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terça-feira, 1 de novembro de 2022

Protestos se espalham pelo Brasil na esteira das eleições presidenciais


Por Susan Katz Keating, Soldier of Fortune, 1º de novembro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 1º de novembro de 2022.

Relatos do Brasil mostram cada vez mais cenas como as mostradas abaixo, com cidadãos protestando contra os resultados da eleição presidencial. Uma grande manifestação está marcada para terça-feira, do lado de fora do quartel do Exército. A disputa gira em torno da vitória tênue do candidato Luiz Inácio Lula da Silva sobre o titular Jair Bolsonaro.

A Soldier of Fortune está a caminho para reportar de dentro do Brasil.

Os apoiadores de Bolsonaro, liderados por caminhoneiros, se espalharam pelo país, já que o presidente brasileiro até agora se recusou a admitir a derrota. Os apoiadores de Bolsonaro alegaram que a eleição foi decidida por meio de fraude.

Manifestantes bloquearam estradas em 23 estados e na capital, junto com o aeroporto internacional de São Paulo na noite de segunda-feira. Vários voos foram cancelados. Mais de 300 rodovias federais foram parcial ou totalmente bloqueadas em algum ponto, segundo a polícia.

Leitura recomendada:

COMENTÁRIO: Eleição sem povo11 de setembro de 2022.

domingo, 11 de setembro de 2022

COMENTÁRIO: Eleição sem povo


Por J. R. Guzzo, O Estado de S. Paulo, 11 de setembro de 2022.

 A comemoração dos 200 de independência do Brasil em 7 de setembro, para dizer as coisas como elas são, foi um gigantesco comício nacional em favor da candidatura do presidente Jair Bolsonaro à reeleição - as maiores demonstrações de massa que o Brasil já teve desde o 7 de setembro de 2021, quando multidões equivalentes já tinham ido para a rua com o mesmo propósito. Não houve, desta vez, tentativas de usar fantasias sobre a quantidade de pessoas presentes para anular as realidades visíveis a olho nu. As fotos e os vídeos, feitos de todos os ângulos e perspectivas, substituíram as "análises políticas" sobre o que as pessoas estavam vendo - ficaram presentes, apenas, as imagens e o fato indiscutível de que a praça transbordou no dia 7 de setembro. Foi muita coisa. Em poucos lugares no mundo, na verdade, pode acontecer algo parecido hoje em dia.

"A ira contra o que aconteceu no dia 7 diz muito sobre o que a esquerda acha do povo brasileiro"


 A tempestade enfurecida de rancor, de despeito e de ressentimento que as manifestações despertaram junto ao ex-presidente Lula, à sua campanha e à esquerda em geral é o certificado mais instrutivo sobre a vitória que a candidatura de Bolsonaro teve no 7 de setembro. Não deu pra dizer que o público não foi para a rua. O público foi acusado, então, de ir para a rua. "Deprimente", "dia triste para o Brasil", "motivo para chorar", "retrocesso político", "ato contra a democracia", "reunião da Ku Klux Klan", segundo disse Lula - e por aí vai, numa condenação explícita à liberdade das pessoas em manifestar sua opinião, apoiar o seu candidato e fazer as suas escolhas políticas. Mas não deveria ser exatamente assim, numa democracia de verdade? Qual tragédia é essa toda que estão vendo no fato de mais de 1 milhão de pessoas, possivelmente, ter participado de manifestações de manifestações de massa em todo o País sem violência, sem incidentes, sem provocar um único BO policial? A ira contra o que aconteceu no dia 7 de setembro - essa, sim, é trágica. Ela diz muito, ou diz tudo, sobre o que a esquerda nacional realmente acha do povo brasileiro: uma massa de gente desqualificada e sem vontade própria, que não se comporta como prescrevem os analistas políticos, totalitária e incapaz de votar corretamente numa eleição para presidente da República.


 Por que a esquerda, em vez de ficar odiando a multidão que foi à rua para dizer que quer votar em Bolsonaro, não faz uma manifestação igual? Esta é a questão que continua sem resposta. Estão querendo uma eleição sem povo - só com os ministros Moraes, Barroso e Fachin, advogados com influência no TSE, briguinhas no horário eleitoral e mais do mesmo. O 7 de Setembro veio para atrapalhar.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

VÍDEO: Desfile Cívico-Militar de 7 de setembro de 2022 em Brasília

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 7 de setembro de 2022.

Hoje celebra-se o dia da Pátria, completando 200 anos da independência do Brasil de Portugal. Para o bem e para o mal, é uma data significativa. O canal oficial da Marinha do Brasil (MB) publicou o desfile cívico-militar em sua integralidade no Youtube.

"Amigos, as Cortes Portuguesas querem escravizar-nos e perseguir-nos. A partir de hoje as nossas relações estão quebradas. Nenhum vínculo unir-nos mais. Tirem suas braçadeiras, soldados. Viva independência, à liberdade e à separação do Brasil. Para o meu sangue, minha honra, meu Deus, eu juro dar ao Brasil a liberdade. Independência ou morte!"

- Dom Pedro I, 7 de setembro de 1822.

Independência ou Morte (1888),
óleo sobre tela do pintor paraibano Pedro Américo,
atualmente no Museu Paulista.

Leitura recomendada:

A geopolítica do Brasil entre potência e influência13 de janeiro de 2020.

Os Processos Políticos nos Partidos Militares do Brasil, 21 de janeiro de 2020.

ENTREVISTA: A formação do Exército Nacional, com Frank D. McCann10 de junho de 2021.

COMENTÁRIO: Pseudopotência, 1º de julho de 2020.

Eleições Não Importam, Instituições Sim, 8 de janeiro de 2020.

Carteira de reservista do Exército Brasileiro no Estado Novo4 de julho de 2022.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Por que o declínio industrial tem sido tão gritante no Brasil


Análise da The Economist: The Americas, 5 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 18 de abril de 2022.

Cinturão de ferrugem da América do Sul: Nenhum outro país viu a manufatura como parcela do PIB desaparecer tão rapidamente.

O povo de São Bernardo do Campo, uma cidade próxima a São Paulo, é chamado de batateiros, ou plantadores de batata. No entanto, eles são mais conhecidos pela manufatura. Quase um século atrás, eles faziam móveis. Na década de 1950, eles começaram a fabricar carros. Logo a área que inclui a cidade, conhecida como ABC pelas iniciais de suas maiores cidades, tornou-se a maior zona industrial da América Latina. Um trabalhador de lá, Luiz Inácio Lula da Silva, chegou ao topo do sindicato dos metalúrgicos e, eventualmente, ao topo da política brasileira.


