pistola engasgou. Engasgou e não saiu mais bala nenhuma. Ela me olhava com um ódio danado. Não chorou, só me olhou com ódio, um ódio fantástico, ódio, muito ódio. Foi uma merda. Então eu tive de pegar outra arma. Um companheiro chegou perto e me ajudou a fazer o serviço”. Segundo o executor, Maria Diná morreu entre janeiro e fevereiro de 1974.

O guerrilheiro Tobias Pereira Júnior, Josias, preso em dezembro de 1973, decidiu colaborar. “Ficou por quase dois meses colaborando com os militares. Desenhou os mapas da região e ajudou a localizar remanescentes da guerrilha. Chegou até a ensaiar uma amizade com [o agente] Fernando, um dos escalados para os interrogatórios”, anota Studart. Chamado para executá-lo, Fernando refugou e disse para seu chefe: “Se o sr. puder me tirar esse cálice”.

Criméia contesta Zezinho do Araguaia

Michéas-Zezinho do Araguaia: sobrevivente da Guerrilha do Araguaia.

Em 1974, Ângelo Arroyo, o Joaquim, Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho, e um terceiro homem, até agora não-identificado, escaparam do cenário da Guerrilha do Araguaia. Como Arroyo morreu, Zezinho é a única fonte que pode identificá-lo. Hugo Studart registra (página 44) que, segundo a ex-guerrilheira Criméia Almeida, mulher de André Grabois, “a história sobre o terceiro homem seria uma criação de Micheas”. “Essa história do terceiro [homem] me parece criação do Zezinho, porque a primeira vez que eu o encontrei, em 1996, ele me disse que o terceiro era o João Amazonas e eu lhe disse que não era porque este estava em São Paulo, então ele mudou a versão dizendo que era um que ele não se lembrava o nome”, relatou Criméia a Studart.

Um historiador, com rigorosa formação acadêmica, contou ao Jornal Opção que o terceiro homem era mesmo João Amazonas. Com a informação, voltei a conversar com Zezinho. O ex-guerrilheiro me disse que não era João Amazonas, e sim um homem mais alto. Uma fonte, que militou no PC do B, sustenta que Zezinho teve de voltar atrás porque João Amazonas, como dirigente máximo do partido durante vários anos, “não pode” ficar na história como “desertor”, como tendo abandonado seus companheiros à morte. Zezinho calou-se, ou melhor, mudou sua história. Seria a omertà comunista?

Há também informações sobre o guerrilheiro goiano Divino Ferreira de Souza, o Nunes.

Nota

¹ Em 2018, Hugo Studart lançou o livro “Borboletas e Lobisomens — Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia” (Francisco Alves, 658 páginas), produto de tese de doutorado apresentada na Universidade de Brasília (UnB).

Leitura recomendada:

LIVRO: Borboletas e Lobisomens, 17 de janeiro de 2022.

segunda-feira, 7 de março de 2022

FOTO: Sniper australiano na Coréia

Soldado B. Coffman com o seu fuzil Lithgow No. 1 Mk. III* na Coréia, 1951.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 7 de março de 2022.

O soldado B. Coffman, nativo de Nova Gales do Sul, está portando o fuzil Lithgow No. 1 Mk. III*, o Lee Enfield (SMLE) australiano. Seu uniforme e equipamento de lona são americanos, pois os australianos tiveram dificuldades de suprimento na Coréia.

A Coréia passou a ser uma guerra estática de 1953 em diante, o que proliferou os snipers em ambos os lados. Ian Robertson, fotógrafo e franco-atirador, foi o maior sniper australiano na Coréia. Em uma ocasião, ele matou 31 inimigos em um único dia. Posteriormente, ele ensinou dança aos franco-atiradores com o objetivo de treinar coordenação corporal. Ele se casou com sua namorada japonesa, Miki; falecida em 2014.

