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quarta-feira, 15 de setembro de 2021

FOTO: Mercenários noruegueses do Grupo Wagner na Síria?

Mercenários do Grupo Wagner na Síria com uma bandeira da Noruega em 2017.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 15 de setembro de 2021.

O que aparentam ser mercenários noruegueses do Grupo Wagner na Síria, a famosa Companhia Militar Privada (Private Military Company, PMC) russa controlada pelo GRU - a inteligência militar russa. Os pretensos voluntários noruegueses têm armas russas, como o AK-74M, e o sniper, sentado no canto direito, tem um fuzil M1891/30 Mosin-Nagant com a luneta PU de ampliação de 3,5x; um fuzil veterano do final do século XIX, que lutou em conflitos tão diversos quanto a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), as guerras mundiais, a Guerra Civil Espanhola (1936-39) e as guerras na Indochina (1945-89).

O Grupo Wagner chegou à Síria no final de outubro de 2015 e participou de operações em Palmira, al-Shaer, Deir ez-Zor, Latakia e Damasco. Suas missões incluíam funções técnicas de aconselhamento e controle de apoio aéreo aproximado, além de atuarem como tropas de assalto à frente do Exército Árabe Sírio de Assad.

Mercenários com o fuzil de assalto russo AK-74M com o lança-granadas GP-25 ou GP-30M.

O mercenário tem um fuzil AK-74M com lança-granadas, e a viatura tem uma metralhadora Degtyaryov RP-46.

Bibliografia recomendada:

The "Wagner Group":
Africa's Chaos in an Economic Boom.
Intel Africa.
Leitura recomendada:






terça-feira, 14 de setembro de 2021

NOHED: As Forças Especiais do Irã


Por Eren Ersozoglu, Grey Dynamics3 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de setembro de 2021.


Principais descobertas sobre a NOHED:

Brigada de “Forças Especiais Aerotransportadas” NOHED, estabelecida em 1959 como parte das Forças Especiais Imperiais do Irã. As Forças Especiais dos EUA durante a década de 1960, antes da Revolução Iraniana de 1979, treinaram o grupo. O Irã utilizou principalmente o NOHED na Guerra Irã-Iraque (1980-88).

O Coronel Holako Ahmadian liderou o grupo. A brigada é a elite das unidades de forças especiais do Irã. Em 4 de abril de 2016, as autoridades anunciaram oficialmente que a NOHED estava presente na Síria para apoiar o governo Assad na Guerra Civil Síria. A narrativa oficial era de desdobramento "consultivo".

Fontes não-oficiais de altas fatalidades sofridas pela unidade aumentam a improbabilidade dessa narrativa. O general iraniano Ali Arasteh apoiou esta avaliação. Ele afirmou que comandos e atiradores de elite (snipers) de suas forças armadas podem ser usados como "conselheiros militares".

É altamente provável que a NOHED permaneça na Síria em uma capacidade consultiva e operacional.

A NOHED, em uníssono com o Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC) e a secreta Força Quds, tem estado muito ativa na Síria. Este artigo de inteligência da Grey Dynamics analisa a unidade de forças especiais do Irã, fornecendo informações básicas, capacidades e presença na Síria.

Operadores da NOHED no Curdistão durante a Guerra Irã-Iraque.

Os Boinas Verdes do Irã

As raízes da NOHED remontam a 1953, quando oficiais do Exército Imperial Iraniano participaram de treinamento de paraquedismo na França. O Batalhão de Paraquedistas foi estabelecido em 1959, uma reforma da Unidade de Paraquedistas criada pelos oficiais treinados na França. Esta unidade tornou-se a 23ª Brigada de Forças Especiais Aerotransportadas em 1970, adotando as boinas verdes de estilo americano. O emblema da unidade até espelhava de forma quase idêntica (antes da Revolução Iraniana) a insígnia De oppresso liber das Forças Especiais do Exército dos EUA. Isso foi o resultado do envio de quatro destacamentos operacionais de operadores de forças especiais pelos EUA para treinar o pessoal militar do Irã na década de 1960. Parte desse treinamento incluiu a 65ª Brigada de Força Especial Aerotransportada do Irã, que agora é chamada de 65ª Brigada NOHED, um componente-chave das forças especiais iranianas. A brigada é dividida em quatro unidades principais: resgate de reféns, operações psicológicas, apoio e guerra irregular.

Comandos boinas verdes iranianos.

Treinamento

Passar no treinamento para a unidade de forças especiais do Irã, apelidada de "fantasmas poderosos" dentro do exército iraniano, é extremamente difícil. Aqueles que passam no treinamento inicial de paraquedismo passam períodos de treinamento em desertos, florestas, neve, mar e montanhas. Este estágio visa cultivar a capacidade de engajar efetivamente os adversários em qualquer ambiente. Obtidos os pontos necessários nesta etapa, dá-se início à etapa de especialização. Por exemplo, a Unidade de Resgate de Reféns (Unidade-110) provavelmente envolveria ênfase no arrombamento e eliminação de bombas. Outra seção do treinamento envolve espionagem, reconhecimento e telecomunicações, bem como guerra irregular. Isso fornece a capacidade para a guerra de guerrilha. Essas características permitem a utilização da NOHED em guerras híbridas/irregulares (Iraque, Síria) para atender aos objetivos do Estado iraniano. Com aproximadamente 5.000 militares, um relatório do Poder Militar do Irã da Agência de Inteligência de Defesa de 2019 afirmou que a Brigada NOHED é a elite das forças especiais iranianas.

A Unidade de Resgate de Reféns (Unidade-110) da NOHED durante um exercício de missão de resgate de reféns, o homem da frente armado de submetralhadora Uzi.

