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segunda-feira, 6 de maio de 2024

Anedotas sobre o treinamento de armamento e tiro da Legião na Argélia

Legionários relaxando em Sidi-bel-Abbès,
a Casa Mãe da Legião na Argélia.

Transcrição Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 6 de maio de 2024.

Extrato do diário do legionário Simon Murray durante a Guerra da Argélia (1954-1962) sobre um incidente no alojamento em Sidi-bel-Abbès:

15 de abril de 1960

O tempo está mais quente e o moral subiu; aos poucos vamos formando uma unidade. Somos açulados por nosso desagrado comum pelos suboficiais [graduados/praças]. Não há nada como um pouco de ódio para unir a gente! Os suboficiais não são muito científicos em seus métodos de ensino, acreditam piamente que sejam incapazes de penetrar em nossos cérebros através da passagem normal dos ouvidos, de forma que pensam poder obter algum êxito abrindo um buraco na cabeça do maldito recruta. Crepelli, por exemplo, expoente especial dessa didática, conduz uma campanha de terror no setor de treinamento de armas. Se você não conseguir desmontar inteiramente um fuzil e tornar a montá-lo em poucos segundos, ou se não conseguir dizer o nome ou peso de uma determinada peça, o cabo-chefe pega o fuzil e o acerta com ele. A eficácia desse método ainda precisa ser verificada, mas ele sem dúvida estimula o esforço.

Passamos muito tempo sendo punidos por nossas falhas, ou seja, somos obrigados a rastejar de barriga no chão, subir morros com sacos nas costas ou ficar em posição de sentido por longos períodos segurando um rifle com os braços estendidos - extenuante!

[...]

Legionários paraquedistas (notar as boinas) com a metralhadora de apoio geral AA 52 (configurada com bipé) e fuzil semi-automático MAS 49/56 na Argélia.

25 de abril de 1960

Estivemos no campo de tiro hoje pela primeira vez. Não é de espantar que seja uma grande atração em nosso programa de treinamento; Volmar nos diz que são necessárias muitas e muitas horas de tiro até que estejamos preparados. Os franceses possuem três tipos de espingardas [fuzis] de calibre 7,5 milímetros em uso, cada uma designada, como seus vinhos, pelo ano de fabricação e pela fábrica que a produziu.

As fábricas ficam em Saint-Étienne, Tulle e Châtellerault. Os rifles fabricados em 1936 e 1949 são armas de repetição, e os de 1949 têm um mecanismo no cano que permite o lançamento de granadas. O rifle mais recente, de 1956, um semiautomático leve [MAS 49/56], é o ideal para o tipo de luta que logo enfrentaremos. Tem um alcance mortífero de quase 200 metros.

Além desses rifles, também usamos uma submetralhadora chamada pistole mitraillete' 49 [MAT 49], similar à Sten, e uma metralhadora ligeira produzida em 1952 [AA 52]. Nosso arsenal padrão também inclui algumas belas granadas. Aprendemos todos os detalhes dessas armas; nomes, medidas, componentes, peso e assim por diante, e podemos desmontá-las por completo e reconstituí-las de olhos fechados.

Recebemos informações gerais sobre o alcance da Legião. Atualmente abrange uma força de cerca de 30 mil homens espalhados por uma imensa área. Há quatro regimentos de infantaria adicionais na parte norte da Argélia, e três outros em Madagascar, Djibuti e Taiti. Também há quatro regimentos de infantaria fixados no deserto do Saara, além de dois regimentos de paraquedismo e dois de cavalaria. É mais ou menos isso, exceto pelo fato de que um regimento da Legião vale dez vezes mais do que qualquer outro.

[...]

Paraquedistas do 2e REP (futuro regimento do então recruta Murray) em operação no noroeste da Argélia, 1958.

23 de maio de 1960

Um espanhol decidiu que não suportava mais e se matou com um tiro na noite passada enquanto montava guarda - o nosso primeiro suicídio. Eu não teria imaginado que as coisas estivessem tão ruins.

Outro incidente com uma espingarda, ocorrido nesta tarde nos alojamentos, vai nos deixar uma marca impossível de esquecer em todos os que presenciamos a cena. Estávamos limpando as armas para a inspeção e Dahms pôs uma bala de submetralhadora de 9 milímetros na culatra de seu rifle de 7,5 milímetros e, de brincadeira, apontou-o na direção de De Graaf. Infelizmente a arma disparou e De Graaf caiu no chão.

Todos emudecemos por trinta segundos inteiros. Então De Graaf se moveu e vimos que não havia se ferido. A bala não havia saído - ficara entalada no cano. Levamos mais alguns momentos para convencer De Graaf de que ele ainda estava vivo; afinal, se alguém põe uma bala em uma arma, aponta-a em sua direção a uma distância de 3 metros e puxa o gatilho, você presume que se ela disparar, você está morto.

Quando nos recuperamos do choque, iniciamos esforços desesperados para tirar a bala do cano antes de Crepelli aparecer para a inspeção, o que ocorreria em poucos minutos. Os esforços para bater a vareta da espingarda para retirar a bala falharam e infelizmente o som do tiro alertou Crepelli; ouvimos seus passos aproximando-se pelo corredor. É claro que ele encontrou o rifle com a bala entalada e não demorou para extrair uma confissão de Dahms, que já não falava coisa com coisa.

Então, petrificados, assistimos Crepelli acertar a têmpora de Dahms com a coronha da; tinha a frieza de um homem cortando lenha com um machado. E, enquanto Dahms jazia semi-inconsciente no chão, Crepelli o chutava sem dó, o tempo agredindo-o com uma saraivada de violentos insultos em italiano. Ninguém se moveu um músculo; todos nós ficamos paralisados como górgonas boquiabertas, mal ousando respirar com receio de que o ódio de Crepelli se voltasse contra nós. Terminou tão abruptamente quanto começou, e Crepelli lançou-se porta afora aos berros, prometendo morte instantânea a qualquer um que se atrevesse a apontar de novo de novo uma arma carregada nos alojamentos. Ninguém se atreverá. Nós lentamente despertamos para a vida e voltamos a respirar. Lavamos Dahms de cima a baixo e, surpreendentemente, com exceção de uma ferida bem nítida, o estrago foi bem menor do que temíamos, mas nossas lembranças ficarão marcadas para sempre.