Robertson usou uma variante especial do Lee-Enfield, com uma luneta padrão 1918 feito pela Australian Optical Co., com melhor impermeabilidade. Esses Lee-Enfields ostentavam canos pesados e vinham com um protetor de bochecha pronto para instalar, mas os atiradores não gostavam dele e na maioria das vezes não o colocavam em seus fuzis. Essa proteção de bochecha era a mesma dos fuzis N°4 Enfield, que não eram muito apreciadas, pois não permitiam o alinhamento ocular adequado com a luneta.

Leitura recomendada:

Out of Nowhere:
A History of the Military Sniper.
Martin Pegler.

Leitura recomendada:

FOTO: Sniper australiano na selva, 1º de outubro de 2021.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Socialismo árabe e prisioneiros egípcios na Guerra dos Seis Dias

Prisioneiros egípcios sendo levados de caminhão para um campo de PG, passando por um comboio de soldados israelenses em direção ao front, 1967.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 12 de fevereiro de 2022.

Um caminhão cheio de soldados egípcios capturados cruza um comboio de tropas israelenses perto de El Arish, Egito, durante a Guerra dos Seis Dias, em 8 de junho de 1967.

Os israelenses tomaram El Arish e estão indo em direção ao deserto do Sinai. Eles estão armados com fuzis FAL do modelo Romat, um deles com uma granada de fuzil BT/AT 52 visível, e submetralhadoras Uzi; armamentos típicos do exército israelense do período. Os árabes eram armados com fuzis AK-47 e outros materiais soviéticos, além de outros armamentos portáteis de procedência variada.

O AK e o FAL.
Adversários na Guerra dos Seis Dias, 1967.

O presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, ameaçou repetidamente a existência do Estado de Israel durante anos e costurou uma aliança opondo o mundo árabe ao país hebreu. Os egípcios e seus aliados árabes se mobilizaram ao redor de Israel, seguindo uma ideologia de pan-arabismo e socialismo árabe, além de uma aproximação com a União Soviética que armou pesadamente a coligação árabe. Nasser chegou mesmo a fechar o Estreito de Tirã, uma via marítima essencial a Israel - um causus belli em si mesmo. O Egito sozinho contava 240 mil soldados opondo os 50 mil regulares e 214 mil reservistas israelenses que teriam de lutar em três frentes diferentes, enquanto os egípcios lutariam apenas no Sinai. A Síria, Jordânia e Iraque somavam mais 304 mil homens a esse número, com 20 mil sauditas também à disposição. Os árabes possuíam 2.504 tanques contra os 800 tanques israelenses. Os israelenses tinham entre 250-300 aviões de combate contra os 957 aviões árabes. Dos 264.000 homens da Força de Defesa de Israel mobilizados, 100.000 foram desdobrados em ação. Os árabes dispunham de 567.000 dos quais 240.000 desdobrados. Ainda assim, Nasser e seus seguidores foram surpreendidos pelo ataque surpresa israelense que os colocou de joelhos.

As baixas árabes foram enormes. Do lado do Egito, até cerca de 15.000 soldados egípcios foram listados como mortos ou desaparecidos, com um adicional de 4.338 soldados egípcios capturados.

Yael Dayan, a filha do General Moshe Dayan e oficial do exército acompanhando o estado-maior divisional de Ariel Sharon no Sinai, do ponto de partida da ofensiva em Shivta e pelo caminho através península desértica. Os israelenses acharam depósitos e bases abarrotadas de víveres e equipamentos, com escritórios luxuosos para oficiais, lotados de comidas caras e champagne. Do lado desse luxo havia os pobres soldados egípcios, mal-alimentados e mal-vestidos. Yael descreveu o triste cenário em Nakhl como o "Vale da Morte do Exército egípcio", contando 150 tanques destruídos entre Temed e Nakhl, além de vasto material avariado ou abandonado (canhões, tratores, caminhões etc) e grande quantidade de corpos com fedor nauseabundo cozinhando sob o sol do deserto.  Yael menciona como a cena era depressiva, e como seu colega Dov, outro oficial israelense, contou-lhe que quase chorara pelo destino daqueles soldados egípcios, sob um comando tão incompetente.