Lista de Ataques

Ao longo da história da unidade de forças especiais iranianas, a Brigada NOHED estabeleceu sua reputação dentro dos círculos militares iranianos com ações realizadas em teatros de guerra:
  • Primeira experiência de combate na Guerra Civil de Omã 1963-76.
  • Supressão da revolta do Khuzistão de 1979.
  • Rompimento do cerco de Abadan (1980-81) durante a Guerra Irã-Iraque, as forças iraquianas que lançaram um ataque surpresa em território iraniano foram retidas com sucesso pela 23ª Brigada de Forças Especiais Aerotransportadas.
  • Durante a Guerra Irã-Iraque, a unidade conseguiu manter posições estratégicas em Dopaza e Laklak, apesar dos ataques químicos do Iraque.
  • Em uma operação simulada, a 65ª tomou e capturou centros estratégicos importantes pela capital Teerã, alcançando o sucesso da missão em 2 horas.
Existem vários relatos não-confirmados de operações clandestinas no Afeganistão e no Paquistão. No entanto, não está claro até que ponto as capacidades de guerra irregular desta unidade ocorreram ao longo da história recente.

 A pegada na Síria

A Guerra Civil Síria de 2011 levou ao governo de Assad, grupos de oposição, forças estrangeiras proxy (terceirizadas), Forças Democráticas Sírias Curdas (SDF) e forças do Estado Islâmico a ficarem engalfinhados em um conflito em curso. Um dos muitos países envolvidos foi o Irã, fornecendo ao governo Assad apoio monetário, logístico, militar e diplomático. Em abril de 2016, o brigadeiro-general iraniano Ali Aratesh informou à Agência de Notícias Tasnim que assessores da 65ª Brigada NOHED estavam estacionados na Síria. O que significa que é provável que a unidade das forças especiais do Irã estivesse presente já em 2011-12, quando oficiais de inteligência ocidentais afirmaram que 150 membros do Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC) estavam presentes na Síria para apoiar Assad.

Em 10 de abril de 2016, reportagens afirmavam que beligerantes assassinaram um sargento da NOHED na Síria. Desde então, a atividade iraniana aumentou significativamente na Síria. Relatórios não-confirmados mostram pelo menos 30 membros da NOHED mortos apenas em 2016. O Irã utiliza combatentes xiitas do Afeganistão, Iraque, Paquistão, bem como o notório proxy Hezbollah. As forças militares apoiadas pelo Irã controlam os arredores de Damasco, com várias bases na Síria. A Síria está sofrendo com uma guerra contínua em um ambiente altamente volátil e com numerosos interesses. É nesse ambiente irregular que a Brigada NOHED foi treinada para operar e, sem dúvida, será utilizada.


Eren Ersozoglu é analista da Grey Dynamics. Ex-graduado em história pela Coventry University com foco em ligações entre terrorismo e crime organizado e estudos de inteligência e segurança, graduou-se na Brunel University.

Bibliografia recomendada:

World Special Forces Insignia.
Gordon L. Rottman e Simon McCouaig.

Leitura recomendada:

É por isso que as Forças Especiais do Irã ainda usam boinas verdes, 4 de janeiro de 2020.

COMENTÁRIO: O treinamento militar do Irã de acordo com um iraniano, 5 de fevereiro de 2021.

GALERIA: A Uzi iraniana3 de março de 2020.

A influência iraniana na América Latina, 15 de setembro de 2020.

O papel da América Latina em armar o Irã16 de setembro de 2020.

A Venezuela está comprando petróleo iraniano com aviões cheios de ouro, 8 de novembro de 2020.

Irã envia a maior frota de petroleiros de todos os tempos para a Venezuela15 de dezembro de 2020.

O desafio estratégico do Irã e da Venezuela com as sanções13 de setembro de 2020.

As Forças de Defesa de Israel fazem uma abordagem ampla ao lidar com a ameaça iraniana16 de dezembro de 2020.

Com a série de espiões "Teerã", os israelenses alcançam um inimigo1º de outubro de 2020.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Dois mortos após o ataque a um petroleiro ao largo do Sultanato de Omã


Por Laurent Lagneau, Zone Militaire OPEX360, 30 de julho de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 30 de julho de 2021.

Em 30 de julho, o UKMTO, órgão da Marinha Real responsável pela segurança marítima, relatou um incidente envolvendo um "navio mercante" navegando a aproximadamente 152 milhas náuticas [280 km] ao largo do Sultanato de Omã. Mais tarde, o proprietário Zodiac Maritime levantou "suspeitas de pirataria" a bordo do M/T Mercer Streest, um navio-tanque japonês que opera sob a bandeira da Libéria.

O navio estava em uma rota vazia entre Dar es Salaam [Tanzânia] e Fujairah [Emirados Árabes Unidos] quando foi atacado. Na época dos fatos, ele estava localizado precisamente no nordeste da ilha de Masirah em Omã.

No momento, ainda não está claro se este petroleiro foi ou não vítima de um ato de pirataria. Em qualquer caso, em uma declaração feita posteriormente pela Zodiac Maritime, o ataque a ela resultou na morte de dois de seus tripulantes, um segurança britânico e um cidadão romeno.

Atualmente, o M/T Mercer Street está navegando sob o controle de sua tripulação para um "local de segurança" com escolta fornecida pela Marinha dos Estados Unidos.

O armador Zodiac Maritime é propriedade do empresário israelense Eyal Ofer... o que explicaria o motivo do ataque. Na verdade, desde o início deste ano, houve pelo menos quatro ataques confirmados a navios ligados a Israel na região, o primeiro tendo como alvo o MV Helios Ray, um navio operado pela Ray Shipping Ltd, uma empresa com sede em Tel Aviv, em Israel. Israel então acusou o Irã de ser o responsável.

“O incidente envolvendo o M/T Mercer Street segue-se a um ataque de 3 de julho de 2021 ao CSAV Tyndall, que teria sido alvo de forças iranianas. Este pertenceu à Zodiac Maritime antes de ser vendido recentemente", lembra a britânica Dryad Global, especialista em segurança marítima.

