segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O Chauchat na Iugoslávia

Homens do Exército Real Sérvio posando em Salônica, 1916-18.
Eles têm coberturas tradicionais sérvias com o FM Chauchat na típica posição de honra (o centro da imagem) com o carregador em meia-lua, calibre 8mm Lebel.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 9 de outubro de 2020.

Prelúdio

A epopéia do Chauchat na Iugoslávia começa quando o Exército Real Sérvio foi reequipado por seus aliados franceses de 1916 a 1918, após a Grande Retirada de 25 de novembro de 1915 a 18 de janeiro de 1916. Isso mudou a sua aparência tornando-os semelhantes aos aliados "poilu", geralmente com o única característica sendo a cobertura tipicamente sérvia (šajkača). Eles agora eram armados com fuzis Lebel e Berthier, granadas de fuzil Viven-Bessières (VB), e fuzis-metralhador Chauchat.

Até 18 de dezembro de 1916, o exército sérvio recebeu 1.962 FMs franceses de 8x50mmR "Šoša" M1915 na forma de ajuda aliada. Na Frente de Salônica, o Exército Sérvio tinha 989 unidades no 1º Exército e 957 Šoša no 2º Exército, um total de 1946 fuzis-metralhadores. Alguns exemplares foram recalibrados em 8mm Mauser, um deles preservados no Museu da Fortaleza de Belgrado - ao lado do Parque Kalemegdan.

Soldados sérvios com o capacete M15 Adrian, usando a águia real sérvia, demonstrando as novas granadas de fuzil VB francesas e o seu bocal (tromblon).

Os sérvios, montenegrinos, gregos, franceses e britânicos vão combater os austro-húngaros e seus aliados búlgaros e alemães na Frente de Salônica até o rompimento atingido na ofensiva final aliada em outubro e setembro de 1918, derrubando a Bulgária e o Império Turco Otomano.

As baixas da Sérvia foram 8% do total de mortes militares aliadas, e 58% do exército regular sérvio (420.000 homens) morreram durante o conflito. De acordo com as fontes sérvias, o número total de vítimas gira em torno de 1.000.000: 25% do tamanho da Sérvia antes da guerra e uma maioria absoluta (57%) de sua população masculina em geral. A maior média da guerra.


Derrotado na Macedônia e no Vittorio Veneto, o Exército Austro-Húngaro saiu da Primeira Guerra Mundial após o Armistício de Villa Giusti assinado com o Reino da Itália em 3 de novembro de 1918, uma semana depois o Império Alemão pediria o armistício. No final de desse ano, uma missão do Exército sérvio liderada por Milan Pribićević, Dušan Simović e Milisav Antonijević chegou a Zagreb para liderar a reorganização do Exército Sérvio e do Exército Nacional de Eslovenos, Croatas e Sérvios em um único novo Exército do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (em sérvio croata: Kraljevina Srba, Hrvata i Slovenaca/ Краљевина Срба, Хрвата и Словенаца; esloveno: Kraljevina Srbov, Hrvatov in Slovencev, KSCS). Isto iniciaria o processo da criação do Reino da Iugoslávia.

Soldados búlgaros posando com fuzis-metralhadores Chauchat capturados na Frente de Salônica, 1918.

Modelo do Museu da Fortaleza de Belgrado

Chauchat M1915/26 iugoslavo em 8mm.




A criação do Exército Real Iugoslavo

Exército Real Iugoslavo com modelos belgas em 7,92x57mm.

Em 1º de janeiro de 1919, um total de 134 ex-oficiais austro-húngaros de alta patente haviam sido aposentados ou dispensados de suas funções. Do final de 1918 até 10 de setembro de 1919, o novo exército esteve envolvido em um confronto militar violento com formações irregulares pró-austríacas na região da Caríntia, na fronteira norte do novo Exército Nacional de Eslovenos, Croatas e Sérvios em um único novo Exército do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (KSCS). A certa altura, as tropas do KSCS ocuparam brevemente Klagenfurt. Após um plebiscito em outubro de 1920, a fronteira com a Áustria foi fixada e as tensões diminuíram.

O nome oficial do Estado foi alterado para "Reino da Iugoslávia" pelo Rei Alexandre I em 3 de outubro de 1929, com o exército se tornando o Exército Real da Iugoslávia. O termo Iugoslávia significa "Terra dos Eslavos do Sul", mas a proeminência dos sérvios ainda era uma realidade.

Além dos combates ao longo da fronteira austríaca em 1919–20, este novo exército lutou algumas escaramuças nas fronteiras ao sul na década de 1920. As primeiras manobras de qualquer tamanho significativo desde a formação do exército em 1919 foram conduzidas entre as tropas de duas divisões durante 29 de setembro a 2 de outubro de 1927, embora o número de tropas engajadas não excedeu 10.000 e algumas reservas tiveram que ser convocadas para atingir esse número. Antes disso, apenas exercícios locais entre guarnições haviam sido realizados.

Em 1928, quatro novos regimentos de infantaria foram estabelecidos em resposta a um aumento italiano ao longo da fronteira. Eles eram vistos como o núcleo de uma nova divisão de infantaria em potencial. Nesse período, o rei-ditador também adquiriu grandes quantidades de armamento tchecoslovaco que supriram de forma marginal a necessidade de armamentos.

Um chetnik sérvio armado com um FM M37, a versão iugoslava do ZB vz. 26 tcheco, dos quais 1.500 foram entregues.

Em um relatório de janeiro de 1920 e 1921, o adido militar francês Ramon Eugène Delta, que defendia táticas ofensivas com o uso de armas automáticas, observou que as recém-formadas Forças Armadas do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos tinham 1.900 FM Chauchat à disposição, que sobraram do Exército Sérvio.