"Que destino desgraçado o dêles, tendo de depender de líderes e oficiais miseráveis como aquêles. Em 1948, tiveram os paxás e seus filhos incompetentes por oficiais; em 1956, no Sinai, a gente tinha de desculpá-los até certo ponto - ainda não estavam educados e preparados, a revolução socialista não tivera tempo de acabar com a distância entre oficial e soldado. Mas agora, dezesseis anos depois da revolução, com oficiais treinados na Rússia, com técnicos russos no Egito, onde se encontrava seu espírito de socialismo? Como se explica que tivéssemos só um ou dois oficiais entre os nossos prisioneiros, e tão grande número de soldados? Como se explica que não capturamos nem vemos pelo menos um carro de comando? Onde estavam todos aqueles oficiais sorridentes nas suas reluzentes fardas, com cabelos crespos emplastrados de brilhantina, parecendo tão confiantes quando apareciam no Cairo ou nas páginas dos jornais? Os pobres camponeses foram abandonados à sua sorte, ficaram à mercê das nossas tropas, o inimigo. Como pôde êle, Nasser, que julgávamos um líder honesto de sua nação brincar com a vida do seu povo, blefar, à custa de milhares e milhares de obedientes filhos do Egito? Como teve coragem de brincar de alta política, utilizando-os cinicamente em penhor do seu jôgo? Êle não tinha condições de bancar Napoleão, de fechar o Estreito de Tirã, de nos ameaçar com uma centena de tanques no Sinai. Para quê? Que foi que conseguiu? tinha problemas urgentes que resolver. Não dispunha de meios para matar a fome da população, e gastou milhões em armamentos. Seu povo era analfabeto. Por que cargas d'água foi começar tudo isto, se êle próprio teve de admitir que ainda não se achava preparado?"

- Yael Dayan, Diário de um soldadopg. 135-136, 1967 (trad. 1970).






Prisioneiros egípcios capturados nas cercanias de El-Arish.

Bibliografia recomendada:

Arabs at War:
Military Effectiveness, 1948-1991.
Kenneth M. Pollack.

Leitura recomendada:

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

FOTO: Chegada de sul-coreanos no Vietnã

Chegada da Divisão Cavalo Branco no Vietnã, 5 de setembro de 1966.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfarw Blog, 8 de fevereiro de 2022.

Cerimônia de recepção do primeiro contingente da 9ª Divisão "Cavalo Branco" da Coréia do Sul no Vietnã do Sul em 5 de setembro de 1966. Os soldados estão armados com equipamento da Segunda Guerra Mundial herdados da época da Guerra da Coréia. A legenda da foto diz:

"A SEGUNDA UNIDADE COREANA CHEGA AO VIETNÃ -- Tropa da Divisão 'Cavalo Branco' marcham sob um grande sinal dando-lhes as boas vindas ao Vietnã do Sul. A unidade de infantaria de 5.500 homens chegou em setembro e assumiu posições ao longo da costa central do Vietnã nas áreas de Nha Trang, Tuy Hoa e Cam Ranh. É a segunda divisão enviada pela República da Coréia para ajudar na defesa do Vietnã contra a agressão comunista. Outros países com tropas servindo no Vietnã do Sul são Austrália, Nova Zelândia, Filipinas e Estados Unidos."

Conforme mencionado, a 9ª Divisão foi a segunda divisão coreana desdobrada no Vietnã. Esta foi a Divisão Capital (Divisão Tigre Feroz), assim chamado por ser de Seul, que chegou ao Vietnã do Sul em 22 de setembro de 1965. Os 5.500 soldados sendo recepcionados foram complementados pelo resto da divisão em 8 de outubro de 1966. O nome da 9ª Divisão vem da sua participação na Batalha de White Horse (Cavalo Branco) ocorrida em outubro de 1952 na Guerra da Coréia.

General Chae Myung-shin, comandante das forças sul-coreanas no Vietnã.

A República da Coréia (Coréia do Sul) manteve um efetivo médio de 48 mil homens no Vietnã, atingindo esse pico em 1969. As primeiras unidades coreanas chegaram em fevereiro de 1965, em um grupo de brigada conhecido como Dove Force (Força Pomba). O comandante geral dessa força expedicionária sul-coreana era o Tenente-General Chae Myung-shin do Exército da República da Coréia (ROK).