Enquanto isso, alega-se que pelo menos um drone foi usado para realizar o ataque na M/T Mercer Street. Isso só pode reforçar a pista iraniana... Além disso, conforme revelado pelo Wall Street Journal, Israel e o Irã estão engajados em uma "guerra naval clandestina" há alguns meses, vários navios iranianos foram atacados, incluindo navios de contêineres fazendo a conexão com a Síria, bem como navios usados ​​pela Guarda Revolucionária. Além do mais, o recente naufrágio de um navio de abastecimento da marinha iraniana levantou a questão do possível envolvimento israelense.

Recorde-se que foram lançadas duas missões navais, nomeadamente a Sentinel [sob comando americano] e Agenor, apoiadas pela França num quadro europeu, para garantir a segurança marítima nas proximidades do muito estratégico Estreito de Ormuz, não muito longe da posição onde ocorreu o ataque ao M/T Mercer Street.

Bibliografia recomendada:

O Mundo Muçulmano.
Peter Demant.

Leitura recomendada:









terça-feira, 27 de julho de 2021

FOTO: T-62 iraquiano atolado

Um T-62 iraquiano atolado num pântano durante a guerra contra o Irã, anos 1980.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 27 de julho de 2021.

A Guerra Irã-Iraque, que durou de 1980 a 1988, viu incontáveis batalhas em terreno pantanoso nas regiões de Abadan, próxima à península de al-Faw, de Bostan, nos pântanos de Hawizeh e nas ilhas Majnoon.

O T-62, já ultrapassado pelo T-72, enfrentou carros de combate ocidentais iranianos comprados na época do Xá. Em algumas ocasiões até conseguiram alguns disparos de sorte, mas ambos os lados operavam seus equipamentos com baixíssima capacidade por falta de treinamento.

Chieftain Mk3/5 iraniano nocauteado por um disparo de 115mm de um tanque T-62 iraquiano (munição 3UBM5 ou 3UBM9 APFSDS/Flecha).
Disparo de sorte, atravessou o mantelet, o ponto menos blindado possível.

Cena de combate entre iranianos e carros T-72 iraquianos


Bibliografia recomendada:

TANKS:
100 Years of Evolution.
Richard Ogorkiewicz.

Leitura recomendada:




FOTO: T-62M no Passo de Salang, 28 de janeiro de 2020.


quarta-feira, 30 de junho de 2021

COMENTÁRIO: A Lição Curda


Por Larry Goodson, War Room, 7 de novembro de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 30 de junho de 2021.

Abandonar um aliado ou proxy porque eles não atendem mais aos seus interesses pode ser uma boa estratégia, mas isso tem um custo.

O presidente dos EUA, Donald Trump, tem a intenção de retirar as tropas americanas da Síria pelo menos nos últimos 18 meses, com base em repetidos pronunciamentos públicos nesse sentido (por exemplo, em abril de 2018 e dezembro de 2018). Ele finalmente ordenou que as forças americanas se retirassem do nordeste da Síria em 6 de outubro de 2019, após uma conversa por telefone com o presidente turco Recep Tayyip Erdogan. Três dias após este último pronunciamento presidencial, que anunciou a retirada das forças americanas do nordeste da Síria, as tropas turcas e seus aliados da milícia síria cruzaram para a zona curda lá. O presidente Trump foi imediatamente condenado por “abandonar os curdos” de todos os cantos do globo e de todos os lados do sistema político americano. Esta não foi a primeira vez que os Estados Unidos abandonaram os curdos, e os curdos nunca esquecem.

No primeiro dia do ano acadêmico para a classe do US Army War College de 2013, eu separei uma parte dos pontos de ensino planejados e, em vez disso, substituí uma discussão do debate que girava sobre a política dos EUA em relação à Síria na esteira da rebelião que foi crescendo lá. Eu distribuí dois artigos de opinião representando os dois lados da discussão política que então grassava em Washington. Um deles foi “Os riscos da inação na Síria”, de três senadores - John McCain, Joseph I. Lieberman e Lindsey O. Graham - publicado no The Washington Post em 5 de agosto de 2012. 
A outra estava "Combinando realismo e idealismo na Síria e Oriente Médio", do ex-secretário de Estado Henry A. Kissinger, que apareceu no The Washington Post em 3 de agosto de 2012. A ideia era fornecer aos alunos uma amostra do debate sobre uma decisão importante de política externa, a qual seria lugar-comum nos futuros empregos para os quais seu ano no War College visa prepará-los.

Como costuma acontecer, o que aconteceu na sala do seminário não foi exatamente o que eu esperava, mas me deixou com uma lição para toda a vida. Um de meus bolsistas internacionais naquele ano foi um oficial (agora um general) Peshmerga (Forças Curdas Iraquianas). Quando a conversa chegou a ele, ele abanou o artigo de Kissinger e declarou vigorosamente que não iria ler nada do homem que vendeu os curdos em 1975.

Em 1972, Kissinger e o presidente Richard Nixon decidiram, em conjunto com o Irã e Israel, fornecer armas e munições soviéticas aos curdos iraquianos a fim de amarrar o governo iraquiano liderado por árabes com uma rebelião. No entanto, as aspirações curdas por um estado foram frustradas desde a Conferência de Paz de Paris de 1919, deixando os curdos divididos entre o sudeste da Turquia, noroeste do Irã, norte do Iraque e nordeste da Síria. Nenhum desses estados queria um Curdistão independente, então, quando o Acordo de Argel de 1975 resolveu a disputa de fronteira que estava no centro das tensões Irã-Iraque, Kissinger cortou a ajuda da CIA aos curdos, enquanto o Irã e a Turquia fecharam suas fronteiras aos refugiados curdos , que foram deixados para enfrentar os meninos valentões de Saddam Hussein. O jornalista Daniel Schorr relata o que aconteceu a seguir em “Telling It Like It Is: Kissinger and the Kurds” (Christian Science Monitor, 18 de outubro de 1996), dizendo, “[Mustafa] Barzani [o líder curdo] escreveu a Kissinger, 'Vossa Excelência, os Estados Unidos têm uma responsabilidade moral e política para com nosso povo’. Não houve resposta. Em 1975, Kissinger foi questionado perante o Comitê de Inteligência da Câmara como ele poderia justificar essa traição. Ele respondeu: ‘Ação encoberta não deve ser confundida com trabalho missionário’."

