terça-feira, 2 de novembro de 2021

A Humilhação do Exército Britânico

Por Aris Roussinos, Unheard, 2 de novembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 2 de novembro de 2021.

As Forças Armadas, e o Exército em particular, são certamente as únicas armas do Estado britânico que ainda mantêm uma reputação popular de competência institucional. Considere o recente livro The Habit of Excellence (O Hábito da Excelência), uma espécie de recauchutagem para CEOs civis das antologias motivacionais distribuídas em Sandhurst. Ou a convocação do governo do ex-vice-chefe do Estado-Maior de Defesa (embora um Royal Marine em vez de um soldado do exército) para instituir reformas abrangentes para o NHS - um claro aceno à reputação residual dos militares de rigorosa e intransigente eficiência.

É difícil conciliar essa percepção com o recente histórico desorganizado e esbanjador do Exército em aquisições. E ainda persiste a sensação, verdadeira ou não, de que as forças armadas continuam a ser uma área de refúgio para um tipo de eficácia estóica perdida para o resto do país, uma capacidade de fazer o trabalho, sem reclamar, contra obstáculos intimidantes.


Isso pode dizer tanto sobre a Grã-Bretanha como um todo quanto sobre as próprias forças armadas. Considere a onda de sentimentalismo afetuoso em relação ao Exército, talvez um análogo da classe trabalhadora ao sentimentalismo da classe média em relação ao NHS, que varreu o país no final dos anos 2000. O clima popular na época, manifestado na campanha Help for Heroes (est. 2007) e no Sun's Military Awards (est. 2008), foi imediatamente inflamado pela sensação de que as tropas em campanha estavam sendo colocadas em risco pelos cortes orçamentários do governo e pela insatisfação com o barulho e a queima de papoulas por simpatizantes da jihad enquanto as tropas voltavam do Afeganistão para casa. Na época, o Exército era um símbolo poderoso de uma instituição pura e traída em torno da qual o povo britânico poderia explorar suas ansiedades mais amplas, uma metáfora para o crescente desconforto com a direção do próprio Estado britânico.

No entanto, mesmo o apoiador mais dedicado do Exército seria forçado a admitir que as duas últimas décadas não aumentaram sua reputação. As duas guerras escolhidas pelo governo trabalhista foram dolorosas falhas estratégicas e táticas, iniciadas com pouco entusiasmo popular e abandonadas com pouca fanfarra. Em ambas as guerras, as unidades e os soldados individuais lutaram bravamente em um nível tático, em busca de objetivos estratégicos equivocados e, em última análise, infrutíferos.


É nesse contexto que dois livros recentes visam dissecar as falhas do Exército no Iraque e no Afeganistão para dar sentido a esse desempenho sem brilho. Em The Changing of the Guard (A Troca da Guarda), Simon Akam, um ex-oficial de ano sabático, narra o Exército como um amante desapontado, enfiando a faca nas feridas mais dolorosas da instituição. Em Blood, Metal and Dust (Sangue, Metal e Poeira), o Brigadeiro Ben Barry, ex-diretor do Estado-Maior do Exército Britânico, escolhe um alvo mais alto. Sim, os sucessos das pequenas intervenções dos anos 90 levaram os chefes militares a descansarem sobre os seus louros, de modo que “o sucesso operacional se tornou a mãe da complacência”. Mas para Barry, cujo livro foi extraído de seu post mortem oficial ainda classificado das guerras pós-11 de setembro, a causa final do fracasso pode ser colocada nas mãos dos políticos trabalhistas administrando a guerra.

Ambos recontam os fatos nus e dolorosos das duas derrotas mais recentes do Exército. No Iraque, a captura e ocupação iniciais de Basra, travadas com gorros ao invés de capacetes e a autoconfiança de um Exército que acreditava liderar o mundo na manutenção da paz e na contra-insurgência, culminaram em uma humilhante retirada negociada das forças britânicas para a orla do cidade, onde, imobilizados pelos ataques à bomba constantes das milícias xiitas que agora dirigiam a cidade, perderam toda a capacidade de exercerem sua influência.

Os americanos, claramente impressionados com o fracasso dos oficiais britânicos, foram forçados a ajudarem as forças iraquianas a retomar a cidade em 2008 na operação Charge of the Knights (Carga dos Cavaleiros), uma humilhação para a Grã-Bretanha. “Isso prejudicou a reputação das forças britânicas com os Estados Unidos e os iraquianos e infligiu grandes danos à autoconfiança militar britânica”, observa Barry. Akam é menos estóico, descrevendo-o como “uma humilhação aguda e duradoura para o Exército Britânico”, que “permanecerá e seguirá as tropas ao redor do mundo até o Afeganistão”.

Na verdade, para exorcizar esse fantasma, os líderes políticos e militares britânicos imprudentemente se ofereceram para uma campanha em uma paisagem de Helmand de fazendas muradas e vegetação densa que os soviéticos tiveram dificuldade para pacificar, mesmo enquanto o Exército tinha dificuldades no Iraque. No Afeganistão, eles acreditavam, o Exército recuperaria sua reputação, deixando para trás as dificuldades no Iraque.

