domingo, 25 de agosto de 2019

O Elemento Humano: Quando engenhocas se tornam estratégia

Pelo General H. R. McMAster, em 2009.
Tradução Filipe do A. Monteiro, 18 de agosto de 2019.

Tenente-General Herbert Raymond McMaster.
As guerras no Afeganistão e no Iraque, e os debates políticos sobre a natureza e o alcance do envolvimento dos EUA nesses países, ressuscitaram as "lições" do Vietnã mais uma vez. Longe de ter chutado a "síndrome do Vietnã", como o presidente George H. W. Bush colocou no exuberante rescaldo da Operação Tempestade no Deserto, agora parece possível que a memória da Guerra do Vietnã seja confundida para sempre na imaginação do público com os conflitos no Afeganistão e Iraque, produzindo algo como uma síndrome do Vietnã com esteroides.
Um pouco disso é compreensível. No Afeganistão e Iraque, os Estados Unidos estão engajados em conflitos do tipo que, após a dolorosa experiência da Guerra do Vietnã, muitos acreditavam que nossa nação nunca mais lutaria. À medida que o debate sobre política e estratégia americana no Iraque e no Afeganistão se intensificava no ano passado, vozes de todos os lados invocaram o Vietnã para gerar apoio para seus argumentos. Alguns sugeriram que, no nível da grande estratégia, os conflitos no Afeganistão e no Iraque eram campanhas relacionadas na guerra contra o terrorismo mais ampla, assim como o Vietnã era um dos capítulos de uma Guerra Fria mais ampla; outros, argumentando em termos ideológicos, compararam a luta global de hoje contra adeptos do Jihadismo Salafista à luta de ontem contra o Comunismo mundial. Em um nível ainda mais alto de abstração, o Afeganistão e o Iraque parecem análogos à experiência americana no Vietnã simplesmente porque apresentam problemas complexos com uma multiplicidade de dimensões políticas, militares, econômicas e culturais.

Analogias adicionais do Vietnã vão muito longe, do contexto e caráter das guerras no Iraque e Afeganistão até as operações e táticas empregadas para combatê-las. As guerras indiretas do Irã contra Israel, o governo libanês, e os EUA, travadas por meio do apoio de Teerã ao Hamas, Hezbollah, milícias afegãs e grupos xiitas no Iraque, acrescentam uma dimensão aos conflitos no Afeganistão e no Iraque que lembram o apoio chinês e russo ao seu agente no Vietnã. Fronteiras afegãs e iraquianas porosas, combinadas com santuários em países vizinhos, proporcionam às organizações insurgentes e terroristas margem de manobra e abrigos para organizar, planejar e treinar operações. Como os insurgentes comunistas vietnamitas, talibãs e grupos armados iraquianos intimidam a população, promovem campanhas de propaganda eficazes e empregam táticas terroristas para minar os esforços locais e americanos para estabelecer segurança, construir instituições governamentais e concluir projetos de reconstrução.

