Por Euler de França Belém, Jornal Opção, 14 de julho de 2018.
Livro revela que 7 guerrilheiros do Araguaia negociaram com militares e sobreviveram. Edinho, Duda, Piauí, Rosinha, Josias e Tuca saíram vivos da Guerrilha do Araguaia. Goiano foi infiltrado no PC do B e guerrilheira teve caso com sargento do Exército.
O jornalista Hugo Studart, mestre e doutor em História pela UnB, reabre, com seu mais recente livro, a história da Guerrilha do Araguaia, sugerindo que nem mesmo o PC do B valorizou os camponeses que participaram da batalha, e exibe a cadeia de comando militar que devastou a organização comunista.
A Guerrilha do Araguaia passou por um processo de “reforma agrária” e não é mais propriedade privada exclusiva do Partido Comunista do Brasil. Durante anos, o PC do B se comportou como dono da história da batalha, enquanto os militares fingiam que nada tinham a ver com os fatos acontecidos no Sul do Pará e Norte de Goiás (Tocantins), entre 1972 e 1974. Aos poucos, pesquisadores acadêmicos e jornalistas não vinculados à organização de esquerda começaram a apresentar estudos rigorosos e objetivos — e não relatórios partidarizados — a respeito do confronto. Os melhores livros são de responsabilidade de jornalistas, como Eumano Silva, Taís Morais, Elio Gaspari, Luiz Maklouf de Carvalho, Leonencio Nossa e Hugo Studart, que, na prática, são historiadores. Studart defendeu dissertação de mestrado na Universidade de Brasília, que resultou no livro “A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia” (Geração Editorial, 383 páginas, de 2006). Agora, lança em livro sua tese de doutorado “Borboletas e Lobisomens — Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia” (Francisco Alves, 660 páginas).
No livro, que vai além da tese de doutorado, há o imbricamento do historiador rigoroso com a perspicácia do jornalista investigativo e a fluência do escritor que, sim, Studart é. Seus dois livros são cruciais àqueles que querem entender a Guerrilha do Araguaia de maneira mais ampla e matizada. Não há a preocupação de criar vilões e tampouco mocinhos, e sim a de apresentar um quadro nuançado do que aconteceu na região do Araguaia. O pesquisador contempla as visões dos contendores, guerrilheiros e militares, e apresenta sua interpretação — equilibrada e objetiva. De certa maneira, “reabre” a história da guerrilha. O capítulo 19, “Sonata para Carmen”, apresenta uma história que, por vezes, não agrada à esquerda — que tende a apresentar uma guerrilha que, de tão heroica, deixa a impressão de que saiu “vencedora” e defendia a democracia. O pesquisador descobriu, e relata os casos de maneira abrangente — sem julgamentos morais toscos ou ideologizados —, que ao menos sete guerrilheiros, dados como mortos, inclusive por suas famílias e militares, estão vivos. Fizeram acordos e ganharam novas identidades.
Pouco antes de entrar para o PC do B e para a guerrilha, o estudante de farmácia e bioquímica Hélio Luiz Navarro de Magalhães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, compôs uma música e a tocou no piano para sua mãe, Carmen Navarro Rivas. Depois, desapareceu e sua mãe nunca mais o viu. Há alguns anos, um repórter do Jornal Opção publicou uma reportagem — entre as fontes estava um guerrilheiro do Araguaia, Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia —, na qual se informava que Hélio Navarro, o Edinho, havia sido visto no Mato Grosso, onde teria chegado a trabalhar com garimpo. Dias após a publicação da matéria, uma mulher, S. L., ligou na redação e ameaçou: “A mãe do Hélio Navarro, a sra. Carmen Navarro, ficou chateada com o texto publicado e pode processar o jornal”. Curiosamente, a família não moveu ação judicial contra o jornal.
No livro, Studart apresenta evidências, com fartura de informações, de que Hélio Navarro e pelo menos mais seis (mais quatro são mencionados) guerrilheiros sobreviveram depois de capturados — o que era raro, sobretudo no fim dos combates. Havia uma ordem do ministro do Exército do governo de Emílio Médici, Orlando Geisel — “Não sai ninguém da área” —, que, numa tradução realista, significa: “Matem todos”. O ministro, antes de conversar com o presidente da República, discutiu o assunto com Milton Tavares, chefe do Centro de Informações do Exército (CIE), e o tenente-coronel Carlos Sérgio Torres, do CIE. De fato, militares começaram a matar guerrilheiros capturados e que não representavam nenhum perigo para eles e para a sociedade. Entretanto, a partir de certo momento, na transição do governo de Médici para o governo do presidente Ernesto Geisel, um “ditobrando” que às vezes era “ditoduro”, houve uma mudança.