De setembro de 1964 a março de 1973, a Coréia do Sul enviou cerca de 350.000 soldados para o Vietnã do Sul. O Exército, o Corpo de Fuzileiros Navais, a Marinha e a Força Aérea participaram da guerra, e o número de tropas da Coréia do Sul era muito maior do que o da Austrália e da Nova Zelândia, sendo o segundo maior contingente estrangeiro no Vietnã - atrás apenas dos americanos.

Os sul-coreanos sofreram 5.099 mortos e 10.962 feridos até o final do seu engajamento, em 23 de março de 1973.

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domingo, 6 de fevereiro de 2022

FOTO: ARVN Rangers na Ofensiva do Tet

Os Rangers sul-vietnamitas defendem a ponte de Newport, próxima a Saigon, 1968.
(PFC Matthew J. Roach)

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 6 de fevereiro de 2022.

Um grupo de combate de soldados sul-vietnamitas da Companhia C, 30º Batalhão Ranger, luta contra snipers vietcongues (VC) do outro lado da ponte de Newport na rodovia 1, a poucos quilômetros de Saigon, 31 de janeiro de 1968.

A ação ocorreu durante o Ano Novo Lunar (o Tet), quando os vietcongues lançaram ataques contra Saigon e as demais grandes cidades sul-vietnamita durante a trégua das celebrações. Os Rangers portam uma variedade de armamentos, com o Ranger mais próximo armado com um lança-granadas M79. O Ranger sentado ao seu lado tem um M14 com bipé.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

LIVRO: Borboletas e Lobisomens


Por Euler de França Belém, Jornal Opção, 14 de julho de 2018.

Livro revela que 7 guerrilheiros do Araguaia negociaram com militares e sobreviveram. Edinho, Duda, Piauí, Rosinha, Josias e Tuca saíram vivos da Guerrilha do Araguaia. Goiano foi infiltrado no PC do B e guerrilheira teve caso com sargento do Exército.


O jornalista Hugo Studart, mestre e doutor em História pela UnB, reabre, com seu mais recente livro, a história da Guerrilha do Araguaia, sugerindo que nem mesmo o PC do B valorizou os camponeses que participaram da batalha, e exibe a cadeia de comando militar que devastou a organização comunista.

A Guerrilha do Araguaia passou por um processo de “reforma agrária” e não é mais propriedade privada exclusiva do Partido Comunista do Brasil. Durante anos, o PC do B se comportou como dono da história da batalha, enquanto os militares fingiam que nada tinham a ver com os fatos acontecidos no Sul do Pará e Norte de Goiás (Tocantins), entre 1972 e 1974. Aos poucos, pesquisadores acadêmicos e jornalistas não vinculados à organização de esquerda começaram a apresentar estudos rigorosos e objetivos — e não relatórios partidarizados — a respeito do confronto. Os melhores livros são de responsabilidade de jornalistas, como Eumano Silva, Taís Morais, Elio Gaspari, Luiz Maklouf de Carvalho, Leonencio Nossa e Hugo Studart, que, na prática, são historiadores. Studart defendeu dissertação de mestrado na Universidade de Brasília, que resultou no livro “A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia” (Geração Editorial, 383 páginas, de 2006). Agora, lança em livro sua tese de doutorado “Borboletas e Lobiso­mens — Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia” (Francisco Alves, 660 páginas).


No livro, que vai além da tese de doutorado, há o imbricamento do historiador rigoroso com a perspicácia do jornalista investigativo e a fluência do escritor que, sim, Studart é. Seus dois livros são cruciais àqueles que querem entender a Guerrilha do Araguaia de maneira mais ampla e matizada. Não há a preocupação de criar vilões e tampouco mocinhos, e sim a de apresentar um quadro nuançado do que aconteceu na região do Araguaia. O pesquisador contempla as visões dos contendores, guerrilheiros e militares, e apresenta sua interpretação — equilibrada e objetiva. De certa maneira, “reabre” a história da guerrilha. O capítulo 19, “Sonata para Carmen”, apresenta uma história que, por vezes, não agrada à esquerda — que tende a apresentar uma guerrilha que, de tão heroica, deixa a impressão de que saiu “vencedora” e defendia a democracia. O pesquisador descobriu, e relata os casos de maneira abrangente — sem julgamentos morais toscos ou ideologizados —, que ao menos sete guerrilheiros, dados como mortos, inclusive por suas famílias e militares, estão vivos. Fizeram acordos e ganharam novas identidades.