Em um esforço para usar os recursos existentes e economizar dinheiro no orçamento, o KSCS tomou uma decisão na época de atingir um compromisso. Durante as negociações em Liège sobre a compra de uma licença de fuzil, a delegação iugoslava-eslovena notou os fuzis-metralhadores deixados para trás após a retirada da Força Expedicionária Americana (American Expeditionary Force, AEF), cuja versão americana era calibrada na munição .30-06 (7,62x63mm M1906) no padrão C.S.R.G.A. 1918 Chauchat 30-06 Modelmas também os fuzis-metralhadores belgas adaptados, que acabaram de ser aperfeiçoados como o FM CSRG Mle 915/27 pela FN.

Chauchat com o carregador em meia-lua.


Os belgas adaptaram todos os FM M1915 recebidos da França como durante a guerra com uma bala doméstica 7.65x54mm M89, que trocou o modelo ogival pelo modelo spitzer (pontiagudo). Como naquela época havia na Iugoslávia grandes quantidades disponíveis de munição alemã 7,9x57mm M88 capturadas, decidiu-se que seria mais rápido e rentável adaptar os "Šoša" belgas para esse calibre. Seriam adquiridos da FN 4.000 FM Chauchat M1915 em 7,65mm, e as adaptações serão confiadas ao Instituto Técnico Militar de Kragujevac.

Em fevereiro de 1927, o Instituto entregou 1.700 exemplares adaptados às unidades sob o novo rótulo "7,9mm M.15/26". No final do mesmo ano, a adaptação dos próximos 2.000 estaria concluída e, no início de 1928, todos os 4.000 FM Šoša M1915/1926 estariam finalizados.

Assim, no arsenal do exército havia 4.000 FM 7,9mm Šoša M1915/1926, bem como 1.900 CSRG Chauchat M1915 originais de 8mm.

Chauchat iugoslavo M1915/26.

Chauchat iugoslavo M15/26.



Nota: Para os próprios alemães, o calibre militar foi designado como 7,9mm (e menos frequentemente os comerciais como 8mm). Por alguma razão, tchecoslovacos, poloneses e romenos adicionaram 0,02mm na década de 1920 e acabou ficando 7,92mm. Os franceses e os gregos referiram-se como 7,90mm e 7,92mm; turcos e sérvios como 7,9mm. Depois da Segunda Guerra Mundial, quase todos começaram a chamar de 7,92mm.

Caixas de munição marcando 7,9mm.

Prelúdio da invasão alemã de 1941

Soldados do Regimento de Ferro de Belgrado desfilando, 1940-41.
(Colorização De Memorabilia)

No início de 1933, houve uma ameaça de guerra com a Itália e a Hungria que preocupou muito o Estado-Maior. O adido militar britânico observou que o exército tinha grande autoconfiança, sua infantaria era forte e sua artilharia bem equipada, mas carecia de áreas significativas exigidas por uma força de combate moderna. As principais deficiências permaneceram nas metralhadoras e nas armas de infantaria, e não havia treinamento com armas combinadas.

O adido observou ainda que, junto com a dominação quase completa dos sérvios nas fileiras gerais, o Estado-Maior também era 90 por cento sérvio, e a "servianização" do exército havia continuado, com jovens croatas e eslovenos instruídos agora relutantes em entrar no exército. O adido viu o domínio sérvio do exército como uma possível fraqueza política da nação, mas também como uma fraqueza militar em tempo de guerra. A defesa do reino também contava com milícias étnicas armadas como forças de auto-defesa. Foi anunciado que manobras em nível de exército seriam realizadas em 1935, pela primeira vez desde a formação do exército em 1918.

Exército Real Iugoslavo.

Apesar dos esforços, o Exército Real Iugoslavo foi invadido por três adversários poderosos, a Alemanha Nazista, o Reino da Itália e o Reino da Hungria, sendo derrotado em uma campanha relâmpago de 6 a 18 de abril de 1941, quando o exército real ainda não havia sequer mobilizado propriamente.

Colaboração e resistência

Homens da Divisão Dinarska (Dinara), uma unidade permanente da milícia chetnik, anti-comunista e monarquista.

Close mostrando o Chauchat.

Combatentes chetnik armados com uma Lewis M.20 holandesa de 6,5mm e um FM Chauchat CSRG M1915/26 de 7,92x57mm, uma modificação iugoslava.
(Mihajlo/ Fórum 
Odkrywca)

A ocupação do país pelos alemães, italianos e húngaros gerou resistência inicial, com a formação de unidades colaboracionistas primeiro pelos italianos e depois pelos alemães; como o Corpo de Voluntários Sérvios (SDK) e a Guarda do Estado Sérvio (SDS).

Essas unidades não eram muito confiáveis e muitas vezes contrabandeavam armas para grupos de resistência (especialmente o Exército da Pátria Iugoslava), portanto, os alemães responderam dando a essas forças fantoches armas em calibres que eram muito raros na Sérvia na época: fuzis MAS 36 franceses, submetralhadoras MAS 38, FM Châtellerault 24/29, submetralhadoras Thompsons M1921 e M1928, metralhadoras Lewis holandesas.

Soldado do Exército Alemão (Heer) com um modelo belga capturado le.Maschinengewehr 126(b) em 7,65mm.

A Alemanha nazista apreendeu Chauchats da Polônia, Bélgica, França, Grécia e Iugoslávia; redesignando as armas por país de origem seguindo o sistema comum às beutewaffen capturadas por toda a Europa: os Chauchats franceses foram designados LeMG 156(f), iugoslavos e poloneses LeMG 147(j), gregos LeMG 156(g) e belgas LeMG 126(b). Estas novas armas foram distribuídas para unidades alemãs e aliadas - como Estados e grupos vassalos.


FM Chauchat, segundo à esquerda sentado.

Chetniks sérvios posando com a foto de Ante Pavelic.
Um fuzileiro-metralhador está ajoelhado com um Chauchat à esquerda.