Curdos arremessam batatas e frutas podres em veículos americanos se retirando da Síria


A perspectiva ultra-realista de Kissinger (menos de dois anos depois de receber o Prêmio Nobel da Paz de 1973) é incrivelmente empolgante, mas não é a lição que aprendi na aula naquele dia. Em vez disso, é que o comportamento em relação a aliados e proxies (procuradores) é lembrado por muito tempo. Abandonar um aliado ou procurador porque eles não atendem mais aos seus interesses pode ser uma boa estratégia, mas tem um custo. O cálculo desse custo, sem dúvida, deve ocorrer antes de escolher o abandono, mas também deve ser calculado antes de iniciar o caminho em direção à aliança. Em minha experiência (e nos exemplos históricos de que tenho conhecimento), essas avaliações nunca acontecem.

Três custos imediatos óbvios para os Estados Unidos existem neste caso curdo atual, todos os quais já começaram a aparecer. Primeiro, com a retirada dos americanos, as forças curdas sírias tiveram que fazer um acordo com outra pessoa ou enfrentariam a morte. Eles fizeram o movimento mais lógico e permitiram que seu outro inimigo, o governo sírio, entrasse e retomasse a Região Autônoma do Norte e Leste da Síria (Rojava) para evitar que os turcos e seus aliados da milícia sunita árabe (também inimigos dos curdos) engajassem-se em uma limpeza étnica em massa. Assim, o regime sírio finalmente recuperou a vantagem no lado oriental do rio Eufrates, no norte da Síria, depois de mais de sete anos perdendo lá. Esta nova realidade adia indefinidamente os sonhos curdos de autonomia e simultaneamente ilustra a relevância contínua do antigo provérbio do Arthashastra de Kautilya - "o inimigo do meu inimigo é meu amigo." Além disso, como os principais apoiadores internacionais da Síria são a Rússia e o Irã, este acordo coloca dois dos maiores adversários dos Estados Unidos no banco do motorista na Síria, já que a geopolítica - como a natureza - abomina o vácuo. A Rússia e o Irã estão aparentemente alinhados com a Turquia, mas no complexo “Game of Thrones” que é a Guerra da Síria nenhuma aliança é fundada em interesses convergentes, mas apenas representa um casamento de conveniência. Ainda assim, a Turquia não perde com o ganho da Rússia na Síria, já que a Turquia quer principalmente impedir Rojava de florescer ou, pelo menos, ter uma zona tampão povoada por refugiados árabes sírios repatriados da Turquia para separar a área curda da Síria dos curdos da Turquia .

O cálculo desse custo, sem dúvida, deve ocorrer antes de escolher o abandono, mas também deve ser calculado antes de iniciar o caminho em direção à aliança.

Tropas peshmerga nas cercanias de Kirkuk, 2016.

Em segundo lugar, como já foi relatado do campo Ain Issa IDP e provavelmente ocorreu em outros campos de detenção do ISIS dentro ou perto da zona de 30 km que a Turquia está tentando ocupar, os combatentes do ISIS detidos e suas famílias podem ficar em liberdade, revigorando assim as aspirações militares e possivelmente até políticas de um inimigo em grande parte derrotado. Esta é outra consequência negativa de se retirar muito apressadamente de um conflito; na verdade, esta é uma crítica freqüentemente citada à decisão do presidente Barack Obama de retirar as forças americanas do Iraque em 2011, o que contribuiu para o surgimento do ISIS na Síria. Antes da decisão de retirar as forças americanas do nordeste da Síria, o ISIS havia perdido praticamente todo o seu território e visto a maioria de seus combatentes e suas famílias capturados, em grande parte pelas Forças Democráticas Curdas da Síria (SDF). A violenta ideologia islâmica sunita adotada pelo ISIS ainda estava oscilando, no entanto. Agora ele tem uma chance de pegar vida novamente, apesar da morte do líder do ISIS, Abu Bakr Al-Baghdadi, por um ataque das forças de operações especiais americanas em 26 de outubro de 2019.

Combatentes do Peshmerga e do YPG em Kobane, 13 de fevereiro de 2015.

Terceiro, os curdos não são os únicos aliados/procuradores que podem julgar o compromisso americano com base neste evento, especialmente devido à divulgação generalizada da decisão do presidente Trump de suspender a ajuda militar à Ucrânia a fim de pressionar o governo ucraniano a fornecer informações negativas sobre o ex-vice-presidente e possível oponente da eleição presidencial Joe Biden. Esses dois eventos, tomados em conjunto, dão a impressão de que os Estados Unidos não são um aliado muito firme. Dois anos atrás, depois de uma palestra que dei no Royal Jordanian National Defense College no subúrbio de Amã, um dos oficiais-alunos perguntou: “Se os Estados Unidos não estão mais dispostos a liderar, o que devemos nós [significando “pequenos estados árabes”] fazer? A resposta é: se a América quer liderar, ela deve agir como um líder. As grandes potências que lideram alianças têm de ser capazes de absorverem alguma “carona”, como os aliados da OTAN que não pagam todo o seu comprometimento militar; tolerar alguma relutância de aliados instáveis; dar prioridade aos interesses dos aliados, às vezes sobre seus próprios interesses domésticos; e sempre honrar seus próprios compromissos o tempo todo. Uma grande potência que começa a colocar seus próprios interesses à frente de suas responsabilidades está demonstrando que não mais se vê como uma grande potência. Tanto as ideias de "liderar por trás" do presidente Obama e as ideias "América em primeiro lugar" do presidente Trump sugerem uma América que não se sente mais confortável liderando. Além disso, os aliados da América podem considerar outras opções, seja o fascínio sedutor de uma crescente Iniciativa do Cinturão e Rota da China ou a intimidação mais vigorosa da abordagem de guerra híbrida da Rússia em sua vizinhança exterior próxima.