Pouco antes de entrar para o PC do B e para a guerrilha, o estudante de farmácia e bioquímica Hélio Luiz Navarro de Magalhães, da Univer­sidade Federal do Rio de Janeiro, compôs uma música e a tocou no piano para sua mãe, Carmen Navarro Rivas. Depois, desapareceu e sua mãe nunca mais o viu. Há alguns anos, um repórter do Jornal Opção publicou uma reportagem — entre as fontes estava um guerrilheiro do Araguaia, Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia —, na qual se informava que Hélio Navarro, o Edinho, havia sido visto no Mato Grosso, onde teria chegado a trabalhar com garimpo. Dias após a publicação da matéria, uma mulher, S. L., ligou na redação e ameaçou: “A mãe do Hélio Navarro, a sra. Carmen Navarro, ficou chateada com o texto publicado e pode processar o jornal”. Curiosamente, a família não moveu ação judicial contra o jornal.

Hiato de poder

Luíza Augusta Garlipe, a Tuca; Hélio Luiz Navarro de Magalhães, o Edinho; Maria Célia Corrêa, a Rosinha; Luiz Renê Silveira, o Duda; Antônio de Pádua Costa, o Piauí, e Tobias Pereira Júnior, o Josias, foram capturados pelo Exército e poupados pelos oficiais do Exército.

No livro, Studart apresenta evidências, com fartura de informações, de que Hélio Navarro e pelo menos mais seis (mais quatro são mencionados) guerrilheiros sobreviveram depois de capturados — o que era raro, sobretudo no fim dos combates. Havia uma ordem do ministro do Exército do governo de Emílio Médici, Orlando Geisel — “Não sai ninguém da área” —, que, numa tradução realista, significa: “Matem todos”. O ministro, antes de conversar com o presidente da República, discutiu o assunto com Milton Tavares, chefe do Centro de Informações do Exército (CIE), e o tenente-coronel Carlos Sérgio Torres, do CIE. De fato, militares começaram a matar guerrilheiros capturados e que não representavam nenhum perigo para eles e para a sociedade. Entretanto, a partir de certo momento, na transição do governo de Médici para o governo do presidente Ernesto Geisel, um “ditobrando” que às vezes era “ditoduro”, houve uma mudança.

Hélio Navarro era filho de Hélio Gerson Menezes de Magalhães, capitão-de-mar-e-guerra da Marinha, e sobrinho do almirante Gualter Meneses de Magalhães, anticomunista visceral e chefe do estado-maior da Armada. Por isso, o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) pedia informações ao Exército sobre o guerrilheiro, pois o queria vivo. O tenente-coronel Leo Frederico Cinelli, do CIE, havia sido amigo de Carmen Navarro na juventude e era a ponte entre o Exército e Marinha.

Cinelli “assumiu a missão de tentar” entregar Hélio Navarro aos pais. Em fevereiro de 1974, o militante do PC do B, depois de ferido de raspão, é preso. Ele estava com Luiz Renê Silveira, o Duda, e gritou: “Não quero morrer, chama meu pai, que é oficial da Marinha”. “Desde o início, Edinho e Duda mostraram-se dispostos a colaborar”, anota Studart. Antônio de Pádua Costa, o Piauí, resistiu, mas cedeu. Duda “guiou patrulhas militares na caça aos companheiros” e Piauí serviu de guia.