Crepelli passou para a inspeção das armas dez minutos depois. Nunca deve ter visto rifles mais limpos do que os nossos.

- Simon Murray. Legionário - Cinco anos na lendária Legião Estrangeira, pg. 47, 52-53 e 60-61.

Legionário:
Cinco anos na lendária Legião Estrangeira,
Simon Murray.

As armas mencionadas no texto

MAS 36

MAS 49/56

MAT 49

AA 52

domingo, 5 de maio de 2024

LIVRO: Day of the Panzer


Resenha do livro Day of the Panzer: A Story of American Heroism and Sacrifice in Southern France (Dia do Panzer: uma história de heroísmo e sacrifício americano no sul da França), de Jeff Danby, pelo Tenente-Coronel Dr. Robert Forczyk.

Uma surpresa agradável [5 estrelas]

Por Robert Forczyk, 4 de agosto de 2008.

Em O Dia do Panzer, o historiador amador Jeff Danby escreveu um dos melhores relatos de nível de companhia da Segunda Guerra Mundial publicados nos últimos anos. Embora o autor tivesse um interesse pessoal em escrever este relato - seu avô foi morto em combate durante as batalhas descritas - ele não turva a narrativa com emoções inúteis e traz um esforço de pesquisa muito sólido para abordar o tema. O resultado é uma narrativa equilibrada, objetiva e interessante – superando em muito a mistura caluniadora de Band of Brothers de Stephen Ambrose. Neste relato, Danby concentra-se na 3ª Divisão de Infantaria durante a invasão do sul da França (Operação Anvil-Dragoon) em 15-27 de agosto de 1944. Embora descreva com algum detalhe uma campanha raramente mencionada, o interesse principal do autor é descrever as atividades da Companhia L, 3-15º Regt. de Infantaria e seus tanques anexados da Companhia B/756º Batalhão de Tanques. No geral, este é um pedaço de história tática muito bem escrito e uma surpresa agradável.

Soldados americanos desembarcando no sul da França durante a Operação Anvil-Dragoon, em agosto de 1944.

O Dia do Panzer consiste em quinze capítulos, começando com a composição da Companhia L e seu combate anterior em Anzio, os desembarques anfíbios no sul da França e a marcha em direção ao vale do Ródano e culminando na ação em Allan em 27 de agosto. O autor fornece um pós-escrito que descreve a vida pós-guerra da maioria dos participantes, um apêndice que fornece uma lista completa da Companhia L (com informações sobre prêmios de combate e baixas), um glossário e alguns gráficos pictográficos muito bons sobre as MTOE das unidades de infantaria e tanques americanas (Modified Tables of Organization and EquipmentTabelas Modificadas de Organização e Equipamentos)As notas e seções bibliográficas indicam que o autor fez uma imensa pesquisa para este trabalho, incluindo a revisão da maioria dos registros oficiais americanos relevantes no NARA. Ao contrário de Ambrose, que entrevistou apenas alguns membros do E-506 PIR para Band of Brothers, Danby entrevistou uma grande quantidade de veteranos americanos, bem como cidadãos franceses da cidade de Allan, o que proporciona muito mais credibilidade. O livro é complementado por 13 excelentes mapas, incluindo um 3-D da ação em torno de Allan, que facilitam ao leitor o acompanhamento da narrativa. O livro também contém 43 fotos originais em preto-e-branco que retratam a Companhia L na França.

Nos últimos sessenta anos, os desembarques dos Aliados no sul de França foram geralmente ofuscados na historiografia do pós-guerra e na imaginação popular pelos desembarques do Dia D na Normandia. Quando consideradas, as operações no sul de França eram muitas vezes ridicularizadas como “a campanha do champanhe” e deixava-se por isso mesmo. Danby presta um grande serviço aos próprios veteranos e à história militar dos EUA, personalizando uma campanha que teve alguns momentos muito difíceis. Ao contrário dos desembarques do Dia D, as três divisões dos EUA que desembarcaram no sul da França em 15 de agosto de 1944 não enfrentaram forte resistência alemã e o autor observa que a Companhia L moveu-se para o interior mais rapidamente do que o esperado. Na verdade, a primeira semana da invasão foi mais como uma perseguição para unidades de infantaria americanas, já que a maioria das tropas alemãs recuou para norte, subindo o vale do Ródano, de volta à Alemanha.

O drama da narrativa é proporcionado quando a perseguição da 3ª Divisão de Infantaria é quase interrompida devido à grave escassez de combustível e é tomada a decisão de enviar uma pequena força-tarefa para tentar alcançar os alemães e interditar sua única rota de fuga até que o resto das forças americanas pudesse chegar. Assim, a Companhia L e dois tanques Sherman do 756º Batalhão de Tanques e alguns outros veículos foram enviados em perseguição. Infelizmente, esbarraram em um quartel-general alemão na cidade de Allan e rapidamente se encontraram num ninho de vespas, com vários soldados norte-americanos capturados. A Companhia L conseguiu tomar a cidade, mas um contra-ataque alemão, liderado por um único tanque Panther, infligiu perdas significativas (incluindo o avô do autor) e os americanos logo foram cercados. O que se seguiu foi uma ação tensa e próxima que o autor descreve detalhadamente.

Um Panzer V Panther preservado no Museu de Tanques de Bovington, na Inglaterra.

Existem vários pontos interessantes que este livro traz à tona. Primeiro, a precisão das armas portáteis alemãs era muito inferior à da infantaria americana; muitas vezes, os soldados alemães erravam tiros de curta distância, embora não fosse incomum que os fuzileiros americanos acertassem os alemães a 100-200 metros. Em segundo lugar, embora o tanque Sherman fosse inferior ao Panther em muitos aspectos, não era tão indefeso como às vezes é retratado. O autor descreve como um Sherman avistou um Panther em uma emboscada e então deliberadamente se pôs a destruí-lo. Terceiro, a tão difamada infantaria dos EUA da Segunda Guerra Mundial, muitas vezes retratada como recrutados desmotivados, poderia ter um desempenho muito bom no campo de batalha. É particularmente surpreendente ler sobre duas ações distintas em que soldados rasos tomaram diversas posições de metralhadoras alemãs e prevaleceram. Muito disso foi uma prova do treinamento superior do General Truscott na 3ª Divisão de Infantaria, mas há pouca dúvida de que a infantaria americana era agressiva e habilidosa.