Hélio Navarro era filho de Hélio Gerson Menezes de Magalhães, capitão-de-mar-e-guerra da Marinha, e sobrinho do almirante Gualter Meneses de Magalhães, anticomunista visceral e chefe do estado-maior da Armada. Por isso, o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) pedia informações ao Exército sobre o guerrilheiro, pois o queria vivo. O tenente-coronel Leo Frederico Cinelli, do CIE, havia sido amigo de Carmen Navarro na juventude e era a ponte entre o Exército e Marinha.
Cinelli “assumiu a missão de tentar” entregar Hélio Navarro aos pais. Em fevereiro de 1974, o militante do PC do B, depois de ferido de raspão, é preso. Ele estava com Luiz Renê Silveira, o Duda, e gritou: “Não quero morrer, chama meu pai, que é oficial da Marinha”. “Desde o início, Edinho e Duda mostraram-se dispostos a colaborar”, anota Studart. Antônio de Pádua Costa, o Piauí, resistiu, mas cedeu. Duda “guiou patrulhas militares na caça aos companheiros” e Piauí serviu de guia.
Correu entre os militares que o “filho do almirante” (na verdade, Gualter era tio do esquerdista) havia sido capturado e a informação foi levada à cúpula do Exército em Brasília. O guerrilheiro chegou a citar Cinelli, que, avisado pelo major Leônidas Soriano Caldas, o dr. Ribamar, contatou o Cenimar. “O almirante Fernando Rocha Paranhos, chefe do Cenimar, designou o comandante Lameira, à época capitão-de-corveta, para a missão de resgatar o filho do colega.” Como a esquerda tinha o hábito de justiçar “desertores” e “traidores” da causa, oficiais do Exército e da Marinha temiam pela vida de Hélio Navarro.
Uma Equipe Zebra com dois guerrilheiros capturados no Araguaia. Os "zebras" eram militares e mateiros atuando descaracterizados em missões de contra-guerrilha. |
Em fevereiro de 1974, militares prenderam a “esquelética” Maria Célia Corrêa, a Rosinha, que havia sido namorada dos guerrilheiros João Carlos Wisnesky, o Paulo, e Divino Ferreira de Souza, o Nunes (goiano). Grávida de Nunes, submeteu-se a um aborto, sob pressão do comandante guerrilheiro Zé Carlos (André Grabois). Faminta, delirava. Oficiais concluíram que não oferecia qualquer “perigo” e decidiram deixá-la viva. O pesquisador repara que havia o precedente de Marcos José de Lima, o Ari Armeiro, que, preso em setembro de 1972, passou a servir aos militares, chegou a ser infiltrado na guerrilha e sobreviveu. Edinho pediu aos militares que poupassem a vida de Duda e Piauí. A enfermeira Luíza Augusta Garlipe, a Tuca, formada pela USP, foi presa com a famosa guerrilheira e geóloga Dina (Dinalva Conceição Oliveira Teixeira). Como não era “perigosa”, foi poupada. Tobias Pereira Júnior, o Josias, também escapou.
Studard afirma que, com o novo governo, o de Geisel, houve, num certo momento, um “hiato de poder”. O general Confúcio de Paula Avelino, novo chefe do CIE, “decidiu discutir a pertinência de uma operação para poupar a vida de alguns guerrilheiros”. O tenente-coronel Cinelli concordava com seu superior e o tenente-coronel Carlos Sérgio Torres era refratário à ideia.
Os mortos-vivos
A ideia de trocar a identidade dos guerrilheiros “arrependidos” foi do tenente-coronel Flávio Demarco, o Tio Caco, coordenador-geral da Operação Marajoara. Os “arrependidos” seriam considerados, para os registros oficiais, como “mortos”. Eram os “mortos-vivos”.
A “operação mortos-vivos”, classificada como “secreta”, foi planejada e organizada em Brasília pelo major Ronaldo Lira, do CIE, sob coordenação do tenente-coronel Cyro Etchegoyen. Ele recebeu o apoio do comandante Lameira, do Cenimar. “No Araguaia, a execução ficou a cargo do major Leônidas Soriano Caldas.” O sargento José Reis, o Régis, era seu assistente direto. O capitão Sebastião Rodrigues de Moura, que passou à história como Major Curió, não foi avisado da operação. Porque defendia a execução dos prisioneiros.