Correu entre os militares que o “filho do almirante” (na verdade, Gualter era tio do esquerdista) havia sido capturado e a informação foi levada à cúpula do Exército em Brasília. O guerrilheiro chegou a citar Cinelli, que, avisado pelo major Leônidas Soriano Caldas, o dr. Ribamar, contatou o Cenimar. “O almirante Fernando Rocha Paranhos, chefe do Cenimar, designou o comandante Lameira, à época capitão-de-corveta, para a missão de resgatar o filho do colega.” Como a esquerda tinha o hábito de justiçar “desertores” e “traidores” da causa, oficiais do Exército e da Marinha temiam pela vida de Hélio Navarro.

Uma Equipe Zebra com dois guerrilheiros capturados no Araguaia.
Os "zebras" eram militares e mateiros atuando descaracterizados em missões de contra-guerrilha.

Em fevereiro de 1974, militares prenderam a “esquelética” Maria Célia Corrêa, a Rosinha, que havia sido namorada dos guerrilheiros João Carlos Wis­nesky, o Paulo, e Divino Ferreira de Souza, o Nunes (goiano). Grávida de Nunes, submeteu-se a um aborto, sob pressão do comandante guerrilheiro Zé Carlos (André Grabois). Fa­min­ta, delirava. Oficiais concluíram que não oferecia qualquer “perigo” e decidiram deixá-la viva. O pesquisador repara que havia o precedente de Marcos José de Lima, o Ari Armeiro, que, preso em setembro de 1972, passou a servir aos militares, chegou a ser infiltrado na guerrilha e sobreviveu. Edinho pediu aos militares que poupassem a vida de Duda e Piauí. A enfermeira Luíza Augusta Garlipe, a Tuca, formada pela USP, foi presa com a famosa guerrilheira e geóloga Dina (Dinalva Conceição Oli­vei­ra Teixeira). Como não era “perigosa”, foi poupada. Tobias Pereira Júnior, o Josias, também escapou.

Studard afirma que, com o novo governo, o de Geisel, houve, num certo momento, um “hiato de poder”. O general Confúcio de Paula Avelino, novo chefe do CIE, “decidiu discutir a pertinência de uma operação para poupar a vida de alguns guerrilheiros”. O tenente-coronel Cinelli concordava com seu superior e o tenente-coronel Carlos Sérgio Torres era refratário à ideia.

Os mortos-vivos

Dinalva Conceição Oliveira, a Dina; Dinaelza Soares Santana Coqueiro, a Maria Diná; e Lúcia Maria de Souza, a Sônia, do PC do B, eram guerrilheiras de grande coragem. Elas combateram duramente as forças do Exército.


A ideia de trocar a identidade dos guerrilheiros “arrependidos” foi do tenente-coronel Flávio Demarco, o Tio Caco, coordenador-geral da Operação Marajoara. Os “arrependidos” seriam considerados, para os registros oficiais, como “mortos”. Eram os “mortos-vivos”.

A “operação mortos-vivos”, classificada como “secreta”, foi planejada e organizada em Brasília pelo major Ronaldo Lira, do CIE, sob coordenação do tenente-coronel Cyro Etchegoyen. Ele recebeu o apoio do comandante Lameira, do Cenimar. “No Araguaia, a execução ficou a cargo do major Leônidas Soriano Caldas.” O sargento José Reis, o Régis, era seu assistente direto. O capitão Sebastião Rodrigues de Moura, que passou à história como Major Curió, não foi avisado da operação. Porque defendia a execução dos prisioneiros.

Para disfarçar a operação, inclusive ludibriando militares de certa relevância hierárquica, o sargento Régis simulou que os guerrilheiros Edi­nho, Duda e Piauí haviam sido executados. Na verdade, foram transferidos para Brasília. O sargento Remo simulou a execução de Rosinha. Tobias Pereira Júnior foi retirado de automóvel do cenário da guerrilha.

Aos 24 anos, Hélio Navarro, o mais protegido, foi o primeiro a ser levado para Brasília. Seguiram-no Duda, de 22 anos, Piauí, de 30 anos, Rosinha, de 29 anos, Josias, de 24 anos, e Luiza Augusta Garlippe. Na capital, foram levados para a Polícia Federal — o general Antônio Bandeira era seu diretor — mas ficaram sob a responsabilidade do CIE.