Mas quando a Urban Systems, uma consultoria, elegeu a cidade como o melhor lugar do Brasil para fazer negócios na indústria no ano passado, muita gente se surpreendeu. Em 2013, o ABC tinha 190.000 empregos formais na indústria (que inclui tanto a indústria quanto a transformação). Em 2019, tinha 140.000, ou quase um terço a menos. Placas empoeiradas de “vende-se” marcam algumas das 127 áreas industriais ociosas que Gisele Yamauchi, pesquisadora local, contabilizou em São Bernardo. Em 2019, a Ford, montadora americana, disse que estava deixando São Bernardo depois de quase um século no Brasil. Em 2021, o setor industrial formal da cidade se manteve estável, com quase tantos empregos criados quanto perdidos. Mas a mudança para os serviços é clara.

De fato, São Bernardo faz parte de uma tendência mais ampla no país. Na década de 1980, a manufatura atingiu o pico de 34% do PIB do Brasil. Em 2020 foi de apenas 11% (veja gráfico).


Em outros países, também, a importância relativa da manufatura diminuiu. À medida que as fábricas se tornam mais eficientes, são necessárias menos pessoas para fabricar cada widget, e o emprego na manufatura tende a cair mesmo com o aumento da produção. Mas o que é notável no Brasil é que o crescimento da produção também foi medíocre. Entre 1980 e 2017, o valor agregado da manufatura no Brasil em termos reais cresceu apenas 24%, em comparação com 69% na vizinha Argentina e 204% no mundo.

As indústrias de base científica do Brasil também perderam sua participação no PIB mais rapidamente do que o esperado. Na década de 1980, o Brasil produzia 55% dos insumos farmacêuticos que utilizava. Em 2020, isso caiu para 5%. Quando a pandemia da Covid-19 criou uma enorme demanda por vacinas, o Brasil foi pego de surpresa. A falta de materiais atrasou o lançamento da vacina.

À medida que o comércio global se liberalizou depois de 1990, o Brasil abriu o que havia sido uma economia ferozmente protegida. Mas apenas um pouco. Continuou protegendo grande parte de sua indústria doméstica da concorrência estrangeira, diz Fabiano Colbano, do Banco Mundial. Sucessivos governos se concentraram em alimentar a demanda doméstica, em vez de aumentar a produtividade. As empresas falharam em integrar muito nas cadeias de suprimentos globais. As tarifas foram mantidas altas e os regulamentos incômodos.


O prefeito de São Bernardo tentou tornar a cidade um lugar mais fácil para fazer negócios. Durante a pandemia, ele cortou a burocracia, baixou impostos e construiu mais estradas. Ele garantiu promessas de investimento em logística e outros aspectos da fabricação, no valor de US$ 1,75 bilhão para 2021 e 2022 (o orçamento da cidade para 2022 é de US$ 1,2 bilhão). Mas em outras partes do Brasil, a Covid-19 acelerou a queda da indústria.

O boom das commodities ajudou a criar um superávit comercial recorde para o Brasil. Mas isso mascara um déficit de US$ 53 bilhões (ou 3,3% do PIB) em bens manufaturados. De fato, a dependência de commodities, cujas exportações no Brasil equivalem a 8% do PIB, normalmente tende a acelerar o declínio da manufatura ao fortalecer a moeda local, o que torna as importações mais baratas. A China há muito prefere comprar commodities brutas e processá-las em casa. Em 2009, a China importou produtos alimentícios primários do Brasil no valor de US$ 7 bilhões, em comparação com produtos alimentícios processados no valor de quase US$ 600 milhões. Em 2019, os números foram de US$ 23 bilhões e US$ 5 bilhões, respectivamente.

O Brasil não precisa necessariamente de um grande setor industrial para prosperar. Em São Bernardo, os chãos das fábricas foram transformados em shopping centers e muitos moradores encontraram empregos como operadores de telemarketing. Alguns economistas argumentam que o declínio da manufatura deu ao Brasil uma oportunidade de aproveitar seus pontos fortes na agricultura e no petróleo.

No entanto, outros sentem que esse otimismo é equivocado. “O Brasil é o pior exemplo de desindustrialização prematura do mundo”, argumenta Rafael Cagnin, do IEDI, uma associação do setor. Os trabalhadores mudaram para empregos de serviços de baixa qualificação, em vez de empregos de alta tecnologia e qualificados. Em média, sua produtividade e renda caíram, diz ele. Em São Bernardo, os maiores salários de todos os trabalhadores com carteira assinada permanecem na indústria automobilística. Os salários médios reais em São Bernardo têm diminuído a cada ano desde 2017, inclusive nele.


Uma crise econômica entre 2014 e 2016 deu um choque tão grande no Brasil que qualquer tentativa de separar os efeitos da política industrial é difícil. Mesmo antes da Covid-19, o desemprego estava em seu nível mais alto em 50 anos, segundo o Banco Mundial.

O declínio industrial pode ter consequências políticas. Nos Estados Unidos, a perda de empregos na indústria do Centro-Oeste pode ter levado alguns eleitores a votarem em Donald Trump em 2016. No Brasil, as eleições de 2018 foram dominadas pela corrupção e as consequências da recessão, mas um estudo de dois pesquisadores brasileiros descobriu que as áreas mais afetadas pela liberalização do comércio na década de 1990 eram as mais propensas a votar em Jair Bolsonaro, o presidente populista. Ele até ganhou no antigo reduto de Lula em São Bernardo.

A próxima eleição presidencial, em outubro, pode ser crucial para a indústria. Bolsonaro não fez do estímulo à indústria uma prioridade, embora no final de fevereiro tenha prometido um corte de impostos para produtos industriais. Lula, que provavelmente concorrerá contra ele, disse que, embora as commodities sejam importantes, o Brasil precisa “ser forte na indústria, na ciência e na tecnologia”. Os próximos meses provavelmente envolverão uma corrida para conquistar os corações e votos de lugares como São Bernardo.

Bibliografia recomendada:

Introdução à Logística:
Fundamentos, práticas e integração.
Marco Aurélio Dias.