Estratégia Americana no Vietnã: Uma
análise crítica. Livro onde o Coronel 
Summers argumentou contra o método 
de contra-insurgência
Mas é no âmbito operacional que as analogias do Vietnã são verdadeiramente trazidas à vida. Semelhante aos argumentos sobre as lições do Vietnã, os debates sobre o efeito do "surge"* no Iraque e a estratégia que o precedeu concentraram-se nas deficiências na abordagem conceitual dos EUA à Guerra do Iraque. Assim como analistas como o Coronel Harry Summers argumentaram que uma negligência na arte operacional levou a uma separação entre meios táticos e fins estratégicos no Vietnã - o resultado, em sua narrativa, de enfocar demais o Exército na contra-insurgência do que em suas forças tradicionais de combate - hoje, alguns oficiais militares e analistas argumentam que o Exército ficou hipnotizado com as técnicas e procedimentos de contra-insurgência, dos quais eles pouco dão crédito aos sucessos recentes no Iraque. E assim como o lado oposto do debate do Vietnã argumentou que uma força americana apegada à ortodoxia convencional era inadequada e não conseguiu se adaptar aos desafios de combater uma insurgência no complexo ambiente geográfico e cultural do Sudeste Asiático, estudiosos como Conrad Crane argumentaram que as forças armadas americanas estavam mal preparadas para as operações de contra-insurgência no Afeganistão e no Iraque, principalmente porque consideravam o Vietnã uma aberração e, depois, como um erro a ser evitado.
*Nota do Tradutor: O “Surge” (algo como uma grande onda para frente) foi uma reorganização estratégica americana no Iraque em 2007, quando enviaram mais 20 mil homens para o país e redirecionaram a estratégia e os procedimentos para contra-insurgência.
Esse debate entre o que um ensaio recente da Atlantic Monthly chamou de "Conservadores" e "Cruzados" gerou muito gritaria e barulho, bem como sua parcela de rancor. Mas há um terceiro lado no debate, contra o qual ambos os campos se alinharam em um raro exemplo de concordância. Assim como muitos historiadores o implicam o Secretário de Defesa Robert McNamara e outros arquitetos da intervenção americana no Vietnã por desprezarem as dimensões humana e psicológica da guerra e por se recusarem dar o  respeito devido à complexa estratégia comunista vietnamita de Dau Tranh - uma estratégia que empregou um "mosaico" de mudanças nas ações políticas e militares - uma crítica da política militar americana no Iraque emergiu, lançando uma acusação semelhante. Ela critica aqueles que inicialmente planejaram a política militar no Iraque por ter revivido a concepção da era do Vietnã de que os Estados Unidos descobriram o segredo de usar violência com mínima incerteza e um alto grau de eficiência: a mera demonstração de proezas militares norte-americanas, argumentaram os formuladores de políticas no início de ambos os conflitos, seria suficiente para alterar o comportamento do inimigo. Essa suposição falha teve efeitos similares em cada um dos casos; os Estados Unidos subestimaram dramaticamente a complexidade da guerra e o nível de esforço e tempo necessários para alcançar seus objetivos de guerra.
Assim, uma resposta possível para as perguntas que os historiadores continuam a fazer sobre o Vietnã e agora perguntam sobre o Iraque: Como e por que os Estados Unidos entraram em guerra nesses lugares e o que melhor explica o curso subseqüente dessas guerras? Evidências que estavam disponíveis para pesquisadores em meados da década de 1990, incluindo documentos anteriormente disponíveis e fitas de reuniões e conversas telefônicas, lançaram nova luz sobre a tomada de decisão na Guerra do Vietnã no governo Lyndon Baines Johnson trinta anos antes. Esse conjunto de evidências indicava que as respostas para essas duas perguntas estavam conectadas; a maneira única pela qual os Estados Unidos entraram em guerra no Vietnã teve uma influência profunda na condução da guerra e em seu resultado. No Iraque também, o modo como os Estados Unidos entraram em guerra influenciou tudo o que se seguiu. Uma fixação na superioridade tecnológica americana e uma negligência associada às dimensões humana, psicológica e política da guerra condenaram um esforço e chegou bem perto de condenar o outro.


