sexta-feira, 13 de maio de 2022

ENTREVISTA: Svetlana Alexievich, A Guerra não tem rosto de Mulher


Por Svetlana Alexievich, The Paris Review, 25 de julho de 2017.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de maio de 2022.

Svetlana Alexievich, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, é conhecida por seu tipo singular de colagem de história oral, que a Academia Sueca chamou de “uma história das emoções… uma história da alma”. Agora, seu primeiro livro, The Unwomanly Face of War: An Oral History of Women in World War II , publicado originalmente em 1985, foi traduzido do russo por Richard Pevear e Larissa Volokhonsky, que foram entrevistados para nossa série Writers at Work (Escritores Trabalhando) em 2015. Temos o prazer de apresentar um trecho abaixo.



Uma conversa com uma historiadora

Nós éramos uma carga alegre.

The Paris Review:
— Em que momento da história as mulheres apareceram pela primeira vez no exército?

— Já no século IV a.C. mulheres lutaram nos exércitos gregos de Atenas e Esparta. Mais tarde, eles participaram das campanhas de Alexandre, o Grande. O historiador russo Nikolai Karamzin escreveu sobre nossos ancestrais: “As mulheres eslavas ocasionalmente iam à guerra com seus pais e maridos, não temendo a morte: assim, durante o cerco de Constantinopla em 626, os gregos encontraram muitos corpos femininos entre os eslavos mortos. Uma mãe, criando seus filhos, os preparou para serem guerreiros.”

TPR: — E nos tempos modernos?

— Pela primeira vez na Inglaterra, onde de 1560 a 1650 começaram a equipar hospitais com mulheres soldados.

TPR: — O que aconteceu no século XX?

— O início do século... Na Inglaterra, durante a Primeira Guerra Mundial, as mulheres já estavam sendo levadas para a Royal Air Force. Um Corpo Auxiliar Real também foi formado e a Legião Feminina de Transporte Motorizado, que contava com 100.000 pessoas.

Na Rússia, Alemanha e França, muitas mulheres foram servir em hospitais militares e trens de ambulância.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o mundo foi testemunha de um fenômeno feminino. As mulheres serviram em todos os ramos das forças armadas em muitos países do mundo: 225.000 no exército britânico, 450.000 a 500.000 no americano, 500.000 no alemão…

Cerca de um milhão de mulheres lutaram no exército soviético. Eles dominavam todas as especialidades militares, incluindo as mais “masculinas”. Surgiu até um problema linguístico: até então não havia gênero feminino para as palavras motorista de tanque, infante, metralhador, porque as mulheres nunca haviam feito esse trabalho. As formas femininas nasceram ali, na guerra…

*

Maria Ivanovna Morozova (Ivanushkina)
Cabo, sniper

Esta será uma história simples… A história de uma garota russa comum, das quais havia muitas na época…

O lugar onde ficava minha aldeia natal, Diakovskoe, agora é o Distrito Proletário de Moscou. Quando a guerra começou, eu ainda não tinha dezoito anos. Tranças longas, muito longas, até os joelhos... Ninguém acreditava que a guerra duraria, todos esperavam que ela terminasse a qualquer momento. Expulsaríamos o inimigo. Trabalhei em um kolkhoz, depois terminei a faculdade de contabilidade e comecei a trabalhar. A guerra continuou... Minhas amigas... Diziam-me: “Devemos ir para a [linha de] frente.” Já estava no ar. Todas nós nos inscrevemos e tivemos aulas no escritório de recrutamento local. Talvez algumas tenham feito isso apenas para fazer companhia umas às outras, não sei. Ensinaram-nos a disparar um fuzil de combate, a lançar granadas-de-mão. No começo... confesso, eu tinha medo de segurar um fuzil, era desagradável. Eu não podia imaginar que iria matar alguém, eu só queria ir para a frente. Tínhamos quarenta pessoas em nosso grupo. Quatro meninas da nossa aldeia, então éramos todas amigas; cinco das aldeias vizinhas; em suma, algumas de cada aldeia. Todas elas meninas... Todos os homens já tinham ido para a guerra, os que podiam. Às vezes, um mensageiro vinha no meio da noite, dava duas horas para eles se aprontarem e eles eram levados. Eles podiam até mesmo serem retirados diretamente dos campos. (Silêncio.) Não me lembro agora — se tínhamos bailes; se tivéssemos, as meninas dançavam com as meninas, não havia mais meninos. Nossas aldeias ficaram quietas.


