domingo, 16 de janeiro de 2022

Entre a autonomia estratégica e o poder limitado: o paradoxo francês


Por Lorris Beverelli, The Strategy Bridge, 25 de junho de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 15 de janeiro de 2022.

O governo francês muitas vezes gosta de enfatizar um conceito chamado “autonomia estratégica”. De fato, por mais de duas décadas, a França procurou e reivindicou ser uma potência internacional autônoma no mundo pós-Guerra Fria.[1] A grande dependência da energia nuclear como principal fonte de energia é uma ilustração dessa política: a França busca ser autossuficiente e não depender de recursos estrangeiros para abastecer o país. Essa afirmação de autonomia também é vista no âmbito militar. Dois dos principais documentos de política de defesa do governo francês, a Revisão Estratégica de Defesa e Segurança Nacional de 2017 e a atual Lei de Planejamento Militar (abrangendo o período 2019-2025), enfatizam a importância da autonomia estratégica.[2] No entanto, há um grande problema: o instrumento militar francês já não permite que o Estado seja completamente autônomo. Este artigo irá expor as principais deficiências da política de defesa francesa e seu instrumento militar de poder antes de oferecer algumas recomendações.

TRÊS QUESTÕES PRINCIPAIS


Orçamento de Defesa

O fim da Guerra Fria é o principal impulsionador dessa mudança no foco militar francês. Em 1997, o governo francês mudou o modelo de suas forças armadas do recrutamento obrigatório para um tipo exclusivamente voluntário, expedicionário.[3] Antes desta data, as Forças Armadas francesas tinham um componente maior encarregado da defesa da França continental, enquanto um componente menor, do tipo expedicionário, estava encarregado de realizar missões no exterior.[4] Após esta data, a França decidiu desenvolver uma força mais compacta porém melhor equipada, em que todas as unidades tenham capacidade para intervir no exterior.[5] A lógica era compensar a mudança de quantidade com qualidade, tanto no treinamento quanto no equipamento.[6] No entanto, na ausência de uma ameaça direta, e mesmo antes do fim da Guerra Fria, o governo reduziu gradualmente seu orçamento de defesa: entre 1982 e 2015, ele foi cortado quase pela metade.[7] Recentemente, o governo francês aumentou o orçamento de defesa para lidar melhor com as novas (e renovadas) ameaças regionais e globais. Com a implementação da última Lei de Planejamento Militar, os gastos com defesa devem atingir 2% do produto interno bruto (PIB) francês até 2025.[8]

Um soldado caminha entre veículos blindados franceses no Campo Militar de Mourmelon, no nordeste da França. (AFP)

Por causa dos repetidos cortes orçamentários, as forças restantes não receberam mais dinheiro e meios para realizar suas tarefas. Essa falta de recursos é problemática, pois os cortes orçamentários podem se traduzir em riscos estratégicos, operacionais e táticos. Por exemplo, a falta de recursos pode afetar a manutenção de equipamentos, e apenas cerca de metade dos sistemas de armas franceses não-desdobrados em operações estavam funcionais em 2015. Consequentemente, a qualidade do treinamento experimentado pelos militares franceses é necessariamente reduzida, o que pode afetar sua eficiência, segurança e moral.[9] Além disso, quando uma operação é planejada, os planejadores franceses devem restringir os meios que desejam usar com base em uma lógica orçamentária estrita.[10] Como resultado, os oficiais destacados são deixados para operar com recursos limitados.[11] Outra consequência é que os soldados franceses tendem a confiar mais no combate corpo-a-corpo para destruir o inimigo, em parte porque essas táticas são mais baratas do que confiar no poder de fogo.[12] As opções táticas são, portanto, raramente baseadas nas necessidades no terreno; em vez disso, elas são derivadas de restrições materiais.[13]

Números de tropas


As Forças Armadas francesas agora têm relativamente poucas tropas. Por exemplo, o exército francês passou de cerca de 350.000 soldados em 1984 para 200.000 em 1998.[14] Em 2017, tinha cerca de 114.500 soldados, embora tenha havido um ligeiro aumento de 2.000 soldados em relação a 2016.[15] Especificamente, a força de combate operacional do Exército é composta por apenas 77.000 soldados e, como outro exemplo, deve possuir apenas 225 tanques pesados até 2025.[16]

Esse número relativamente baixo de tropas e material constitui uma deficiência óbvia para um Estado com ambições globais, território e interesses para proteger na Europa, África, Oriente Médio e Ásia-Oceania.[17] Números baixos, combinados com cortes orçamentários duradouros, resultaram nas Forças Armadas francesas tornando-se uma força projetada para vencer guerras curtas e obter sucesso tático.[18] A França não tem o pessoal necessário para ser um ator decisivo em um grande conflito convencional, uma contradição direta com o sacrossanto princípio francês de autonomia estratégica. Em uma coalizão, a França provavelmente teria apenas efeito e influência estratégica limitados.[19] A França confia demais na dissuasão nuclear para garantir sua segurança e proteger seus interesses para enfrentar ameaças convencionais. Embora o poder nuclear seja absolutamente um elemento-chave de qualquer política de defesa para os Estados que podem pagar por ele, os conflitos ainda são muito mais propensos a envolver o envio de forças regulares do que depender exclusivamente de armas nucleares, se é que o fazem.

