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sexta-feira, 10 de junho de 2022

Faríamos melhor? Arrogância e validação na Ucrânia


Por David Johnson, War on the Rocks, 31 de maio de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 10 de junho de 2022.

Os infelizes russos estão se debatendo na Ucrânia. Seus soldados mal preparados e não profissionais são incapazes de guerra de armas combinadas modernas. Mesmo que os soldados russos estivessem treinados e prontos, o incompetente corpo de oficiais russos – cheio de puxa-sacos corruptos – é incapaz de empregá-los de forma eficaz.

A mais recente evidência da inépcia russa é a aniquilação de uma unidade que tentava atravessar o rio Siverskyi Donets na região do Donbas, no leste da Ucrânia. O Ministério do Interior ucraniano (que não é uma fonte imparcial sobre esses assuntos) informou que elementos de uma brigada russa, detectados por reconhecimento aéreo, sofreram pesadas perdas: “70 unidades de veículos blindados russos queimados como resultado de ataques de artilharia das Forças Armadas. Dos 550 militares da brigada russa, 485 foram mortos”.

Ou assim nos disseram. Mas será que é mesmo assim?


Os comentaristas ocidentais estão em grande parte satisfeitos com esta narrativa e atacaram o fiasco da travessia do rio como mais uma evidência de um exército russo que continua a lutar diante da resistência determinada por forças ucranianas bem treinadas e motivadas. Em um artigo no Wall Street Journal, especialistas militares dissecaram as deficiências russas, atribuindo seu fracasso principalmente à preparação inadequada e à má liderança. Eles dizem que esse fracasso é um dos muitos que “indicam problemas mais altos em sua cadeia de comando do que no nível do campo de batalha e provavelmente indicam que a liderança sênior está pressionando por ganhos que as tropas não estão preparadas para alcançar”. Assim, “a Rússia está oferecendo ao mundo lições sobre como não fazer as coisas, dizem os veteranos de combate ocidentais”.

E se, no entanto, os analistas estiverem vendo as lições da Ucrânia incorretamente, através de lentes refratadas por seus próprios preconceitos e arrogância? E se a variável chave não for o profissionalismo dos militares russos, mas a natureza desta guerra?

Como veremos, as doutrinas dos EUA e da Rússia são semelhantes para uma operação de travessia de rio e muitos outros tipos de manobras táticas e operacionais. Se o fracasso da Rússia é atribuível a falhas de pessoal, então a guerra não desafia os atuais conceitos e capacidades de combate dos EUA – se forem exercidos por profissionais. Se o problema não for pessoal, as abordagens dos EUA podem ser invalidadas. Daí a pergunta: as forças dos EUA se sairiam melhor em uma guerra como a da Ucrânia?

Aprendendo a “engolir”


Esse abanar de dedos para os desajeitados militares russos é novo. Muitos analistas militares, se não a maioria, pensavam que a guerra na Ucrânia terminaria rapidamente com um fato consumado russo. O Exército Vermelho está na cidade — a resistência é inútil!

Muitas dessas avaliações foram baseadas em jogos de guerra envolvendo os países bálticos – o flanco oriental vulnerável da OTAN. Eles mostraram que os russos estariam em Tallinn, na Estônia, e Riga, na Letônia dentro de 60 horas. Era aqui que se acreditava que os russos representavam o desafio de segurança mais significativo, e os jogos buscavam entender quais aumentos na postura das forças da OTAN proporcionariam dissuasão.

Dada a geografia e a modesta presença de tropas nos Estados Bálticos, essas descobertas eram plausíveis. A distância da fronteira russa para Riga é de apenas cerca de 130 milhas (209km), e os três Estados Bálticos são essencialmente uma faixa bastante estreita com a Rússia e a Bielorrússia diretamente em suas fronteiras. Além disso, os russos têm um enclave militarizado em Kaliningrado, montado no Passo de Suwalki, que controla o acesso terrestre da Polônia ao Báltico. Além disso, as forças da OTAN nesses países, nos níveis empregados nos jogos de guerra, seriam significativamente superadas em número e em inferioridade de poder de fogo por qualquer invasão russa.


A invasão da Ucrânia obviamente não está indo como esperado pela comunidade analítica ocidental, muito menos pelos russos. Não se deve, no entanto, esquecer que a Ucrânia não é o Báltico. A Ucrânia tem profundidade estratégica e forças militares substanciais, que vêm se reorganizando e treinando sob a supervisão da OTAN desde a invasão russa de 2014. Eles também estão recebendo apoio material maciço e em grande parte desimpedido do Ocidente.

No entanto, os analistas militares ocidentais deixaram de ser impressionados pelo poder militar russo para desapontados por seu desempenho na Ucrânia. Talvez seja a hora de respirar fundo e simplesmente “engolir”.

Por que a Rússia foi bloqueada?


Grande parte da análise agora está focada em identificar as causas dos surpreendentes fracassos russos, buscando culpar por que os russos não podem efetivamente empregar seu equipamento sofisticado. A resposta aparentemente está em uma diferença crucial: os russos não são como nós.

Uma avaliação recente do Instituto de Guerra Moderna de West Point é emblemática do que hoje é uma visão de amplo consenso de que falhas logísticas e a incapacidade de conduzir armas combinadas eficazes são o Calcanhar de Aquiles das forças armadas russas. Isso se deve em parte à falta de treinamento e experiência de combate. Mais fundamentalmente, é porque seus soldados são mal liderados e não têm o corpo de suboficiais e o poder de comando de missão de líderes subordinados prevalente nos EUA e em outras forças armadas ocidentais. Assim, a vantagem ucraniana é que “tem tentado modelar suas forças armadas nos padrões da OTAN e dos EUA, incluindo a construção de seu próprio corpo de sargentos por meio do envolvimento em programas como o Programa de Aprimoramento da Educação de Defesa da OTAN”.

Consequentemente, nas palavras de uma análise,

as forças armadas russas que muitos acreditam ser a segunda mais forte do mundo têm sérias limitações. Provou ser uma fachada de novos tanques e aviões reluzentes escondendo todos os problemas de desempenho e comando mencionados acima, até que eles tiveram que lutar.

Em suma, a Rússia tem um “Exército de Potemkin”.

E se o diagnóstico estiver errado?


É difícil argumentar com os sintomas do desempenho russo, mas e se o diagnóstico estiver errado? E se os militares ocidentais compartilham uma doença semelhante, mas não conseguem vê-la por causa de avaliações superficiais dos russos?

A este respeito, o caso da travessia do rio é particularmente instrutivo. Todos os comentaristas do artigo do Wall Street Journal enfatizam a dificuldade dessas operações. Os comentários do General de Brigada reformado do Exército dos EUA, Peter DeLuca, são representativos: "Todo o combate deve ser um balé altamente orquestrado de violência cinética, humanos, veículos e aeronaves... e a travessia de um rio é uma das manobras mais complicadas." Consequentemente, ele continua, “tudo precisa ser coordenado para ser eficaz, e não vimos os russos fazerem isso na Ucrânia”. Um engenheiro comando britânico, Tony Spamer, também opinou, baseando seus comentários em suas experiências no Afeganistão. “Nós nunca teríamos chegado a um local e tentado cruzá-lo.” Em vez disso, ele explicou que “suas unidades conduziriam até sete ensaios em baixa velocidade em sua base e depois praticariam em velocidade, cada vez reduzindo minutos das operações perigosas antes de entrar em ação”.