Logo veio um apelo do comitê central do Komsomol para que os jovens fossem defender a Pátria, já que os alemães já estavam perto de Moscou. Hitler tomar Moscou? Não vamos permitir! Eu não era a única… Todas as nossas meninas expressaram o desejo de ir para a frente. Meu pai já estava lutando. Pensávamos que éramos as únicas assim... Especiais... Mas chegamos ao escritório de recrutamento e havia muitas garotas lá. Eu apenas suspirei! Meu coração estava em chamas, tão intensamente. A seleção foi muito rigorosa. Em primeiro lugar, é claro, você tinha que ter uma saúde robusta. Eu tinha medo que eles não me levassem, porque quando criança eu ficava muitas vezes doente, e meu corpo era fraco, como minha mãe costumava dizer. Outras crianças me insultavam por causa disso quando eu era pequena. E então, se não havia outras crianças na casa, exceto a menina que queria ir para a frente, eles também recusavam: uma mãe não deveria ser deixada sozinha. Ah, nossas queridas mães! Suas lágrimas nunca secavam... Elas nos repreendiam, imploravam... Mas em nossa família restaram duas irmãs e dois irmãos — é verdade, eles eram todos muito mais novos do que eu, mas contava de qualquer maneira. Havia mais uma coisa: todo mundo do nosso kolkhoz tinha ido embora, não havia ninguém para trabalhar nos campos, e o presidente não queria nos deixar ir. Em suma, eles nos recusaram. Fomos ao comitê distrital do Komsomol e lá... recusa. Depois fomos como delegação do nosso distrito ao Komsomol regional. Houve grande inspiração em todos nós; nossos corações estavam em chamas. Novamente fomos mandadas para casa. Decidimos, já que estávamos em Moscou, ir ao comitê central do Komsomol, ao topo, ao primeiro secretário. Para levar até o fim... Quem seria nosso porta-voz? Quem era corajosa o suficiente? Pensávamos que com certeza seríamos as únicas ali, mas era impossível sequer mesmo entrar no corredor, quanto mais chegar até ao secretário. Havia jovens de todo o país, muitos dos quais estavam sob ocupação, querendo se vingar da morte de seus entes próximos. De toda a União Soviética. Sim, sim… Resumindo, ficamos até surpresas por um tempo…

À noite, chegamos à secretária, afinal. Eles nos perguntaram: “Então, como você pode ir para a frente se você não sabe atirar?” E dissemos em coro que já havíamos aprendido a atirar… “Onde? … Como? … E você pode aplicar bandagens?” Você sabe, naquele grupo no escritório de recrutamento nosso médico local nos ensinou a aplicar bandagens. Isso os calou, e eles começaram a nos olhar mais seriamente. Bem, tínhamos mais um trunfo nas mãos, que não estávamos sozinhas, éramos quarenta, e todas podíamos atirar e prestar primeiros socorros. Eles nos disseram: “Vão e esperem. Sua pergunta será decidida afirmativamente.” Como ficamos felizes quando partimos! Eu nunca vou esquecer... Sim, sim...

E, literalmente, em alguns dias, recebemos nossos papéis de convocação…

Chegamos ao escritório de recrutamento; entramos por uma porta de uma vez e fomos liberadas por outra. Eu tinha uma trança tão linda, e saí sem ela... Sem minha trança... Eles me deram um corte de cabelo de soldado... Também levaram meu vestido. Eu não tive tempo de enviar o vestido ou a trança para minha mãe... Ela queria muito ter algo meu com ela... Nós fomos imediatamente vestidas com camisas do exército, casquetes, recebemos kits e embarcados em um trem de carga - em palha. Mas palha fresca, ainda cheirando a campo.

Nós éramos uma carga alegre. Pretensiosa. Cheia de piadas. Lembro-me de rir muito.

Onde estávamos indo? Nós não sabíamos. No final, não era tão importante para nós o que seríamos. Desde que fosse na frente. Todo mundo estava lutando — e nós também estaríamos. Chegamos à estação Shchelkovo. Perto havia uma escola de atiradoras de elite femininas. Acontece que fomos enviadas para lá. Para nos tornar atiradoras. Todos nos regozijamos. Isso era algo real. Estaríamos atirando. Começamos a estudar. Estudamos os regulamentos: de serviço de guarnição, de disciplina, de camuflagem em campanha, de proteção química. Todas as meninas trabalharam muito duro. Aprendemos a montar e desmontar um fuzil de franco-atirador com os olhos fechados, a determinar a velocidade do vento, o movimento do alvo, a distância até o alvo, a cavar uma trincheira, a rastejar de bruços – já tínhamos dominado tudo isso. Só para chegar à frente o quanto antes. Na linha de fogo... Sim, sim... No final do curso tirei a nota máxima no exame para serviço de combate e não-combate. A coisa mais difícil, eu me lembro, foi levantar ao som do alarme e estar pronta em cinco minutos. Escolhemos botas um ou dois tamanhos maiores, para não perder tempo com elas. Tínhamos cinco minutos para nos vestir, colocar as botas e fazer fila. Houve momentos em que corríamos para nos alinhar com as botas sobre os pés descalços. Uma garota quase teve seus pés congelados. O sargento notou, repreendeu-a e depois nos ensinou a usar panos para os pés. Ele parou em cima de nós e murmurou: “Como vou fazer de vocês soldados, minhas queridas, e não alvos para Fritz?” Queridas meninas, queridas meninas... Todo mundo nos amava e tinha pena de nós o tempo todo. E nos ressentimos de terem pena. Não éramos soldados como todo mundo?