Gostei particularmente da ênfase dada à cooperação entre tanques e infantaria neste livro, o que é raro em muitos relatos táticos. Os jovens oficiais que se formam hoje no Curso Básico de Oficial de Blindados devem ler a história de um dia de combate do 1º Ten Edgar Danby como comandante de pelotão como um valioso conto de advertência. Embora a maioria dos oficiais americanos envolvidos nesta ação acabem sendo baixas - por vezes como resultado de mau julgamento - não há rancor nesta narrativa. O único ponto em que questiono a avaliação do autor é em relação ao Capitão Coles, comandante da Companhia L. Coles era um cabeça quente da OCS (Army Officer Candidate SchoolEscola de Candidatos a Oficial do Exército) que agrediu repetidamente soldados alistados em um momento em que o General Patton estava prestes a ser dispensado pelo mesmo crime. O autor vê Coles como um bom líder combatente, mas eu questionaria as habilidades de liderança de alguém que batia constantemente em seus subordinados. Você não lidera homens com os punhos. Caso contrário, esta é uma excelente pesquisa histórica e uma leitura digna tanto para o especialista quanto para o público em geral.

Embora Clayton ofereça algumas informações úteis em alguns lugares - como informações sobre o desenvolvimento de tanques franceses ou a maior dependência de tropas africanas - o volume é um pouco excessivamente uma visão geral, embora com uma perspectiva gaulesa. De fato, Clayton escreve bem e oferece uma excelente visão sobre as capacidades de combate do tão difamado exército francês, mas o leitor sairá deste livro desejando que ele tivesse 200 páginas a mais.

Sobre o autor:

Tenente-Coronel Dr. Robert Forczyk é PhD em Relações Internacionais e Segurança Nacional pela Universidade de Maryland e possui uma sólida experiência na história militar européia e asiática. Ele se aposentou como tenente-coronel das Reservas do Exército dos EUA, tendo servido 18 anos como oficial de blindados nas 2ª e 4ª divisões de infantaria dos EUA e como oficial de inteligência na 29ª Divisão de Infantaria (Leve). O Dr. Forczyk é atualmente consultor em Washington, DC.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Lembrando a guerra francesa no Afeganistão


Por Olivier Schmitt, War on the Rocks, 10 de setembro de 2018.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 18 de novembro de 2022.

Jean Michelin, Jonquille Afghanistan, 2012 (Gallimard, 2017)

Após os ataques de 11 de setembro, a França rapidamente expressou seu apoio aos Estados Unidos. O diário francês Le Monde publicou a manchete “Somos todos americanos” no dia seguinte aos ataques. O presidente Jacques Chirac foi o primeiro líder a se encontrar com o presidente George W. Bush uma semana após os ataques. Em diversas ocasiões, os políticos franceses declararam que apoiariam os Estados Unidos, por uma questão de solidariedade. Por exemplo, em frente à Assembleia Nacional Francesa em novembro de 2001, o primeiro-ministro Lionel Jospin declarou: “Se a França participa desse conflito, não é contra o Afeganistão, mas sim porque os Estados Unidos sofreram ataques de rara violência e, como aliada, a França tem que ficar do lado dos americanos”.


No entanto, assim como tantos outros países da OTAN que se juntaram à guerra dos Estados Unidos, as prioridades estratégicas francesas estão em outro lugar que não o Afeganistão. No caso francês, as missões no Kosovo, no Líbano ou em vários países africanos eram prioridades maiores, e a França lutou para conciliar a demonstração de solidariedade a um custo mínimo. Isso explica o compromisso militar flutuante: limitado até 2008, ambicioso entre 2008 e 2012 (quando a França assumiu a responsabilidade pelos distritos de Kapisa e Surobi), pois os tomadores de decisão sentiram que deveriam combinar palavras com ações depois que Paris voltou a se juntar à estrutura militar integrada da OTAN, e limitada novamente após 2012, quando o presidente François Hollande declarou vitória e implementou sua promessa de campanha de retirar as “tropas de combate” francesas do Afeganistão até o final de 2012. A missão no Afeganistão nunca foi popular na França, principalmente porque as elites políticas falharam em criar uma narrativa coesa: se o Afeganistão não era importante antes de 2008, por que se tornou o principal engajamento das forças armadas francesas depois dessa data? Hollande decidiu então se alinhar com a opinião pública francesa e retirar as forças francesas. Esta decisão foi vista pelos parceiros da OTAN, em particular os Estados Unidos, como enviando um sinal errado, embora a França tenha tentado pintar a retirada como o passo lógico depois que as regiões de Kapisa e Surobi foram transferidas para as forças afegãs.

Militarmente falando, os planos da campanha francesa evoluíram fundamentalmente com a eleição de Nicolas Sarkozy para a presidência. Ele decidiu aumentar a contribuição francesa, com um objetivo estratégico claro: melhorar o relacionamento com os Estados Unidos.

Comboio soviético no Passo de Salang em 1988.

A França concordou em assumir a responsabilidade pelas regiões de Kapisa e Surobi, duas áreas pequenas e montanhosas de importância estratégica crítica devido à sua proximidade com Cabul e a rodovia de Salang. As províncias controlam o acesso à parte norte do Afeganistão a partir de Cabul, mas também ao Paquistão através da província de Laghman, a sudeste. Devido à sua importância geográfica, a área já foi violentamente disputada pelos mujahedin e pelos soviéticos durante a invasão soviética do Afeganistão. Os franceses desdobraram uma brigada na região, sob o comando do Comando Regional-Leste. No entanto, como a França havia se recusado anteriormente a participar do sistema de equipes de reconstrução provincial, a divisão do trabalho entre europeus e americanos foi invertida em Kapisa. Enquanto a maioria dos países europeus administrava suas próprias equipes de reconstrução provincial, com as tropas americanas fornecendo a principal força no campo de batalha após o “surge” (ver, por exemplo, a Noruega em Faryab ou o Reino Unido em Helmand), o oposto aconteceu: uma equipe de reconstrução provincial americana liderou a governança e operações de desenvolvimento, enquanto as forças militares francesas lideravam as operações de segurança.