Leitura recomendada:



segunda-feira, 14 de março de 2022

LIVRO: A Lei da Selva, de Hugo Studart


Por Euler de França Belém, Jornal Opção, 3 de junho de 2020.

Guerrilha do Araguaia: os vencedores rompem o silêncio.

O jornalista Hugo Studart publica livro explosivo sobre a batalha travada por guerrilheiros do PC do B contra militares entre Goiás (hoje Tocantins) e Pará.

“A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia”¹ (Geração Editorial, 383 páginas), do jornalista Hugo Studart, nasce clássico porque, como “Combate nas Trevas”, de Jacob Gorender, será objeto de consulta obrigatória para todo estudioso (ou curioso) do assunto. O mestre em história pela Universidade de Brasília prova que, quando falham ou faltam os documentos e a interpretação não pode forçar a realidade, é possível contar com depoimentos que — somados, comparados (com outros depoimentos) e avaliados — se tornam documentos. O que é um documento senão um depoimento escrito? Produto de uma dissertação de mestrado, o livro guarda traços acadêmicos, como o rigor no manuseio e articulação das fontes, mas o texto não é filho dos pedregulhos universitários (expressões como “em última instância” e “no limite” não aparecem). É claríssimo. Duas de suas virtudes — além das revelações e confirmações fartamente documentadas — são o equilíbrio da exposição dos fatos e a segurança no julgamento (Hannah Arendt, um dos suportes teóricos de Studart, dizia que julgar é fundamental, desde que mantido o equilíbrio). Os leitores acadêmicos certamente vão ficar atentos ao uso das ideias de filósofos, como Cornelius Castoriadis, na análise da questão do imaginário. Os leitores comuns vão direto às histórias. Ganham aqueles que prestarem atenção tanto no historiador quanto no repórter.

Até pouco tempo, a Guerrilha do Araguaia (1972-1974) era patrimônio do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que, ao constituir sua verdade, tendo como base sobretudo o Relatório Arroyo e seus filhotes, como um livrinho do sociólogo Clovis Moura, praticamente impôs, ainda que indiretamente, um silêncio sepulcral à voz dos vencedores, os militares. Ao examinar a Revolução de 1930, no livro “O Silêncio dos Vencidos”, o historiador Edgar de Decca disse ter descoberto que um discurso (o do grupo de Getúlio Vargas), ao se tornar hegemônico, gestou o silêncio dos que perderam. A respeito da Guerrilha do Araguaia, deu-se o oposto. Os militares venceram a guerra das armas e perderam a guerra do discurso. Nesse campo, diante da “omissão” dos militares, os comunistas — manipulando os fatos no melhor estilo stalinista (em novembro de 1974, segundo o Dossiê Araguaia, o PC do B enviou uma delegação para avisar o governo da Albânia sobre a vitória da guerrilha. Mentindo, os dirigentes do partido riram do trágico), mas também citando a verdade parcialmente (a manipulação só é eficiente se parte da verdade não for inteiramente desconsiderada) — impuseram a sua verdade de “santos” contra a “ausência” de verdade dos “demônios”.

Contra-capa do livro.

Emilio Garrastazu Médici (sobretudo)e Ernesto Geisel: jogo duro contra os guerrilheiros da esquerda.

O ponderado trabalho de Studart não é contra ou a favor dos militares ou dos guerrilheiros. É isento, a isenção possível — aquela que permite que todas as vozes falem e sejam ouvidas. A base são o Dossiê Araguaia — estudo elaborado por oficiais —, documentos das Forças Armadas, depoimentos de militares e de ex-guerrilheiros (como o Relatório Arroyo) e o Diário do Velho Mário (escrito pelo comandante-chefe da guerrilha, Maurício Grabois). A fonte secundária é a bibliografia, que, no geral, contesta a versão dos quartéis, mas sem ouvir os militares. Poucos pesquisadores abrem espaço para os militares. As exceções são Elio Gaspari, Eumano Silva e Taís Morais, no ótimo “Operação Araguaia — Os Arquivos Secretos da Guerrilha”, e Luiz Maklouf Carvalho.

A tese dominante é que os arquivos da Guerrilha do Araguaia foram queimados — em fins de 1974, por ordem do presidente Ernesto Geisel. Ao ouvir 27 militares (de soldado a general), alguns com posição de liderança no combate aos militantes do PC do B, como o coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel, Studart conclui que, sim, foram destruídos. Entretanto, seu livro prova que, se fazem falta, porque possivelmente detalhados, é possível contar a história sem eles. Studart, por assim dizer, “desparalisa” a história ao provar que os militares — vivíssimos (78 dos oficiais e sargentos que participaram da guerrilha estão vivos) — falam, e muito, apesar das reticências e cuidados (e suas precauções têm motivos justos, afinal, a esquerda julga ter o monopólio da verdade). São arquivos vivos. Sintomaticamente, os militares que colaboraram com Studart, por mais que queiram proteger a si mesmos (a maioria não revela seus nomes), familiares e as Forças Armadas, sobretudo o Exército e a Comunidade de Informações, estão preocupados com a exatidão histórica. O Dossiê Araguaia (elaborado entre 1998 e 2001), anexado ao livro, é um documento importante e indica que os militares conhecem bem aqueles que combatiam. O mesmo não se pode dizer dos “isolados” guerrilheiros.

Operação Araguaia:
Os Arquivos secretos da Guerrilha.

Estudo torna barulhento o silêncio da guerrilha

É provável que comunistas radicais digam: “Este livro é porta-voz dos militares”. Não é. O estudo de Studart torna barulhento o silêncio da guerrilha — recupera a voz dos militares, não para torná-la única a respeito do tema, mas sim para apontá-la como contradição enriquecedora para a constituição de uma história mais ampla do conflito. O objetivo é ampliar os sentidos da guerrilha. (“Trata-se, aqui, de relatar o significado do conflito sob a ótica de um dos lados envolvidos, os militares brasileiros que participaram da luta”, esclarece, sem meias palavras, Studart. Isto não quer dizer que o livro não seja nuançado.) Os comunistas ortodoxos precisam entender que a história só se completa — e reluto ao escrever “se completa” — com a exploração e conexão das divergências. Os militares têm informações que são úteis aos próprios esquerdistas. O livro revela, por exemplo, que, ao contrário do que apontam PC do B e Comissão dos Desaparecidos, morreram mais pessoas no Araguaia. Eis o saldo da guerrilha, na versão do Dossiê Araguaia: “Dos 107 guerrilheiros e camponeses que participaram, 64 teriam morrido; 18 teriam ‘paradeiro desconhecido’; 15 foram presos e sobreviveram; sete teriam desertado; dois teriam cometido suicídio; e um teria sido ‘justiçado’ pelos próprios companheiros”. De acordo com o Dossiê, morreram seis militares e oito foram feridos. Os números do PC do B são mais modestos: “Teriam tombado 75 pessoas — 58 guerrilheiros e 17 camponeses. Segundo a contabilidade dos militares, teriam sido 85. Ou seja, os militares admitem 10 mortos a mais”. (Não custa registrar que, juntos, o “soviético” Stálin e o chinês Mao Tsé-tung mataram 100 milhões de pessoas.)