Chetniks do Corpo Timok.


Partisan iugoslavo com um modelo de 8mm.

Chetniks em Valjevo, 1942.

Chetniks da unidade Costa Pecanac perto da cidade de Seinice, 1942.

Bibliografia recomendada:

Honour Bound:
The Chauchat Machine Rifle.
Gérard Demaison e Yves Buffetaut.

Vídeo recomendado:


Leitura recomendada:



Mausers FN e a luta por Israel, 23 de abril de 2020.

Fuzis de treinamento FAL do Brasil5 de janeiro de 2020.

A submetralhadora MAS-38, 5 de julho de 2020.

domingo, 25 de outubro de 2020

Tudo por alguns palmos da França


Pelo Tenente René Nicolas, 1915.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de outubro de 2020.

Um oficial francês testemunha o caos da batalha na região da Champanha em 1915.

Originalmente com o título "A História do Tenente II e III".

Poilus, soldados franceses, em uma trincheira em 1915.
(Colorizada por Léo Couvoisier)

20 de março.

Encontro-me cedendo ao encanto da nossa vida aqui. Na verdade, é o retorno à natureza e à simplicidade; é físico, quase animal. Os instintos primitivos da raça têm controle total: comer, beber, dormir, lutar - tudo menos amar...

27 de março.

Estou escrevendo meu diário em um grande abrigo subterrâneo, confortavelmente esticado em uma rede que meu antecessor engenhosamente armou com dois lençóis de barraca... Estamos na mesma trincheira que o inimigo - vizinhos de porta na verdade, e nem um pouco corteses. Nada além de uma barricada de sacos de terra nos separa dos boches [alemães]. Perto da barricada estão as sentinelas, atentas e silenciosas. Nenhum som é ouvido em nenhum dos lados, exceto o zunido de granadas que são continuamente lançadas pra lá e pra cá. Mas as sentinelas estão bem protegidas nas laterais da trincheira e desafiam as "tartarugas" alemãs...

Assim, as primeiras linhas alemãs e francesas estão em contato imediato. A razão é que o nosso lado não conseguiu apoderar-se de toda a trincheira, da qual o inimigo ainda ocupa a extremidade oriental. Mas essa situação não vai durar, eu acho, e vamos aumentar nossos ganhos.

A trincheira está limpa, exceto por corpos imperfeitamente enterrados aqui e ali. Não prestamos mais atenção neles; mas o que é realmente deplorável é que muitos cadáveres caem na lama; a lama endureceu e a trincheira tem menos de um metro e meio de profundidade. É impossível aprofundá-la, pois ao menor golpe de uma picareta surge um pedaço de roupa ou um pedaço de carne. Para circular, temos que nos curvar como corcundas. É doloroso e perigoso, então os homens não se movem muito, mas ficam nos abrigos...

Desenho de um poilu mostrando o túmulo de um soldado desconhecido no parapeito da trincheira, 1915.

28 de março.

Que noite agitada!…

A primeira parte da noite transcorreu sem novidades, exceto por uma chuva abominável de granadas que os boches continuavam jogando em nós...

Fui até a barricada e vi que a trincheira [alemã] estava de fato vazia, exceto pelos metralhadores que estavam de plantão ao lado de suas armas. Rapidamente dei ordens para derrubar a barricada e corremos para a trincheira boche. Os homens da minha seção, de acordo com minhas instruções, iniciaram um fogo furioso... Enquanto corríamos, atiramos várias granadas contra os metralhadores, que afundaram antes que pudessem apontar suas armas contra nós.

Num piscar de olhos, chegamos ao fim da trincheira... e por trás da barricada de homens mortos e terra, disparamos três tiros contra os alemães em retirada. Eles foram jogados em um estado de pânico. Muitos devem ter morrido, pois a luz do dia trouxe ao nosso olhar a visão daquela trincheira empilhada de mortos. A coisa toda não durou mais do que dois minutos. Fomos inundados com granadas, um contínuo zip, zip; um dos nossos homens foi morto, três ou quatro feridos. Tudo estava em um tumulto selvagem - foguetes de trincheira subindo, canhões disparando rápido... Arame farpado foi colocado no lugar e a trincheira revertida - minutos de excitação louca e atividade insana. Estávamos sem consciência do perigo, hipnotizados pelo trabalho a ser feito.

Soldados alemães posando em uma trincheira, 1915.

Esperávamos um contra-ataque... Esperamos. Houve falsos alarmes. Um homem que está um pouco nervoso começa a atirar rápido, o vizinho segue o exemplo dele, depois o grupo de combate, depois a seção [pelotão], depois toda a companhia entra num alvoroço. As metralhadoras começam a matraquear, as tropas de segunda linha são alertadas, a artilharia se apresenta com alguns obuses e - os boches do outro lado, confusos com a confusão, mandam... foguetes de trincheira, cujos raios iluminam a grama que cresce verde na primavera, o emaranhado de arame, e vários pobres cadáveres deitados com as mãos estendidas na direção da trincheira oposta, como se apontando o caminho do dever para o que está atrás. O contra-ataque não veio, mas obuses sobre obuses caíram sobre nós... Dei meu cantil de vinho aos meus prisioneiros... Não é nada - 50 metros de trincheira; e, no entanto, são alguns palmos da França tomados de volta.

Quinta-feira Santa.

A coisa que mais me provou foi essa existência de toupeira. Eu que estou sempre desejando uma grande ação e uma luta aberta e intensa com um inimigo que está diante de seus olhos.

Os boches têm bombardeado com bastante violência. É de se esperar, uma vez que é Quinta-feira Santa. Mas, apesar de tudo, houve algo religioso na calma dos elementos nestes últimos dias. A natureza está em suas devoções. Esta noite está excelente. Os obuses explodem em grande número, e a igrejinha de Perthes cambaleia como se estivesse prestes a cair... Cotovias cantam a gargalhadas, sublime hino de vida e alegria. À distância estão os mortos e o cadáver mutilado assustador da vila de Perthes...