Quatro meses atrás, em uma viagem de pesquisa à Turquia, ficou claro para mim quais eram os planos turcos se o presidente Erdogan pudesse convencer o presidente Trump a abandonar os parceiros curdos da América no norte da Síria. A execução desses planos está agora se desenrolando. A América teve a oportunidade de mostrar sua liderança ao conter a Turquia e fracassou. Ironicamente, de acordo com um comunicado à imprensa do Comando Central dos EUA de outubro de 2014 que anunciou a criação da Operação Inherent Resolve (Determinação Inerente), que estabeleceu a coalizão liderada pelos americanos contra o ISIS, “o nome INHERENT RESOLVE pretende refletir a determinação inabalável e profundo compromisso dos EUA e nações parceiras na região e em todo o mundo para eliminar o grupo terrorista ISIL [agora chamado ISIS] e a ameaça que eles representam para o Iraque, a região e a comunidade internacional em geral.” Tanto a Turquia quanto as forças curdas sírias fazem parte da coalizão, que talvez precise de um novo nome, já que a determinação e o compromisso dos Estados Unidos parecem tão firmes hoje quanto eram na época de Kissinger.


Larry P. Goodson atua como Professor de Estudos do Oriente Médio no US Army War College, onde voltou recentemente após um ano na Universidade de Oxford trabalhando em seu novo livro, “First Great War of the 21st Century:  From Syria to the South China Sea” (Primeira Grande Guerra do Século XXI: Da Síria ao Mar da China Meridional).

Bibliografia recomendada:

Estado Islâmico: Desvendando o exército do terro.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

Leitura recomendada:





FOTO: Combatente xiita iraquiano

Um combatente muçulmano xiita das Saraya al-Salam (Companhias de Paz) na linha de frente de Jurf al-Sakhr ao sul de Bagdá em 18 de agosto de 2014. (AFP)

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 30 de junho de 2021.

As Companhias de Paz (árabe: سرايا السلام, Sarāyā as-Salām), frequentemente mal traduzidas como Brigadas de Paz na mídia americana, são um grupo armado iraquiano ligado à comunidade xiita do Iraque. Eles são um renascimento de 2014 do Exército Mahdi (جيش المهدي Jaysh al-Mahdī) que foi criado pelo clérigo xiita iraquiano Muqtada al-Sadr em junho de 2003 e dissolvido em 2008. Apoiadas pelo Irã, as Companhias de Paz foram recriadas em 2014.

O Exército Mahdi alcançou proeminência internacional em 4 de abril de 2004, quando liderou o primeiro grande confronto armado da comunidade xiita contra as forças dos Estados Unidos e seus aliados no Iraque. O confronto tratou-se de um levante que se seguiu à proibição do jornal de al-Sadr e sua subsequente tentativa de prisão, que durou até uma trégua em 6 de junho. A trégua foi seguida por medidas para desmantelar o grupo e transformar o movimento de al-Sadr em um partido político para participar nas eleições de 2005; Muqtada al-Sadr ordenou que os combatentes do Exército Mahdi cessassem as hostilidades, a menos que fossem atacados primeiro. A trégua foi quebrada em agosto de 2004 após ações provocativas do Exército Mahdi, com novas hostilidades surgindo. O grupo foi dissolvido em 2008, após uma repressão das forças de segurança iraquianas.

No auge, a popularidade do Exército Mahdi era forte o suficiente para influenciar o governo local, a polícia e a cooperação com os sunitas iraquianos e seus apoiadores. O grupo era popular entre as forças policiais iraquianas; além de ser acusado de operar esquadrões da morte. Suas batalhas mais notáveis nesse período foram a Batalha de Karbala em 2007 e o Cerco de Basrah em 2008. Um dos seus membros mais célebres é Abu Azrael, "O Anjo da Morte".

Moqtada al-Sadr (centro) ao lado do clérigo Ali Khamenei e do General Qassem Soleimani, Teerã, 2019.

As Companhias de Paz estavam armadas com uma variedade de armas leves, incluindo dispositivos explosivos improvisados (improvised explosive devicesIEDs). Muitos dos IEDs usados durante os ataques às Forças de Segurança e Forças de Coalizão do Iraque usaram sensores infravermelhos como gatilhos, uma técnica amplamente usada pelo IRA na Irlanda do Norte no início a meados da década de 1990.

O grupo foi re-mobilizado em 2014 para lutar contra o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS) e ainda estava ativo em 2016; participando na recaptura de Jurf al-Sakhr (Operação Ashura, 24–26 de outubro de 2014) e na Segunda Batalha de Tikrit (2 de março a 17 de abril de 2015).

Bibliografia recomendada:

Estado Islâmico:
Desvendando o exército do terror.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

Leitura recomendada:

PERFIL: Abu Azrael, "O Anjo da Morte", 18 de fevereiro de 2020.




GALERIA: Os fuzis AK-74M da Síria, 29 de agosto de 2020.


quinta-feira, 3 de junho de 2021

O Hamas como senhor de Gaza: A geopolítica dos palestinos

Militantes do Hamas desfilando em Gaza comemorando a alegada vitória contra Israel, 22 de março de 2021.
Enquanto isso, o Egito intermediava um cessar-fogo com Israel.