Foto aérea do Forte Madama, no Níger, em novembro de 2014.
(Thomas Goisque/Wikimedia)

A experiência recente deveria ter ensinado melhor a França: ela tem um alto nível de engajamento militar, com três grandes operações em andamento (Sentinelle em solo francês, Barkhane no Sahel e Chammal no Iraque e na Síria). 
Em 2016, esse envolvimento intenso e contínuo provou ser problemático, pois a França encerrou sua operação não-prioritária Sangaris na República Centro-Africana, porque a pressão sobre as Forças Armadas francesas era muito desgastante para sustentar.[20] Além disso, especialistas militares franceses apontaram regularmente que o nível de engajamento da França constitui uma enorme pressão sobre a força. Consequentemente, a falta de recursos e pessoal por parte dos franceses resultou em um impacto direto e estratégico em sua postura operacional recente.

Limitações estruturais do modelo militar francês


Outro problema, este de natureza estrutural, é o próprio modelo militar francês. O modelo atual – uma pequena força expedicionária profissional que pode ter que depender pelo menos parcialmente de parcerias com outros Estados – pode ser relevante para operações de ponte nas quais forças militares são usadas para estabilizar uma situação até que outras forças, tipicamente de uma organização internacional como as Nações Unidas, sejam capazes de assumir.[21] A própria Resenha Estratégica enfatiza a importância da cooperação e das parcerias.[22] Este modelo tem três limitações principais. Primeiro, é sempre difícil transformar o sucesso tático em efeito estratégico. Em segundo lugar, as forças internacionais não são necessariamente eficientes.[23] Terceiro, e mais importante, tal modelo não apóia o conceito francês de autonomia estratégica.

De fato, o modelo atual é excessivamente dependente de parcerias e fatores políticos não necessariamente nas mãos do governo francês. Tal conceito pode ser adequado para operações policiais onde os objetivos políticos são meramente deter um grupo armado não-estatal – como foi o caso da Serval – ou executar operações de baixa intensidade. No entanto, é improvável que este modelo consiga uma vitória decisiva contra uma força convencional. Por exemplo, a França confiou em uma organização regional africana, o G5 Sahel, para assumir o controle da área. No entanto, o G5 Sahel tem sido incapaz de realizar operações no terreno sozinho, e levou três anos para que uma força conjunta africana fosse criada.[24] Consequentemente, a França está presa no Sahel há quase cinco anos. A Operação Barkhane ainda pode mostrar algum sucesso, mas mesmo que alcance sucesso total, é inerentemente projetada para durar muito tempo e não tem uma estratégia de saída clara e direta além de delegar a missão a uma organização regional. Consequentemente, a estratégia de saída francesa depende de fatores políticos e materiais que a França não controla.

Além disso, tal estratégia pode ser impedida por outras questões, como a eficácia militar da força que está assumindo, ou os meios materiais, notadamente o financiamento, que essa organização possui. Tal estratégia de saída pode, no final, acabar sendo apenas uma estratégia e apenas um adiamento para encontrar uma solução real e duradoura para a situação.

Soldados franceses e malianos em 2016.
(Wikimedia)

RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICA

Se o governo francês pretende tornar-se estrategicamente autônomo novamente, deve implementar um conjunto de medidas relativamente simples, mas necessárias.

Números

Primeiro, o governo francês deve aumentar o número de militares, principalmente em seu exército. Esse aumento é essencial para atingir o objetivo acalentado de autonomia estratégica, aliviar a pressão atual sobre as forças armadas, preparar-se para enfrentar ameaças convencionais e reforçar a dissuasão convencional.[25] É ainda mais importante porque as forças adversárias potenciais não só têm uma vantagem em quantidade, mas também cada vez mais uma vantagem qualitativa.[26] Consequentemente, a França não pode contar com treinamento e equipamentos superiores, e com a flexibilidade e criatividade de seus líderes militares, para compensar a falta de números.[27] Conflitos recentes demonstraram que os números e o poder de fogo ainda são relevantes.[28] Além disso, compensar números baixos pela tecnologia tem limitações.