Sob proteção do almirante Gualter, Hélio Navarro conseguiu emprego no hipermercado Carrefour, em São Paulo. Tobias Pereira “recomeçou a vida no Mato Grosso”. Sua família, sintomaticamente, não pediu indenização ao governo federal e não fala com historiadores e jornalistas.

Luiz Renê, Antônio de Pádua e Rosinha ganharam empregos em Brasília, arranjados pelo coronel Jarbas Passarinho, que era ministro da Educação. O objetivo era “lavar” a nova identidade, forjar currículos. Tanto que, depois, os três deixaram o Ministério da Educação. (Studart não conta, pois não é objeto de sua pesquisa, mas Passarinho conseguiu empregos para ex-esquerdistas goianos que se apresentaram como “arrependidos”. Dois moram em Brasília e um em Goiânia. Um deles se aposentou pela Universidade Federal de Goiás.)

Em 1980, Hélio Navarro foi visto por Elza Monerat, no Rio de Janeiro. Ele casou-se e tem dois filhos. “Com o falecimento de seu pai, em 1999, Hélio Luiz se apresentou à Receita Federal em 8 de agosto de 2001, com sua verdadeira identidade, a fim de regularizar o CPF e liberar inventário.” Em seguida, desapareceu. Não há registro de que tenha procurado a mãe e sua irmã, Aglaé. Certa vez, Carmen Navarro enviou uma carta, por intermédio de um militar, e o ex-guerrilheiro a leu e chorou muito. Mas não há registro de que tenha feito algum contato. Luiz Renê também não procurou sua família.

Paixão na guerrilha

O livro de Studart sugere que a Guerrilha do Araguaia, vista como movimento unicamente do PC do B — com a participação majoritária de pessoas que frequentaram universidades —, deve ser reavaliada. Trata-se de um movimento mais popular do que parece, que contou com ação de vários camponeses, que participaram direta, como guerrilheiros, e indiretamente, como base de apoio. Vários camponeses foram torturados e mortos. “34 camponeses restaram mortos ou desaparecidos durante os conflitos. Há outros 43 camponeses que deram apoio à guerrilha.” Setenta e sete camponeses participaram da luta ao lado dos militantes do PC do B — além de “outros 142 chefes de família apontados como simpatizantes”. O pesquisador “coloca-os” na história — uma história “ignorada” inclusive pelos comunistas —, apresentando seus nomes. Os militares que dirigiram o combate aos militantes da esquerda são mencionados por nomes completos, além dos codinomes. São arrolados, entre os outros, o coronel Gilberto Airton Zenkner, o tenente-coronel Carlos Sérgio Torres, o major Leônidas Soriano Caldas, o capitão Roberto Amorim Gonçalves, o major Lício Augusto Ribeiro Maciel (que aparece em vários livros), o major Roberto Sampaio Loureiro, o major Thauma­tur­go, o major Diprimio, o major Othon do Rêgo Monteiro Filho (Otto), o major Nilton de Albu­querque Cerqueira (o Faixa Branca), o major Celso Seixas Marques Ferreira (dr. Brito), o tenente-coronel Leo Frederico Cinelli, o tenente-coronel Wilson Brandi Romão (dr. Zico), o tenente-coronel Flávio Demarco, o tenente-coronel Hydino Sardenberg Filho e o major José Brant Teixeira. Desmitifica-se o Major Curió, que, apesar da fama (disseminada por jornais e pelo militar), não era um personagem central e cuja autonomia era menor do que se costuma pensar.

Adepto da foquismo — focos guerrilheiros instalados notadamente no campo —, o PC do B acreditava que, a partir das matas, do campo, se poderia cercar as cidades e derrotar a ditadura. Paradoxal­mente, os militares usaram a cidade, com sua fartura de homens, armas e aviões, para cercar o campo e destruir a guerrilha. O maoísmo do partido era mais produto de uma fé, fanática, do que de uma análise criteriosa e realista da correlação de forças. Só com muita boa vontade é possível admitir que a maioria dos estudantes que foram lutar no Araguaia era de fato guerrilheira. Eles eram jovens criados em cidades, é provável que muitos nunca tinham visitado uma fazenda e tiveram dificuldade de se adaptar à vida na mata — a maior parte jamais se adaptou e, no geral, vivia doente. Alguns, quando puderam, escaparam.