A campanha no Afeganistão foi um importante motor de transformação nas forças armadas francesas. Os franceses trabalharam como parte de uma coalizão, adaptados aos perigos do campo de batalha (por exemplo, redescobrindo como lidar com dispositivos explosivos improvisados) e experimentaram uma nova estrutura organizacional, como os Groupements Tactices Interarmesgrupos de batalha ad hoc de armas combinadas, compostos de companhias e seções oriundas de diferentes regimentos.


As memórias de Jean Michelin, Jonquille (que significa “Narciso”, seu codinome de chamada de rádio) nos levam ao coração da experiência de combate francesa. Este livro lindamente escrito é notavelmente diferente do relato do herói-machão que dominou o gênero nos últimos anos. Como capitão do exército, Michelin foi destacado para o Afeganistão em 2012 para comandar uma companhia de combate. Ele fica sabendo da eleição de Hollande ao chegar à base aérea de Bagram e rapidamente entende que o novo presidente francês cumprirá sua promessa de campanha de retirar as tropas de combate, uma decisão que, é claro, definirá sua turnê.

A companhia de Michelin será a última tropa francesa a ocupar o posto avançado de Tagab. No momento de sua chegada, as forças armadas francesas já haviam se adaptado ao campo de batalha afegão, um processo que provavelmente começou após uma emboscada em 2008 no vale de Uzbeen que tirou a vida de dez soldados franceses, com 21 feridos. Essa perda, a mais significativa para as forças francesas desde o ataque ao edifício Drakkar no Líbano em 1983, foi um choque para o povo francês e seus militares. Em 2012, as tropas francesas são bem diferentes de suas contrapartes de 2008: Os equipamentos melhoraram, as táticas foram desenvolvidas e alguns soldados de Michelin já foram destacados na área e são aguerridos, embora seja a primeira turnê do autor no país.


Michelin faz um ótimo trabalho ao mostrar a experiência militar diária dessas tropas, desde as interações às vezes frustrantes com os comandantes e a tensão de cada missão, até a vida cotidiana em uma base operacional avançada e a tolice e o humor que permeiam os desdobramentos quando as balas não estão disparando. O autor claramente tem grande respeito pelas tropas sob seu comando, desde o soldado raso até seus companheiros oficiais. Cada capítulo leva o nome de um desses soldados, que ocupa o centro do palco por algumas páginas. Longe de dar a impressão de “super-guerreiros” executando operações de combate sozinhos, essa escolha destaca como esses soldados fazem parte de um todo orgânico.

Michelin não fala de política, mas está sempre presente, em primeiro lugar porque, uma vez tomada a decisão de retirada do Afeganistão, a proteção da força definitivamente tem precedência sobre outras preocupações operacionais. O autor explica as consequências em vários capítulos, que juntos fornecem uma ótima ilustração de um dos dilemas centrais da guerra contemporânea: como lutar de forma eficaz, minimizando as baixas. Um dos firmes constrangimentos tácticos impostos aos soldados franceses é a ordem permanente de evitar qualquer combate na “zona verde” do vale do Tagab, zona onde a vegetação oferece cobertura ideal aos insurgentes e que assistiu a intensos combates antes da turnê de Michelin. Ao longo do livro, fica claro que a zona verde é percebida como um perigo à espreita que ameaça as tropas. Mas gera fascínio e frustração nos soldados, ansiosos por desafiar o inimigo e ressentidos com os limites impostos às suas ações. Talvez eu esteja lendo muito sobre isso, mas descobri que as discussões de Michelin sobre a zona verde me lembraram de como Julien Gracq retrata o Farguestão em seu maravilhoso romance The Opposing Shore (que você deve ler imediatamente, caso ainda não o tenha feito).


A política também está presente ao mostrar os sucessos do Exército Nacional Afegão. Os franceses usaram as crescentes capacidades das tropas afegãs como uma justificativa fundamental para a retirada, tanto para o público doméstico quanto especialmente para os aliados. Mas Michelin admite francamente que suas tropas tiveram muito pouca interação com as forças afegãs, em grande parte devido ao aumento de incidentes “verde sobre azul”. Ele também retrata a raiva de seus próprios soldados quando, durante uma operação liderada pelos afegãos que se transformou em um combate feroz com o Talibã, eles recebem ordens de não intervir. Paris era incapaz de tolerar mais soldados morrendo.

O livro oferece informações interessantes sobre várias características da guerra ocidental durante a intervenção no Afeganistão: a importância do poder aéreo para apoiar as tropas terrestres, o equipamento excessivamente pesado que os soldados precisam carregar durante suas operações (à custa da proficiência tática) e o que isso significa para fazer parte de uma operação de coalizão como parceiro minoritário dos Estados Unidos. Para as tropas francesas, o apoio logístico dos EUA é claramente percebido como um luxo, como demonstra uma curta viagem ao aeródromo de Bagram, que Michelin foi incentivado por seus superiores a usar como uma oportunidade para relaxar por alguns dias e aproveitar (abusar?) das instalações americanas. O autor também alude a alguns dos desafios de comandar tropas oriundas de diferentes regimentos e especialidades ocupacionais, reunidas de forma ad hoc, o que faz sentido operacional, mas gera problemas de fricção e coesão. Microculturas de comando, planejamento ou rituais militares são resilientes, mesmo dentro do mesmo exército. Do ponto de vista sociológico, os leitores podem querer mais detalhes sobre esses episódios, mas é compreensível que o autor, que ainda serve nas forças armadas francesas, não se aprofunde aqui.

Legionários engenheiros do 2e REG no Afeganistão.

Apesar da forte ênfase na proteção da força, Michelin recorda de forma pungente os detalhes e as consequências de um ataque suicida em 9 de junho que levou à perda de soldados franceses. Uma equipe de Cooperação Civil-Militar (CIMIC) colocada sob o comando de Michelin para esta missão específica é visada, quatro dos seus membros são mortos e alguns soldados do autor ficam feridos. Michelin é brutalmente honesto ao recordar o “alívio covarde” que sente ao perceber que as baixas não são militares da sua companhia, mas da equipe CIMIC, imediatamente seguidas de vergonha e raiva por pensar isso. Ele também relata as dúvidas do comandante tático no local (adjunto de Michelin) que “repassa” a missão constantemente em sua cabeça e questiona se ele poderia ter feito as coisas de maneira diferente. O autor também revela o efeito do ataque nos soldados que sobreviveram e no funcionamento da companhia como unidade de combate. Um dos momentos mais reveladores do livro é quando um suboficial antigo, observando que os soldados mais jovens não parecem entender totalmente o que acabou de acontecer, menciona que deseja que eles percebam que “isso não é a porra do Call of Duty”.


Para os americanos que sabem ler francês, o livro será interessante não apenas por suas qualidades literárias, mas também porque dá uma visão do “jeito francês de guerra” no Afeganistão. Notavelmente, mostra como as forças armadas com muito menos apoio logístico e meios disponíveis do que as forças armadas americanas se organizam efetivamente para a guerra expedicionária (como também ilustrado pela intervenção subsequente da França no Mali). Mas o livro também é um dos primeiros sinais do que poderia estar evoluindo nas relações civis-militares na França. É publicado na coleção “Blanche” da Gallimard, a coleção de maior prestígio em um país tão obcecado por literatura que celebra a nova “temporada literária” todo mês de setembro. Também faz parte de várias publicações recentes de soldados franceses contando sua experiência no combate moderno, por exemplo, o General Bernard Barrera no Mali, o Major Brice Erbland (que também aparece no livro de Michelin) no Afeganistão e na Líbia, ou o Sargento Tran Van Can no Afeganistão, entre outros.

Essa tendência segue uma revitalização dos debates estratégico-militares franceses no final dos anos 2000, cujos principais atores foram retratados por Michael Shurkin, e pode ser ilustrativa de uma geração que conheceu o combate, mas quer evitar a criação de uma “sociedade militar” removida da dinâmica social mais ampla na França. Portanto, os falantes de francês devem ler Jonquille tanto por seus próprios méritos quanto por seu lugar no contexto mais amplo das relações civis-militares francesas. Só podemos esperar que eventualmente seja traduzido para o inglês.


Sobre o autor:

Olivier Schmitt é professor associado do Center for War Studies, University of Southern Denmark, e autor de Allies that Count: Junior Partners in Coalition Warfare (Georgetown UP, 2018). Ele tuíta em @Olivier1Schmitt.

Leitura recomendada:

quarta-feira, 13 de julho de 2022

LIVRO: Caminhos da Glória, O Exército Francês 1914-1918

Metralhadora francesa Hotchkiss, 1918.
(Arte de ANYAN, @jk100687)

Resenha do livro Paths of Glory: The French Army 1914-1918 (Caminhos da Glória: O Exército Francês 1914-1918), de Anthony Clayton, pelo Tenente-Coronel Dr. Robert Forczyk.


Ótimo esforço, mas muito curto [4 estrelas]

Por Robert Forczyk, 5 de dezembro de 2003.

Em Paths of Glory, o ex-professor de Sandhurst, Anthony Clayton, fornece a primeira história completa do exército francês na Primeira Guerra Mundial. Embora a narrativa seja um pouco curta (200 páginas) e não ofereça a profundidade necessária para analisar as operações em detalhes, o trabalho de Clayton representa uma excelente visão geral do exército que suportou o maior peso da luta pelos Aliados na Frente Ocidental em 1914-1918.

O 114º Regimento de Infantaria em Paris, 14 de julho de 1917.

Clayton também ressalta que esse exército, muito difamado por causa de sua má preparação para o combate em 1914 e desempenho lamentável em 1940, ainda era capaz de quatro anos de combate sustentado contra o melhor exército do mundo. Para os leitores acostumados a ver a Frente Ocidental através dos olhos alemães ou britânicos, este volume oferece uma alternativa maravilhosa.

Clayton começa Paths of Glory com um capítulo sobre a ofensiva francesa das fronteiras em 1914 e depois retrocede no segundo capítulo para discutir a estratégia e a doutrina pré-guerra. Depois disso, Clayton dedica um capítulo às operações em cada ano da guerra, além de um capítulo separado sobre os desenvolvimentos dentro do exército francês. Há também um capítulo separado sobre operações periféricas envolvendo os franceses (Gallipoli, Salônica, Itália, África e Oriente Médio).

Os apêndices incluem ordem de batalha em 1914, organização tática, recrutamento e reservas, equipamentos, biografias em cápsulas dos principais generais franceses e a carreira de um único regimento de infantaria francês em 1914-1920. Clayton inclui 14 mapas de esboço simples, que infelizmente apenas alguns descrevem movimentos ou disposições operacionais. O autor também inclui 43 fotografias, desde líderes, equipamentos e até cenas táticas.

Clayton avalia o principal problema francês em 1914 como uma falha da "inteligência estratégica" em não prever que o principal exército alemão cairia sobre a Bélgica ou que formações de reserva seriam usadas no primeiro escalão do inimigo. Esta avaliação de inteligência defeituosa levou a um plano ofensivo precipitado conhecido como "Plano XVII", que foi prejudicado pela rígida adesão a uma doutrina tática defeituosa, comandantes idosos e artilharia pesada inadequada. Apesar de todas as falhas militares francesas, o exército francês de alguma forma sobreviveu às pesadas perdas nas batalhas das fronteiras e conseguiu frustrar a investida alemã em Paris por um rápido reposicionamento de forças.

Soldados franceses sob bombardeio de artilharia em Verdun, 1916.

Clayton não faz um trabalho particularmente bom em avaliar como os franceses foram capazes de evitar a derrota em 1914, mas tende a favorecer a liderança "dura" de Joffre, Foch e um punhado de outros comandantes franceses de nível operacional. No entanto, a defesa de Clayton do estilo de comando de Joffre soa vazia; certamente Napoleão não teria estimado muito em um comandante que enfatizasse refeições regulares e sono ininterrupto em vez de visitar suas tropas.

Clayton se concentra fortemente em questões de moral - sempre críticas para os exércitos franceses - nos capítulos sobre Verdun e os motins de 1917. O motim é avaliado como relativamente limitado em escopo, mas extenso em efeitos de longo prazo. Talvez os melhores capítulos de Paths of Glory cubram o período pós-motim em que Pétain foi capaz de liderar o derrotado exército francês através de um período de recuperação. Embora a carreira posterior de Pétain como líder da França de Vichy tenha obscurecido seu nome, suas habilidades de liderança com um exército profundamente chocado foram surpreendentemente eficazes. De fato, Pétain não só foi capaz de reconstruir o moral do exército francês, mas também de re-equipar e re-treinar as forças para lutar uma guerra moderna; o resultado foi um exército francês muito mais poderoso em 1918 (embora frágil).

Embora Clayton ofereça algumas informações úteis em alguns lugares - como informações sobre o desenvolvimento de tanques franceses ou a maior dependência de tropas africanas - o volume é um pouco excessivamente uma visão geral, embora com uma perspectiva gaulesa. De fato, Clayton escreve bem e oferece uma excelente visão sobre as capacidades de combate do tão difamado exército francês, mas o leitor sairá deste livro desejando que ele tivesse 200 páginas a mais.

Sobre o autor:

Tenente-Coronel Dr. Robert Forczyk é PhD em Relações Internacionais e Segurança Nacional pela Universidade de Maryland e possui uma sólida experiência na história militar européia e asiática. Ele se aposentou como tenente-coronel das Reservas do Exército dos EUA, tendo servido 18 anos como oficial de blindados nas 2ª e 4ª divisões de infantaria dos EUA e como oficial de inteligência na 29ª Divisão de Infantaria (Leve). O Dr. Forczyk é atualmente consultor em Washington, DC.

Vídeo recomendado:

O planejamento e combate da França nos primeiros meses da Primeira Guerra Mundial, pelo General Robert Doughty

quarta-feira, 6 de julho de 2022

A primeira mulher piloto do Afeganistão agora está lutando para voar pelas forças armadas dos EUA

Niloofar Rahmani foi a primeira mulher piloto da Força Aérea Afegã.
Agora ela está de olho em voar pelos Estados Unidos.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

Por Mac Caltrider, Coffie or Die, 30 de junho de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 6 de julho de 2022.

Quando ela era uma criança vivendo em Cabul sob o regime talibã, Niloofar Rahmani passava horas olhando para os pássaros e fantasiando sobre um dia compartilhar sua liberdade de voar. Sem oportunidades de receber uma educação formal, Rahmani nunca considerou a possibilidade de se tornar uma piloto quando crescesse. Mas graças à educação em casa que recebeu de sua mãe e à integração das mulheres nas forças armadas afegãs em 2009, Rahmani conseguiu tornar seu sonho realidade. Ela finalmente se tornou a primeira mulher piloto da Força Aérea Afegã e vôou em missões de combate durante a Operação Liberdade Duradoura (Operation Enduring Freedom).

Rahmani agora vive na Flórida com sua família, onde ela está trabalhando para voar novamente. Nós nos sentamos com ela para discutir sua jornada extraordinária, seu livro de memórias, Open Skies: My Life as First Female Pilot (Céus Abertos: Minha Vida como Primeira Piloto Mulher), e sua luta atual para se juntar às forças armadas dos Estados Unidos.

Esta entrevista foi editada por questão de extensão e clareza.

COD: Você nasceu em Cabul durante o período caótico que se seguiu à guerra soviético-afegã. Como foi crescer em um país instável e mais tarde sob o domínio do Talibã?

NR: Devido à guerra civil no Afeganistão, eu tinha apenas 6 meses quando meus pais deixaram o Afeganistão e nos mudamos para o Paquistão. Moramos lá por seis anos da minha vida e não tínhamos uma casa. Não tínhamos nada. Eu cresci em uma tenda de refugiados lá.

Quando criança, eu não tinha ideia de como era o Afeganistão. Eu não sabia onde era o meu país. Meus pais moraram lá nos anos 60 e o Afeganistão era um lugar completamente diferente. Nada perto de quando eu morava lá ou como é agora. Meus pais finalmente desistiram do Paquistão; não havia direitos para nós lá. Não podíamos ir para a escola como refugiados, minha mãe teve que nos educar em casa. O Afeganistão era a casa da minha família, então voltamos antes dos EUA chegarem em 2001. Mas quando voltamos, foi um pesadelo. Um verdadeiro pesadelo.

Todas as histórias que meus pais costumavam nos contar sobre o Afeganistão não pareciam verdadeiras porque tudo o que víamos eram essas pessoas assustadoras. Toda a cidade de Cabul era assustadora. Tenho algumas lembranças horríveis de mim e meus irmãos sendo crianças sob o controle do Talibã.

Niloofar Rahmani cresceu ouvindo histórias de seus pais sobre como era o Afeganistão antes do Talibã assumir o controle.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

Uma de minhas amigas morava ao nosso lado, e o Talibã a levou embora. Eles simplesmente a levaram embora. Tudo o que podíamos ouvir eram os gritos de sua mãe e depois dos gritos um tiro. Minha amiga se foi, e seu pai foi baleado na cabeça. É apenas um pesadelo que às vezes nem consigo pensar nisso. Houve tanta violência que o Talibã fez às mulheres, e todos os afegãos tiveram essas experiências com elas.

Eu me lembro deles. Simplesmente me dá dor de estômago pensar em uma vez em que vi minha mãe ser espancada pelo Talibã porque ela teve que levar minha irmã ao médico enquanto meu pai estava no trabalho. Minha irmã estava muito doente, então minha mãe teve que ser a única a levá-la ao hospital. Ela colocou a burca, mas esqueceu de cobrir totalmente as pernas e colocar as meias. O Talibã começou a espancá-la só porque ela mostrava parte das pernas. São apenas lembranças horríveis. Às vezes é até difícil colocar isso em palavras ou frases. É quase inacreditável o quanto uma pessoa pode passar. E quando você reflete sobre esses momentos e pensa sobre isso, parece um pesadelo, nem mesmo uma realidade.

Rahmani (à esquerda) foi treinada pela Força Aérea dos EUA nos Estados Unidos antes de retornar para voar em missões de combate no Afeganistão.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

COD: Qual é a sua memória mais antiga de querer se tornar um piloto?

NR: Minha história de me tornar um piloto é bem diferente. Na verdade, nunca voei em um avião até começar meu treinamento de piloto. Eu já era adulto quando sentei pela primeira vez em um avião e estava voando de Cabul para Herat durante meu treinamento de piloto.

Sob o Talibã, há violência contra as mulheres, as mulheres não podem nem ser educadas e ir à escola. Se eles pegam pais ensinando suas filhas, eles matam os pais na frente das crianças, e então eles atiram na criança. É simplesmente horrível.

Lembro-me de quando eu era uma garotinha e estávamos vivendo em uma barraca com tantos outros refugiados, cercados por tanta violência que eu apenas olhava para os pássaros voando e ficava tão impressionada com eles e como eles eram livres. Eu gostaria de poder voar como um pássaro. Eu ficava tão excitada sonhando em estar no céu e voar para longe dessas pessoas violentas.

Você sabe, meu pai costumava me contar histórias sobre quando ele cresceu, e é claro que o Afeganistão era um lugar completamente diferente naquela época. Foi bonito. As mulheres tinham liberdade. Todos viviam em paz. Mas algo no Afeganistão que nunca mudou foi o tribalismo. Quem estivesse no poder, quem tivesse conexões com o governo, quem fosse poderoso naquela época, apenas os filhos das pessoas de alto escalão poderiam ser pilotos. Meu pai foi negado, mesmo sendo um homem muito inteligente, e esse sonho morreu em seu coração. No Afeganistão, se você tem um filho, todo mundo acredita que seu filho pode tornar seus sonhos possíveis. Ele é o único que fará seu sonho incompleto se tornar realidade. Mas meus pais nunca pensaram assim.

Quando vi aviões americanos pela primeira vez, fiquei inspirada. Eu sabia que havia pilotos dentro daqueles aviões, e isso foi muito inspirador para mim. Foi tão rápido e fiquei tão fascinada pelo som e velocidade. Meus olhos não conseguiam nem pegá-los. Mesmo sabendo que havia uma guerra acontecendo, eu estava tão feliz olhando para eles e apenas tentando identificar onde eles estavam. Claro, alguém como eu, eu nunca teria pensado que algum dia esse sonho se tornaria realidade porque as forças armadas estavam contratando apenas pilotos do sexo masculino. Mas ver aqueles aviões realmente despertou esse sonho em minha mente, e decidi que não importava o que acontecesse, eu tinha que fazer isso.

Rahmani vôou em missões de reabastecimento partindo de Cabul durante a Operação Liberdade Duradoura.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

COD: O Afeganistão tem um histórico de negar oportunidades iguais às mulheres. Que tipo de obstáculos você enfrentou em sua busca por voar?

NR: Quando os EUA chegaram ao Afeganistão, eles expulsaram o Talibã de Cabul e as escolas começaram a reabrir para meninas. Quando as escolas reabriram, houve um processo em que todas as meninas poderiam vir e fazer um teste, e quem obtivesse um nível alto o suficiente poderia participar. Fiz o teste e me classifiquei para a sétima série. Então, em 2009, eu estava assistindo ao noticiário com meu irmão e vi aquele anúncio que dizia que os militares estavam recrutando mulheres em todos os ramos das Forças Armadas, incluindo a Força Aérea. Ver aquilo foi como mágica. Assim que ouvi aquilo eu sabia que ia fazer isso. Eu queria vestir o uniforme e poder fazer algo maior. No passado, as meninas nem podiam ir à escola, mas tive muita sorte de ter o apoio dos meus pais e eles concordaram que eu deveria me alistar na Força Aérea e buscar o que quisesse. Eu sabia qual era o risco, porque sabia que a sociedade afegã não estava pronta porque isso era muito novo para eles. Eu tive muita sorte de ter pais que me apoiaram e nunca me disseram não, então eu pude ir e me alistar.

COD: Em que aeronave você vôou e como era voar em missões de combate reais?

NR: Meu treinamento inicial de vôo foi nos Estados Unidos, depois voltamos ao Afeganistão para treinamento avançado. Primeiro voei com um Cessna 182, depois avancei para o Cessna 208 Caravan. Fui designado para Cabul e voei em algumas missões humanitárias, mas principalmente estava voando [evacuação de baixas] e missões de reabastecimento. Voamos com qualquer apoio que pudéssemos para fornecer às tropas no terreno e dar-lhes o que precisavam, como munição, comida e suprimentos médicos.

Mesmo depois de se tornar piloto e voar em missões de combate, Rahmani ainda enfrentava discriminação mesmo entre seus pares.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

COD: Depois de finalmente atingir seus objetivos de voar, o que o motivou a se mudar para os Estados Unidos?

NR: Eu vim para os EUA em março de 2015, quando recebi o prêmio Women of Courage (Mulher de Coragem). Tive sorte e consegui voar com os Blue Angels, o que foi muito, muito interessante. Então voltei para casa no Afeganistão, mas logo depois os EUA ofereceram cinco bolsas para pilotos afegãos para pilotar o C-130. Infelizmente, a maioria dos generais e a maioria das pessoas de escalões mais altos não queriam que uma mulher fizesse parte desse treinamento. Eles sabiam que era um treinamento caro e queriam que seus filhos fizessem parte dele. Eu tive que lutar naquela batalha por meses e meses, e ainda assim eles não queriam me nomear para o programa. Meus próprios colegas de trabalho afegãos pensaram que lhes traria vergonha se uma mulher pudesse fazer a mesma coisa que eles. Eles nunca quiseram que uma mulher crescesse e encontrasse mais sucesso em sua carreira. Finalmente, tive conselheiros da Embaixada dos EUA entrando e dizendo: 'Não, você vai para este treinamento mesmo que não tenha a aprovação afegã.' Infelizmente, os generais da Força Aérea nunca o aprovaram. Eventualmente, em outubro de 2015, decidi me mudar para a América.

COD: Você conseguiu tirar sua família do Afeganistão no verão passado, quando o Talibã retomou o controle do país. Como foi esse processo?

NR: Em agosto do ano passado, o Talibã tomou o poder. Aos olhos do Talibã, e aos olhos de alguns membros da minha própria família, meus pais foram contra a sociedade e eu fui contra o que era ser uma boa mulher muçulmana. Eles envergonharam meu pai, perguntando: “Como você pode criar uma garota que não é honrada? Ela trabalha nas forças armadas. Ela trabalha com americanos e não é mais uma boa muçulmana.” É difícil esconder sua própria família porque eles sabem tudo sobre você e é com isso que estávamos lidando. É demais para descrever. Quando deixei o Afeganistão em 2015, não pude voltar e meus pais ainda estavam lá.

Eles sempre acreditaram que o Afeganistão era seu país. Foi lá que eles construíram sua vida, e partir significaria que eles teriam que começar de novo, o que foi especialmente difícil depois de 22 anos de liberdade do Talibã. Eles nunca pensaram que algo como uma tomada do poder pelo Talibã aconteceria e, quando aconteceu, as pessoas simplesmente entraram em pânico.