Eles estavam errados. Espalhados em complexos rurais isolados, ou “casas de pelotão”, as tropas britânicas foram sitiadas por ondas de combatentes talibãs e só evitaram serem tomados de assalto por meio do uso devastador do poder aéreo, que por sua vez alienou os civis cujas casas destruiu. Junto com uma necessidade desesperada de evitar baixas, a dependência de patrulhas de curto alcance, ímãs para emboscadas do Talibã e atolados por IEDs, significava que o Exército nunca poderia manter o domínio tático no campo, muito menos obter a iniciativa estratégica.

Como em Basra, a proteção da força tornou-se o objetivo dominante e a iniciativa passou para o inimigo local. As tentativas de alterar o equilíbrio de poder, por meio de operações ousadas, mas equivocadas, como a Operação Panther’s Claw (Garra da Pantera) ou por meio de esquemas grandiosos de corações e mentes como o transporte de uma turbina gigantesca através do território talibã até a represa onde permaneceria sem uso por anos, todas falharam. No Afeganistão, como no Iraque, o rico tributo de sangue e tesouro que a Grã-Bretanha despejou na poeira foi inteiramente em vão.

Onde está a culpa? Barry critica políticos trabalhistas como Clare Short, cuja recusa intransigente em fornecer às tropas britânicas que de repente se viram governando Basra, uma cidade de 1,5 milhão de habitantes, até mesmo com o apoio básico do DFID devido à sua oposição à guerra, fez muito para incitar a raiva local nas primeiras semanas e meses vitais de ocupação. Ele mira em Gordon Brown, que como chanceler forçou cortes de defesa que reduziram a frota de helicópteros do Exército, e depois mentiu sobre isso como primeiro-ministro quando soldados morreram em Helmand como resultado direto.

Mas ele reserva sua maior ira para o arquiteto da entrada da Grã-Bretanha nessas guerras desnecessárias: Tony Blair. No entanto, como Barry deixa claro, os chefes militares também não conseguiram impressionar os políticos com a necessidade de reavaliar sua estratégia à luz do fracasso de sua missão. A apreciação franca e sóbria dos fatos concretos pelos quais o Exército é conhecido estavam tragicamente ausentes.


Para Akam, grande parte da culpa pode ser atribuída ao próprio Exército. Ele desenha um retrato etnográfico de uma instituição que luta para dar sentido a um mundo em mudança, cujo acalentado ethos regimental, a fonte do orgulho individual e da busca pela excelência, também o reduz a "uma coleção desajeitadamente organizada de tribos guerreiras, inadequadamente coordenada e muitas vezes lutando entre si”. Com medo de cortes futuros, os generais oferecem o Exército para a subestimada missão de Helmand, mesmo quando o Iraque está falhando: "É usá-los ou perdê-los", Akam cita o general Sir Richard Dannett sobre a decisão malfadada. Os generais dizem aos políticos o que eles querem ouvir, em vez das verdades difíceis que atrapalhariam a promoção: "a determinação do Exército Britânico em ‘botar pra quebrar’ colocou o exército em uma terrível bagunça."

Para Akam, a ausência de responsabilidade por tal falha é corrosiva para a capacidade do Exército. Os escalões mais jovens são levados aos tribunais por crimes de guerra individuais - com razão, ele sente - enquanto os generais são recompensados pelo fracasso estratégico com títulos e sinecuras. Ao contrário de Israel, onde o fracasso da Guerra do Líbano de 2006 levou a um expurgo de oficiais superiores fracassados, “nenhum general britânico foi demitido ou renunciou por conta do Iraque e Afeganistão”. O resultado, para Akam, é a podridão institucional: “aquela hipocrisia havia se infiltrado na instituição abaixo deles e a estava azedando”.

Além disso, afirma Akam, think tanks de defesa como o RUSI "podem parecer mais clubes confortáveis financiados em parte por fabricantes de armas - forças amigas, no jargão das forças - do que supervisores externos rigorosos", inibindo-os de guiar o Exército por meio de reformas dolorosas.


A presença americana paira sobre ambos os livros, como um pai vitoriano, cuja aprovação é desejada, mas que em vez disso emana apenas uma fria decepção. A trágica ironia, como observam Akam e Barry, foi que as campanhas de Basra e Helmand foram iniciadas inteiramente para ganhar o prestígio de Blair aos olhos americanos, mas o resultado do desempenho decepcionante do Exército foi apenas o desdém americano. Como Akam observa sobre seus soldados informantes na véspera da invasão do Iraque, “muitos reconhecem que a verdadeira razão de estarem aqui é para manter a posição dos militares britânicos aos olhos dos americanos”.