Por George Friedman, Stratfor, 19 de junho de 2007.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de junho de 2021.

[Nota do Tradutor: Análise feita quando o Hamas venceu a guerra contra o Fatah e tomou o controle da Faixa de Gaza em 15 junho de 2007. Isso permitiu o fortalecimento do grupo terrorista, desafiando a Autoridade Nacional Palestina e criando um território próprio. Esse artigo deve ser lido em conjunto com este e este artigos.]

Na semana passada, aconteceu uma coisa importante no Oriente Médio. O Hamas, um grupo político islâmico radical, tomou à força o controle de Gaza do rival Fatah, um grupo palestino essencialmente secular. A Cisjordânia, entretanto, permanece mais ou menos sob o controle do Fatah, que domina a Autoridade Nacional Palestina naquela região. Portanto, pela primeira vez, os dois territórios palestinos distintos - a Faixa de Gaza e a Cisjordânia - não estão mais sob uma única autoridade palestina. O Hamas vem aumentando sua influência entre os palestinos há anos e ganhou um grande impulso ao vencer a eleição mais recente. Agora, reivindicou controle exclusivo sobre Gaza, sua fortaleza histórica e base de poder. Não está claro se o Hamas tentará assumir o controle da Cisjordânia também, ou se teria sucesso se fizesse tal jogada. A Cisjordânia é uma região diferente com uma dinâmica muito diferente.


O que é certo, pelo menos por enquanto, é que essas regiões estão divididas em duas facções e, portanto, têm o potencial de se tornarem dois Estados palestinos diferentes. De certa forma, isso faz mais sentido do que o arranjo anterior. A Cisjordânia e a Faixa de Gaza estão fisicamente separadas uma da outra por Israel. Viajar de uma parte dos territórios palestinos para a outra depende da disposição de Israel em permiti-lo - o que nem sempre acontece. Como resultado, os territórios palestinos são divididos em duas áreas com contato limitado.

A guerra entre os filisteus e os hebreus é descrita nos livros de Samuel. Os filisteus controlavam as planícies costeiras do Levante, a costa leste do Mediterrâneo. Eles tinham tecnologias avançadas, como a habilidade de fundir bronze, e conduziam o comércio internacional para cima e para baixo do Levante e dentro do Mediterrâneo oriental. Os hebreus, incapazes de enfrentarem os filisteus em combate direto, recuaram para as colinas a leste da costa, na Judéia, área hoje chamada Cisjordânia. Os filisteus faziam parte de uma entidade geográfica que ia de Gaza ao norte até a Turquia. Os hebreus faziam parte do interior que ligava o norte à Síria, o sul nos desertos da Arábia e a leste pelo Jordão. Os filisteus não conseguiram perseguir os hebreus no interior, e os hebreus - até Davi - não conseguiram desalojar os filisteus da costa. Duas entidades distintas existiram.

Hoje, Gaza está ligada ao sistema costeiro, que Israel e Líbano agora ocupam. Gaza é a ligação entre a costa do Levante e o Egito. A Cisjordânia não é uma entidade costeira, mas uma região cujos laços são com a Península Arábica, Jordânia e Síria. A questão é que Gaza e Cisjordânia são entidades geográficas muito distintas que vêem o mundo de maneiras muito diferentes. Gaza, com suas ligações ao norte cortadas pelos israelenses, historicamente foi orientada para os egípcios, que ocuparam a região até 1967. Os egípcios influenciaram a região criando a Organização para a Libertação da Palestina (Palestine Liberation Organization, PLO), enquanto sua dissidente Irmandade Muçulmana ajudou a influenciar a criação do Hamas em 1987.

A Cisjordânia, parte da Jordânia até 1967, é maior e mais complexa em sua organização social e realmente representou o centro de gravidade do nacionalismo palestino sob o Fatah. Gaza e a Cisjordânia sempre foram entidades separadas, e a recente ação do Hamas provou essa realidade. A vitória do Hamas em Gaza significa muito mais para os palestinos e egípcios do que para os israelenses - pelo menos a curto prazo. O medo em Israel agora é que Gaza, sob o governo do Hamas, se torne mais agressiva na realização de ataques terroristas em Israel. O Hamas certamente tem uma ideologia que defende isso, e é totalmente possível que o grupo se torne mais antagônico. No entanto, parece-nos que o Hamas já era capaz de realizar tantos ataques quantos desejasse antes de assumir o controle total. Além disso, ao aumentar os ataques agora, o Hamas - que sempre foi capaz de negar a responsabilidade por esses incidentes - perderia o elemento de negação. Tendo assumido o controle de Gaza, independentemente de realizar ataques, não teria conseguido evitá-los. A liderança do Hamas está agora mais vulnerável do que nunca.

Vamos considerar a posição estratégica dos palestinos. Sua principal arma contra Israel continua sendo o que sempre foi: ataques aleatórios contra alvos civis destinados a desestabilizar Israel. O problema com essa estratégia é óbvio. Usar o terrorismo contra americanos no Iraque é potencialmente eficaz como estratégia. Se os americanos não suportarem o nível de baixas que está sendo imposto, eles têm a opção de deixar o Iraque. Embora a partida possa representar sérios problemas para os interesses regionais e globais dos EUA, isso não afetaria a continuidade da existência dos Estados Unidos. Portanto, os insurgentes poderiam encontrar um limite que forçaria os Estados Unidos a se dobrarem. Os israelenses não podem deixar Israel. Suponha por enquanto que os palestinos poderiam causar 1.000 vítimas civis por ano. Existem cerca de 5 milhões de judeus em Israel. Isso seria cerca de 0,02 por cento de baixas. Os israelenses não vão deixar Israel nessa taxa de baixas, ou em uma taxa mil vezes maior. Ao contrário dos americanos, para quem o Iraque é um interesse subsidiário, Israel é o interesse central de Israel. Israel não vai capitular aos palestinos por causa dos ataques terroristas.