Poilus posando com a máscara de gás P2, o primeiro modelo francês, em 1915.

4 de maio.

Para nos protegermos das bombas de gás, recebemos máscaras e óculos horríveis e saídos de um pesadelo colocados em uma espécie de papada de porco ou focinho feito de borracha e contendo uma solução de amônia. Elas fazem se parecer com um animal selvagem, e assim que eu peguei a minha coloquei para o benefício dos meus [soldados]. Eles quase caíram de tanta gargalhada.

Mas a vida em geral é calma, calma até demais. Estou lendo Anna Karenina, que veio pelo correio ontem, e fumando cachimbos intermináveis.

Extrato do diário de campanha do Tenente René Nicolas, que narrou os cinco meses de serviço na Frente da Champanha em 1915. Primeiro publicado em francês em 14 de dezembro de 1915, passagens de livro foram sendo publicadas em inglês como artigos na revista Atlantic em 1917 como "Diário de um oficial francês".

Bibliografia recomendada:

French Poilu 1914-18.
Ian Sumner.

Leitura recomendada:

Rússia e União Soviética: Solzhenitsyn sabia a diferença


Por Ignat Solzhenitsyn, Wall Street Journal, 23 de outubro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de outubro de 2020.

"Não posso me aliar aos comunistas", disse meu pai, mas também não "aos inimigos do nosso país".

“A dificuldade insana da situação é que não posso me aliar aos comunistas, os carniceiros do nosso país - mas também não posso me aliar aos inimigos do nosso país”, escreveu meu pai, Aleksandr Solzhenitsyn, em 1982. “E todo esse tempo eu não tenho um ponto para me apoiar. O mundo é grande, mas não há para onde ir.”

Aleksandr Solzhenitsyn.

O grande autor, por meio do seu livro "O Arquipélago Gulag" (1973) e discursos inflamados no Ocidente, ganhou sua reputação como o inimigo mais implacável do comunismo. No entanto, como fica evidente na citação acima de suas memórias (agora aparecendo pela primeira vez em inglês), durante a Guerra Fria ele já estava discernindo um perigo novo e imprevisto: a desconfiança russo-ocidental poderia perdurar muito depois da queda do comunismo.

Pule para 2020. As queixas entre a Rússia e o Ocidente foram amplamente catalogadas: programas de armas, expansão da OTAN, Yukos, Kosovo, revoluções coloridas, Ucrânia, Criméia, envenenamentos, eleições.

Então, um relacionamento poderia realmente ser reformulado se essas ofensas imediatas fossem mitigadas? Os dois principais partidos políticos dos EUA nunca puderam se unir em torno de um anticomunismo de princípios durante a Guerra Fria, mas agora cantam o mesmo hinário sobre a ameaça de um nacionalismo russo cada vez maior. Esta circunstância peculiar, no contexto de uma “Paz Fria” que obstinadamente prevaleceu por um quarto de século, expõe uma fenda mais profunda e exige um exame das raízes históricas.

Solzhenitsyn Alexander Isaevich, oficial do Exército Vermelho Soviético, Frente de Briansk em 1943.

No final da década de 1990, quando li pela primeira vez essas memórias dos anos de meu pai no Ocidente, passei por passagens ruminando sobre o conflito Leste-Oeste, assumindo que essas questões eram discutíveis, relegadas ao monte de cinzas da história pela dramática abertura da Cortina de Ferro e queda do Muro de Berlim e a assinatura do tratado de controle de armas Start I.

Mas nos últimos três anos, preparando a primeira edição em inglês desses volumes, passei a ver como Solzhenitsyn foi presciente ao apreender um “eixo de acusações contra a Rússia”. Os emigrados ressentidos da década de 1970 estavam estimulando o Ocidente a espiar seu verdadeiro inimigo não no comunismo, mas em uma Rússia irredimível. A Rússia pré-revolucionária foi criticada pelos progressistas ocidentais da década de 1920 por se opor ao bolchevismo, mas agora que a opinião mudou, ela estava condenada por ter sido escravizada por ele. "Como isso foi acontecer?" Solzhenitsyn pergunta.

Ele argumenta em um capítulo intitulado "A dor russa" que as "ações militares excessivas e sem sentido da Rússia na Europa" nos séculos 18 e 19 colocaram o Ocidente em guarda, enquanto seu aparelho de governo ossificado não conseguiu absorver "lições de abertura" cívicas ocidentais, ou pelo menos justificar suas próprias ações. Enquanto isso, fanáticos revolucionários exilados na Europa traçavam um quadro grosseiramente distorcido da Rússia como uma prisão autoritária e retrógrada de nações - e mesmo seus exageros mais descarados se firmaram na ausência de uma contra-narrativa articulada. No auge do século 20, o agressivo terrorismo revolucionário russo, estimulado por uma intelectualidade bajuladora, foi enfrentado por uma direita nacionalista, que recorreu ao abuso em vez de defender o caminho moderado de evolução social tentado pelo primeiro-ministro reformista Pyotr Stolypin de 1906 até seu assassinato em 1911.

Manifestantes correndo na Rua Nevsky Prospekt logo após ser dispersada por tropas do Governo Provisório, que abriram fogo com metralhadoras, em Petrogrado (São Petersburgo) às 14h, 4 de julho de 1917.