Para disfarçar a operação, inclusive ludibriando militares de certa relevância hierárquica, o sargento Régis simulou que os guerrilheiros Edinho, Duda e Piauí haviam sido executados. Na verdade, foram transferidos para Brasília. O sargento Remo simulou a execução de Rosinha. Tobias Pereira Júnior foi retirado de automóvel do cenário da guerrilha.
Aos 24 anos, Hélio Navarro, o mais protegido, foi o primeiro a ser levado para Brasília. Seguiram-no Duda, de 22 anos, Piauí, de 30 anos, Rosinha, de 29 anos, Josias, de 24 anos, e Luiza Augusta Garlippe. Na capital, foram levados para a Polícia Federal — o general Antônio Bandeira era seu diretor — mas ficaram sob a responsabilidade do CIE.
Sob proteção do almirante Gualter, Hélio Navarro conseguiu emprego no hipermercado Carrefour, em São Paulo. Tobias Pereira “recomeçou a vida no Mato Grosso”. Sua família, sintomaticamente, não pediu indenização ao governo federal e não fala com historiadores e jornalistas.
Luiz Renê, Antônio de Pádua e Rosinha ganharam empregos em Brasília, arranjados pelo coronel Jarbas Passarinho, que era ministro da Educação. O objetivo era “lavar” a nova identidade, forjar currículos. Tanto que, depois, os três deixaram o Ministério da Educação. (Studart não conta, pois não é objeto de sua pesquisa, mas Passarinho conseguiu empregos para ex-esquerdistas goianos que se apresentaram como “arrependidos”. Dois moram em Brasília e um em Goiânia. Um deles se aposentou pela Universidade Federal de Goiás.)
Em 1980, Hélio Navarro foi visto por Elza Monerat, no Rio de Janeiro. Ele casou-se e tem dois filhos. “Com o falecimento de seu pai, em 1999, Hélio Luiz se apresentou à Receita Federal em 8 de agosto de 2001, com sua verdadeira identidade, a fim de regularizar o CPF e liberar inventário.” Em seguida, desapareceu. Não há registro de que tenha procurado a mãe e sua irmã, Aglaé. Certa vez, Carmen Navarro enviou uma carta, por intermédio de um militar, e o ex-guerrilheiro a leu e chorou muito. Mas não há registro de que tenha feito algum contato. Luiz Renê também não procurou sua família.
Paixão na guerrilha
O livro de Studart sugere que a Guerrilha do Araguaia, vista como movimento unicamente do PC do B — com a participação majoritária de pessoas que frequentaram universidades —, deve ser reavaliada. Trata-se de um movimento mais popular do que parece, que contou com ação de vários camponeses, que participaram direta, como guerrilheiros, e indiretamente, como base de apoio. Vários camponeses foram torturados e mortos. “34 camponeses restaram mortos ou desaparecidos durante os conflitos. Há outros 43 camponeses que deram apoio à guerrilha.” Setenta e sete camponeses participaram da luta ao lado dos militantes do PC do B — além de “outros 142 chefes de família apontados como simpatizantes”. O pesquisador “coloca-os” na história — uma história “ignorada” inclusive pelos comunistas —, apresentando seus nomes. Os militares que dirigiram o combate aos militantes da esquerda são mencionados por nomes completos, além dos codinomes. São arrolados, entre os outros, o coronel Gilberto Airton Zenkner, o tenente-coronel Carlos Sérgio Torres, o major Leônidas Soriano Caldas, o capitão Roberto Amorim Gonçalves, o major Lício Augusto Ribeiro Maciel (que aparece em vários livros), o major Roberto Sampaio Loureiro, o major Thaumaturgo, o major Diprimio, o major Othon do Rêgo Monteiro Filho (Otto), o major Nilton de Albuquerque Cerqueira (o Faixa Branca), o major Celso Seixas Marques Ferreira (dr. Brito), o tenente-coronel Leo Frederico Cinelli, o tenente-coronel Wilson Brandi Romão (dr. Zico), o tenente-coronel Flávio Demarco, o tenente-coronel Hydino Sardenberg Filho e o major José Brant Teixeira. Desmitifica-se o Major Curió, que, apesar da fama (disseminada por jornais e pelo militar), não era um personagem central e cuja autonomia era menor do que se costuma pensar.
Adepto da foquismo — focos guerrilheiros instalados notadamente no campo —, o PC do B acreditava que, a partir das matas, do campo, se poderia cercar as cidades e derrotar a ditadura. Paradoxalmente, os militares usaram a cidade, com sua fartura de homens, armas e aviões, para cercar o campo e destruir a guerrilha. O maoísmo do partido era mais produto de uma fé, fanática, do que de uma análise criteriosa e realista da correlação de forças. Só com muita boa vontade é possível admitir que a maioria dos estudantes que foram lutar no Araguaia era de fato guerrilheira. Eles eram jovens criados em cidades, é provável que muitos nunca tinham visitado uma fazenda e tiveram dificuldade de se adaptar à vida na mata — a maior parte jamais se adaptou e, no geral, vivia doente. Alguns, quando puderam, escaparam.
Há um segredo de polichinelo: em 1974, um dos líderes da guerrilha, Ângelo Arroyo, escapou do Araguaia — tendo Micheas Gomes de Almeida como guia —, ao lado de um terceiro homem. Zezinho do Araguaia não revela o nome; garante que não se lembra. Há a suspeita de que tenha sido João Amazonas. Mas o “guia” afirma que era um homem mais alto.
Ao contrário de outros livros, que são sisudos, o de Studart aventura-se, por vezes, por assuntos da vida privada. Dina, a borboleta (era difícil pegá-la, diziam os camponeses), era casada com Antônio Carlos Monteiro Teixeira, mas era apaixonada por Pedro Gil. Para a camarada Lúcia, que sugeria que não era possível amar na floresta, ela disse: “Você tem de entender que a mata é nossa casa, nossa vida. Precisamos ser felizes aqui”. Alguns guerrilheiros, como Francisco Chaves e Áurea Eliza Pereira Valadão, tinham interesse nas artes dos terecozeiros. Áurea chegou “a se consultar com um espião-terecozeiro”. Era um agente disfarçado. Certa feita, ao ser traído por uma viúva, de quem era amante, Osvaldão Orlando Costa expropriou seu castanhal. O camponês Raimundo Severino, o Raimundinho da Pedrinha, não deixou por menos: “Osvaldo trocou o chifre pelo castanhal”.
No livro “Autópsia do Medo — Vida e Morte do Delegado Sérgio Paranhos Fleury” (Globo, 650 páginas), de Percival de Souza, há a revelação de que uma irmã do jornalista Raimundo Rodrigues, ex-editor da Veja e do jornal Movimento, havia sido amante do delegado que torturou dezenas de militantes da esquerda. Studart revela outra história parecida. Criméia Alice de Almeida, guerrilheira do Araguaia, teve um relacionamento afetivo com o sargento Joaquim Artur Lopes de Souza, o Ivan — o militar que matou Dina.
Há a terrível história de Maria Lúcia Petit, que, ferida gravemente, teria sido enterrada viva. Rosalindo Cruz Souza, o Mundico, foi justiçado pelos guerrilheiros — teria sido assassinado por Dina. A tese mais aceita é que mantinha relacionamento com Áurea Valadão, que era casada com Arildo Valadão, e o adultério, talvez sobretudo o feminino, não era aceito. Studart apresenta outra informação: ele queria sair da guerrilha — e isto era considerado um crime pelo qual se pagava com a vida.
As mulheres guerrilheiras, como Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, a Dina, Dinaelza Soares Santana Coqueiro, a Maria Diná, Helenira Rezende de Souza Nazareth, a Fátima Preta, e Lúcia Maria de Souza, a Sônia (feriu o major Lício Augusto Ribeiro e o major Curió e disse: “Guerrilheiro não tem nome, tem causa”), demonstraram uma coragem impressionante — que chegou a assustar oficiais e soldados.
Um cabo do Exército infiltrado no PC do B, durante a guerrilha, continuou como militante até morrer. Joaquim Arthur, o Ivan, infiltrou-se no Destacamento B, o de Osvaldão Orlando Costa. Em 1972, revela Studart, o general Antônio Bandeira infiltrou no Araguaia um antigo militante da VAR-Palmares. “Ele era de Goiânia” e tinha “entre 35 e quarenta anos”, era “mulato, magro, trabalhador”. Atuou no destacamento de Osvaldão.
O livro de Studart abre, para quem quiser, as portas para novas pesquisas. É um manancial de ganchos para aqueles que planejam escrever dissertações de mestrado, teses de doutorado ou mesmo reportagens. O que se comentou aqui não representa 10% da obra, que, ao ampliar horizontes, é fundamental para a compreensão da Guerrilha do Araguaia. A obra é incontornável para pesquisadores e leitores comuns.
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