Uma unidade de artilharia israelense dispara contra alvos na Faixa de Gaza, na fronteira israelense com Gaza, quarta-feira, 12 de maio de 2021.

Os israelenses podem ser convencidos a fazerem concessões políticas na formação de um Estado palestino. Por exemplo, eles podem conceder mais terras ou mais autonomia para impedir os ataques. Isso pode ter sido atraente para o Fatah, mas o Hamas rejeita explicitamente a existência de Israel e, portanto, não dá aos israelenses nenhum motivo para fazerem concessões. Isso significa que, embora os ataques possam ser psicologicamente satisfatórios para o Hamas, eles seriam substancialmente menos eficazes do que os ataques realizados enquanto o Fatah conduzia as negociações. Negociar com o Hamas não traz nada para Israel. Um dos usos do terrorismo é desencadear uma resposta israelense, que por sua vez pode ser usada para abrir uma barreira entre Israel e o Ocidente. O Fatah tem sido historicamente habilidoso em usar o ciclo de violência em seu benefício político.

O Hamas, entretanto, é prejudicado de duas maneiras: primeiro, sua posição sobre Israel é considerada muito menos razoável do que a do Fatah. Em segundo lugar, o Hamas é cada vez mais visto como um movimento jihadista e, como tal, sua força ameaça os interesses europeus e americanos. Embora Israel não queira ataques terroristas, esses ataques não representam uma ameaça à sobrevivência do Estado judeu. Para serem de sangue frio, eles são irritantes, não uma ameaça estratégica. A única coisa que poderia ameaçar a sobrevivência de Israel, além de uma barragem nuclear, seria uma mudança na posição dos Estados vizinhos. No momento, Israel tem tratados de paz com o Egito e a Jordânia, e uma relação funcional adequada com a Síria. Com Egito e Jordânia fora do jogo, a Síria não representa uma ameaça. Israel está estrategicamente seguro.

O vizinho mais importante de Israel é o Egito. Quando energizado, é o centro de gravidade do mundo árabe. Sob o ex-presidente Gamal Abdul Nasser, o Egito dirigiu a hostilidade árabe a Israel. Depois que Anwar Sadat reverteu a estratégia de Nasser em relação a Israel, o Estado judeu estava basicamente seguro. Outras nações árabes não poderiam ameaçá-lo, a menos que o Egito fizesse parte da equação. E por quase 30 anos, o Egito não fez parte da equação. Mas se o Egito invertesse sua posição, Israel se sentiria, com o tempo, muito menos confortável. Embora a Arábia Saudita tenha ofuscado recentemente o papel do Egito no mundo árabe, os egípcios sempre podem optar por uma posição de liderança forte e usar sua força para ameaçar Israel. Isso se torna especialmente importante quando a saúde do presidente egípcio Hosni Mubarak piora e levantam-se questionamentos se seus sucessores conseguirão manter o controle do país enquanto a Irmandade Muçulmana lidera uma campanha para exigir reformas políticas [NT: essa problemática explodiu na Primavera Árabe de 2011].

Manifestantes durante os protestos em massa no Cairo, capital do Egito, em 2011.

Como já dissemos, Gaza faz parte do sistema costeiro mediterrâneo. O Egito controlou Gaza até 1967 e reteve influência lá depois, mas não na Cisjordânia. O Hamas também foi influenciado pelo Egito, mas não pelo governo de Mubarak. O Hamas foi uma conseqüência da Irmandade Muçulmana egípcia, que o regime de Mubarak fez um trabalho razoavelmente bom em conter, principalmente por meio da força. Mas também existe um paradoxo significativo nas relações do Hamas com o Egito. O regime de Mubarak, particularmente por meio de seu chefe de inteligência (e possível sucessor de Mubarak) Omar Suleiman, tem boas relações de trabalho com o Hamas, apesar de ser duro com a Irmandade Muçulmana. Esta é a ameaça a Israel. O Hamas tem laços com o Egito e ressoa com os egípcios, bem como com os sauditas. Seus membros são sunitas religiosos. Se a criação de um estado islâmico palestino em Gaza for bem-sucedida, o efeito negativo mais importante pode ser no Egito, onde a Irmandade Muçulmana - que atualmente está muito baixa - poderia ser reativada. Mubarak está envelhecendo e espera ser sucedido por seu filho.

A credibilidade do regime é limitada, para dizer o mínimo. É improvável que o Hamas tome o controle da Cisjordânia - e, mesmo que o fizesse, ainda não faria diferença estratégica. O aumento dos ataques terroristas contra a população de Israel alcançaria menos do que os ataques que ocorreram enquanto o Fatah negociava. Eles poderiam acontecer, mas não levariam a lugar nenhum. A estratégia de longo prazo do Hamas - na verdade, a única esperança dos palestinos que não se prepararam para aceitar um acordo com Israel - é que o Egito mude seu tom em relação a Israel, o que poderia muito bem envolver energizar as forças islâmicas no Egito e provocar a queda do regime de Mubarak. Essa é a chave para qualquer solução para o Hamas. Embora muitos estejam se concentrando no aumento da influência do Irã em Gaza, deixando de lado a retórica, o Irã é um jogador secundário na equação israelense-palestina. Mesmo a Síria, apesar de hospedar a liderança exilada do Hamas, tem pouco peso quando se trata de representar uma ameaça estratégica para Israel.

Militantes do Hamas brandindo armas e bandeiras.

Mas o Egito tem um peso enorme. Se um levante islâmico ocorresse no Egito e fosse instalado um regime que pudesse energizar o público egípcio contra Israel, isso refletiria uma ameaça estratégica à sobrevivência do Estado israelense. Não seria uma ameaça imediata - levaria uma geração para transformar o Egito em uma potência militar - mas, em última análise, representaria uma ameaça. Apenas um Egito disciplinado e hostil poderia servir como a pedra angular de uma coalizão anti-Israel. O Hamas, ao se afirmar em Gaza - especialmente se puder resistir ao exército israelense - pode acertar a nota no Egito que o Fatah não consegue fazer por quase 30 anos. Essa é a importância da criação de uma entidade separada em Gaza; isso complica as negociações entre israelenses e palestinos e provavelmente as torna impossíveis. E isso por si só funciona a favor de Israel, já que ele não precisa nem mesmo entreter negociações com os palestinos enquanto os palestinos continuarem se dividindo.

Se o Hamas fizesse incursões significativas na Cisjordânia, as coisas seriam mais difíceis para Israel, assim como para a Jordânia. Mas com ou sem a Cisjordânia, o Hamas tem o potencial - não a certeza, apenas o potencial - de alcançar o oeste ao longo da costa mediterrânea e influenciar os eventos no Egito. E essa é a chave para o Hamas. Provavelmente há uma dúzia de razões pelas quais o Hamas fez a mudança que fez, a maioria delas triviais e limitadas a problemas locais. Mas a consequência estratégica de uma Gaza islâmica independente é que ela pode atuar tanto como um símbolo quanto como um catalisador para a mudança no Egito, algo que era difícil enquanto o Hamas estava emaranhado com a Cisjordânia. Isso provavelmente não foi planejado, mas é certamente a consequência mais importante - pretendida ou não - do caso de Gaza. Duas coisas devem ser monitoradas: primeiro, se há reconciliação entre Gaza e a Cisjordânia e, em caso afirmativo, em que termos; segundo, o que os islâmicos egípcios liderados pela Irmandade Muçulmana fazem agora que o Hamas, sua própria criação, assumiu o controle de Gaza, uma região que já foi controlada pelos egípcios. O Egito é o lugar para assistir.

Sobre o autor:

George Friedman.

George Friedman é um analista geopolítico reconhecido internacionalmente e estrategista em assuntos internacionais, fundador do Stratfor e o fundador e presidente da Geopolitical Futures, uma publicação online que analisa e prevê o sistema internacional. É o autor dos best-sellers Flashpoints: The Emerging Crisis in Europe, The Next Decade, America's Secret War, The Future of War e The Intelligence Edge. Seus livros foram traduzidos para mais de 20 idiomas.

Post-script: O Egito bloqueia Gaza

Um soldado egípcio em cima de um tanque na Praça Tahrir, durante a Revolução Egípcia de 2011, parte da Primavera Árabe.

Os militares egípcios realizaram uma repressão sangrenta ao governo da Irmandade Muçulmana durante o golpe de 2013, liderado pelo General Abdel Fattah al-Sisi. O presidente da Irmandade Muçulmano, Mohamed Morsi, que havia subido à presidência depois da Primavera Árabe (2011), foi deposto e os meios de comunicação da Irmandade foram silenciados. O Egito retornou ao nasserismo. Iniciou-se uma insurgência islâmica no Sinai.

Em 23 de janeiro de 2008, depois que militantes do Hamas na Faixa de Gaza detonaram uma explosão perto da passagem de fronteira de Rafah, destruindo parte do muro de 2003, iniciou-se um êxodo palestino para o Egito. As Nações Unidas estimam que cerca de metade do 1,5 milhão de habitantes da Faixa de Gaza cruzou a fronteira com o Egito em busca de alimentos e suprimentos. Por temer que militantes adquirissem armas no Egito, a polícia israelense ficou em alerta crescente.

O Egito havia fechado a passagem de fronteira de Rafah em junho de 2007, dias antes do Hamas assumir o controle de Gaza no final do conflito Fatah-Hamas; A violação da fronteira seguiu-se a um bloqueio da Faixa de Gaza por Israel começando em parte naquele mesmo junho, com reduções no fornecimento de combustível em outubro de 2007. Um bloqueio total começou em 17 de janeiro de 2008 após um aumento nos ataques com foguetes contra Israel vindos de Gaza.

Policiais egípcios dirigindo em uma estrada que leva à capital da província do Sinai do Norte, El-Arish, em 26 de julho de 2018.

Embora Israel exigisse que o Egito fechasse a fronteira devido a questões de segurança, o presidente egípcio Hosni Mubarak ordenou que suas tropas permitissem travessias para aliviar a crise humanitária, enquanto verificava que os habitantes de Gaza não tentavam trazer armas de volta para Gaza. Em cinco dias, os habitantes de Gaza gastaram cerca de US$ 250 milhões apenas na capital do governo do Sinai do Norte, Arish. A súbita e enorme demanda por produtos básicos levou a grandes aumentos de preços locais e escassez.

A Irmandade Muçulmana no parlamento egípcio desejava abrir o comércio através da fronteira com Gaza em 2012, uma medida que teria sido resistida pelo governo egípcio de Tantawi. Após o golpe de Estado egípcio de 2013, os militares egípcios destruíram a maioria dos 1.200 túneis usados para o contrabando de alimentos, armas e outros bens para Gaza. Estes túneis custam bilhões e são pagos com ajuda humanitária desviada. Após o massacre de Rabaa em agosto de 2013 no Egito, a passagem de fronteira foi fechada "indefinidamente".

O argumento do Egito é que não pode abrir a passagem de Rafah a menos que a Autoridade Palestina chefiada por Mahmoud Abbas controle a passagem e monitores internacionais estejam presentes. O ministro das Relações Exteriores do Egito, Ahmed Aboul Gheit, disse que o Hamas deseja que a fronteira seja aberta porque isso representaria o reconhecimento egípcio do controle do grupo sobre Gaza. "É claro que isso é algo que não podemos fazer", disse ele, "porque isso minaria a legitimidade da Autoridade Palestina e consagraria a divisão entre Gaza e a Cisjordânia."

Posto militar egípcio no Sinai.

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