Orlando Geisel: general, ministro do Exército: ordem era para jogar pesado no Araguaia.

Exemplo de documentação usada no livro.

Ao “entrar” nas histórias contadas por Studart, o leitor certamente ficará surpreso com o volume de revelações ou confirmações, agora iluminadas por dados novos, a respeito da Guerrilha do Araguaia.

Os militantes do PC do B foram para o Araguaia, na confluência dos Estados de Goiás (hoje Tocantins) e Pará, em 1966. Seis anos depois, os “paulistas” foram descobertos pelos militares. Durante anos, o PC do B sustentou que Pedro Albuquerque Neto e Lúcia Regina de Souza Martins foram os “traidores”. A apuração e a análise de Studart são ricas: “No imaginário dos militares quem teria sido o responsável pela chegada das Forças Armadas ao local onde resistiam os guerrilheiros? Pedro Albuquerque ou Lúcia Regina? Ambos, segundo descobri. Os militares primeiro tiveram notícia da guerrilha através de Lúcia Regina. Ao voltar para São Paulo, emocionalmente fragilizada, revoltada, sentindo-se culpada pelo aborto, conforme revelou depois, ela acabou desabafando com os pais. Falou tudo o que sabia. Foi seu pai quem procurou os militares para relatar o que Lúcia lhe havia contado, de acordo com a narrativa de um militar [Lício Maciel] que na época serviu no Centro de Informações do Exército. O informe, repassado da agência do CIE em São Paulo para a sede do Rio, teria sido colocado na gaveta. (…) O assunto só ganhou dimensão em fins de março, quando chegou à agência do CIE em Brasília o depoimento de Pedro Albuquerque à Polícia Federal em Fortaleza. De modo que, para os militares, prevaleceu a idéia generalizada de que Pedro teria revelado a existência da guerrilha”. Isto não quer dizer, ressalva Studart, que Albuquerque trabalhou como “colaborador” dos militares. “De todo modo, foi a partir do depoimento de Pedro que os militares precipitaram a reação que mais cedo ou mais tarde se desencadearia no Araguaia.” A conclusão de Studart: “… a descoberta da Guerrilha do Araguaia resulta não de uma ‘traição’, como registra o imaginário dos guerrilheiros; mas, sim, de diferentes interpretações do imaginário militar que, movido pelo ideário anticomunista e pela doutrina de segurança nacional, criou o Sistema de Informações e Segurança”.

Milton Tavares (Miltinho): general que seguiu as duras ordens de Orlando Geisel a respeito da Guerrilha do Araguaia, na primeira metade da década de 1970.

General Antônio Bandeira: um dos operadores no combate à Guerrilha do Araguaia.

Sob comando do coronel Carlos Sérgio Torres, chefe de Operações do CIE, a Operação Peixe (1ª fase da Primeira Campanha) — com 30 agentes da Inteligência — vasculha a região do Araguaia em busca de informações. Entre os militares estavam o major Lício Maciel (o Dr. Asdrúbal), o subtenente João Pedro do Rego (Javali Solitário, J. Peter) e o primeiro-tenente Cid (codinome).

Rapidamente, nos fins de abril de 1972, os militares identificam o codinome de 55 dos 69 guerrilheiros. Prendem o guerrilheiro Danilo Carneiro, o Nilo, na Transamazônica. “Os militares”, escreve Studart, “informam que ele tentava desertar. Segundo o Dossiê, no interrogatório Nilo teria revelado a base guerrilheira de Metade. Também teria revelado o codinome de cinco guerrilheiros de uma vez”. Em seguida, prenderam Eduardo José Monteiro Teixeira e Rioco Kayano, mais tarde mulher de José Genoino Neto. Próximo a ser preso, Genoino é tachado de delator por alguns militares. A versão de uma fonte de Studart, o Dr. George: “Seu depoimento foi fundamental para entender como a guerrilha estava estruturada e a real dimensão do inimigo. Mas nenhum guerrilheiro caiu por causa dele. Quando íamos checar suas informações, já não havia mais ninguém no local”. Outra fonte do jornalista, o Dr. Hoffmann, acrescenta: “Ele nos levou aos locais que havia indicado no depoimento. Mas avalio que não estava colaborando, simplesmente não tinha opção”.

Guerrilheiros religiosos

Na segunda campanha, a Operação Papagaio, o general Viana Moog era o manda-chuva. Mas quem operava mesmo era o general Antônio Bandeira. Há a tendência de ver as Forças Armadas como monolíticas, mas Studart apresenta dissensões entre o Alto Comando e tropas regulares, de um lado, e, de outro, a Comunidade de Informações, liderada pelos generais Bandeira e Milton Tavares, o Miltinho, chefe do Centro de Informações do Exército (CIE). 3.250 militares foram enviados ao Araguaia. Os primeiros a morrer são o guerrilheiro Miguel Pereira dos Santos, o Cazuza, e o sargento Mário Abrahim da Silva. Os militares matam mais sete militantes do PC do B. Antônio Carlos Monteiro Teixeira, o Antônio da Dina, José Toledo de Oliveira, Vitor, e Francisco Manoel Chaves, Preto Velho, foram mortos pelo grupo chefiado pelo sargento goiano José Pereira, que contou ao Jornal Opção, em 1997, como ocorreu o chafurdo. J. Pereira recebeu um elogio, por escrito e oficial, do general Bandeira.