Nosso histórico de aprender com o passado em geral e com a experiência americana no Vietnã em particular não é forte. Como Yuen Foong Khong argumentou em seu livro Analogies at War: Korea, Munich, Dien Bien Phu, and the Vietnam Decisions of 1965 (Analogias na Guerra: Coréia, Munique, Dien Bien Phu e as Decisões do Vietnã de 1965, sem tradução para o português), foi a má aplicação da história que atrapalhou a análise e a tomada de decisões durante a escalada do envolvimento americano no Vietnã. Da mesma forma, a memória dos EUA sobre a divisora intervenção militar no Vietnã é facilmente manipulada porque é nebulosa e imprecisa, mais simbólica do que histórica. Há perigos na aplicação reflexiva da memória histórica; obscurece a compreensão e justifica políticas mal concebidas. Assim, o historiador Earl Tilford argumentou que a única verdadeira lição do Vietnã era que "os Estados Unidos nunca mais devem se envolver em uma guerra civil em apoio a uma causa nacionalista contra insurgentes comunistas supridos por aliados com fronteiras contíguas em uma antiga colônia francesa localizada em um clima tropical a meio caminho ao redor do mundo."
É verdade que os conflitos no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão exibem muito mais diferenças do que semelhanças. Mas enquanto a singularidade do Vietnã limita o que poderíamos aplicar diretamente a partir dessa experiência, um exame de como e por que o Vietnã se tornou uma guerra americana e o que deu errado também pode nos ajudar a pensar mais claramente sobre as guerras de hoje e de amanhã. De fato, enquanto resistirmos à tentação de esperar respostas simples da história, as percepções estratégicas e operacionais da guerra no Vietnã podem ser relevantes e úteis para nossos esforços no Afeganistão e no Iraque.
Uma percepção bastante óbvia, ou assim se poderia pensar, é a conclusão de que nenhuma solução fácil se apresenta no Afeganistão e no Iraque, assim como nenhuma se apresentou no Vietnã há quarenta anos. O sucesso no Vietnã significava derrotar as forças insurgentes e convencionais inimigas, contrariando iniciativas políticas inimigas e ajudando o governo e forças armadas sul-vietnamitas a desenvolverem a eficácia e a legitimidade necessárias para proteger a população, atender às necessidades básicas das pessoas e fazer com que o povo se voltassem contra os comunistas. Os Estados Unidos, no entanto, foram atraídos em direção a uma solução simples que se mostrou inadequada para a complexidade do conflito.
O modo como os Estados Unidos foram à guerra no Vietnã foi único na história americana. Nenhuma decisão levou à guerra. Lyndon Johnson não queria ir à guerra no Vietnã, mas todas as decisões que ele tomou parecem, em retrospectiva, ter levado inexoravelmente a essa direção. Não que Johnson apreciasse tais decisões: ele recorreu ao seu secretário de defesa, Robert McNamara, para desenvolver uma estratégia para o Vietnã compatível com suas prioridades internas e que permitiria ao presidente evitar uma decisão concreta entre guerra e desengajamento.
Aprovada em março de 1964, "Pressão Graduada" foi o resultado. A estratégia usaria ataques e bombardeios para convencer Ho Chi Minh e os líderes do Vietnã do Norte a desistir de apoiar a insurgência comunista vietnamita no sul. A Pressão Graduada permitiria aos Estados Unidos controlar a escalada do esforço militar e melhorar a situação no Vietnã de maneira barata, eficiente e sem atrair atenção indesejada do Congresso e do povo americano.
Ho Chi Minh seguido pelo General Vo Nguyen Giap e 

comitiva, 1957.
As principais características da Pressão Graduada - resultados máximos com investimento mínimo, uma convicção de que o inimigo responderia "racionalmente" à ação americana, uma obsessão com a tecnologia como elemento definidor da guerra - respondiam a múltiplas necessidades não relacionadas à situação real no Vietnã. Eles também eram consistentes com os antecedentes educacionais e orientações profissionais daqueles que se tornaram os arquitetos da guerra americana no Vietnã. Para esses homens - McNamara, William Bundy, John McNaughton e as "whiz kids" ("crianças prodígio") que os rodeavam - as relações humanas eram melhor vistas através das lentes da racionalidade. A persistência de impulsos políticos desagradáveis, divisivos e "irracionais" não figurou muito em sua cosmovisão. Além disso, as inovações tecnológicas, pelo menos em sua narrativa, dotaram os formuladores de políticas da capacidade de usar a força de maneira precisa e calibrada, uma capacidade que não soltaria os cães de guerra.
Em nenhum lugar esse conjunto de conceitos se manifesta mais claramente do que na aplicação da "análise de sistemas" a uma guerra de guerrilha a meio mundo de distância. Os planejadores americanos deveriam assumir que o inimigo "está na mesma posição que nós" e "adaptará seu comportamento", um dos decanos da análise de sistemas. Thomas Schelling, escreveu em 1964. A aplicação precisa e racional da força culminaria nos Estados Unidos e seu adversário alcançando "simultaneamente um julgamento sobre qual é a escolha mais razoável para nós fazermos e o que é uma escolha razoável para ele fazer." Baseando-se na tradição jurídica inglesa, McNaughton e Bundy chegaram ao ponto de afirmar nos documentos de planejamento do Vietnã que a política dos EUA seria estabelecer uma justificativa de "lei comum" para bombardear o Vietnã do Norte; Hanói entraria em negociações logo após os Estados Unidos estabelecerem um "padrão de ataques de lei comum." Mas os planejadores do Pentágono e os consultores da Casa Branca não conseguiram dar conta de um compromisso com a guerra revolucionária que permitiu derramamento de sangue em uma escala inimaginável para os profissionais de colarinho branco americanos.
As expectativas infladas para o sucesso da Pressão Graduada no Vietnã dificilmente foram afetadas pela crença de que a proeza tecnológica obviou a necessidade de pensar muito sobre a natureza do inimigo ou sobre as complexidades humanas e psicológicas da guerra de forma mais geral. Na verdade, McNamara e seus principais assistentes ignoravam as dimensões humanas e psicológicas da guerra. Sua fé na superioridade tecnológica americana, combinada com a suposição de que o inimigo se comportaria como qualquer ator racional, os cegou para a personalidade dos seus inimigos norte-vietnamitas e vietnamitas comunistas. Nem mesmo nos últimos anos essa fé na tecnologia diminuiu. A ladainha tem sido bem documentada - a dependência esmagadora do poder aéreo, o uso exagerado de sensores e outras tecnologias para retardar o movimento pela trilha Ho Chi Minh, a proposta de McNamara de erguer uma barreira eletrônica ao longo do paralelo 17º, a quantificação mesmo dos mais fundamentais aspectos humanos da guerra. Mesmo enfrentando a derrota, os planejadores americanos seguiram em frente, entendendo mal a natureza do conflito e recusando-se a dar a devida consideração à natureza do inimigo.
O fracasso da Pressão Graduada foi previsto antes mesmo da estratégia ser implementada. Em 1964, dois jogos de guerra do Pentágono, assustadoramente proféticos, expuseram falhas fatais na estratégia. Nesses jogos de guerra, os especialistas do Sudeste Asiático atuaram no papel do governo norte-vietnamita. Em resposta ao bombardeio limitado projetado para sinalizar a determinação americana, esses especialistas decidiram infiltrar um grande número de soldados do Exército do Vietnã do Norte no Planalto Central do Vietnã do Sul. Isso, por sua vez, impulsionou o comprometimento de tropas americanas no Sul. Os jogos de guerra concluíram que a combinação de santuários inimigos no Vietnã do Norte, Camboja e Laos, a capacidade do inimigo de sustentar-se em escassas provisões, sua estratégia de enfatizar ações políticas e militares para evitar o forte e atacar o fraco, e limitações na aplicação do poder militar americano, iria atolar os Estados Unidos em um conflito prolongado com pouca esperança de sucesso. O jogo terminou após cinco anos de combates com quinhentos mil soldados comprometidos no Vietnã do Sul. Bundy, no entanto, achou a conclusão "muito dura". Em vez de forçar um reexame da estratégia, os resultados dos jogos de guerra SIGMA I e SIGMA II aparecem, em retrospectiva, como um roteiro que os líderes civis e militares seguiram no caminho para o fracasso no Vietnã.
Os jogos de guerra SIGMA não tiveram efeito na política ou estratégia americana no Vietnã. A Pressão Graduada baseava-se em uma suposição contrária - de que a aplicação de força militar limitada sinalizaria a determinação americana e, assim, convenceria o inimigo a alterar seu comportamento. A estratégia, no entanto, não considerou as ações militares em contextos políticos, culturais, geográficos, econômicos ou históricos. Os líderes comunistas vietnamitas estavam comprometidos em ganhar, mesmo que a vitória chegasse a um preço extraordinariamente alto; eles demonstraram esse compromisso tão recentemente quanto a Primeira Guerra da Indochina contra os franceses. Os norte-vietnamitas estavam culturalmente predispostos à paciência e a uma visão de longo prazo. Ho Chi Minh e outros membros da liderança de Hanói viam sua luta contra os americanos no contexto de lutas anteriores contra os franceses, chineses e japoneses. Além disso, a natureza primordialmente agrária da economia norte-vietnamita limitava a utilidade do bombardeio à infra-estrutura como meio de coerção. Visto em perspectiva histórica, a ideia de que operações secretas e bombardeios seletivos forçariam o inimigo a "desistir" era uma fantasia. Mas era uma fantasia necessária se o presidente fosse escapar de tomar o que ele temia que seriam decisões impopulares.
Em novembro de 1964, o Secretário Adjunto de Defesa, John McNaughton, redigiu uma análise de vinte páginas para um comitê interdepartamental liderado por William Bundy e dedicado à questão do que fazer em seguida no Vietnã. Embora a recomendação de McNaughton para uma campanha de bombardeio estritamente controlada e cuidadosamente limitada contra o Vietnã do Norte - "aperto progressivo e conversa" - logo seria encastelada na política oficial, o seu autor tinha dúvidas. McNaughton começou a duvidar que a ação militar agudamente limitada que ele favorecia pudesse persuadir o Norte a parar de apoiar o Viet Cong. Em um memorando de 7 de novembro, ele escreveu que seu caminho escolhido tinha "alguma chance de dar muito errado." No entanto, McNaughton e outros funcionários dos departamentos de Defesa e Estado acreditavam que, se os norte-vietnamitas não respondessem à aplicação gradual da pressão militar, os Estados Unidos poderiam simplesmente parar de usar a força. A Pressão Graduada foi projetada para permitir "o máximo controle em todas as etapas e permitir a interrupção em algum ponto ou pontos apropriados para negociações, enquanto busca manter uma ameaça crível de novas pressões militares, caso seja necessário."
Até o secretário de defesa McNamara teve suas dúvidas. Mas, em um esforço para dar a seu presidente o conselho que ele queria ouvir, McNamara convenceu a si mesmo e aos outros que a estratégia da Pressão Graduada era uma solução viável para o complexo problema do Vietnã. Enquanto redigiam os memorandos de planejamento em 1964 e no começo de 1965, McNamara e suas "crianças prodígio" do Departamento de Defesa ignoravam as realidades locais, faziam um espelhamento do inimigo e pensavam linearmente.
Carl von Clausewitz, filósofo prussiano do século XIX, argumentou que "o primeiro, o supremo, o ato de julgamento mais abrangente que o estadista e o comandante têm a fazer é estabelecer o tipo de guerra em que estão embarcando, sem confundi-lo, nem tentando transformá-lo em algo que é estranho à sua natureza. Esta é a primeira de todas as questões estratégicas e a mais abrangente.” O problema no Vietnã do Sul era fundamentalmente político, mas a estratégia da Pressão Graduada não abordava as causas fundamentais da violência. As ações militares planejadas baseavam-se em sistemas de armas prontamente disponíveis e outras capacidades, em vez de nos objetivos que a aplicação da força militar deveria realizar. Política ambígua e pensamento estratégico falho geraram uma tendência a igualar qualquer atividade militar ao progresso. Como o presidente e seus assessores consideraram apenas o próximo passo da "escada" da Pressão Graduada, a estratégia impediu o pensamento de longo alcance sobre objetivos e políticas e quase não reconheceu sua interação com o inimigo.
Na medida em que as críticas ao pensamento estratégico entraram na discussão, isso dificilmente retardou o impulso por trás da Pressão Graduada. Em um memorando de planejamento de novembro de 1964, um alto planejador civil do Pentágono definiu o objetivo primário no Vietnã como a preservação da credibilidade americana e concluiu que era desnecessário vencer a guerra para alcançar esse objetivo. A América simplesmente tinha que "sangrar" e parecer ao mundo ter sido um "bom médico", que fez tudo o que pôde para um paciente terminal. Essa abordagem ignorou a incerteza da guerra e os resultados imprevisíveis de uma atividade que envolve matar e destruir. Para os norte-vietnamitas, ataques a sua população e o bombardeio de seu campo não eram simplesmente meios de comunicação ou um jogo de xadrez. Os resultados da campanha de bombardeio, como em qualquer ato de guerra, desafiavam a quantificação e criavam problemas - e emoções - para os quais cálculos friamente racionais não davam resposta adequada.
Embora termos como "comunicações" e "mensagens" tenham sido banidos do léxico dos assuntos militares americanos depois do Vietnã, a busca por balas mágicas - e uma negligência relacionada às dimensões humanas e intangíveis da guerra - persiste até hoje. Em particular, o conceito estratégico para a guerra futura que surgiu na década de 1990 tem uma notável semelhança com uma abordagem anterior, e repudiada, ao uso da força. Em seus aspectos essenciais, esse conceito ressuscita um conjunto de teorias testadas e consideradas inadequadas há quatro décadas.
Como um estudo de caso recente, a campanha "Shock and Awe" (Choque e Pavor, o pavor diante do poder de Deus), que abriu a guerra no Iraque, iluminou não apenas o horizonte de Bagdá, mas também uma visão de guerra que tem atormentado os profissionais de defesa americanos por gerações. A operação seria rápida, precisa e eficiente em seus meios, previsível em seu resultado. Explicando que o objetivo dos Estados Unidos era fazer guerra contra um regime e não contra uma nação, um alto funcionário americano resumiu o objetivo desejado no Iraque: "Seríamos capazes de trazer uma nova liderança, mas nós manteríamos o corpo no lugar".
Bombardeio de precisão no Iraque em 2003,

parte da campanha de "Choque e Pavor."
Mas o corpo - o Exército iraquiano e as instituições governamentais, os quais deveriam mudar de lado ansiosamente e intactas - se dissolveram (antes de serem completamente desmantelados) ou colapsaram, apresentando à coalizão liderada pelos americanos, em vez disso, com grupos de combatentes não-convencionais operando em um estado falido. A insurgência nascente que cresceria e se aglutinaria ao longo do tempo não obedecia a uma estratégia de decapitação. E a distinção entre regime e nação não era tão clara quanto os planejadores da guerra haviam assumido.
Longe de se reconstituir rapidamente e pacificamente, uma vez libertado do domínio tirânico, como as projeções lineares previam, o Estado iraquiano parecia estar à beira da fragmentação. Longe do que alguns acreditavam ser um entusiasmo por toda parte pela sua libertação, um elemento da população engajou-se em oposição armada. E longe de permitir que as forças dos EUA se retirassem rapidamente e partissem, como previam os defensores da "velocidade sobre a massa", a guerra tomou um rumo claramente não linear à medida que insurgências, milícias e organizações criminosas preenchiam o vácuo deixado pelo regime opressivo de Saddam Hussein. Na véspera da invasão, um alto funcionário do Pentágono previu: "Não posso dizer se o uso da força no Iraque hoje durará cinco dias, cinco semanas ou cinco meses, mas não durará mais do que isso. " Cinco anos depois, fica claro que o planejamento inicial da guerra não compreendeu bem a natureza do conflito, subestimando o inimigo e subestimando a dificuldade da missão.
Juntamente com a suposição de que o inimigo responderia à ação militar norte-americana de maneira razoavelmente previsível e razoável, os proponentes de conceitos como "Choque e Pavor" e "Operações Rápidas e Decisivas" acreditavam, como as crianças prodígio que os precederam, que a proeza tecnológica libertá-los-ia da lógica duradoura da guerra. Nos anos imediatamente anteriores aos ataques de 11 de setembro de 2001, o entusiasmo sobre uma "transformação da defesa" sintetizava o pensamento militar americano. Os defensores dessa transformação acreditavam que as capacidades de informação, comunicações, vigilância e ataque de precisão haviam gerado uma revolução nos assuntos militares que proporcionariam vitórias rápidas, baratas, eficientes e decisivas em guerras futuras. A linguagem da transformação da defesa foi excessivamente arrogante - As forças dos EUA gozariam de “full spectrum dominance” ("domínio de espectro total") sobre potenciais adversários, desde que mantivessem uma vantagem tecnológica. Mais uma vez, a fé na superioridade tecnológica americana elevou a capacidade militar ao nível da estratégia e, mais uma vez, o elemento humano se perdeu no entusiasmo pelo que parecia apresentar uma solução fácil e relativamente indolor para um problema complexo e difícil.
A convicção de que a tecnologia oferecia uma panaceia não só impedia os esforços dos EUA no Afeganistão e no Iraque, como também retardava a capacidade de adaptação, uma vez que a verdadeira natureza dessas guerras se tornava aparente. No final de setembro de 2004, quando a insurgência no Iraque estava se aglutinando e as forças americanas se preparavam para a Batalha de Fallujah, o secretário de defesa continuou afirmando que "velocidade, precisão e agilidade podem substituir massa,” reiterando que o plano de guerra foi projetado "para aproveitar a velocidade, precisão e agilidade que temos." Tais visões ajudam muito a explicar o descompasso entre fins e meios no Afeganistão e no Iraque, onde durante anos os EUA perseguiram metas ambiciosas com recursos inadequados (especialmente números de soldados e unidades comprometidas).
As decisões contra o desdobramento de forças da coalizão em número suficiente para garantir populações deixaram muitos comandantes sem outras opções além de adotar uma abordagem incursora para operações de contra-insurgência - uma abordagem que tendia a reforçar a percepção das forças da coalizão como agressoras e confundia sucessos táticos com medidas reais de eficácia estratégica. A força inadequada das tropas e a abordagem que impeliram criaram oportunidades para o inimigo. A insurgência iraquiana ganhou esse alívio devido, em parte, à crença de que a superioridade tecnológica dos Estados Unidos permitiria que uma pequena força americana atingiria efeitos desproporcionais ao seu tamanho, mesmo quando envolvida em uma guerra entre a população.
Embora a aplicação da tecnologia tenha contribuído significativamente para os sucessos operacionais no Iraque - como os esforços para caçar líderes terroristas (operações recentemente narradas e popularizadas por Bob Woodward) ou a capacidade de mirar células de bombas em estradas com tecnologia de vigilância - esses esforços táticos teriam alcançado apenas resultados limitados,  não fossem eles combinados com segurança melhorada para a população iraquiana, o que ajudou a quebrar o ciclo de violência sectária, a gerar inteligência humana precisa, e a negar ao inimigo a capacidade de se esconder em plena vista. Depois que os líderes locais e tribais se sentiram seguros o suficiente para participar de sua própria segurança, eles provaram ser a proteção mais eficaz contra ataques inimigos e, junto com as Forças de Segurança iraquianas, os melhores garantidores da segurança. Em resumo, as capacidades tecnológicas contribuíram significativamente para a execução de uma estratégia sólida, mas não puderam compensar seu oposto.
Paradoxalmente, os conceitos associados à "Revolução nos Assuntos Militares" baseavam-se, em parte, no desejo de evitar outro Vietnã. Nos anos 90, a doutrina Weinberger-Powell de força avassaladora foi ofuscada pela certeza de que a superioridade tecnológica americana traria, em guerras futuras, o que se mostrou tão difícil no Vietnã - uma vitória rápida e decisiva. Se um adversário tivesse a temeridade de ameaçar os interesses de segurança nacional dos EUA, um exército transformado montaria "Operações Rápidas e Decisivas" que "chocariam e apavorariam" todo e qualquer inimigo. Os proponentes mais entusiastas desses conceitos argumentaram que os avanços tecnológicos americanos "bloqueariam" potenciais adversários do "mercado" de futuros conflitos. A "guerra centrada em redes" (“network centric warfare”) contava com as tecnologias de vigilância e informação para fornecer "domínio da informação" sobre todos os potenciais adversários.
Força Delta no Iraque, exemplo máximo da visão de precisão 

na guerra.
Aplicadas ao Afeganistão e ao Iraque, essas ideias convidaram os americanos a aceitarem a ideia de que a vitória decisiva seria alcançada por um pequeno número de forças americanas apoiadas por tecnologia superior. Três anos após a invasão do Afeganistão e um ano após a invasão do Iraque, altos oficiais de defesa continuaram defendendo uma ideia "10-30-30" para a defesa nacional, sob a qual forças pequenas e leves seriam enviadas a um teatro distante em dez dias, derrotariam o inimigo dentro de trinta dias e depois preparariam-se para outra missão em outros trinta dias. Semelhante ao conceito de Pressão Graduada, conceitos como Operações Rápidas e Decisivas e o plano 10-30-30 associado eram em sua maioria baseados em visões de guerras que os funcionários da defesa gostariam de combater ao invés dos tipos de guerras que inimigos atuais e potenciais provavelmente forçariam sobre eles.
Assim como a premissa da Pressão Graduada de que ataques limitados alterariam o comportamento do inimigo, a crença de que a vigilância e a tecnologia da informação permitiriam operações rápidas e decisivas tornou-se um substituto da coerência estratégica, desconectando o planejamento de guerra dos objetivos políticos da guerra. O falecido Almirante Arthur Cebrowski e John Gartska escreveram em 1998: "Quando 50% de algo importante para o inimigo é destruído no início, a estratégia dele também é. Isso impede as guerras - que é o que a guerra centrada em redes significa." Mas isso entende as coisas exatamente ao contrário: a elevação das capacidades táticas ao nível da estratégia divorcia o emprego tático de forças de seus objetivos estratégicos.

Tenente-Coronel David Galula.
Porque a contra-insurgência, por um lado, é fundamentalmente um problema político, a estrutura operacional que conecta táticas à estratégia deve ser um esquema político que direcione e integre toda uma série de iniciativas, ações e programas nas áreas de segurança, transição política, reforma do setor de segurança, reconstrução, desenvolvimento econômico, desenvolvimento das capacidades governamentais, diplomacia e o estado de direito. Como David Galula observou em seu livro de 1964, Counterinsurgency Warfare (Guerra de Contra-Insurgência, sem tradução para o português): "E tão complexa é a interação entre as ações políticas e militares que elas não podem ser separadas; ao contrário, todo movimento militar tem que ser ponderado em relação aos seus efeitos políticos e vice-versa." Em seu recente livro, Why Vietnam Matters (Porque o Vietnã Importa, sem tradução para o português), Rufus Phillips argumenta que o componente político e psicológico da estratégia americana estava faltando no Vietnã devido a uma falha em "reconhecer a natureza política última da guerra durante os anos críticos de 1963 a 1968." O mesmo pode ser dito das estratégias iniciais para as guerras no Afeganistão e no Iraque.


Assim como as crianças prodígio de McNamara, os defensores da Revolução nos Assuntos Militares aplicaram analogias de negócios à guerra e tomaram emprestado pesadamente das disciplinas de economia e análise de sistemas. Tanto a Pressão Graduada quanto as Operações Rápidas e Decisivas prometiam eficiência na guerra; os planejadores poderiam determinar com precisão a quantidade de força necessária para alcançar os "efeitos" desejados. A Pressão Graduada aplicaria força suficiente para efetuar o "cálculo de interesses" do adversário. De acordo com os termos das Operações Rápidas e Decisivas, as forças americanas, baseadas em um "sistema de sistemas completo de compreensão do inimigo e do ambiente," atacariam os nós do sistema inimigo com uma quantidade de força calculada para gerar "efeitos cumulativos e em cascata."

Mas a experiência americana no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque demonstrou que era impossível calibrar com precisão a quantidade de força necessária para prosseguir numa guerra. As dimensões humanas e psicológicas da guerra, juntamente com a fricção e a incerteza geradas quando as forças opostas se encontram, invariavelmente frustram até mesmo as tentativas mais elaboradas e bem consideradas para prever os efeitos de ações militares discretas. Contra-medidas inimigas, como dispersão, dissimulação, engano e mistura com a população civil limitam o alcance da vigilância e das capacidades de ataque de precisão. Outros fatores, como identidades culturais, tribais e políticas, aumentam a complexidade e influenciam o curso dos acontecimentos. A ênfase no planejamento e direcionamento das operações, portanto, deve estar na eficácia e não na eficiência*. A necessidade de se adaptar rapidamente a condições imprevistas significa que os comandantes precisarão de forças e recursos adicionais que possam ser comprometidos com pouca antecedência. Pois eficiência em todas as formas de guerra, incluindo contra-insurgência, significa quase não ganhar. E na guerra, quase não ganhar pode ser uma proposta perigosa.
*Nota do Tradutor: A eficiência é “fazer corretamente as coisas”, enquanto que a eficácia consiste em “fazer as coisas certas”.
Como observou o historiador Michael Howard, não importa quão claramente alguém pense, é impossível antecipar com precisão o caráter do conflito futuro. A chave não é estar tão longe da marca que se torna impossível ajustar-se uma vez que seu caráter seja revelado. Felizmente, os EUA e seus parceiros no Afeganistão e no Iraque continuam se recuperando de defeitos no planejamento inicial dessas campanhas, defeitos análogos aos que minaram os esforços americanos quando foram à guerra ao lado de seus aliados sul-vietnamitas em 1965.


Nos últimos parágrafos de seu livro, A Better War (Uma Guerra Melhor, sem tradução para o português), Lewis Sorley relata uma história de dezembro de 1975, cerca de sete meses após a queda de Saigon. O novo Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, estava fora do Pentágono. Operários aproveitaram a oportunidade para reformar o escritório do secretário. Ao fazê-lo, eles removeram um grande mapa de relevo do Sudeste Asiático que estava pendurado na parede durante grande parte da Guerra do Vietnã. Talvez, se o mapa ainda estivesse lá quando o secretário Rumsfeld voltasse ao Pentágono mais de trinta anos depois, poderia ter inspirado uma dose saudável de ceticismo sobre a ortodoxia mais recente, prevendo como as vantagens tecnológicas americanas tornariam a guerra rápida, eficiente e decisiva. Esse ceticismo, por sua vez, poderia ter gerado uma compreensão mais profunda da natureza dos conflitos nos quais os Estados Unidos e seus parceiros permanecem engajados hoje.





H. R. McMaster era coronel do Exército dos Estados Unidos quando publicou esse artigo, no inverno de 2009, com o título original de The Human Element: When Gadgetry Becomes Strategy; publicado no site World Affairs Journal. 

Ele é o autor do livro Dereliction of Duty: Lyndon Johnson, Robert McNamara, the Joint Chiefs of Staff, and the Lies that Led to Vietnam (Negligência do Dever: Lyndon Johnson, Robert McNamara, o Estado-Maior Conjunto e as mentiras que levaram ao Vietnã, sem tradução para o português). 

O General McMaster é veterano da Guerra do Golfo (1991) e é, desde 20 de fevereiro de 2017, o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos (Assistente do Presidente para Assuntos de Segurança Nacional, APNSA), na Casa Branca.


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