Os profissionais militares citados no artigo entram em detalhes sobre como eles teriam feito essa operação de maneira diferente: reconhecimento elaborado, protegendo o lado distante do rio primeiro, engano usando vários locais de cruzamento falsos, usando fumaça para obscurecer a operação, etc. Todos esses são princípios doutrinários sólidos para a travessia de um rio. Ironicamente, o artigo observa que essa também é uma doutrina russa: “As tropas russas envolvidas parecem ter ignorado sua própria doutrina militar e manuais de combate, lançando uma tentativa precipitada de uma manobra que requer planejamento cuidadoso, recursos extensivos e supervisão estrita”. A provável razão para o desastre russo no rio Siverskyi Donets: “a liderança sênior está pressionando por ganhos que as tropas não estão preparadas para alcançar”.

Os russos, no entanto, realizaram várias travessias bem-sucedidas do rio Siverskyi Donets para posicionar forças para operações ofensivas contra Izyum. Essas travessias permitiram aos russos posicionar forças para operações ofensivas na região ao sul do rio.


Esses cruzamentos, assim como outras operações russas bem-sucedidas, recebem pouca atenção da mídia. Nem os fracassos ucranianos figuram com destaque nas reportagens da guerra. Este é provavelmente o resultado de uma sofisticada campanha de informação ucraniana em todos os meios de comunicação, reforçada por histórias positivas de jornalistas cujo acesso é cuidadosamente administrado pelo governo ucraniano. Esse controle de informações é reforçado pela excelente segurança operacional de suas forças armadas. De fato, foi o governo ucraniano que distribuiu o vídeo da travessia malfeita do rio Siverskyi Donets.

A travessia fracassada do rio é retratada como mais uma evidência de que o fraco desempenho russo até agora na Ucrânia é uma falha de liderança, agravada por soldados inexperientes e inadequadamente treinados com moral em constante declínio.

Isso é de se esperar dos ucranianos que, afinal, estão engajados em um possível conflito existencial no qual as narrativas da mídia internacional desempenham um papel fundamental na obtenção de apoio. No entanto, aqueles que são cativados por histórias de fracassos russos devem pensar cuidadosamente sobre o motivo disso, talvez porque validem sua competência pessoal e a dos militares de seu país.

Um diagnóstico reconfortante para a doença errada

O que é reconfortante em culpar os fracassos russos em sua prática, e não em sua doutrina, é que isso isenta os militares ocidentais de qualquer exigência de examinar minuciosamente sua própria doutrina. Isso é importante porque, como vários artigos observam, a doutrina para uma operação de travessia de rio é semelhante entre as forças armadas.

Soldados americanos em um barco de assalto cruzam o rio Volturno em meados de outubro de 1943, durante a primeira grande travessia de rio na Europa pelas tropas aliadas.

A doutrina da travessia de rios baseia-se em grande parte nas lições aprendidas a duras penas da Segunda Guerra Mundial na Europa, quando todos os exércitos enfrentaram o desafio de atravessar rios e outros obstáculos para manobrar. De fato, uma travessia de rio com oposição foi uma das operações mais difíceis de executar. Talvez o exemplo mais infame seja a tentativa de janeiro de 1944 de cruzar o Rio Rapido durante a campanha italiana. Essa operação falhou diante da oposição alemã determinada e resultou em altas baixas americanas. Houve também exemplos bem-sucedidos, mais notavelmente a travessia noturna de barco do rio Reno em 22 de março de 1945 em Nierstein pela 5ª Divisão de Infantaria, parte do Terceiro Exército do General George Patton — “a primeira travessia de barco do rio Reno por um exército invasor desde Napoleão Bonaparte.” Um exemplo mais famoso foi a captura anterior da ponte Ludendorf sobre o Reno em Remagen, em 7 de março de 1945.

A Segunda Guerra Mundial foi a última vez que o Exército dos EUA ou o Exército Russo realmente cruzaram um rio contra um adversário competente e bem armado. As operações no Afeganistão eram geralmente discricionárias, e as travessias de rios, embora complexas, enfrentavam pouca oposição lá. Tampouco foram um componente crítico para o sucesso de uma operação, enquanto na Segunda Guerra Mundial eram, e na Ucrânia são. Daí o senso de urgência russo.

Qual é a doença?

A história da travessia de rios destaca a verdadeira doença que aflige tanto os russos quanto seus observadores ocidentais: inexperiência crônica no combate ofensivo contra um adversário competente que é capaz, na descrição de hoje, de contestar todos os domínios em uma guerra prolongada que gera alto número de baixas. Nem a Rússia e nem o Ocidente tiveram experiências operacionais ou de combate relevantes para a guerra na Ucrânia em mais de uma geração, se não desde a Segunda Guerra Mundial.


Por experiência operacional quero dizer prática em desdobrar, manobrar e apoiar grandes formações de vários escalões em operações conjuntas contra um inimigo competente e bem armado, determinado a lutar e capaz de fazê-lo. Ambas as forças armadas têm líderes veteranos com anos de experiência em combate. A Rússia está ocupada com suas forças armadas desde a década de 1990 na Chechênia, Geórgia, Crimeia, Ucrânia e Síria, e em outros países com seus contratados militares do Grupo Wagner. Os Estados Unidos e muitos de seus aliados da OTAN são veteranos do Afeganistão, e os militares norte-americanos e britânicos prestaram amplo serviço no Iraque. No entanto, as Operações Escudo do Deserto/Tempestade no Deserto e Operação Liberdade do Iraque, as últimas operações de combate em grande escala dos EUA, foram contra oponentes que eram amplamente superados e ocorreram em um ambiente onde os Estados Unidos desfrutavam de supremacia aérea e controle marítimo totais.

O desafio ucraniano é diferente daquele enfrentado pelos russos. Os ucranianos estão defendendo e têm uma profunda experiência nesse tipo de operação na região do Donbas desde a invasão em 2014. Resta saber se eles podem ou não assumir a ofensiva em qualquer escala no futuro. A Guerra Russo-Ucraniana, em 24 de maio, tem apenas três meses, o que é curto para os padrões de qualquer grande guerra. Poder-se-ia recordar utilmente que demorou de 7 de julho a 26 de setembro de 1941 para que o ataque alemão à União Soviética na Operação Barbarossa alcançasse e tomasse Kiev. A guerra atual parece estar evoluindo para uma prolongada guerra de desgaste. Portanto, a estratégia russa de manobra limitada e forte dependência de fogos ainda pode ser boa. Eles parecem estar aprendendo, como o analista da Rússia, Michael Kofman, apontou em um recente podcast do War on the Rocks. Esse prolongamento das grandes operações de combate também está além da experiência de oficiais ocidentais em serviço.

No início da guerra, o pessoal da ativa da Rússia e os principais sistemas de armas alocados para a invasão superavam significativamente os da Ucrânia quase em dois para um. Dados precisos sobre baixas e perda de material são difíceis de obter, principalmente na Ucrânia, onde os dados são compreensivelmente considerados um segredo nacional. No entanto, se os números relatados por cada combatente estiverem no corretos, essas estimativas mostram que ambos os lados estão sofrendo níveis significativos de desgaste, principalmente no seu pessoal.