O sonho de Rahmani era pilotar C-130s, e agora ela está tentando se juntar à Força Aérea dos EUA para que isso aconteça.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

Meu irmão – que havia fugido para a Turquia – ligou para meus pais e disse para eles deixarem seu esconderijo em Cabul e irem para o aeroporto. Havia postos de controle do Talibã em todos os lugares. Eles não conseguiram chegar até minha irmã que estava em outro lugar no Afeganistão porque o Talibã estava verificando passaportes e telefones, que era a maneira de se comunicar comigo e minha irmã. Foi um pesadelo assim por duas semanas só para levá-los ao aeroporto Não foi fácil, e eles viram coisas horríveis que não foram mostradas na TV. Eles viram cadáveres, crianças morrerem e tantas coisas horríveis. E então, finalmente, alguns dos meus conselheiros que ainda estavam no Afeganistão conseguiram puxá-los pelo portão. Eles foram tão gentis. Jamais esquecerei a gentileza deles. Sou grato a todas as pessoas que trabalharam dia e noite para que isso acontecesse. Conseguimos levar meus pais para os Emirados Árabes Unidos e depois para Wisconsin. Agora eles estão aqui comigo na Flórida. Estou tentando descobrir minha nova vida também. Infelizmente, nada do que fiz voando foi contado. Eu tive que voltar para a escola e obter todas as minhas classificações da FAA. Foi um começo completamente novo para todos nós, mas sou grata por estarmos todos seguros. Eu posso fazer o que eu quiser aqui. Não é impossível. Só vai exigir muito trabalho e esforço.

Depois de vir aqui, acredito 100% que este país é uma terra de liberdade e uma terra de oportunidades. Quando digo liberdade, quero dizer uma boa liberdade. É um lugar onde ninguém lhe diz quais são suas limitações, ou o que você pode e o que não pode fazer. Esperei anos e anos e anos apenas por uma residência permanente, com tantos objetivos e tantos desejos e sonhos que são impossíveis sem ter o status imigratório certo.

Em 2021, finalmente consegui um green card, o qual dá residência permanente. Quero voltar para a Força Aérea, quero voltar para as forças armadas – desta vez para as forças armadas dos EUA. Quero retribuir às pessoas que me salvaram e salvaram minha família. Sou muito grato a eles, porque se não fosse por eles, eu não estaria viva e meus colegas não estariam vivos. Durante anos, tenho tentado arduamente fazer parte das forças armadas novamente, não importa de que ramo seja. Eu só quero vestir esse uniforme e poder voar e servir o país que nos deu um lar e não nos abandonou. É um novo começo de vida.

Durante o outono de Cabul em agosto de 2021, Rahmani conseguiu se coordenar com ex-colegas de trabalho que ajudaram sua família a fugir para os Estados Unidos.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

Meu status de imigração nunca me permitiu me alistar, mas não aceito um não como resposta. Eu tenho que fazer alguma coisa, mas ao mesmo tempo minhas mãos estão atadas. Todo o meu treinamento foi com a Força Aérea dos EUA. Ganhei minhas asas e todos os meus instrutores eram americanos. Todas as horas de voo e todas as missões de combate que voei, nenhuma delas foi contada. Eles me disseram basicamente que você tem que começar do zero. Para alguém que acabou de se mudar para um país onde você não conhece muito a cultura, não sabe muito sobre o sistema educacional, ainda está tentando viver, obter uma licença de avião particular não é fácil. É muito, muito caro nos EUA, então comecei a trabalhar de intérprete. Fui intérprete para hospitais, seguradoras, bancos, agências de aplicação da lei, tribunais e escritórios de advocacia. Foi assim que comecei a construir minha vida novamente, porque não podia voar.

Tive muita sorte e uma das escolas na Flórida me ofereceu uma bolsa de estudos, e consegui passar um vôo de checagem, pois já sabia voar. Eu sabia muita coisa que a maioria dos pilotos civis não sabia. Consegui minha licença de instrutor de vôo e, muito recentemente, fui convidado para o Gathering of Eagles, que é uma convenção anual que celebra a aviação. Todos os anos, o Colégio do Estado-Maior da Força Aérea nomeia várias pessoas que eles chamam de águias e destacam sua história e realizações. Conheci o ex-controlador de combate da Força Aérea Dan Schilling e o general [David] Goldfein, ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea.

Depois de compartilhar minha história, contei a eles o quanto queria voltar para as forças armadas e não queria ser apenas uma piloto de avião. Desde que os conheci, eles têm trabalhado duro para me ajudar a entrar nas forças armadas. Sou muito grata a todos e mal posso esperar pelo dia em que realmente começarei a jornada. Seria incrível. Estou muito excitada e ansiosa por isso.

Niloofar Rahmani escreveu sua história de desafiar as probabilidades de se tornar a primeira piloto mulher do Afeganistão em Open Skies.
Composto por Coffee or Die Magazine.

COD: Você tem um novo livro sobre sua jornada inspiradora. O que você espera que os leitores tirem da sua história?

NR: Como humanos, quando a vida fica fácil, começamos a dar tudo como garantido. Achamos que deveria ser dado a nós, mas não é o caso. Quero que as pessoas que lerem minha história – especialmente meninas e meninos – saibam como são afortunadas por terem todas essas liberdades. Acesso à educação, água potável, até mesmo acender a luz, são sonhos para outra pessoa que não tem a mesma sorte. A coisa mais importante é que nunca devemos dar a vida como garantida, especialmente quando tudo fica fácil. Temos que usar esses dons da melhor maneira possível.

Quando olharem para trás daqui a 10, 15, 20 anos, quero que se orgulhem do que fizeram na vida. Eu quero que eles percebam que não importa em que país vivemos, não podemos tomar as coisas como garantidas. Mais importante ainda, se você tem um sonho, sempre vá em frente. Não importa a idade que você tem, é sempre bom sonhar. Eu nunca pensei que nenhum dos meus sonhos se tornaria realidade, mas eles me levaram para onde eu pertenço. Eu sonhava em ser um pássaro e estar naqueles caças. Meu sonho não era estudar, mas tudo aconteceu porque lutei pela chance de voar e nunca desisti.