Mais tarde - décadas depois que o "rolo compressor bolchevique" de Lênin esmagou a todos, especialmente os patriotas russos que buscavam defender os valores tradicionais dentro de uma sociedade pluralista - a paródia do patriotismo russo que surgiu nos anos 1960 e 1970 foi um nacionalismo bolchevique pagão que escreveu 'deus' sem maiúscula inicial e 'Governo' com maiúscula”, como diz Solzhenitsyn. O "patriotismo curador, salutar e moderado" de meu pai - livre de ambições imperiais e baseado na "preservação do povo" - nunca teve a chance de se enraizar na Rússia. Sua visão foi odiosamente fundida com aquele “nacionalismo bolchevique”, outra difamação da Rússia por emigrados vingativos aceita prontamente no Ocidente.

Após a queda do comunismo, o apelo de Solzhenitsyn ao arrependimento, por um ajuste de contas histórico no modelo da Vergangenheitsbewältigung* pós-nazista da Alemanha, foi ignorado. E assim, o apoio oficial do governo aos memoriais da repressão comunista e à incorporação do "Arquipélago Gulag" nos currículos do ensino médio paradoxalmente coexiste em alguns setores hoje com uma tendência nociva de que Joseph Stálin - o principal açougueiro dos russos - era um patriota russo, enquanto Solzhenitsyn - o principal inimigo dos opressores da Rússia - era um traidor.

*Nota do Tradutor: Significa "reconciliação com o passado", "luta para superar os [negativos do] passado".

Putin, a cara moderna da Rússia.

Não é de se admirar, então, que o Ocidente tenha confundido qualquer distinção significativa entre a bota militar totalitária da URSS e o autoritarismo brando de uma Rússia comparativamente livre, e confundiu "russo" e "soviético", interpretando mal três séculos de história russa e a essência antinacional do comunismo. “O 'russo ’está para o 'soviético' como o 'homem' está para a 'doença'”, escreveu Solzhenitsyn. Uma consequência não intencional: o consenso russo sem precedentes sobre a sociedade liberal e o governo não-liberal, que pouco concordam, exceto que o Ocidente não gostará da Rússia, não importa o que ela faça.

Se o objetivo dos formuladores de políticas ocidentais continuar sendo trazer a Rússia para a comunidade de nações livres, eles podem atender ao apelo de Soljenitsyn e se envolver com a Rússia de forma equitativa, de acordo com as virtudes ou falhas da política atual, em vez de julgá-la reflexivamente por uma narrativa histórica fictícia e maléfica que impede qualquer caminho a seguir.

Ignat Solzhenitsyn é um maestro, pianista e editor das memórias de Aleksandr Solzhenitsyn, incluindo "Between Two Millstones, Book 2: Exile in America, 1978-1994" (Entre Dois Mós, Livro 2: Exílio nos Estados Unidos, 1987-1994), a ser publicado em novembro de 2020.

Vídeo recomendado:


Bibliografia recomendada:


Leitura recomendada:

sábado, 24 de outubro de 2020

PERFIL: General Hans Kundt, conselheiro militar alemão na Bolívia

O Tenente-General Hans Kundt.
Ele foi o Comandante-em-Chefe e Ministro da Guerra das forças bolivianas na Guerra do Chaco contra o Paraguai de 1932 a 1935.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 24 de outubro de 2020.

O Tenente-General Hans Kundt foi a principal figura militar da Bolívia durante as duas décadas anteriores à Guerra do ChacoInfelizmente para os bolivianos, ele não foi capaz de utilizar corretamente a superioridade da Bolívia em armamentos, tanques e aviação, preferindo táticas fúteis de ataques frontais contra posições bem defendidas. Após o desastre no Cerco de Campo Vía (1933), ele foi substituído pelo General Enrique Peñaranda.

Carreira inicial no Exército Imperial Alemão

Hans Anton Wilhelm Friedrich Kundt nasceu em 28 de fevereiro de 1869, em Neustrelitz, no Grão-Ducado de Mecklenburg-Strelitz, na então Confederação Alemã do Norte. Vindo de uma família de oficiais militares, Hans Kundt ingressou no 4º Regimento de Infantaria da Turíngia Nº 72 (4. Thüringische Infanterie-Regiment Nr. 72) do Exército Prussiano em 7 de março de 1888. Lá, ele foi nomeado Portepeefähnrich (cadete aspirante a oficial) em 15 de outubro de 1888 e promovido a segundo-tenente em 21 de setembro de 1889. De 1º de outubro de 1893 a 15 de setembro de 1896, ele serviu como ajudante no comando distrital de Naumburg (Saale).

Kundt então estudou na Academia de Guerra (Kriegsakademie) por três anos e, entretanto, foi promovido a Primeiro-Tenente (Premierleutnant) em 20 de maio de 1897, sendo transferido para o Regimento de Infantaria "Vogel von Falckenstein" (7º Westfaliano) Nº 56 - Infanterie-Regiment "Vogel von Falckenstein“ (7. Westfälisches) Nr. 56Depois de ter concluído com sucesso a academia militar, foi designado para o Großen Generalstab (oficialmente Grão-Estado-Maior, o Estado-Maior Geral do Exercito Imperial) por um ano. Esse comando foi então prorrogado por mais um ano, até que finalmente agregou em 22 de março de 1902 com sua promoção a capitão do Estado-Maior do Exército (Hauptmann dem Generalstab der Armee) e foi transferido para servir ao Estado-Maior do XVII Corpo de Exército (Generalstab des XVII. Armee-Korps), com sede em Dantzig.

Seu irmão Jasper Kundt (1872-1940) foi um major-general (Generalmajor) do exército alemão; sua irmã Marie Kundt ocupou o cargo de diretora da Academia de Arte Fotográfica de Lette.

Missão Militar Alemã na Bolívia

Guarda Presidencial boliviana durante uma cerimônia na capital La Paz.
Eles estão equipados com os capacetes Pickelhauben, de tradição prussiana, em estilo cuirassier imperial alemão. A Guarda Presidencial era recrutada no "Regimento Colorados 1º de Infanteria".