De fato, trocar números por tecnologia é um conceito errôneo, que pode ser relevante no nível tático, mas não necessariamente nas esferas operacional e estratégica. A massa crítica continua importante. A enorme expansão dos espaços de combate modernos, que podem se estender por todo o planeta, conferem uma importância particular aos números. De fato, para cobrir eficientemente todos os espaços de engajamento e fazê-lo em tempo hábil, é essencial ter um número suficiente de soldados e material disponível.[29] Para um Estado como a França, com ambições globais e uma exigência teórica potencial de desdobrar forças simultaneamente em diferentes continentes, os números não devem ser um luxo. Os números devem ser um requisito.

Reserva

Reservistas do 3e RMAT em exercício de combate urbano.

Atualmente, as forças de reserva francesas não podem reforçar decisivamente o núcleo do Exército. De fato, conforme projetado atualmente, eles são construídos para reforçar unidades permanentes com indivíduos ou pequenos grupos. As reservas não podem ser usadas para formar brigadas inteiras ou mesmo batalhões equipados com material pesado, sendo os estoques atuais insuficientes para equipar totalmente todas as unidades ativas.[30] Reviver a reserva e devolver-lhe as verdadeiras capacidades deve ser uma das principais prioridades da liderança de defesa francesa. Essas medidas aliviariam a pressão sobre as forças armadas e constituiriam um verdadeiro mecanismo de reforço para apoiar as tropas desdobradas no exterior ou em território nacional. A França precisa agir de forma decisiva em relação à sua reserva para reforçar efetivamente suas capacidades de defesa, enfrentar ameaças estratégicas e responder a surpresas estratégicas.

Repensando o modelo militar francês

O atual modelo militar francês simplesmente não corresponde ao objetivo de autonomia estratégica ou ao alto nível de engajamento, tanto na teoria quanto na prática, das Forças Armadas francesas. Para garantir autonomia, maximizar a defesa do território francês e sua vizinhança e cumprir um alto nível de engajamento, a França poderia retornar ao seu modelo tradicional. Uma única força maior poderia ser dedicada à defesa do território francês e seus arredores imediatos contra ameaças convencionais, principalmente na Europa, com uma segunda força expedicionária, muito menor, especializada na defesa dos interesses e territórios franceses no exterior por meio de operações limitadas. Tal modelo desapareceu em grande parte por causa do fim da Guerra Fria. No entanto, um desafio real seria reproduzir tal modelo sem re-decretar o alistamento obrigatório, o que é muito provavelmente irreal tanto do ponto de vista político quanto fiscal. De qualquer forma, com o ressurgimento das ameaças convencionais, o restabelecimento do modelo militar tradicional francês, com soluções adaptadas para evitar o alistamento de conscrição, deve ser, no mínimo, considerado pela liderança política e pela nação francesa como um todo.

Alternativamente, um novo modelo poderia ser estabelecido. Por exemplo, a França poderia manter seu pequeno núcleo de tropas profissionais para realizar as principais tarefas de combate e constituir a ponta de lança da força em caso de conflito convencional e intervenções no exterior, enquanto uma reserva maior poderia realizar tarefas secundárias e ocupar terreno. Outra solução potencial poderia ser a adição gradual, mas frequente, de mais pessoal às forças armadas por meio de campanhas agressivas de recrutamento. Até o final de 2016, a França havia adicionado 11.000 soldados à força de combate operacional do Exército.[31] O governo francês poderia tentar aumentar o número das forças armadas com acréscimos semelhantes e mais frequentes. Também poderia permitir que as Forças Armadas francesas ganhassem mais poder de combate sem sobrecarregar excessivamente a infraestrutura militar atual e permitir que os militares absorvessem gradualmente os novos recrutas.

Orçamento de Defesa

Legionários da 2ª companhia do 3e REI (3º Regimento Estrangeiro de Infantaria) com o míssil AAe Mistral durante o lançamento do foguete Ariane 5 em Kourou, na Guiana Francesa, em 17 de novembro de 2016.

Embora a França tenha feito um esforço recente para interromper os cortes orçamentários e aumentar seus gastos com defesa, deve continuar aumentando o orçamento de defesa no futuro e garantir que atinja e mantenha pelo menos 2% do PIB. Além disso, se a OTAN considera que os Estados membros não fortemente envolvidos no exterior e que não possuem armas nucleares devem gastar 2% de seu PIB em defesa, parece razoável que a França precise gastar mais, considerando suas ambições globais e seu arsenal.[32]

CONCLUSÃO


Se a França realmente deseja permanecer um ator global, uma potência militar credível e estrategicamente autônoma, ela precisa empreender esforços consideráveis para melhorar a condição atual de suas forças armadas. A França fez progressos nesse sentido, mas ainda precisa fazer mais. Aumentar a massa das forças armadas e do orçamento de defesa, e repensar o papel da reserva e o modelo militar atual, são os elementos em que o governo francês deve se concentrar. Naturalmente, o Estado francês também pode ter que se concentrar em elementos econômicos e industriais ao mesmo tempo, pois o poder militar viável e sustentável necessariamente vem com uma economia e indústria fortes.