Sem conseguir caçar todos os guerrilheiros, e apesar da resistência do general Bandeira, o comando em Brasília manda suspender as manobras. Um dos homens mais duros do regime, o general Milton Tavares, chamado de Miltinho por seus aliados, assumiu o controle das ações de contraguerrilha, depois passou o bastão para o general Confúcio de Paula Torres Avelino. O chefe de Operações do CIE, tenente-coronel Carlos Sérgio Torres, é o coordenador geral e o major Gilberto Zenkner, o Dr. Nunes, assume a coordenação da Operação Sucuri, trabalho de infiltração de agentes na região do Araguaia. Agora, os militares queriam conhecer mais a respeito dos guerrilheiros antes de combatê-los.

Enquanto os guerrilheiros apostavam numa trégua e cantavam vitória, os militares, disfarçados e reinventando táticas, vasculhavam o Araguaia. O relato de Studart: “Em fins de 1973, quando a tropa desceu na selva para a derradeira caçada, os militares já sabiam nome e endereço de cada guerrilheiro, suas redes de apoio, caminhos que cada um costumava traçar na mata, assim como nome e endereço de cada ‘estabelecido’ que simpatizava com os guerrilheiros ou que poderia apoiar os militares. (…) O Exército infiltrou 35 agentes no cotidiano dos guerrilheiros”.

Newton Cerqueira: general cuja atuação contra a Guerrilha do Araguaia era pouca conhecida.

Major Curió e coronel Lício Maciel: na linha de frente do combate aos guerrilheiros.

José Genoino, guerrilheiro do PC do B: preso, em 1972, por militares do Exército, na região do Araguaia.

Entre histórias tão terríveis, há pelo menos uma engraçada: “O Dossiê [Araguaia] faz surpreendentes revelações. Um agente se disfarçou de terecozeiro (benzedor, feiticeiro, no sincretismo que une o xamanismo afro-indígena-europeu). Grupos de guerrilheiros passaram a visitá-lo, com rapidez espantosa, em busca de suas rezas”. O ex-sargento J. Pereira relatou ao Jornal Opção que, quando examinou a bolsa do guerrilheiro Francisco Chaves, descobriu objetos típicos de mandinga.

Uma das infiltrações descobertas pelas investigações de Studart é surpreendente. Um militante do grupo guerrilheiro VAR-Palmares, preso em Brasília, ficou infiltrado entre os guerrilheiros do PC do B por 15 dias. O “informe” que passou aos militares é texto de semianalfabeto.

Com informações detalhadas sobre o cotidiano da guerrilha, as Forças Armadas enviam 750 militares de tropas especiais para o Araguaia. A Operação Marajoara, a Terceira Campanha, foi comandada primeiro pelo tenente-coronel Wilson Romão, Dr. Zico, e depois pelo tenente-coronel Flávio Demarco, o Tio Caco. No fim de 1973, o tenente-coronel Newton Albuquerque Cerqueira, o militar que comandou a operação que matou Carlos Lamarca, foi escolhido a dedo pelo general Milton Tavares para combater a guerrilha (“Tem que ser o Cerqueira”, sugeriu Miltinho ao general Hugo Abreu — o ministro do Exército, Orlando Geisel, avalizou). “Permaneceu na área por três meses, entre janeiro e março de 1974, justamente o período em que a guerrilha sofreu as maiores baixas — 22 guerrilheiros. (…) Guerrilheiro algum escapou no período em que Cerqueira atuou”, relata Studart. (A presença de Cerqueira no Araguaia foi revelada pelo jornalista Luiz Maklouf no livro “O Coronel Rompe o Silêncio”, longo depoimento do coronel Lício Maciel.)

Maurício Grabois: o líder da guerrilha do PC do B admite justiçamento de camponês.

Em novembro de 1973, com “38 guerrilheiros em condições de combate”, porém mais preocupados com comida do que com armas, os militares, como percebe Studart, terceirizam a batalha. Armados, os mateiros “iam à frente das patrulhas, como guias”. Com a terceirização, os mateiros “entrariam sozinhos na mata caçando guerrilheiros à velha moda dos jagunços”. Recebiam entre 5 e 10 mil cruzeiros por guerrilheiros. Ao contrário do que disseram outros militares, como o coronel Pedro Corrêa Cabral, em entrevista ao Jornal Opção, a pesquisa de Studart confirma que “os militares recrutaram uma tribo inteira de índios suruís” para combater os guerrilheiros.

Studart expõe uma cena espantosa: “… em fins de novembro [de 1973], um mateiro, caboclo que morava perto da reserva suruí, apareceu com uma sacola diante da equipe de paraquedistas que tomava café da manhã num acampamento perto de Xambioá. Perguntou quanto estavam pagando por cabeça de ‘povo da mata’. Um deles respondeu o valor. O mateiro abriu a boca da sacola, sacudiu-a e de dentro caiu uma cabeça entre os pratos dos soldados. A cabeça de Arildo Valadão. (…) Seis cabeças de guerrilheiros, talvez sete, chegaram em sacolas a Marabá ou Xambioá”. Studart conta a história de um militar que jogou três cabeças de guerrilheiros em cima de uma mesa, durante uma reunião, para afrontar militares burocratas.

Maurício Grabois, chefe da guerrilha, abandonado por Ângelo Arroyo, foi morto em dezembro de 1973. Em 1974, mesmo depois de ataque intenso, havia 27 guerrilheiros vivos. “Muitos se entregaram”, Studart constatou nas entrevistas orais com militares. “Outro foram presos. Nenhum sobreviveu para contar.” O jornalista-historiador diz que 20 guerrilheiros foram presos na caçada final. E foram “feitos”, mortos, pelos militares. As equipes Zebra e Jiboia eram encarregadas da limpeza. A Zebra matou 12 guerrilheiros; a Jiboia, sete (Dina é a mais célebre), nenhum em combate. No teatro da guerra, o militar conhecido como Tio Caco era o Senhor das Mortes.

Uma Equipe Zebra com dois guerrilheiros capturados no Araguaia.
Os "zebras" eram militares e mateiros atuando descaracterizados em missões de contra-guerrilha.


Hugo Studart: o pesquisador prova que militares são poderosos arquivos para se contar a história da Guerrilha do Araguaia.

Studart mostra que os militares, orientados para matar todos os guerrilheiros e não levar prisioneiros para Brasília (ou outra cidade), relutaram a respeito de Áurea Elisa Pereira Valadão. Ela “colaborou”, não era “perigosa”. “Mas, ao final, a KGB do Tio Caco achou por bem mandar cumprir à risca a ordem de não fazer prisioneiros.”