Hans Kundt foi enviado à Bolívia em 1908, durante o primeiro governo do presidente Ismael Montes Gamboa, como chefe da missão militar de treinamento alemã; com o posto de major. O efetivo da missão alemã era de 5 oficiais e 13 gruaduados.

Kundt teve um excelente relacionamento com o governo e o Exército bolivianos, adquirindo reputação de grande administrador e instrutor de tropas. Em 1911, durante o governo do presidente Eliodoro Villazón Montaño, Kundt iniciou a reorganização do Exército boliviano segundo o modelo prussiano.

Primeira Guerra Mundial

Retrato com dedicatória do então Oberstleutnant Hans Kundt em 1915.

Em 1914, ele retornou à Alemanha e  tornou-se tenente-coronel (Oberstleutnant) em 19 de agosto de 1914 no comando do Regimento de Infantaria da Reserva Nº 254 (Reserve-Infanterie-Regiments Nr. 254) da Landwehr na Frente Oriental; combatendo na Polônia e na Galícia contra o Exército Imperial Russo. Ele foi chefe do Estado-Maior do X Exército do Corpo de Reserva entre 30 de junho e 29 de novembro de 1915.

O Coronel Kundt também comandou o 1º Regimento de Granadeiros da Guarda "Kaiser Alexander" (Kaiser Alexander Garde-Grenadier-Regiment Nr. 1) de 3 de janeiro de 1917 a 1º de março de 1918. Promovido a coronel (Oberst) em 2 de abril do mesmo ano, em 3 de janeiro de 1918 assume o comando da 42ª Brigada de Infantaria (42. Infanterie-Brigade)., mantendo-o até 8 de setembro de 1918.

Após a assinatura do armistício, reassumiu o comando do 1º Regimento de Granadeiros da Guarda "Kaiser Alexander" de 20 de janeiro de 1919 até sua dissolução. Ele então passou, em 1º de janeiro de 1920, ao comando do distrito militar de Glogau, na Baixa Silésia, que logo se tornaria Glogóvia, território da Polônia recém-independente.

Em 30 abril do mesmo ano foi realocado para a reserva com o posto de major-general (Generalmajor).

De volta à Bolívia

Em 1921, ele retornou à Bolívia como civil, mas foi imediatamente nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército com o posto de Tenente General. Nesta posição, ele deu continuidade à reorganização iniciada em 1911 e se tornou muito popular porque - ao contrário da maior parte do corpo de oficiais bolivianos - cuidava do bem-estar de cada soldado. Em 1923 foi nomeado Ministro da Guerra, iniciando um programa de modernização dos materiais fornecidos ao exército. Esse programa foi executado durante a década de 1920 e estudou-se o plano operacional para a ocupação definitiva do Chaco, área em litígio com o Paraguai.

Ernst Röhm com o uniforme boliviano.

Em 1928, ele alcançou Ernst Röhm, futuro criador do Batalhão de Assalto (Sturmabteilung, SA) do partido nazista, e que então trabalhava como instrutor militar na patente de tenente-coronel na Bolívia.

Hans e sua esposa Gertrude, 1925.

Em meados da década de 1930, Kundt tentou influenciar os oficiais do exército a favorecerem a reeleição do presidente Hernando Siles Reyes e, portanto, quando este foi deposto em um golpe-de-estado, Kundt foi forçado a se exilar: mudou-se então para o Chile e tornou-se instrutor do exército local, também prussiano, estudando o teatro operacional da Patagônia em caso de conflito com a Argentina.

Guerra do Chaco

Em 15 de junho de 1932, tropas bolivianas atacaram o estratégico posto avançado paraguaio de Carlo Antonio Lopez, localizado próximo a uma das principais fontes de água na região do Chaco: um soldado paraguaio foi morto e cinco foram feitos prisioneiros.

A reação paraguaia foi extremamente rápida e levou à reocupação da posição perdida, mas foi o início de uma guerra aberta entre os dois países. No final do ano, a liderança boliviana convocou com urgência Kundt, que chegou do Chile via Lima de trem, sendo acolhido por uma multidão jubilosa; em 5 de dezembro foi nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército no lugar do General Filiberto Osorio.

General Kundt, vestindo uniforme boliviano e rodeado de praças, no seu posto de comando no Chaco, 14 de setembro de 1933.

No entanto, apesar da superioridade numérica e da disponibilidade de armamentos modernos, o exército boliviano não conseguiu prevalecer, sendo incapaz de usar sua superioridade a seu favor devido a táticas inadequadas. O uso de ataques frontais contra posições bem defendidas (típicas da Primeira Guerra Mundial), a falta de coordenação entre exército e força aérea, as graves deficiências logísticas e o deficiente serviço de reconhecimento levaram os bolivianos a sofrer inúmeras derrotas, com perdas graves de homens e meios.

A estratégia boliviana baseava-se na indubitável superioridade de recursos econômicos e populacionais (3 para 1) que possuía sobre o Paraguai. Para o estado-maior boliviano, a ocupação do Chaco e o acesso ao rio Paraguai eram mais um problema diplomático do que militar.

"O Tenente-Coronel Ángel Rodríguez acreditava que só havia água suficiente para enviar 5.000 homens, e que apenas unidades do tamanho de uma companhia poderiam manobrar pelos arbustos, enquanto Kundt permanecia firmemente convencido de que 3.000 homens seriam suficientes para tomar Assunção."

- James Dunkerley, Orígenes del poder militar: Bolivia 1879-1935, pg. 207, 1987.

Soldados bolivianos se movendo pelo terreno inclemente do Chaco.