Há um segredo de polichinelo: em 1974, um dos líderes da guerrilha, Ângelo Arroyo, escapou do Araguaia — tendo Micheas Gomes de Almeida como guia —, ao lado de um terceiro homem. Zezinho do Araguaia não revela o nome; garante que não se lembra. Há a suspeita de que tenha sido João Amazonas. Mas o “guia” afirma que era um homem mais alto.

Ao contrário de outros livros, que são sisudos, o de Studart aventura-se, por vezes, por assuntos da vida privada. Dina, a borboleta (era difícil pegá-la, diziam os camponeses), era casada com Antônio Carlos Mon­teiro Teixeira, mas era apaixonada por Pedro Gil. Para a camarada Lúcia, que sugeria que não era possível amar na floresta, ela disse: “Você tem de entender que a mata é nossa casa, nossa vida. Precisamos ser felizes aqui”. Alguns guerrilheiros, como Francisco Chaves e Áurea Eliza Pereira Valadão, tinham interesse nas artes dos terecozeiros. Áurea chegou “a se consultar com um espião-terecozeiro”. Era um agente disfarçado. Certa feita, ao ser traído por uma viúva, de quem era amante, Osvaldão Orlando Costa expropriou seu castanhal. O camponês Raimundo Severino, o Raimundinho da Pedrinha, não deixou por menos: “Osvaldo trocou o chifre pelo castanhal”.

No livro “Autópsia do Medo — Vida e Morte do Delegado Sérgio Paranhos Fleury” (Globo, 650 páginas), de Percival de Souza, há a revelação de que uma irmã do jornalista Raimundo Rodrigues, ex-editor da Veja e do jornal Movimento, havia sido amante do delegado que torturou dezenas de militantes da esquerda. Studart revela outra história parecida. Criméia Alice de Almeida, guerrilheira do Araguaia, teve um relacionamento afetivo com o sargento Joaquim Artur Lopes de Souza, o Ivan — o militar que matou Dina.

Há a terrível história de Maria Lúcia Petit, que, ferida gravemente, teria sido enterrada viva. Rosalindo Cruz Souza, o Mundico, foi justiçado pelos guerrilheiros — teria sido assassinado por Dina. A tese mais aceita é que mantinha relacionamento com Áurea Valadão, que era casada com Arildo Valadão, e o adultério, talvez sobretudo o feminino, não era aceito. Studart apresenta outra informação: ele queria sair da guerrilha — e isto era considerado um crime pelo qual se pagava com a vida.

As mulheres guerrilheiras, como Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, a Dina, Dinaelza Soares Santana Coqueiro, a Maria Diná, Helenira Rezende de Souza Nazareth, a Fátima Preta, e Lúcia Maria de Souza, a Sônia (feriu o major Lício Augusto Ribeiro e o major Curió e disse: “Guerrilheiro não tem nome, tem causa”), demonstraram uma coragem impressionante — que chegou a assustar oficiais e soldados.

Um cabo do Exército infiltrado no PC do B, durante a guerrilha, continuou como militante até morrer. Joaquim Arthur, o Ivan, infiltrou-se no Destacamento B, o de Osvaldão Orlando Costa. Em 1972, revela Studart, o general Antônio Bandeira infiltrou no Araguaia um antigo militante da VAR-Palmares. “Ele era de Goiânia” e tinha “entre 35 e quarenta anos”, era “mulato, magro, trabalhador”. Atuou no destacamento de Osvaldão.

O livro de Studart abre, para quem quiser, as portas para novas pesquisas. É um manancial de ganchos para aqueles que planejam escrever dissertações de mestrado, teses de doutorado ou mesmo reportagens. O que se comentou aqui não representa 10% da obra, que, ao ampliar horizontes, é fundamental para a compreensão da Guerrilha do Araguaia. A obra é incontornável para pesquisadores e leitores comuns.