No entanto, mesmo durante a própria invasão, antes da retirada humilhante, a capacidade de seleção do Estado britânico já havia rebaixado a reputação do Exército aos olhos americanos. Basra, logo depois da fronteira com o Kuwait, foi escolhida como alvo da Grã-Bretanha, segundo Akam, porque a recente adoção da logística just-in-time* pelo Exército a deixou com peças de reposição insuficientes para viajar mais longe. A falta de veículos blindados, de coletes à prova de balas, helicópteros e até munição deixou o Exército vasculhando o que podia dos americanos não-impressionados e equipando-se quase inteiramente com fundos de emergência do Tesouro.

*Nota do Tradutor: O sistema Just-in-Time (JIT) é um conceito japonês de estoque zero, onde as peças entram diretamente na produção, dessa forma sem entrarem em depósito.

Citando a muito tempo atrás a Malásia e a mais recente Irlanda do Norte (como se isso fosse um sucesso militar não-qualificado) em seu favor, o Exército desviou seu senso de insegurança em sua capacidade amplamente reduzida em comparação com os EUA com uma crença arrogante e, em última análise, equivocada de que a contra-insurgência centrada na população era seu ofício inigualável. Oficiais americanos citados por Barry reviraram os olhos para "‘mais basófias britânicas’" conforme os eventos provaram o contrário.

Mas mesmo os americanos, cujos recursos eram ilimitados em comparação, acabaram perdendo as duas guerras. Como Barry observa: “A decisão do governo dos EUA de invadir o Iraque deve ser considerada a pior decisão militar do século XXI. Foi uma loucura estratégica militar em um nível igual ao do ataque de Napoleão em 1812 à Rússia e ao ataque de Hitler de 1941 à União Soviética.” O fracasso, então, foi em última análise político, de políticos britânicos seguindo cegamente seus patronos americanos em guerras invencíveis: o pecado essencial do Exército foi apenas tentar fazer o melhor em um trabalho ruim, uma falha de caráter não-ignóbil.

É difícil evitar a dolorosa conclusão de que o Exército Britânico funciona para os americanos como os Gurkhas para o Exército Britânico: uma força auxiliar leal e altamente motivada, incapaz de conduzir uma campanha por conta própria, cujas tradições coloridas ainda carregam o romance de uma era anterior e mais gloriosa.


Hoje, no entanto, mesmo este papel limitado está agora em dúvida: com o novo foco do governo na capacidade naval e a tão alardeada Pacific Tilt (Guinada ao Pacífico) formando a base da visão de defesa da Grã-Bretanha, o novo Chefe do Estado-Maior de Defesa, Almirante Sir Tony Radikin, é supostamente preparado para supervisionar um corte dramático nos números já perigosamente reduzidos do Exército, reduzindo as fileiras da infantaria em mais de um terço do número atual.

O “Melhor Pequeno Exército do Mundo” pode estar ficando cada vez menor, mas não é para melhor. Como adverte o analista de defesa Francis Tusa, o resultado de seus problemas de compras auto-infligidos por décadas é que agora é mais ou menos “incapaz de combater contra ameaças de ponta”. Duas décadas de combate a insurgentes mal-equipados distraíram o Exército de sua missão principal de defender o país contra um adversário competente e bem equipado como a Rússia ou a China.

Talvez isso seja menos desastroso do que pode parecer à primeira vista. O perigo não é tanto a incapacidade do Exército, mas a incapacidade de nossos políticos de combinarem suas ambições com seus recursos, ou a coragem moral de seus generais para dissuadi-los gentilmente. Apesar de zombarmos da fraqueza militar da Alemanha, não é muito claro que a Grã-Bretanha tenha ganhado muito durante a década de guerra que os alemães conseguiram evitar. Depois do uso promíscuo do Exército por Blair para aplacar sua ânsia de glória, talvez um período de abstinência forçada possa fazer algum bem à instituição, se for para se reequipar para os desafios mais graves e não-escolhidos do próximo século.

O foco do Exército nos novos batalhões Rangers, encarregados de treinar e dirigir as forças parceiras locais, no lugar da infantaria de linha, sugere um mundo de conflito onde a luta é cada vez mais deixada para proxies dispensáveis. No entanto, um Exército encolhido e mais focado também representa um desafio para um Estado britânico despojado, que cada vez mais depende de soldados para compensar sua própria capacidade perdida.


Sua disposição de assumir tarefas fora de seu papel central pode evitar cortes, por um tempo, mas não necessariamente em seu próprio interesse ou nos melhores interesses do Estado; distrai de sua tarefa urgente de modernização e reorganização e dá aos governos britânicos cobertura para peneirar ainda mais a capacidade do Estado, confiantes de que os soldados sempre estarão lá para compensar a falta.

Como o Relatório Chilcot sobre o Iraque observou, "uma atitude ‘pró-ativa’ está enraizada nas forças armadas do Reino Unido, uma determinação de continuar com o trabalho, por mais difíceis que sejam as circunstâncias - mas isso pode impedir que a verdade fundamental chegue aos ouvidos mais graduados." Talvez a capacidade do Exército de vencer a próxima guerra, como o Estado britânico de enfrentar a próxima crise, fosse melhor servida por generais que encontrassem coragem, quando necessário, de dizer aos políticos que algumas coisas simplesmente não podem ou não devem ser feitas.

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