Não se levou em conta a história daquele pequeno país localizado ao sul e a importância que dava à posse do Chaco Boreal. Em 1928, o presidente Daniel Salamanca, para quem o Paraguai era "a mais miserável das repúblicas da América do Sul", disse:

"A Bolívia tem uma história de desastres internacionais que devemos contrapesar com uma guerra vitoriosa [...]. Assim como os homens que pecaram devem ser submetidos à prova de fogo para salvar suas almas [...] países como o nosso, que cometeram erros de política interna e externa, devemos e precisamos nos submeter à prova de fogo, que não pode ser qualquer outra coisa que não o conflito com o Paraguai [...] o único país que podemos atacar com garantias de vitória."

Jorge Antezana Villagrán, La Guerra del Chaco: análisis y crítica sobre la conducción militar, pg. 12-13, 1982.

Comando-em-Chefe das forças bolivianas

Kundt à cavalo durante um exercício na Bolívia.

Devido ao fracasso das operações militares bolivianas nos primeiros três meses de combate, e da popularidade que tinha na Bolívia pela tarefa de estruturação do Exército que havia realizado, o presidente Daniel Salamanca ofereceu-lhe o cargo de Comandante-em-Chefe. Salamanca também achava que com essa medida poderia controlar os rebeldes oficiais do alto comando boliviano e ter um "bode expiatório" no suposto caso de que as coisas não corressem bem. Kundt tinha então 63 anos.

"O Exército Boliviano era obra de Hans Kundt, era o Exército que desfilava em formações perfeitas nos dias de lembrança cívica, era o Exército que realizou manobras no Altiplano, causando inquietude nos governos do Chile e do Peru, e era também o Exército que nunca foi preparado para uma campanha em clima tropical e terreno arborizado."

- Querejazu Calvo, Historia de la Guerra del Chaco, pg. 55, 1990.

Limitado por sua concepção estratégica de ocupar o território do Chaco até chegar ao rio Paraguai e acreditando que poderia levar adiante uma guerra "econômica" sem mobilizar todos os recursos militares que lhe teriam dado uma superioridade avassaladora sobre o Paraguai, Kundt tentou desalojar o Exército Paraguaio de todos os pontos intermediários a esse objetivo estratégico por meio de ataques frontais.

As características do teatro de operações do Chaco, o custo em homens que reduziam suas forças e a ação da camarilha de oficiais bolivianos que sabotavam suas ações de diferentes maneiras, determinaram que depois de 9 meses de ataques Kundt não conseguira destruir o inimigo conforme seu objetivo inicial.

Kundt e oficiais bolivianos,
estes ainda com o uniforme de influência francesa.


Depois das pesadas derrotas nas batalhas de Nanawa e Alihuata, onde Kundt ordenou sangrentos ataques frontais de infantaria a posições fortificadas, o prussiano liderou os bolivianos no desastre da Batalha de Campo Via.

Ocorrida entre 3 e 11 de setembro, o Exército Boliviano lastimou a perda de mais de 9.000 soldados (2.600 mortos e 7.500 feitos prisioneiros), 8.000 fuzis, 536 metralhadoras, 25 morteiros e 20 peças de artilharia, o presidente Daniel Salamanca Urey o destituiu do comando e o substituiu pelo General Enrique Peñaranda del Castillo.

Charge paraguaia representando Hans Kundt e o presidente Salamanca sendo repelidos pelo General Estigarribia, à frente do presidente Eusebio Ayala.
A legenda diz: 

"O Ajudante de Kundt: Um momento, Excelência; o prudente general previu esta emergência..."


Em 16 de novembro de 1934, ocorreu a rendição das 1ª e 2ª Divisões de Reserva bolivianas em El Carmen. A consequência imediata foi a retirada de 18.000 homens do exército boliviano do forte Ballivián, localizado ao sul, em direção a Villamontes.

Em 27 de novembro, o presidente Salamanca tentou substituir Peñaranda pelo General Lanza, mas Peñaranda, apoiado pelo Coronel Germán Bush (ex-comandante-em-chefe do Exército Boliviano), cercou a vila onde Salamanca estava localizado e o obrigou a reconfirmá-lo no posto.

Em 30 de novembro de 1934, após a derrota de El Carmen, Salamanca demitiu definitivamente Peñaranda e mais uma vez deu o comando supremo do exército a Kundt; este procedeu à remoção do General Peñaranda del Castillo, e então tentou revitalizar as tropas agora perto do colapso total.

O exército paraguaio surpreendentemente se infiltrou em uma divisão entre duas divisões bolivianas, viajando 70km pelo deserto com o objetivo de capturar os poços do forte Yrendagüé localizado na retaguarda boliviana e deixar três divisões inimigas sem água, no meio do deserto.

Tanque Vickers Mark E. de 6 toneladas boliviano capturado pelos paraguaios. Blindados foram adquiridos por insistência de Kundt mas, apesar de aquisições caras, foram utilizados mal e provaram-se inúteis no terreno do Chaco.

Após a derrota de Yrendagué (5 a 8 de dezembro de 1934), as tropas bolivianas abandonaram definitivamente o Chaco e com a deposição do presidente Salamanca, substituído pelo vice-presidente José Luis Tejada Sorzano, Hans Kundt foi novamente demitido do comando e praticamente colocado em prisão domiciliar em sua casa. Em abril de 1935 o exército paraguaio entrou em território boliviano e, no mês de junho seguinte, foi assinado o tratado de paz que atribuía definitivamente a maior parte do território do Chaco ao Paraguai.

Depois de deixar a Bolívia permanentemente no primeiro trimestre de 1936, Kundt se estabeleceu por um curto período na Alemanha e depois mudou-se para Minusio, na Suíça. Ele morreu em Lugano, em 30 de agosto de 1939; apenas dois dias antes da invasão nazista à Polônia.

Publicações

- Prescripciones para el tiro con cartuchos de guerra, para los cuerpos armados con fusil y carabina, que regirán desde la fecha, Intendencia de Guerra, La Paz, 1923.