Se, por outro lado, a França finalmente chegar a um acordo com seu status de potência internacional média, melhorias limitadas podem ser suficientes. No entanto, nesse caso, a França teria que aceitar o fato de que, no caso de um grande conflito convencional, ela provavelmente teria um impacto estratégico limitado, que ela tem autonomia estratégica limitada e que ela não é mais uma potência internacional forte.

Sobre o autor:

Lorris Beverelli é um cidadão francês que possui um Master of Arts em Estudos de Segurança com uma concentração em Operações Militares pela Universidade de Georgetown. As opiniões expressas neste artigo são exclusivas do autor e não representam a política ou posições do governo francês ou das forças armadas.

Notas:
  1. Frédéric Mauro, “Strategic Autonomy under the Spotlight: The New Holy Grail of European Defence”, 2018/1, 4, PDF.
  2. República Francesa, “Defence and National Security Strategic Review”, 2017, §1.2., PDF; “LOI n° 2018-607 du 13 juillet 2018 relative à la programmation militaire pour les années 2019 à 2025 et portant diverses dispositions intéressant la défense (1)", Legifrance, acessado em 10 de junho de 2019, Artigo 65, §1.2.1., https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000037192797&dateTexte=20190610.
  3. Rémy Hémez, “The French Army at a Crossroads”, Parâmetros 47, nº 1 (Primavera de 2017): 103.
  4. Michael Shurkin, “France’s War in Mali: Lessons for an Expeditionary Army”, RAND Corporation, 2014, 40, PDF.
  5. Ibid.
  6. Joseph Henrotin, “La défense française durant le prochain quinquennat: Quels défis?”, DSI, nº 128 (março-abril de 2017), 31.
  7. General Vincent Desportes, La dernière bataille de France: Lettre aux Français qui croient encore être défendus (Paris: Editions Gallimard, 2015), 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français – La baisse inexorable des moyens financiers, Kobo.
  8. “LOI n° 2018-607”, Artigo 2.
  9. Desportes, La dernière bataille, 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français – Des paradoxes qui mettent en danger nos soldats.
  10. Ibid.
  11. Shurkin, “France’s War”, 42.
  12. Ibid.
  13. Desportes, La dernière bataille, 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français – Des paradoxes qui mettent en danger nos soldats.
  14. Ibid., 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français.
  15. Ministério da Defesa francês, “Números-chave da Defesa de 2018”, 2018, 16, PDF.
  16. CES Lionel Guy, CDT Alexandre Montagna, “Un nouveau modèle pour l’Armée de Terre”, TIM, nº 276 (julho-agosto de 2016), 3.
  17. República Francesa, “Strategic Review”, §§166, 167, 168.
  18. Desportes, La dernière bataille, 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français – Des paradoxes qui mettent en danger nos soldats.
  19. Ibid., 9. A un pas du gouffre : plus de guerres, moins de moyens ? – Quelles conséquences stratégiques?
  20. Hémez, “The French Army”, 110.
  21. Ibid.
  22. República Francesa, “Strategic Review”, §5.2.
  23. Hémez, “The French Army”, 110.
  24. Centro Africano para Estudos Estratégicos, “A Review of Major Regional Security Efforts in the Sahel”, 4 de março de 2019, https://africacenter.org/spotlight/review-regional-security-efforts-sahel/.
  25. Hémez, “The French Army", 111.
  26. Henrotin, “La défense française”, 31.
  27. Rémy Hémez, Aline Leboeuf, “Retours sur Sangaris: Entre stabilisation et protection des civils”, Focus stratégique, nº 67 (abril de 2016), 30, PDF.
  28. Henrotin, “La défense française”, 34.
  29. Benoist Bihan, “Masse critique”, La plume et le sabre, 31 de março de 2013, http://www.laplumelesabre.com/2013/03/31/masse-critique/.
  30. Michel Goya, “La «descente en masse»”, DSI, nº 131 (setembro-outubro de 2017), 62.
  31. Hémez, “The French Army", 104.
  32. General Vincent Desportes, “Un désastre militaire”, Conflits, nº 13 (abril-maio-junho de 2017), 49.

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