Se isso for verdade, então a Ucrânia está potencialmente em sérios problemas se a guerra continuar por muito mais tempo. A observação de Carl von Clausewitz é tão verdadeira agora quanto era no século XIX: “É claro que é da natureza das coisas que, além da força relativa dos dois exércitos, uma força menor se esgote mais cedo do que uma maior; ela não pode percorrer um curso tão longo e, portanto, o raio de seu teatro de operações deve ser restrito”. Resta saber se a Rússia, com sua força de trabalho inexplorada, mas em grande parte não treinada, pode manter forças utilizáveis em campanha por mais tempo do que a Ucrânia, que também está mobilizando suas reservas e voluntários.


Os militares ocidentais também são condicionados pelo que Jeffrey Record chama de “fobia de baixas”. Ele atribui esse fenômeno à Guerra do Vietnã, mas observa que suas implicações modernas se manifestaram na Operação Allied Force em Kosovo. Sua tese é que os formuladores de políticas e oficiais militares de alto escalão dos EUA acreditam que o “uso da força em situações de intervenção opcional deve estar preparado para sacrificar até a eficácia operacional em prol da prevenção de baixas” e que na guerra contra a Sérvia, “a proteção da força foi concedida prioridade sobre o cumprimento da missão”. Para apoiar essa conclusão, Record cita o então presidente do da Junta de Chefes do Estado-Maior, General Hugh Shelton, para apoiar esta conclusão: “A principal lição aprendida com a Operação Allied Force é que o bem-estar de nosso povo deve continuar sendo nossa primeira prioridade”.

Consequentemente, os militares ocidentais se concentraram fortemente na proteção da força. Isso foi possível devido à natureza discricionária da maioria das operações – os tipos de operações que a maioria dos militares em serviço experimentou quase que exclusivamente durante suas carreiras. Há também uma preocupação sempre presente por trás da maioria das decisões operacionais de que a aversão pública percebida às baixas poderia desequilibrar a política. Isso não quer dizer que as guerras irregulares no Afeganistão e no Iraque não foram brutais e mortais. Elas certamente o eram nos níveis de soldado, grupo de combate, pelotão e companhia. Dito isto, as operações raramente envolviam o emprego de batalhões ou formações maiores em operações de armas combinadas.

Em mais de 20 anos de guerra no Afeganistão, nenhuma posição de pelotão foi perdida em combate. Os níveis de baixas eram extraordinariamente baixos, mesmo para os padrões da Guerra do Vietnã, e o atendimento médico foi rápido e abrangente. Finalmente, o combate era mortal apenas no nível do solo; aeronaves operavam em grande parte com impunidade fora do alcance das limitadas defesas aéreas adversárias. As perdas de aviação ocorreram em operações de baixa altitude e quase exclusivamente em helicópteros.

A guerra na Ucrânia demonstrou claramente os altos custos humanos da guerra em larga escala e de alta intensidade. As baixas russas no rio Siverskyi Donets e em outras batalhas mostram que estas são guerras em que companhia, batalhão e formações ainda maiores podem ser aniquiladas em um piscar de olhos, resultando em um grande número de soldados mortos em ação e feridos, bem como perdas significativas de material.

Consequentemente, na Ucrânia, estamos vendo o retorno do imperativo de preservação da força, em vez de proteção da força. Atualmente, isso está além da consciência dos militares ocidentais e da capacidade atual de atendimento a baixas de combate.

Mudar a mentalidade de “proteção da força” para “preservação da força” beira a heresia na cultura militar ocidental atual. Na Ucrânia, a Rússia está aprendendo a necessidade de preservação da força da maneira mais difícil – no implacável cadinho do combate. Uma pergunta razoável é se os governos ocidentais se prepararam ou não, muito menos seus cidadãos, para um conflito que poderia resultar em milhares de mortes e muito mais baixas em apenas algumas semanas. A conta do açougueiro despertaria a paixão das pessoas descritas na trindade do livro Da Guerra, de Carl von Clausewitz, mesmo em países com militares voluntários? Esse nível de baixas poderia desafiar, se não desequilibrar, a política?

Captura de águia de um regimento francês pela cavalaria da guarda russa em Austerlitz, por Bogdan Willewalde (1884).

O fato dos russos estarem reconstituindo unidades de novas tropas e remanescentes de unidades dizimadas em combate é a realidade do combate prolongado e de alta intensidade. Nossa própria história da Segunda Guerra Mundial mostra o custo potencial da guerra entre pares. A 1ª Divisão de Infantaria, em 443 dias de combate total no Norte da África, Sicília e Europa, sofreu 20.659 baixas. Este número é maior do que a força autorizada de 15.000 para uma divisão de infantaria americana na Segunda Guerra Mundial.

É importante ressaltar que esses níveis de baixas na guerra da Ucrânia também questionam a capacidade dos exércitos ocidentais de manterem a força de combate adequada em outras guerras que não sejam curtas e com baixas modestas. Muito está sendo feito sobre os russos confiarem em reservas mobilizadas às pressas para substituir as perdas. Ironicamente, como tem sido demonstrado desde as Guerras Napoleônicas, o levée en masse é um requisito para a guerra estatal prolongada neste nível. Os russos e os ucranianos têm sistemas para recrutar seus cidadãos; a prática foi abandonada, juntamente com sua infraestrutura de apoio, na maioria dos países ocidentais. Talvez este seja um caso de preparação prudente, em vez de um ato de desespero?

Esta guerra é a mesma, mas diferente


Enquanto muitos aspectos da guerra na Ucrânia ecoam as grandes guerras passadas, como a Segunda Guerra Mundial e, em menor grau, a Guerra da Coréia, existem várias novas dimensões. Uma em particular provavelmente explica o desastre da travessia do rio Siverskyi Donets: a vigilância onipresente do campo de batalha. Os ucranianos relataram que descobriram a operação de travessia russa por meio de reconhecimento aéreo. As fontes potenciais dessas informações são muito mais diversas e numerosas agora do que nos conflitos mais recentes. Elas incluem uma grande variedade de drones, imagens de satélite disponíveis comercialmente, inteligência de fontes ocidentais e outros meios.

Essa nova realidade significa essencialmente que não há lugar para uma formação relativamente grande se esconder. A surpresa, particularmente em um número limitado de pontos de travessia em um rio, pode não ser possível. Assim, esses tipos de operações de engano físico também podem ser inúteis. Finalmente, dada a sofisticação de muitos sensores, as cortinas de fumaça podem ser menos úteis do que no passado.

Call of Duty 4: Modern Warfare,
Missão 8: Death From Above


Essa nova realidade torna aqueles que criticam os russos não apenas errados, mas perigosos. Eles estão apegados a uma doutrina que pode estar completamente desatualizada no ambiente operacional atual. O fato de persistirem na visão de que a incompetência russa se deve principalmente a soldados destreinados e mal motivados, liderados por líderes corruptos e incompetentes, lhes dá uma resposta confortável que não invalida seus conhecimentos ou práticas atuais.

Compreensivelmente, os especialistas militares vêem a guerra através das lentes de suas próprias experiências: suas guerras. Como a guerra na Ucrânia está além de sua experiência direta, muitos observadores americanos contam com analogias com o que conhecem, como a Operação Tempestade do Deserto ou a fase inicial da Operação Liberdade do Iraque. Seus pontos de vista são justamente procurados, dada a escassez de conhecimento sobre operações militares entre a maioria dos formuladores de políticas civis e a população em geral. Assim, prevalece a visão deles de que o fracasso russo está na execução, não na doutrina.