- Campaña del Chaco, el general Hans Kundt, comandante en jefe del Ejército en Bolivia, com Raúl Tovar Villa, Editorial Don Bosco, La Paz, 1961.

Avaliação como comandante

Quadro do General Hans Kundt.

Embora demonstrasse excelentes qualidades como administrador e instrutor e se preocupasse com o bem-estar das tropas sob seu comando, ele não se mostrou um bom comandante no campo de batalha. Durante a Primeira Guerra Mundial, Kundt demonstrou uma compreensão medíocre sobre táticas, preferindo ataques frontais na maioria das situações. Apesar do seu conhecimento dos problemas de estado-maior, ele não era um bom estrategista. Kundt também mostrou pouco tato diplomático, intrometendo-se na política interna boliviana e tendo de se exilar no Chile após apostar "no cavalo errado".

Na Guerra do Chaco, ele permaneceu ligado às táticas de massa da Primeira Guerra Mundial, preferindo os ataques frontais sem sentido e sangrentos contra posições inimigas bem protegidas em oposição à guerra de movimento, e em vez de penetrar rapidamente no Chaco com as tropas divididas em colunas móveis, optou por uma ocupação ampla, mas dispersa, do território conquistado.

Kundt também não foi capaz de reagir com flexibilidade às manobras do Exército Paraguaio; este cercou unidade por unidade do exército boliviano e os esmagou.

Embora tenha traçado planos operacionais para a ocupação do Chaco desde os anos 1920, Kundt nunca visitou ou conheceu o território disputado; além disso, ele era micro-gerenciador e sempre relutou em depender de seus subordinados bolivianos, preferindo supervisionar diretamente todas as operações militares em andamento, concentrando o poder de decisão em torno de si.

General Hans Kundt sentado em meio a oficiais bolivianos.

Kundt também era arrogante e, segundo o plano inicial, a guerra deveria se transformar em um avanço triunfal e incontestável das tropas bolivianas em toda a região, por serem superiores em número e meios ao Exército Paraguaio.

Este, treinado e aconselhado por uma missão francesa, liderado pelo brilhante General José Félix Estigarribia, soube utilizar o terreno para manobrar contra o adversário (maior e mais poderoso), além de fornecer uma cadeia logística mais eficiente. Kundt, em contrapartida, teve que recusar reforços várias vezes por não poder alimentá-los, e a vasta maioria das mortes por desidratação durante a guerra foram de soldados bolivianos.

Uma vez iniciada a guerra, a Bolívia não realizou uma mobilização total, pois Kundt considerou que bastava realizar uma guerra barateira e que não alteraria o cotidiano da população. Por essas razões, nenhuma tentativa foi feita para melhorar o abastecimento até a distante frente do Chaco, construindo uma linha ferroviária para Muñoz e a ponte essencial sobre o rio Pilcomayo. As tropas foram transportadas por caminhão e trem até Villazón, de lá por caminhão até Tarija e daí a pé até Villamontes, principal base do Chaco. De lá, os soldados deveriam marchar até 400km em meio à poeira, lama e calor sufocante do Chaco Boreal; boa parte dos soldados bolivianos eram índios do altiplano andino, com um clima totalmente diferente.

O meio de transporte básico era o caminhão, sempre em falta. Para cobrir as seis etapas do trecho Villazón-Muñoz foram necessários 480 caminhões. Como eram concentrados em unidades de abastecimento e principalmente de água, os soldados tiveram que se mobilizar principalmente a pé durante toda a guerra. Os veículos foram limitados por sua vez pelas estradas ruins, todas de terra e as quais as chuvas tornavam intransitáveis.

A ferrovia de 146km do rio Paraguai ao coração do Chaco foi vital para o Exército Paraguaio, especialmente durante a batalha do Boquerón.

Ao final da guerra, Kundt mudou de opinião, e os bolivianos de jogos de guerra deixaram de ser "os melhores soldados do mundo depois dos alemães" para serem claramente insuficientes para uma guerra real. Kundt também insistiu na compra de blindados Vickers e tankettes, mesmo contra a opinião da comissão técnica boliviana que avisou corretamente que seriam inúteis no Chaco.

O alemão era conhecido pela preocupação com o bem-estar de seus soldados, característica rara na tradição militar boliviana, mas desprezava os oficiais e generais bolivianos. O General Kundt nunca teve, nem antes e nem durante a guerra, o apoio incondicional dos oficiais sob seu comando. Eles viam na sua presença a prova patente de sua própria incapacidade e Kundt, a quem lhe sobravam exemplos, não perdia a oportunidade de ressaltá-la. Por isso, com seis meses comandando o Exército Boliviano, ele já pensava em renunciar ao cargo.

Robert Brockmann, autor boliviano que escreveu o livro El general y sus presidentes – Hans Kundt. Ernst Röhm y siete presidentes de Bolivia, 1911-1939 (dezembro de 2007), assim resumiu o general prussiano:

"Em grande medida, Hans Kundt foi o bode expiatório dos erros, ineficácia e desobediência de seus subordinados bolivianos. Kundt foi traído por seus subordinados, especialmente seu mais próximo, David Toro. Isso, porém, não o isenta de seus próprios grandes erros, como ter enviado onda após onda de soldados bolivianos à morte em ataques frontais contra a fortaleza de Nanawa, ou não ter reconhecido a magnitude da ofensiva paraguaia em outubro-dezembro de 1933, que levou ao desastre de Alihuatá-Campo Vía."

Bibliografia recomendada:

The Chaco War 1932-1935:
Fighting in Green Hell,
Antonio Luis Sapienza e José Luis Martínez Peláez.

The Chaco War 1932-35:
South America's greatest modern conflict,
Alejando de Quesada com Phillip Jowett e Ramiro Bujeiro.

El general e sus presidentes,
Robert Brockmann.

Leitura recomendada: