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domingo, 12 de janeiro de 2020

Frogs of War: explicando o novo intervencionismo militar francês

Fort de Madama - Níger, discussões entre os paras do 3º RPIMA e os militares dos 24º Batalhão Interarmas, 12 de novembro de 2014. (Thomas Goisque)

Por Jean-Baptiste Jeangène Vilmer e Olivier Schmitt, War on the Rocks, 14 de outubro de 2015.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 06 de dezembro de 2019.

As bombas francesas caem sobre a Síria desde o final de setembro, reforçando a nova imagem durona da França na imprensa internacional e de língua inglesa. Os franceses são conhecidos há muitos anos como “macacos comedores de queijo que se rendem” devido em parte à sua recusa em participar da invasão do Iraque em 2003. Essa nova intervenção contribui ainda mais para a transformação da França, de uma caricatura, em "frogs of war" (sapos de guerra*).

Nota do Tradutor: O apelido "sapo", de uso depreciativo, é dado aos franceses pelos americanos porque os franceses são conhecidos por comerem pernas de rã. “Frogs of War” faz um trocadilho com “Dogs of War” (Cães de Guerra).

A ausência da França no Iraque pode fazer seu recente intervencionismo parecer surpreendente. No entanto, o Iraque é a exceção que prova a regra: a França se recusou a ingressar na coalizão de 2003 não por pacifismo ou covardia, mas porque considerava a intervenção ilegal, ilegítima e potencialmente contraproducente (dúvidas que posteriormente foram comprovadas justificadas). A França realizou um grande número de operações externas desde o final da descolonização, principalmente na África, incluindo Benin, Congo, Costa do Marfim, Djibuti, Eritreia, Etiópia, Libéria, República Democrática do Congo, Ruanda e Somália. Um número considerável de operações francesas também ocorreu no Oriente Médio: no Líbano (desde 1978), no Sinai egípcio (desde 1982), no Iraque (1990-1991) e no Camboja (1992-1995), na ex-Iugoslávia. (1992-2014), Afeganistão (2001-2012), Colômbia (2003), Haiti (desde 2004) e Oceano Índico (desde 2008). Nos últimos anos, o intervencionismo francês acelerou: Líbia em 2011, Mali em 2013, Operação Barkhane no Mali, Chade, Níger, Mauritânia e Burkina Faso desde 2014, República Centro-Africana (RCA) em 2014, Iraque em 2014 e a partir desta semana, na Síria, onde a França quase interveio após os ataques químicos de agosto de 2013.

Como essa aparente evolução pode ser explicada? O "intervencionismo francês" não é novidade, mas esse ativismo internacional e sua súbita visibilidade, principalmente como vista nos Estados Unidos, é o resultado de uma combinação de fatores.

Um admirável mundo novo pós-Guerra Fria

Primeiro, a França entrou na brecha criada no final da Guerra Fria, que, como a queda de Napoleão ou o fim da Segunda Guerra Mundial, era vista como o início de uma nova era. Foi também um novo começo para as Nações Unidas. Como afirmou o secretário-geral Javier Pérez de Cuéllar em 1991, “a extinção da bipolaridade associada à guerra fria sem dúvida removeu o fator que praticamente imobilizou as relações internacionais ao longo de quatro décadas.” Enquanto o Conselho de Segurança da ONU apenas autorizou 14 operações de manutenção da paz nos seus primeiros 40 anos de existência, cinco operações foram autorizadas apenas em 1988 e 1989. Entre 1945 e 1990, os oponentes tradicionais ao conceito de intervenção foram o Bloco Oriental, estados fracos no hemisfério sul e jovens estados preocupados com sua soberania. No entanto, o final do século anunciou o colapso do bloco oriental, a ascensão da democracia no sul global, o amadurecimento dos jovens estados, a evolução do direito internacional preocupando-se cada vez mais com indivíduos e estados, e com a grande visibilidade da mídia de crises humanitárias que obrigaram os políticos a agir. Em outras palavras, os obstáculos internacionais ao intervencionismo desapareceram.

Segundo, com a Guerra Fria no passado, o intervencionismo assumiu uma nova importância para a França, pois ela procurava manter seu status em um ambiente internacional cada vez mais competitivo. Rachel Utley explica,

Isso foi mais simbólico em relação ao assento permanente da França no Conselho de Segurança das Nações Unidas, por conta de sugestões de que gigantes econômicos como o Japão agora têm uma maior reivindicam para essa posição do que uma potência média, embora com armas nucleares, como a França.

A vantagem competitiva da França residia em seu poder militar, o qual ela assim necessitava demonstrar. A intervenção foi, portanto, usada como uma maneira de preservar o prestígio francês em um mundo em transformação. Provar o valor de seu poder militar foi ainda mais importante em um mundo onde as tensões nucleares se dissolveram amplamente com o colapso da União Soviética. A força nuclear da França contribuiu muito para seu status durante a Guerra Fria, mas de repente pareceu menos relevante. Ela pode ter incitado os líderes franceses a empregar meios militares convencionais para demonstrar seu poder e obter resultados.

Raízes do intervencionismo francês

A primeira força motriz por trás do intervencionismo francês é a imagem da França de si mesma como uma grande nação, "casa dos direitos humanos", portadora e defensora dos valores universais. Essa doutrina se desenvolveu desde a intervention d 'humanité (intervenção humanitária) do final do século 19 e início do século 20 até a droit d’ingérence (direito de intervenção) das décadas de 1980 e 1990. Independentemente da sinceridade de suas convicções excepcionalistas, essas convicções humanitárias tornaram-se parte da identidade francesa e, portanto, parte dos interesses nacionais franceses (assim como nos Estados Unidos). A culpa sentida de ter permitido que o genocídio de Ruanda ocorresse, reforçou convicções humanitárias francesas e levou a uma obsessão por impedir “outra Ruanda”. Isso explica a recente intervenção na RCA, por exemplo, um país em que a França tem muito poucos interesses materiais, mas um interesse primordial em não ser o país que permite que outro genocídio ocorra em uma ex-colônia em relação à qual sente uma responsabilidade especial.

Em uma nota mais realista, o desejo de preservar sua esfera de influência na África e no Oriente Médio também desempenha um papel no intervencionismo francês. Devido à sua herança colonial, a França continuou a manter uma rede de contatos e parceiros especiais nessas regiões que apoiavam os interesses políticos e financeiros de muitos grupos significativos na França.

O desejo de preservar sua independência, especialmente contra a influência americana, é outro fator importante. Embora a França e os Estados Unidos permaneçam ideologicamente muito próximos devido a auto-imagens compartilhadas universalistas, excepcionalistas e intervencionistas, essas semelhanças às vezes levam à competição e não à cooperação.

Finalmente, Paris age porque pode. A França faz parte de um clube exclusivo de potências militares, capaz de desdobrar-se primeiro em um teatro de operações e projetar poder globalmente. Esta capacidade, como ilustrado pela campanha expedicionária no Mali, fornece um incentivo para intervir por si só.

As razões da aceleração desde 2011

Enquanto a mídia de língua inglesa costuma interpretar a recente multiplicação de intervenções francesas como prova de que o presidente François Hollande é um neoconservador estridente, o intervencionismo francês não é o produto de uma mudança ideológica. Em vez disso, a esquerda e a direita políticas francesas compartilham uma perspectiva sobre assuntos externos e, ao contrário de outra invenção comum, nem Hollande nem o ministro das Relações Exteriores Laurent Fabius estão cercados por conselheiros “neocons”. Além disso, a política externa francesa não satisfaz dois dos cinco critérios neoconservadores: internacionalismo, supremacia, unilateralismo, militarismo e democracia. A França não pratica o unilateralismo e não é militarista. Seu orçamento de defesa representa 1,8% do PIB, abaixo de seus compromissos nominais com os 2% recomendados pela OTAN e os gastos britânicos de 2,1% - o que significa que a França faz muito com muito pouco.

As verdadeiras razões por trás da aceleração das intervenções francesas desde 2011 estão em outro lugar.

Maior instabilidade global, como demonstrado pela proliferação de crises, significa que há objetivamente mais razões para intervir agora do que há 10 anos. Essa maior instabilidade é resultado de vários fatores. Primeiro, uma crescente difusão de poder causada pela erosão da unipolaridade americana, o surgimento de estados poderosos, o número crescente de atores não-estatais e grupos armados transnacionais, e a democratização de tecnologias e informações destrutivas, que permitem que indivíduos e pequenos grupos usem força militar com mais facilidade. Assim, os estados ocidentais com meios mais limitados devem enfrentar um número maior de adversários.

Segundo, a instabilidade recente decorre em parte da ausência de mediadores regionais usuais, como Egito e Turquia, que estão preocupados com os desafios políticos e de segurança internos ou são apenas ambivalentes. Terceiro, o “efeito de desvio” significa que quanto mais crises houver, menos atenção cada uma receberá. Novas crises crescem porque são ofuscadas por outras.

A França também ocasionalmente intervém após a inação de outros. A América de Obama é um "poder reticente", mais discreto, embora não menos comprometido. Os Estados Unidos sempre oscilaram entre fases de introversão e extroversão, e sua fase atual nada mais é do que um estágio comum do ciclo. Em vez de se retirar do mundo, o governo Obama simplesmente começou a usar a força com maior discrição. Sua estratégia sutil, baseada na trindade de drones, forças especiais e cibernética, demonstra uma mudança dos grandes desdobramentos terrestres da era Bush, mas não significa desengajamento.

Além disso, o Reino Unido também sofre um eclipse temporário depois que suas forças armadas foram enfraquecidas pelas campanhas no Iraque e no Afeganistão, sem mencionar severos cortes na defesa. A capacidade britânica já havia sido questionada pela necessidade de reforço dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão. A crise estratégica do Reino Unido redundou um pouco para o benefício da França, pois o desempenho da França no Mali atraiu o interesse e o endosso da América. Além disso, a parceria franco-americana de contraterrorismo no Sahel reforçou os laços militares entre os dois países.

Também não existe uma tal “defesa europeia”. Para lutar juntos, é necessário ter medos ou objetivos comuns, ambos os quais a União Européia não tem. A França se comprometeu com a ação militar porque, ao contrário da maioria dos estados europeus, tem interesses na África. Distingue-se de outros estados europeus ou de Bruxelas, avessos ao risco, pela aceitação de um risco maior.

Evitar a perda de influência francesa também é um fator importante para explicar as intervenções contemporâneas. A França ainda possui numerosos ativos que a tornam uma potência global, incluindo seu assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, seu poder militar (nuclear e convencional), sua rede diplomática (a segunda maior do mundo), suas empresas transnacionais, seu programa espacial, a francophonie (francofonia), seus recursos marítimos (a segunda maior zona econômica exclusiva do mundo) e seu poder brando. No entanto, em um mundo cada vez mais "ocidental" - e especialmente com a diminuição da influência européia - a importância relativa da França está caindo. Seu ativismo militar ajuda a compensar isso.

Existem também as habituais razões políticas domésticas. Nicolas Sarkozy usou a intervenção na Líbia para consolidar sua estatura presidencial e restaurar a reputação da diplomacia francesa após seus fracassos na Tunísia e no Egito. Hollande também se beneficiou das operações externas (Mali, Barkhane, RCA, Chammal e Síria), que foram mais amplamente apoiadas do que sua política doméstica. Hollande também foi criticado por ser suave e indeciso e, portanto, usa o poder militar francês para corrigir essa imagem. Além disso, o Ministro das Relações Exteriores Fabius e o Ministro da Defesa Jean-Yves Le Drian são provavelmente os ministros mais fortes e influentes do governo de Hollande, o que predispõe o atual executivo ao ativismo internacional.

As ameaças domésticas atuais dão outro motivo para intervir no exterior, pois as crises externas e a segurança interna estão profundamente inter-relacionadas na França. Mais intervenções ocorrem em resposta a uma ameaça maior à segurança nacional. A intervenção no Mali já era justificada não apenas pela vontade de ajudar os malianos na luta contra os jihadistas, mas também pela vontade de evitar um porto seguro terrorista que pudesse ameaçar outros, incluindo a França. A França foi atingida pelo terrorismo quatro vezes este ano (em Paris em janeiro, em Villejuif em abril, em Isère em junho e no trem Thalys em agosto). Agora, ela desdobra mais soldados em patrulhas antiterroristas domésticas (10.000 soldados na Operação Sentinelle) do que externamente (7.000 em cinco operações externas atuais, mas mais de 12.000 outros em 10 missões permanentes no exterior). É esse nível de ameaça que desencadeou a decisão de estender os ataques contra o Estado Islâmico ao território sírio. Politicamente, essa última intervenção é justificada pela necessidade de impedir ataques na França que possam ser planejados, organizados e direcionados a partir da Síria. Sua base jurídica oficial, no entanto, não é individual, mas de autodefesa coletiva, ou seja, auxiliando o Iraque de acordo com seus pedidos.

A intervenção militar francesa não é uma novidade; pelo contrário, é baseado em uma longa tradição e profunda experiência. No entanto, a situação internacional e o atual contexto político francês juntos conferem ao intervencionismo francês uma nova visibilidade, particularmente nos Estados Unidos. Uma geração inteira de tomadores de decisão americanos foi socializada para esnobar os "macacos comedores de queijo que se rendem" após a recusa da França de intervir no Iraque. Agora eles estão descobrindo que a política externa francesa é compatível com a de Washington. A questão é até que ponto essa amizade franco-americana renovada será durável e se influenciará as parcerias privilegiadas da América na zona euro-atlântica.

O Dr. Jean-Baptiste Jeangène Vilmer é consultor de políticas em questões de segurança no Ministério das Relações Exteriores da França e professor adjunto na Escola de Relações Internacionais de Paris (PSIA, Sciences Po). Ele exerce a cátedra de estudos de guerra no College d'études mondiales (FMSH). As opiniões aqui expressas são suas e não refletem as do Ministério de Relações Exteriores da França.

O Dr. Olivier Schmitt é professor associado de ciência política no Centro de Estudos de Guerra da Universidade do Sul da Dinamarca. Ele é PhD pelo departamento de Estudos de Guerra do King's College London e se concentra em intervenções militares multinacionais, na transformação das políticas de defesa na Europa, e no movimento de extrema-direita francês.