Uma das histórias mais comoventes é a de Telma Regina Cordeiro Corrêa, a Lia. Depois de escapar do Chafurdo de Natal, fugiu para uma região rochosa, onde não havia comida e água. Morreu de fome. Deixou um diário lancinante. Na iminência da morte, reagia e cantava a canção dos guerrilheiros:

“Nada teme, jamais se abate,
a afronta a bala a servir.
Ama a vida, despreza a morte
e vai ao encontro do porvir”.

Poderosos chefões foram presidentes e generais

Depois de relatar a história da guerrilha, Studart faz uma pergunta que não agrada a alguns militares: quem deu a ordem para executar os prisioneiros do Araguaia? “Nem mesmo aqueles que ‘fizeram’ pessoalmente o serviço sabem ao certo, explicam os militares em suas narrativas. Eram ordens vindas de cima, sempre ordens orais, dadas por um chefe no pé do ouvido a um subordinado de confiança, sempre com o subterfúgio do eufemismo do verbo fazer, ‘faz aí’, ‘faz’”, aponta Studart.

Osvaldão: o lendário guerrilheiro do Araguaia.

Os militares do Araguaia tinham liberdade para matar? Tinham, mas não eram autônomos. Studart recorre ao historiador Carlos Fico: “Não se deve confundir independência operacional com autonomia. Os membros dessas equipes [as que matavam os guerrilheiros capturados] não agiam contra a vontade de seus superiores, especialmente os generais. Portanto, não se pode alegar que no Araguaia alguns pequenos grupos militares tenham adquirido ‘autonomia’ e cometido os ‘excessos’ por conta própria, sem que os generais em Brasília, em especial os generais presidentes, tenham qualquer responsabilidade sobre esses atos”. (O texto entre aspas é de Studart, não de Carlos Fico.)

Os chefões então foram o Tio Caco, da Casa Azul, e o tenente-coronel Sérgio Torres? Eram chefes, mas, ressalva Studart, “durante o governo Médici, um chefe de operações dos serviços de inteligência tinha independência quase total para agir — mas não autonomia”. Os chefões eram, pela ordem, os presidentes Emílio Médici e Ernesto Geisel, os ministros do Exército Orlando Geisel e Sylvio Frota, os generais Milton Tavares de Souza e Confúcio de Paula Avelino e o brigadeiro Newton Vassallo de Silva.

Mas quem realmente deu a ordem para liquidar os guerrilheiros? Orlando Geisel disse a Milton Tavares: “Não sai ninguém da área”. Não era uma senha. Era uma ordem para matar. Todos entenderam.

Por que é tão difícil encontrar os corpos dos guerrilheiros? Os militares acenderam fogueiras na Serra das Andorinhas, com pneus, e supostamente queimaram alguns corpos. A versão apurada por Studart: as fogueiras “foram acesas, mas nem sempre haveria corpos sob as chamas. A maior parte dos corpos desenterrados teria desaparecido com ácido, no próprio local da exumação” (portanto, não na Serra das Andorinhas).

Apesar de longo, este texto não chega a ser uma síntese do conteúdo do excelente livro de Studart. Há mais, muito mais, que, sem dúvida, vai reverberar noutros livros e, se for lido com atenção, vai gerar polêmicas nos jornais e revistas. É um tributo à grande história. Sérgio Buarque de Holanda certamente aplaudiria. É provável que a turma mais dinossáurica do PC do B, mesmo com a apresentação de dados fartos sobre a crueldade militar, não aprove. Porque, para os comunistas, a verdade é uma só: a deles. Studart situa, com acerto, a Guerrilha do Araguaia num contexto de rebeliões mundiais, pós-Revolução Cubana de 1959 e mesmo a Chinesa de 1949 (os comunistas do PC do B tiveram a sua fase maoísta — antes de aderir ao socialismo das cabras, o “cabriolismo” albanês).

Dina Teixeira, a borboleta executora

Dina (com o marido Antônio), geóloga baiana: a guerrilheira matou um companheiro friamente.

Uma das histórias mais explosivas do livro de Hugo Studart tem a ver com Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, que o imaginário coletivo consagrou como Dina. Única mulher a ter posto de subcomandante, por ser inflexível, dura e corajosa, Dina, ao lado de Osvaldo Orlando Costa, o Osvaldão, é o maior mito da Guerrilha do Araguaia.

Durante anos, o PC do B sustentou que o guerrilheiro Rosalindo Cruz Souza, o Mundico, morreu quando a arma que limpava disparou acidentalmente. A versão tem sido desmentida, mas é no livro de Studart que se tem uma informação mais rica. Eis o relato: “Era um caso banal, adultério; triângulo amoroso entre Rosalindo e o casal de guerrilheiros Arildo Valadão, o Ari, e Áurea Elisa Pereira Valadão, a Áurea. Levado ao Tribunal Revolucionário das Forças Guerrilheiras do Araguaia — este, o nome oficial —, Rosalindo foi acusado de trair a revolução. Cinco companheiros participaram do julgamento, entre eles Dina [e também Osvaldão e André Grabois, o Zé Carlos]. Sete camponeses testemunharam. Amarrado numa árvore, com as mãos nas costas, Rosalindo escutou a acusação. Foi sentenciado a justiçamento por unanimidade dos votos. Quem o executaria?”

Rosalindo de Souza (Mundico): adultério provocou sua execução no Araguaia.

Poderia ser um homem, como o experimentado Osvaldão, mas não foi. Conta Studart: “Dina levantou-se em silêncio e caminhou em direção ao companheiro. Parou a dois metros de distância e apontou o Taurus calibre 38 para o coração de Rosalindo. Ele nada falou, não chorou, não pediu clemência. Apenas encarou Dina nos olhos na hora em que ela apertou o gatilho. Enterraram Rosalindo ali mesmo, num banco de areia a 250 metros da sede do sítio, enrolado numa rede. O corpo jamais foi encontrado. (…) Esses fatos ocorreram a 26 de agosto de 1973”. Infiltrado entre os camponeses, o agente Ivan viu a execução. Convém que o leitor perceba o detalhamento e a segurança das informações.

Em junho de 1974, uma patrulha de guerra do Exército prende a “perigosa” Dina, a mulher que virava borboleta, “numa localidade chamada Pau Preto. Estava em companhia da guerrilheira Luiza Augusta Garlipe, codinome Tuca. [Dina foi presa pelo capitão Curió, que a agarrou, pois queria pegá-la viva.] Levada para interrogatório em Marabá, permaneceu por cerca de duas semanas nas mãos de uma equipe da inteligência militar. Estava fraca, desnutrida, havia quase um ano sem comer sal ou açúcar. Por causa da tensão, fazia seis meses que não menstruava [Studart disse ao Jornal Opção que talvez daí derive a “informação” de que estivesse grávida]. No início de julho, o capitão Sebastião Rodrigues de Moura, codinome Dr. Luchini [Dr. Curió], retirou Dina. Levaram-na de helicóptero para algum ponto da mata espessa, perto de Xambioá. Um sargento do Exército, Joaquim Artur Lopes de Souza, codinome Ivan [uma homenagem inconsciente aos russos?], chefiava a pequena equipe, três homens. (A respeito dos homens-chave do combate à guerrilha, os militares ouvidos por Studart apontam os coronéis Torres, Demarco, Lício e Cerqueira. Marqueteiro, Curió levou a fama.)

“‘Vocês vão me matar agora?’, teria indagado Dina assim que pisou em solo.

“‘Não, mais na frente um pouco. Agora só quero que você reconheça um ponto ali adiante’, teria respondido Ivan.

“O grupo caminhou por cerca de 200 metros mata adentro.

“‘Vou morrer agora?’, perguntou a guerrilheira.

“‘Vai, agora você vai ter que ir’, respondeu Ivan.

“‘Eu quero morrer de frente’, pediu.

“‘Então vira pra cá.’

“Ela virou e encarou o executor nos olhos. Transmitia mais orgulho que medo. Ele se aproximou da guerrilheira, parou a dois metros de distância e lhe estourou o peito com uma bala de pistola calibre 45. O tiro pegou um pouco acima do coração. O impacto jogou Dina para trás. Levou um segundo tiro na cabeça. Foi enterrada ali mesmo”. A morte de Dina é um “retrato” da morte de Mundico.

Lúcia Maria de Souza, a Sônia: “Guerrilheiro não tem nome”

Lúcia Maria de Souza, a Sônia.

O relato da morte de Lúcia Maria de Souza, a Sônia, transformada em heroína pelos próprios militares, ganha textura ampliada no trabalho de Studart. Em 24 de outubro de 1973, o Dr. Asdrúbal [o então major Lício Maciel] lidera patrulha de oito militares que enfrenta e mata Sônia. Ferida, a guerrilheira reage, atira em Asdrúbal e em Luchini-Curió e arrasta-se pela mata. Encontrada pelo suboficial do Exército Javali Solitário, também chamado de J. Peter, e pelo sargento do Exército Cid, tenta levantar a arma. Cid pisa no seu braço e pergunta seu nome. “Guerrilheiro não tem nome”, replica Sônia. Cid retruca: “Nem nome nem vida”. Cid e Javali atiraram com suas metralhadoras. “Ela ficou com mais de 80 furos”, diz Cid.

Sobre a morte de Idalísio Soares Aranha, o Aparício, ocorrida a 13 de julho de 1972, o texto de Studart também é detalhado. Aparício levou “53 tiros de metralhadora, inclusive no rosto, e ainda assim conseguiu escapar pela mata. Foi apanhado dois quilômetros adiante, agonizando no chão, e executado com um tiro na cabeça, de espingarda, uma Winchester calibre 44. O tiro moeu-lhe a cabeça por completo. O corpo do guerrilheiro foi levado numa rede para identificação — ao vê-lo, um major da Aeronáutica teria vomitado abundantemente”.

A história da morte de Osvaldão é bem conhecida, mas Studart apresenta detalhes novos. “Na área de São Geraldo, a equipe encontrou pegadas enormes. Osvaldão calçava 48. As pegadas eram de um solado de pneu. Meses antes Osvaldão havia feito uma sandália com um pneu velho que ganhou de um militar [Ivan] infiltrado entre os moradores. O grupo [militares e o mateiro Arlindo Vieira, o Piauí] caminhou dois dias atrás do rastro. Em determinada hora notaram movimentos no capinzal e pararam. Osvaldão teve azar. Caminhou em direção à patrulha e entrou na clareira com o peito de frente para a espingarda A-12 do mateiro. Arlindo se mostrava apavorado, tremia de medo. Osvaldão foi abatido de braços abertos, enquanto afastava o capim. Urrou de dor. Um militar disparou outro tiro de pistola 45 na cabeça do guerrilheiro já caído no chão.”

Ivan: o agente secreto que enganou Osvaldão e matou Dina.

Dinaelza Santana Coqueiro, a Maria Diná, também é vista como “heroína” pelos militares. O agente Fernando contou a Studart: “Era braba pra cacete, aguentou um pau violento, uns cinco ou seis dias de pau. Aí contou a história dela. Então nossa equipe a levou. Na hora, minha pistola engasgou. Engasgou e não saiu mais bala nenhuma. Ela me olhava com um ódio danado. Não chorou, só me olhou com ódio, um ódio fantástico, ódio, muito ódio. Foi uma merda. Então eu tive de pegar outra arma. Um companheiro chegou perto e me ajudou a fazer o serviço”. Segundo o executor, Maria Diná morreu entre janeiro e fevereiro de 1974.

O guerrilheiro Tobias Pereira Júnior, Josias, preso em dezembro de 1973, decidiu colaborar. “Ficou por quase dois meses colaborando com os militares. Desenhou os mapas da região e ajudou a localizar remanescentes da guerrilha. Chegou até a ensaiar uma amizade com [o agente] Fernando, um dos escalados para os interrogatórios”, anota Studart. Chamado para executá-lo, Fernando refugou e disse para seu chefe: “Se o sr. puder me tirar esse cálice”.

Criméia contesta Zezinho do Araguaia

Michéas-Zezinho do Araguaia: sobrevivente da Guerrilha do Araguaia.

Em 1974, Ângelo Arroyo, o Joaquim, Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho, e um terceiro homem, até agora não-identificado, escaparam do cenário da Guerrilha do Araguaia. Como Arroyo morreu, Zezinho é a única fonte que pode identificá-lo. Hugo Studart registra (página 44) que, segundo a ex-guerrilheira Criméia Almeida, mulher de André Grabois, “a história sobre o terceiro homem seria uma criação de Micheas”. “Essa história do terceiro [homem] me parece criação do Zezinho, porque a primeira vez que eu o encontrei, em 1996, ele me disse que o terceiro era o João Amazonas e eu lhe disse que não era porque este estava em São Paulo, então ele mudou a versão dizendo que era um que ele não se lembrava o nome”, relatou Criméia a Studart.