Bem, então chegamos à frente. Perto de Orsha... A sexagésima segunda Divisão de Infantaria... Lembro-me como hoje, o comandante, Coronel Borodkin, nos viu e ficou bravo: “Eles impingiram garotas em mim. O que é isso, algum tipo de dança de ciranda feminina? ele disse. “Corpo de balé! É uma guerra, não uma dança. Uma guerra terrível...” Mas então ele nos convidou, nos ofereceu um jantar. E nós o ouvimos perguntar ao seu ajudante: “Não temos algo doce para o chá?” Bem, é claro, ficamos ofendidas: o que ele pensa de nós? Viemos para fazer a guerra... E ele nos recebeu não como soldados, mas como menininhas. Na nossa idade, poderíamos ter sido suas filhas. “O que vou fazer com vocês, minhas queridas? Onde eles encontraram vocês?” Foi assim que ele nos tratou, foi assim que ele nos conheceu. E achávamos que já éramos guerreiros experientes... Sim, sim... Na guerra!

No dia seguinte ele nos fez mostrar que sabíamos atirar, como nos camuflar em campanha. Atiramos bem, melhor mesmo do que os atiradores de elite homens, que foram chamados da frente para dois dias de treinamento, e que ficaram muito surpresos por estarmos fazendo o trabalho deles.

Provavelmente foi a primeira vez em suas vidas que viram mulheres franco-atiradoras. Depois do tiro foi camuflagem em campanha... Veio o coronel, deu uma volta olhando a clareira, depois pisou num montículo — não viu nada. Então a “montinho” sob ele implorou: “Ai, camarada coronel, não aguento mais, você é muito pesado.” Como ríamos! Ele não podia acreditar que era possível se camuflar tão bem. “Agora”, disse ele, “retiro minhas palavras sobre as meninas”. Mas mesmo assim ele sofreu... Não conseguiu se acostumar conosco por muito tempo.

Então veio o primeiro dia de nossa “caçada” (assim os snipers chamam). Minha parceira era Masha Kozlova. Nós nos camuflamos e ficamos ali: estou de olho, Masha está segurando seu fuzil. De repente, Masha diz: “Atire, atire! Veja, é um alemão...”

Eu digo a ela: “Eu sou o vigia. Você atira!"

“Enquanto estamos resolvendo isso”, diz ela, “ele vai fugir”.

Mas insisto: “Primeiro temos que traçar o mapa de tiro, observar os marcos: onde fica o galpão, onde a bétula…”

“Você quer começar a brincar com papelada igual na escola? Eu vim para atirar, não para mexer em papelada!”

Vejo que Masha já está com raiva de mim.

"Bem, atire então, por que não?"


Estávamos brigando desse jeito. E enquanto isso, de fato, o oficial alemão dava ordens aos soldados. Uma carroça chegou, e os soldados formaram uma corrente e repassaram algum tipo de carga. O oficial ficou ali, deu ordens e depois desapareceu. Ainda estamos discutindo. Vejo que ele já apareceu duas vezes, e se não atirarmos nele novamente, será o fim. Nós vamos perdê-lo. E quando ele apareceu pela terceira vez, foi apenas momentâneo; agora ele está lá, agora ele se foi - eu decidi atirar. Eu decidi, e de repente um pensamento passou pela minha mente: ele é um ser humano; ele pode ser um inimigo, mas é um ser humano — e minhas mãos começaram a tremer, comecei a tremer toda, fiquei com calafrios. Algum tipo de medo... Esse sentimento às vezes volta para mim em sonhos mesmo agora... Depois dos alvos de compensado, era difícil atirar em uma pessoa viva. Eu o vejo na mira telescópica, eu o vejo muito bem. Como se ele estivesse perto... E algo em mim resiste... Algo não me deixa, não consigo me decidir. Mas me controlei, puxei o gatilho... Ele balançou os braços e caiu. Se ele estava morto ou não, eu não sabia. Mas depois disso estremeci ainda mais, uma espécie de terror tomou conta de mim: matei um homem?! Eu tive que me acostumar até mesmo com esse pensamento. Sim... Resumindo — horrível! Eu nunca esquecerei isso…

Quando voltamos, começamos a contar ao nosso pelotão o que havia acontecido conosco. Eles convocaram uma reunião. Tínhamos uma líder do Komsomol, Klava Ivanova; ela me assegurou: “Eles deveriam ser odiados, não lamentados...” Seu pai havia sido morto pelos fascistas. Começamos a cantar e ela nos implorava: “Não, não, queridas meninas. Vamos primeiro derrotar esses vermes, então vamos cantar.”

E não de imediato... Não conseguimos de imediato. Não é tarefa de uma mulher – odiar e matar. Não para nós... Tivemos que nos persuadir. Para nos convencermos disso…

Unwomanly Face of War:
An Oral History of Women in World War II.
Traduzido do russo por Richard Pevear e Larissa Volokhonsky.

Versão brasileira:

A Guerra Não Tem Rosto de Mulher.
Traduzido do russo por Cecília Rosas.

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