Esses especialistas também oferecem conclusões reconfortantes: os mocinhos, que se parecem conosco, estão vencendo os bandidos, com nossa ajuda. É uma guerra justa. Nós nos sairíamos muito bem. Essas também são conclusões perigosas, de duas perspectivas.

Primeiro, elas validam as abordagens atuais dos EUA sem olhar além das explicações de primeira ordem para as inadequações russas de modo a aprender com elas. Na linguagem de como os militares americanos analisam as coisas – doutrina, organização, treinamento, material, liderança, pessoas, instalações e política – os militares russos são semelhantes na maioria dessas áreas aos militares americanos com duas exceções gritantes – suas deficiências óbvias na liderança e pessoal. Isso mostra a validade de nossa doutrina, organizações, treinamento e material – tanto disponíveis quanto desenvolvidos para competição e conflito potencial com a China e a Rússia. Não há necessidade de olhar por trás dessas portas se o verdadeiro problema são pessoas e líderes.

Não é?

Pode ser verdade que os russos não tenham um exército profissional totalmente voluntário, um forte corpo de suboficiais ou líderes orientados para o Comando de Missão que tomem a iniciativa. Se este último ponto é realmente verdadeiro nas forças armadas americanas – dada a evidência de aversão ao risco no Afeganistão e no Iraque – acredita-se fortemente que seja assim dentro da instituição. Há, no entanto, aqueles que duvidam. Nas palavras do então chefe do Estado-Maior do Exército, General Mark Milley: “Acho que somos excessivamente centralizados, excessivamente burocráticos e excessivamente avessos ao risco, o que é o oposto do que precisaremos em qualquer tipo de guerra”.

Ação das Pequenas Unidades Alemãs na Campanha da Rússia.
Publicação do Exército dos Estados Unidos da América.

O Exército dos EUA nas décadas de 1970 e 1980 olhou para a Wehrmacht da Segunda Guerra Mundial em busca de lições sobre como combater os soviéticos em menor número e vencer. Afinal, os alemães lutaram de fato contra o Exército Vermelho. Ex-oficiais nazistas, como o General Hermann Balck e o General Friedrich von Mellenthin, explicaram seu sistema e sua importância durante conferências e reuniões com oficiais e oficiais dos EUA. Versões americanizadas das práticas de educação militar profissional alemã, profissionalismo dos oficiais e incentivo à iniciativa subordinada por meio do Auftragstaktik, que se tornou o comando da missão americano, foram adotadas no Exército dos EUA como melhores práticas. Mas devemos lembrar que o mesmo tipo de Exército Vermelho destruiu a alardeada Wehrmacht nazista durante a Segunda Guerra Mundial em uma longa e desgastante guerra de desgaste, supostamente sofrendo da liderança centralizada semelhante e das doenças dos soldados treinados às pressas como hoje.

Além disso, uma história revisionista, não muito diferente da narrativa da Causa Perdida sobre a derrota dos Confederados na Guerra Civil dos EUA, foi vendida pelos alemães. Robert Citino escreveu que eles

"descreveram o exército soviético como uma horda sem rosto e irracional, com os oficiais aterrorizando seus homens em obediência e o ditador Josef Stalin aterrorizando os oficiais. Não havia sutileza. Sua ideia da arte militar era esmagar tudo em seu caminho através de números, força bruta e tamanho absoluto."

Assim, tal como o Exército da União, “‘a quantidade triunfou sobre a qualidade’. O melhor exército perdeu, em outras palavras, e a força de elite desapareceu sob os números superiores da manada'".

Essas percepções moldaram as visões dos EUA sobre as forças russas durante a Guerra Fria e, apesar de serem refutadas na década de 1990, ecoam nas avaliações atuais. Como o coronel reformado do Exército e diplomata, Joel Rayburn, disse em uma entrevista ao New Yorker: “Um exército ruim recebeu ordens para fazer algo estúpido”. Embora os oficiais agora sejam promovidos com base no clientelismo, isso não é tão diferente da exigência de confiabilidade política nas forças armadas russas na Segunda Guerra Mundial. O que deveria ter sido considerado então e agora é por que as forças alemãs foram esmagadas por um adversário tão inferior? Talvez pessoas suficientes, material e uma vontade indomável de lutar apesar das privações e contratempos sejam exatamente o que é realmente necessário para resistir e vencer na guerra entre pares. Ironicamente, esses são os traços exibidos pelos próprias forças armadas americanas na Segunda Guerra Mundial, pois fizeram sua parte para derrotar as potências do Eixo. Estes são também os traços russos sobre os quais Tolstoi escreveu, que superaram um dos exércitos mais célebres da história: O Grande Armée de Napoleão. Eles podem explicar o apoio contínuo do povo russo à guerra, apesar da descrença ocidental, que Putin enquadrou como uma guerra do Ocidente contra a Mãe Rússia e rotulou os ucranianos como “nazistas” para evocar ainda mais a Grande Guerra Patriótica.

Isso leva ao segundo perigo: arrogância. A implicação tácita da análise ocidental é que nos sairíamos melhor do que os russos porque somos melhores do que eles.

Somos mesmo?


As palavras do General James McConville, quando assumiu o cargo de chefe do Estado-Maior do Exército em agosto de 2019, não são apenas pontos de discussão, são profundamente acreditadas no Exército dos EUA e nos outros serviços sobre si mesmos: “Nosso Exército – Regular, Guarda Nacional e Reserva – é a força terrestre mais bem treinada, melhor equipada e melhor liderada que já entrou em campanha”. McConville também deu a principal razão pela qual isso é verdade: “As pessoas são sempre minha prioridade número 1: as pessoas do nosso Exército são nossa maior força e nosso sistema de armas mais importante”. Dadas essas convicções profundamente arraigadas, não é de surpreender que os militares que não compartilham as abordagens dos EUA fiquem aquém no campo de batalha.

Essas opiniões são perigosas nas avaliações ocidentais sobre a forças armadas ucranianas. Atualmente, a narrativa predominante é que a vantagem ucraniana é que eles evoluíram para um exército ocidental moderno, treinado por mais de uma década em métodos ocidentais. Eles são profissionais. Portanto, eles prevalecerão. Assim como nós faríamos. Novamente, nada a aprender aqui.

No entanto, a evidência real não é clara; as avaliações das proezas dos militares da Ucrânia podem ser ilusórias e arrogância. O título de um artigo do Wall Street Journal resume essa visão, dizendo que tudo se resumia a “anos de treinamento da OTAN”.

Deve-se lembrar que as iniciativas ocidentais para reformar as forças armadas ucranianas não começaram até depois da invasão russa de 2014. Embora tenham progredido, muitos dos oficiais superiores foram criados no sistema soviético. Quando visitei a Universidade de Defesa Nacional em Kiev, em 1996, em uma visita de intercâmbio como diretor de assuntos acadêmicos da nossa Universidade Nacional, todos os líderes seniores eram ex-oficiais soviéticos. Alguns também eram cidadãos russos que optaram por ficar na Ucrânia porque não havia nada na Rússia para onde voltar após o colapso da União Soviética.


Consequentemente, uma burocracia profundamente enraizada no estilo soviético e um modelo de treinamento permearam os militares ucranianos. Assim, sua reabilitação é fundamentalmente um esforço de reconstrução institucional e mudança de cultura de baixo para cima que levará tempo. Em particular, as iniciativas para criar um corpo de oficiais e suboficiais baseados no mérito e proficientes são esforços de décadas que estão apenas se enraizando nos níveis inferior e médio das forças armadas ucranianas. Consequentemente, muitas das táticas acima da pequena unidade parecem mais russas do que americanas, assim como a maioria dos equipamentos.

Uma indicação de que há alguma maneira de ir além do treinamento da OTAN é que há poucas evidências de que os ucranianos estejam executando operações ofensivas de armas conjuntas e combinadas. Essa capacidade será importante se a transição da defesa e tentativa de operações ofensivas para restaurar o território perdido para a Rússia. Além disso, a Ucrânia também parece estar cedendo terreno no Donbas para um avanço russo lento e de esmerilhamento.


Consequentemente, a análise da guerra na Ucrânia precisa abordar outra questão não formulada: e se essa visão de que pessoas e líderes de qualidade são o ingrediente mais importante na guerra moderna estiver errada? E se Stalin estivesse certo de que a quantidade tem uma qualidade própria? Se for esse o caso, então os ucranianos podem precisar de uma assistência muito maior se quiserem sobreviver a uma guerra de desgaste ao estilo russo.

Além disso, à medida que os Estados Unidos planejam como competirão e potencialmente combaterão a China e a Rússia no futuro, a abordagem deve ser caracterizada pela humildade e um desejo intenso de desafiar suposições, conceitos e capacidades existentes, em vez de validar as abordagens atuais.

Como aconteceu com a Rússia, pode acontecer conosco, e precisamos entender completamente o que “isso” é.

David E. Johnson, Ph.D., é um coronel reformado do Exército. Ele é pesquisador principal da RAND Corporation, sem fins lucrativos e apartidária, e acadêmico adjunto do Modern War Institute em West Point. De 2012 a 2014 fundou e dirigiu o Chefe do Estado-Maior do Grupo de Estudos Estratégicos do Exército para o Gen. Raymond T. Odierno.

Leitura recomendada:

quarta-feira, 25 de maio de 2022

SITREP: Atualização sobre operações na Ucrânia 21 de maio de 2022, A Batalha do Donbass


Pelo Ten-Cel Michel Goya, La Voie de L'Épée, 21 de maio de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de maio de 2022.

Lembre-se que o único objetivo operacional apresentado pelos russos no final de março é completar a conquista completa do Donbass, que está associada à captura das áreas das duas províncias de Luhansk e Donetsk ainda sob controle ucraniano.

Os dados do problema

Mapa das operações.

Na verdade, isso equivale a tomar o porto de Mariupol e 250km mais ao norte dos dois pares de cidades Sloviansk-Kramatorsk (SK) e Severodonetsk-Lysystchansk (SL) 80km de distância uma da outra.

A Batalha de Mariupol será analisada separadamente. Lembremo-nos neste ponto que ela fixou cerca de 12 vários grupos táticos (GT) - exército russo, guarda nacional chechena, 1º corpo de exército DNR (República Popular de Donetsk) e uma ou duas brigadas de artilharia - por sete semanas. As forças russas, sem dúvida muito desgastadas, podem ter começado a ser retiradas para lá nos últimos dez dias de abril e re-injetadas em outros lugares após duas ou três semanas de reconstituição.

Vamos nos concentrar na batalha do quadrilátero das quatro cidades de 100.000 habitantes (SK e SL) a serem conquistadas e que constituem o “efeito maior” da “Operação Donbass”. Uma vez assegurada a conquista dessas quatro cidades, com talvez a mais afluente de Propovsk - uma encruzilhada no centro-oeste do oblast de Donetsk, 65.000 habitantes -, será possível dizer que a missão russa está cumprida, pelo menos nesta fase da guerra.

Esta área operacional é abordada por pelo menos 50 grupos táticos russos, apoiados provavelmente por sete brigadas de artilharia e cem surtidas aéreas/dia, ou seja, metade da força expedicionária russa na Ucrânia, enfrentando 12 brigadas de manobra, brigadas territoriais ou da guarda nacional (pelo menos) e vários batalhões de milícias. Podemos estimar a proporção geral de forças para uma ligeira superioridade numérica russa em homens, três contra dois a seu favor para veículos de combate e dois contra um para artilharia e muito mais em apoio aéreo.

Quanto custa isso?


A maioria das unidades de combate de ambos os lados está desgastada por várias semanas de combate e seu nível tático é reduzido. Mesmo que os russos tenham feito algumas adaptações, esse nível permanece, em média, mais alto para as unidades ucranianas nos pontos de contato. Beneficiando-se de uma postura defensiva geral e superioridade de inteligência, as unidades ucranianas geralmente abrem fogo efetivamente primeiro e, portanto, também prevalecem na maioria dos casos.

Isso se traduz em perdas. Se considerarmos as perdas materiais documentadas pelo site Oryx para todo o teatro de operações, os russos teriam perdido 400 tanques e veículos blindados de infantaria no mês passado. Recorde-se que estas são apenas perdas documentadas e, portanto, ambas inferiores à realidade (será adicionado um suplemento de 30%) com talvez um viés a favor dos ucranianos, que a priori fornecem mais documentos que os russos. Podemos, portanto, considerar como provável a perda da dotação de cerca de 10 GT russos em um mês em todo o teatro, incluindo 6 ou 7 no Donbass, ou seja, entre 12 e 15% do potencial. É interessante notar que essas perdas são inferiores às do mês anterior - 700 perdas de veículos de combate documentadas - o que se explica pelos danos consideráveis ​​da batalha de Kiev para os russos (que será lembrado que é apresentado como um desvio na narrativa pró-russa).

Ao mesmo tempo, a proporção de perdas entre russos e ucranianos dificilmente mudou de uma batalha para a outra. Os ucranianos perderam efetivamente 100 veículos de combate durante o último mês, ou seja, 1 por 4 russos, contra 150 no mês anterior e 1 por 4,7, o que atesta, apesar do desgaste, a manutenção da diferença de nível tático. Os ucranianos, por outro lado, atingiram a retaguarda russa - artilharia e logística - três vezes menos do que no mês anterior, o que se explica pela melhor proteção russa desta retaguarda em comparação com a batalha de Kiev onde os longos e finos eixos de penetração russos poderiam ser atacados por forças ucranianas.


Por trás dessas perdas materiais, obviamente há pessoas que estão sofrendo. As perdas humanas são muito difíceis de estimar. Após observar a correlação entre as perdas observadas em veículos e as perdas humanas estimadas por fontes não oficiais, tomaremos como base de cálculo que a perda documentada de um veículo de combate russo está correlacionada (e não a causa) a essas 24 perdas permanentes (mortos, feridos graves, prisioneiros) para 40 do lado ucraniano. A diferença entre os dois campos é explicada pela maior densidade de materiais russos, com uma proporção muito alta de veículos blindados/homens, e uma diferença na fonte de perdas humanas. De fato, é muito provável que a maioria das perdas ucranianas venha de fogo de artilharia e fogo aéreo e não de combate direto, o que é menos o caso do lado russo.

Com estes parâmetros empíricos, podemos estimar que os russos nesta fase perderam definitivamente entre 9 e 10.000 homens na ofensiva do Donbass contra 4 a 5.000 ucranianos, excluindo a batalha de Mariupol que equilibra um pouco este relatório. Essas perdas concentram-se principalmente em ambos os lados nas unidades corpo-a-corpo e mais particularmente nas dos russos, que multiplicam os ataques de 2 a 3 GT em 5km de frente e dos quais aproximadamente três em cada quatro são repelidos com perdas. Mas foi o bem-sucedido 1 em 4 que permitiu que os russos avançassem, assim como as forças aliadas martelando - com muito mais sucesso - a frente alemã de julho a novembro de 1918.

Enquanto o terreno conquistado dificilmente pode ser recuperado pelos ucranianos e o 1 em 4 tende a se tornar 1 em 3, os russos mantêm assim a esperança de vencer.

A martelagem do front


A área de ação pode ser dividida de oeste a leste em quatro zonas de combate que percorrem amplamente o rio Donets e a área florestal que o circunda: Izium, Lyman, Noroeste de Severodonetsk, Leste de Severodonetsk e Popasna.

Com pelo menos uma vintena de GT, o bolsão de Izium foi sem dúvida considerado a principal zona de ação com a vontade russa de empurrar em todas as direções. O primeiro ataque ocorreu primeiro em direção ao oeste, sem dúvida para proteger a principal linha de comunicação para Belgorod e, inversamente, para cortar o eixo P78 entre Kharkiv e Barvinkove e depois Sloviansk. O ataque nessa direção progrediu por vários quilômetros antes de parar diante da boa resistência ucraniana. Continuou para o sul em direção a Barvinkove, enfrentando a 3ª Brigada Blindada sem dúvida a intenção de envolver a área de operação pelo oeste. O ataque teria atingido o pico no final de abril, não atingindo Bervinkove. Os ataques, em vez disso, mudaram para o leste contra a 81ª Brigada de Assalto Aéreo em ataques convergentes para Sloviansk, com pouco sucesso até agora, mas possivelmente com mais sucesso nos próximos dias.

O progresso russo mais significativo ocorreu na área dentro de um raio de 20km ao redor de Lyman, uma cidade de 20.000 habitantes, 20km a nordeste de Sloviansk. Lyman é um ponto-chave ao norte do Parque Natural Sviati Hory e do rio Donets que comanda o eixo norte entre Sloviansk e Severodonetsk. Conquistar toda essa área da 57ª Brigada Motorizada e das 95ª e 79ª Brigadas de Assalto Aéreo levou todo o mês de abril. Os russos alcançaram um sucesso significativo em 30 de abril, avançando em direção a Ozerne no rio Donets e depois tomando Yampi alguns quilômetros a sudeste de Lyman. Desde o início de maio, os esforços russos se concentraram em tomar as aldeias a noroeste de Lyman, que está cada vez mais ameaçada de cerco. Uma vez tomada Lyman, a principal eclusa ao norte de Sloviansk, as forças russas poderão chegar no início de junho até as defesas do norte de Sloviansk, bastante sólidas no rio Donets a leste, a floresta ao norte e a cadeia de localidades de Barvinkove no oeste.

A área noroeste de Severodonetsk é onde os combates foram mais difíceis. Estes começaram no início de março e especialmente da parte do exército da República Popular de Luhansk, LNR (14.000 homens no total) que aproveita a fraqueza do exército ucraniano na região para, com a ajuda do 8º Exército russo, capturar o resto da província de Luhansk. A linha se moveu pouco até abril, quando o esforço da coalizão russa, incluindo chechenos-LNR, concentrou-se na conquista da cidade de Rubizhne (56.000 habitantes, 37 km²) que foi definitivamente conquistada em 13 de maio, após mais de um mês de combates. Foi ao tentar estender o ataque mais a oeste que duas brigadas do 41º Exército cruzaram o rio Donets para se aproximar de Lysychansk, imediatamente a oeste de Severodonetsk, e uma delas perdeu um GT completo em 9 de maio perto de Bilohorivka.


Pouco a dizer sobre a área oriental de Severodonetsk, onde as forças da 127ª Divisão de Infantaria Motorizada russa e 3 brigadas LNR estão fazendo pouco progresso. Há uma forte concentração de artilharia russa ali, com por exemplo a chegada recente de baterias 2S4 Tyulpan de 240mm.

O avanço russo mais espetacular ocorreu em Popasna (22.000 habitantes), 50 km ao sul de Sverodonetsk, em 7 de maio, após seis semanas de combates. Popasna é claramente o novo eixo de esforço após o fracasso em Izium. Uma dúzia de GT estão reunidos lá, incluindo unidades de infantaria naval russa e de assalto aéreo, um sinal de prioridade, mas também a 150ª Divisão de Infantaria Motorizada, presente em Mariupol. A captura da cidade, um ponto alto, permitiu observar e, portanto, atacar com artilharia todos os movimentos ucranianos, em particular entre o entroncamento de Bakhmut (77.000 habitantes) e Lysytchansk-Severodonetsk. As forças russas e LNR conseguiram então continuar em todas as direções a um ritmo sem precedentes desde a batalha de Kiev, de vários quilômetros por dia. O avanço para o norte já ameaça cercar as forças ucranianas nas pequenas cidades de Zolote e Hirske ao longo da linha de frente, antes de chegar a Lysytchansk-Severodonetsk (LS) e a oeste o principal eixo de abastecimento do LS na área de Soledar, mesmo Bakhmut.

Perspectivas


Um mês após o anúncio oficial da fase principal da Batalha do Donbass, e de fato já dois meses de ataques, os russos ainda estão longe da vitória operacional. Depois de considerar o envolvimento total, eles reduziram sua ambição para cercar Lysytchansk-Severodonetsk e capturar Lyman antes de embarcar em Sloviansk, que eles também esperam cercar e tomar.

Isto pressupõe, em primeiro lugar, poder continuar a fazer um esforço sustentado durante várias semanas à custa de perdas significativas. Também será necessário poder abastecer as forças conforme o progresso dentro da zona entre LS e SK, uma missão sempre difícil quando se afasta dos caminhos-de-ferro e que se está exposto aos eixos logísticos ao assédio ucraniano. O problema é o mesmo para as sete brigadas ucranianas no caldeirão, muito desgastadas e difíceis de abastecer.

É difícil imaginar que os ucranianos ficarão sem reação ao cerco de Lysytchansk-Severodonetsk e sem dúvida virão disputar o terreno, talvez tentando retomar Popasna. Resta saber se esse fortalecimento virá à custa do enfraquecimento de outros setores e, sobretudo, qual será o seu efeito.

Admitindo que o cerco de Lysytchansk-Severodonetsk tenha sido alcançado, será então necessário tomar essas duas localidades que se preparam para um cerco há dois meses e têm forças superiores às que defenderam Mariupol. É difícil ver como, à custa de muito esforço e salvo um colapso ucraniano, os russos poderiam tomar as duas cidades antes do final de julho. Serão eles capazes de apoiar uma luta paralela para cercar Sloviansk-Kramatorsk, o que provavelmente não poderá ocorrer antes do final de junho a esse ritmo, então um investimento das duas cidades ainda mais difícil do que em Lysytchansk-Severodonetsk, porque mesmo forças ucranianas melhor defendidas e especialmente próximas?


Tudo isso parece difícil, mas não insuperável se as outras frentes – Kharkiv, Zaprojjia, Kherson – resistirem aos ataques ucranianos. Se alguém rachar, e especialmente do lado de Kherson, toda a economia de forças no teatro de operações será posta em causa. A operação do Donbass será comprometida. Se as outras frentes resistirem e se o exército russo for capaz de fornecer ao teatro de operações uma rotação de unidades reconstituídas em Belgorod ou Rostov com equipamentos suficientes e voluntários relativamente bem treinados, e inovando (por exemplo, modificando a estrutura dos grupos táticos), a conquista do Donbass pode ser uma realidade no final de agosto. Nesse momento, as perdas de ambos os lados serão muito pesadas e mais equilibradas do que atualmente com prisioneiros de cidades capturadas. É provável que a Rússia considere então mudar para uma postura defensiva geral com talvez uma proposta de paz negociada, pelo menos o suficiente para ver se é possível relançar uma ofensiva contra Odessa.

O problema para os russos é que os ucranianos não vão deixar passar e que com sua mobilização humana e ajuda material americana, eles também podem abastecer a frente por alguns meses em uma bagunça parecida com a dos russos, mesmo com uma ruptura de carga além do Dnieper. Acima de tudo, eles podem planejar a formação de novas unidades, batalhões em um primeiro momento e novas brigadas em poucos meses, e assim ter uma forte capacidade ofensiva que não deixarão de usar antes que o Ocidente tenha esgotado suas capacidades militares.

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terça-feira, 24 de maio de 2022

Poder Brando: A China desiste de briga com fãs de K-Pop

Monumento chinês em frente ao Museu da Guerra para Resistir à Agressão Americana e Ajudar a Coreia em Dandong.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 24 de maio de 2022.

A China sofreu um choque em 2020 quando percebeu que sua propaganda começa e termina dentro das fronteiras da China continental, sendo sobrepujada em basicamente todas as mídias internacionais, lhe faltando empatia e amigos por todos os lados. Ao reclamar sobre a sua versão da Guerra da Coréia não ser aceita na Coréia do Sul, viu impotente como não tinha poder de coerção sobre até mesmo uma banda de celebridades adolescentes. Isso levou a uma catarse na cúpula chinesa e a uma corrida para tentar criar o poder brando (soft power) que tanto lhe falta. A China precisa apresentar uma "cara nova" diante do mundo que Pequim tanto deseja guiar como um hegemon.

O especialista S. Nathan Park, advogado de Washington e membro não residente do Sejong Institute, assim analisou o caso envolvendo a banda BTS de K-Pop. Tudo começou quando a China quis impor a sua versão histórica onde os bravos e abnegados "voluntários" chineses foram salvar a Coréia do Norte da agressão "imperialista" dos Estados Unidos. Inicialmente, a Samsung até mesmo removeu os produtos relacionados ao grupo sul-coreano BTS de suas lojas oficiais nas plataformas de comércio eletrônico chinesas, depois que os comentários da banda sobre a Guerra da Coréia irritaram os internautas chineses, que disseram que a "atitude unilateral" do grupo de K-pop em relação à guerra "nega a história". Apesar do bravado e da reação irritada, Pequim se viu - atônita - no lado perdedor. Isso levou a uma reavaliação do seu poder brando.

A Batalha do Lago Changjin
(
Chang jin hu, 2021).

Em resposta, a China produziu o filme A Batalha do Lago Changjin (Chang jin hu), um blockbuster sobre a Guerra da Coréia (1950-1953) que se tornou o filme de maior bilheteria de 2021 e da história do cinema chinês; batendo a Marvel e James Bond. O filme estrela Wu Jing, uma estrela chinesa em ascensão, como o protagonista comandante da 7ª Companhia do "Exército Voluntário do Povo Chinês". Este sucesso foi seguido pela continuação A Batalha do Lago Changjin II (1º de fevereiro de 2022), e por Snipers (Ju ji shou), este último sobre o atirador de elite chinês Zhang Taofang, que matou 214 soldados inimigos em 32 na Batalha de Triangle Hill. Tal como Simo Häyä, Zhang não usava luneta no seu fuzil, que também era um Mosin-Nagant.

Poder Brando: A China desiste de briga com fãs de K-Pop

Membros do BTS participam do Mnet Asian Music Awards 2019 no Nagoya Dome em Nagoya, Japão, em 4 de dezembro de 2019.
(Jean Chung/Getty Images)

Por S. Nathan ParkForeign Policy, 20 de outubro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 24 de maio de 2022.

O poder brando da Coreia do Sul deve ser um modelo para Pequim.

A República Popular da China (RPC) provou não ser páreo para o ARMY. Quando o grupo de superestrelas do K-pop, BTS, reconheceu o sacrifício compartilhado de americanos e coreanos ao receberem o Prêmio James A. Van Fleet da Korea Society, em homenagem a um general americano durante a Guerra da Coréia, as mídias sociais chinesas ficaram indignadas, percebendo a mensagem do BTS para ser um desrespeito contra os soldados chineses na guerra. O Global Times, o tablóide estatal da China, criticou o grupo por sua “atitude unilateral” que “nega a história”. As lojas online começaram a puxar produtos relacionados ao BTS, antecipando o tipo de frenesi nacionalista que custou a franquias gigantes como a NBA e a loja de supermercados sul-coreana Lotte centenas de milhões de dólares no passado.

Mas a ofensiva da mídia chinesa contra os reis do K-pop durou apenas dois dias. O Global Times deletou discretamente alguns de seus artigos criticando o BTS, e a negatividade contra o grupo nas mídias sociais chinesas também desapareceu rapidamente. O pedido de boicote de alguns fãs chineses pouco afetou o BTS, apoiado por seu fã-clube mundial “ARMY” (que significa Adorable Representative M.C. for Youth, se você está se perguntando). Pouco depois de receberem o Prêmio Van Fleet, o BTS se tornou um dos cinco grupos musicais da história a ocupar os dois primeiros lugares simultaneamente na parada de músicas Hot 100 da Billboard, juntando-se aos Beatles e Bee Gees, entre outros. A oferta pública inicial da Big Hit Entertainment, empresa de produção do BTS, na semana passada, estava entre os IPO mais bem-sucedidos da história do mercado de ações coreano, já que o preço das ações quase dobrou no primeiro dia.

Este episódio recente é mais um exemplo de um fato cada vez mais óbvio: a China é ruim em soft power. Sua recente virada para o nacionalismo intensificado e detestável não está conquistando corações e mentes. Em todo o mundo, a percepção negativa da China está atingindo máximos históricos. Em uma pesquisa recente do Pew Research Center em 14 países, a opinião negativa média da China foi de 74% – acima dos 36,5% em 2002. Isso contrasta fortemente com sua vizinha Coreia do Sul, o qual não fica em segundo plano para muitos países quando, ahem, se trata de nacionalismo expressivo. Em uma pesquisa de 2019 conduzida pelo Serviço de Cultura e Informação Coreano (Korean Culture and Information ServiceKOCIS), a favorabilidade média da Coreia do Sul entre os 15 países pesquisados ​​foi de sólidos 76,7%, com mais de 90% de avaliações de favorabilidade de vários países, incluindo Rússia, Índia, Brasil, e Tailândia. A Coreia do Sul, em outras palavras, é tão popular quanto a China é impopular. A cultura pop da Coreia do Sul desempenhou um papel importante na imagem positiva da nação no mundo: uma pluralidade de entrevistados na mesma pesquisa KOCIS disse que o K-pop foi a primeira coisa que veio à mente sobre a Coreia do Sul (12,5%), seguido por comida coreana (8,5%) e cultura (6,5%).

Grupo de K-Pop, Red Velvet, na Coreia do Norte


A China seria sensata em seguir a estratégia de poder brando da Coreia do Sul. Para ter certeza, a afirmação da moda de que “o governo coreano criou o K-pop” é um exagero e geralmente é usada para descontar a arte e a criatividade da cultura pop coreana, pintando-a como um projeto de obras públicas monótono. Fundamentalmente, a cultura pop sul-coreana encontrou ressonância global porque os artistas da Coreia criaram produtos culturais que o mundo achou atraentes. Mas o governo coreano desempenhou um papel: queria ganhar soft power (poder brando) por meio da cultura pop, concebeu uma estratégia abrangente para aumentar o alcance de seus próprios artistas e implementou políticas específicas que conduzem ao florescimento da cultura pop.

O ex-presidente sul-coreano e vencedor do Prêmio Nobel da Paz Kim Dae-jung foi o arquiteto da estratégia de poder brando do país. Kim assumiu o cargo no momento certo em 1997, quando a Coreia do Sul estava começando a ver uma explosão da cultura pop após a transição da ditadura militar em 1987. Seo Taiji and Boys, a fonte do K-pop moderno, estreou em 1992. Seopyeonje, um filme de 1993 sobre a música pansori tradicional da Coréia, atraiu quase 3 milhões de espectadores, tornando-se o filme doméstico de maior sucesso até hoje. O megahit de 1991, What Is Love, com uma classificação nacional irreal de 64,9% (a terceira maior audiência de um drama coreano de todos os tempos), também foi o primeiro drama coreano a encontrar popularidade na China quando a CCTV (agora CGTN) transmitiu o programa em 1997. De pé à beira desse Big Bang, Kim Dae-jung formulou uma postura em relação ao desenvolvimento da cultura pop que continua até hoje.

Kim tinha muita confiança na capacidade da cultura coreana de se destacar no cenário mundial. Ele gostava de notar que, embora a Coréia tenha sido influenciada pela cultura chinesa por 2.000 anos, a Coréia nunca foi sinicizada ao contrário, como ele viu, dos mongóis do Império Yuan ou dos manchus do Império Qing - porque os coreanos foram capazes de aceitar a cultura internacional e criar sua própria versão exclusiva. Kim também acreditava que a cultura crescia por meio de trocas; qualquer tentativa de proteger uma cultura da exposição internacional levaria à estagnação. Mais importante ainda, Kim reconheceu que o governo tinha um papel de apoio à cultura, mas que não deveria ultrapassar seus limites. Em uma entrevista de 2007 que revisitou as realizações de seu governo, Kim deixou essa crença clara: “A intervenção mata as artes. A criatividade deve fluir livremente. Mas os artistas são economicamente fracos, então o governo deve apoiá-los financeiramente. Ajude-os com dinheiro, mas não intervenha.”

Esse mantra “apoie, mas não intervenha” ficou conhecido como o “princípio da distância” – a doutrina orientadora da política cultural da Coreia do Sul até hoje. Sob esse princípio, o governo Kim se concentrou em promover a liberdade de criação e troca, estabelecer a infraestrutura legal para proteger o direito dos artistas à propriedade intelectual e fornecer subsídios financeiros sem referência ao conteúdo da arte. A administração aboliu o processo de aprovação de filmes que efetivamente atuavam como censura. A proibição de produtos da cultura pop do Japão foi suspensa, permitindo que filmes, programas de TV, histórias em quadrinhos e música viajassem livremente pelo estreito. Inicialmente, alguns temiam que o produto japonês superior dizimasse o mercado coreano - mas o resultado foi o oposto, pois os dramas coreanos e o K-pop começaram a florescer no mercado japonês.

Inúmeras leis foram aprovadas para proteger os direitos de propriedade intelectual e o fluxo de dinheiro decorrente de tais direitos, especialmente no que diz respeito a filmes e música. As leis também forneceram clareza sobre o status legal de formas emergentes de cultura pop na época, como videogames, clubes de música ao vivo para bandas indie e streaming online. Kim prometeu dedicar pelo menos 1% do orçamento do governo para a promoção das artes, elevando-o da faixa de 0,3% na época. Sua administração alcançou esse marco em 1999; parte do orçamento foi usado para estabelecer o Fundo de Promoção da Indústria Cultural, que forneceu empréstimos a juros baixos para criadores de conteúdo. Um dos beneficiários desse fundo, por exemplo, é a desenvolvedora de jogos Bluehole, mais conhecida por seu jogo online multiplayer PlayerUnknown's Battlegrounds (PUBG), uma das plataformas de e-sports mais populares do mundo. Todas essas políticas formaram a base para o que veio a ser conhecido como hallyu, ou a “onda coreana”, uma onda global de popularidade de produtos da cultura pop coreana, incluindo filmes, programas de TV e música.

PlayerUnknown's Battlegrounds (PUBG).

Tom Clancy's Rainbow Six: Take-Down – Missions in Korea.
Esse jogo foi feito exclusivamente para a Coreia do Sul.

As sucessivas administrações sul-coreanas nem sempre aderiram à regra de distância do governo Kim, pois cederam à tentação de tentar controlar a cultura puxando os cordões da bolsa. O presidente conservador Lee Myung-bak, em uma tentativa de “equilibrar o poder cultural”, compilou uma lista negra de celebridades de esquerda para cortar o apoio público. Na administração seguinte de Park Geun-hye, a lista negra cresceu para incluir quase 10.000 nomes. Felizmente, porém, tais tentativas de subjugar as artes nunca foram normalizadas. Quando a lista negra foi revelada em 2016, tornou-se um dos focos dos protestos à luz de velas que derrubaram a presidência de Park por meio do impeachment. Com o princípio da distância restaurado, a cultura pop da Coréia do Sul teve outro ano de destaque em 2020: além do sucesso do BTS, o filme Parasita (Gisaengchung, 2019) de Bong Joon-ho - que foi um dos primeiros diretores a ser colocado na lista negra pelas administrações de Lee e Park - ganhou quatro prêmios da Academia, incluindo melhor filme.

A China certamente não carece da capacidade de fazer produtos fantásticos da cultura pop; na verdade, não faz muito tempo que Hong Kong era a capital cinematográfica da Ásia, com obras-primas de diretores como Wong Kar-wai e John Woo. O que falta, em vez disso, é uma liderança comprometida em apoiar as artes sem intervenção e a sociedade civil que disciplinaria a liderança se ela se desviasse desse princípio, como foi o caso de Kim Dae-jung e do corpo político da Coreia do Sul. Em vez disso, os controles sobre a cultura pop tornaram-se cada vez mais rígidos nos últimos oito anos sob Xi Jinping. Os líderes chineses que desejam maior poder brando fariam bem em prestar atenção ao diagnóstico simples de Kim: “A China não tem nada como o hallyu porque não é uma democracia”.