Um historiador, com rigorosa formação acadêmica, contou ao Jornal Opção que o terceiro homem era mesmo João Amazonas. Com a informação, voltei a conversar com Zezinho. O ex-guerrilheiro me disse que não era João Amazonas, e sim um homem mais alto. Uma fonte, que militou no PC do B, sustenta que Zezinho teve de voltar atrás porque João Amazonas, como dirigente máximo do partido durante vários anos, “não pode” ficar na história como “desertor”, como tendo abandonado seus companheiros à morte. Zezinho calou-se, ou melhor, mudou sua história. Seria a omertà comunista?

Há também informações sobre o guerrilheiro goiano Divino Ferreira de Souza, o Nunes.

Nota

¹ Em 2018, Hugo Studart lançou o livro “Borboletas e Lobisomens — Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia” (Francisco Alves, 658 páginas), produto de tese de doutorado apresentada na Universidade de Brasília (UnB).

Leitura recomendada:

LIVRO: Borboletas e Lobisomens, 17 de janeiro de 2022.

quarta-feira, 2 de março de 2022

COMENTÁRIO: O Brasil não pode virar a Ucrânia amanhã

Soldados ucranianos em meio à destruição durante confronto com a Rússia.

Por Jorge Serrão, Jovem Pan News, 28 de fevereiro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 2 de março de 2022.

É fundamental iniciar um debate público sério sobre o emprego da energia nuclear, inclusive para fins militares na defesa do país; nação que não tem poder real de dissuasão fica sujeita à invasão.

Tempos esquisitos. Só se fala de “guerra”. A invasão da Ucrânia pela Rússia “rouba” a atenção. De repente, igual ao que aconteceu com a Covid, surgem “especialistas” por todos os lados. Muita bobagem veiculada na mídia tradicional e muita besteira circulando nas redes sociais. Sorte que algumas análises certeiras prevalecem. Uma delas, bem resumida, foi postada pelo General de Exército na reserva Maynard Marques de Santa Rosa, ex-Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (gestão Jair Bolsonaro):

“Estamos assistindo ao colapso da Ucrânia e à  impotência ocidental. A truculência russa mostra que o mundo mudou. Formam-se, no mínimo, dois blocos de poder: o Ocidente (em declínio) e o Euroasiático. O vácuo que surge é uma grande oportunidade para o Brasil.”

No alvo. Estrategistas têm obrigação de compreender a dimensão do verdadeiro conflito global em andamento. A real disputa hegemônica é entre a visão e prática da Economia Planificada (cujos expoentes são a China e a Rússia) versus a Economia de Mercado (Estados Unidos e países desenvolvidos da Europa). No meio dessa batalha global (ou globalitária), como ferramenta de ilusionismo, aparecem as disputas ideológicas. Tudo jogo de aparência para desviar a real razão da disputa de poder: a conquista e manutenção da hegemonia política/econômica. Nações que têm soberania plena (leia-se, bomba atômica) conseguem fazer qualquer ameaça ou bravata em tempos beligerantes. O resto assiste bestificado, sofre diretamente ou, pior, paga a conta dos conflitos e guerras intermináveis. A indústria bélica lucra descaradamente. O paradoxo: a economia entra em pleno emprego de fatores. Aí surgem as “oportunidades”.

Muitos conflitos e guerras vão estourar em diferentes partes do Planeta Terra. Os brasileiros precisam agir com cautela diante de uma grande corrida armamentista que começa a virar realidade. O Brasil precisa acordar para um debate sobre o emprego da energia nuclear. O assunto não pode ser tabu, por imposição dos globalistas ou por omissão da classe política brasileira. É relevante ressaltar que nenhum país sem “bomba atômica” está livre de sofrer “intervenções” (ou invasões) das nações com poder de ação e dissuasão nuclear. Vale recordar que, em 2021, a ONU liderou uma verdadeira cruzada contra a soberania do Brasil na Amazônia. Foi colocada em votação uma resolução internacional sobre a região – que seria, na prática, “internacionalizada”. Curiosamente, foi o poder de veto da Rússia no Conselho de Segurança que livrou o Brasil dessa investida globalista. Daí se consegue entender, agora, que o governo federal tenha declarado a “neutralidade” do Brasil no conflito Rússia x Ucrânia.


O Brasil não pode ser uma Ucrânia amanhã. Historicamente, temos problemas estruturais. O problema essencial é que não conseguimos formular um Projeto Estratégico de Nação. Parecemos um eterno Titanic, que uma hora vai afundar, mas que tem uma boia mágica que atrasa o desastre inevitável. Na realidade, somos uma rica colônia de exploração, mantida artificial e metodicamente na miséria dependente. Não podemos nos resumir ao papel de exportador de commodities [recursos primários]. Não merecemos sobreviver reféns ou sob controle de uma oligarquia feudal, promotora do regime do Crime Institucionalizado, se locupletando das benesses estatais (dinheiro dos pagadores de impostos). Felizmente, a maioria da população, que sempre se mostrou impotente, agora começa a esboçar ações e reações para conquistar soberania.

Por isso, é fundamental que todos compreendam que temos “guerras” a resolver aqui, no “Togaquistão”. Nosso inimigo local e real é a Cleptocracia, seu Mecanismo e sua Juristocracia. Tudo com influência direta do Narconegócio. No momento, alimentar polêmicas inúteis e equivocadas sobre o conflito da Ucrânia apenas nos tira do foco da nossa complexa briga interna. O voto certeiro será fundamental para o começo da recuperação do equilíbrio institucional no Brasil. Enquanto não houver recuperação do “poder-de-fogo” e identidade do cidadão, não tem solução. Povo sem voz, sem identidade, não tem vez. Ou cuidamos do nosso pedaço, com soberania, ou não temos nada de concreto. É Pátria Honesta e Soberana, ou seremos escravos globalitários. Pense nisso.

Bibliografia recomendada:

A Farsa Ianomami.
Carlos Alberto Lima Menna Barreto.

Leitura recomendada:

COMENTÁRIO: Pseudopotência, 1º de julho de 2020.

A geopolítica do Brasil entre potência e influência13 de janeiro de 2020.