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segunda-feira, 5 de julho de 2021

ENTREVISTA: A Batalha de Quifangondo segundo Pedro Marangoni

"Batalha do Kifangondo."

Tradução Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 5 de julho de 2021.

A Batalha do Quifangondo (ou Kifangondo) foi travada em 10 de novembro de 1975 entre o ELNA e as FAPLA na província de Luanda, em Angola. A batalha também é popularmente conhecido em Angola como Nshila wa Lufu, ou Batalha da Estrada da Morte.

Pedro Morongoni é entrevistado pelo Secretário de Imprensa da União Russa dos Veteranos de Angola, Serguei Kolomnin, em 10 de novembro de 2015.

Pedro Marangoni, mercenário de nacionalidade brasileira, participou na Batalha de Quifangondo ao lado da FNLA, integrando a unidade comandada pelo Coronel Santos e Castro.

Pedro Marangoni nasceu em São Paulo, Brasil, em 1949.
  • Formado no Centro de Formação de Pilotos Militares da Força Aérea Brasileira (1968-1971).
  • Ocupação: Piloto de Helicópteros, 9.000 horas de vôo.
  • Serviu na Legião Estrangeira  Francesa (1972-1973).
  • Depois viveu em Moçambique (1973-1974).
  • Chegou em Angola em Junho 1975, combateu com o grupo do Coronel Gilberto Santos e Castro ao lado da FNLA.
  • Participou na Batalha de Quifangondo (23 de Outubro - 10 de Novembro de 1975). Abandonou a luta em Fevereiro de 1976.
  • Viveu na  Rodésia (1976 – 1977).
  • Depois esteve com a Resistência Nacional Moçambicana, na região de fronteira com a Rodésia, Inyanga, Umtali.
  • Em 1979-1980 serviu na Legião Espanhola.
  • Depois da África voltou para o Brasil e trabalhou na Amazônia (Brasil), Bolívia e Peru, como piloto de helicópteros por cerca de 20 anos.
Agora vive no Brasil.

Livros publicados:
  • Angola - Comandos especiais contra os cubanos;
  • A Opção pela Espada;
  • A Era do Não: Poesia de crítica social, ateísmo, ceticismo;
  • O infinito não tem pressa;
  • Maria da Silva - apenas um retrato do cotidiano;
  • A grande manada.

Morro dos Asfaltos, Angola.
Da esquerda pra direita: Paiva, Lopes, Daniel, Pedro Marangoni (boina vermelha), Nelson, Morteirete (gorro sul-africano), Simões Comprido e o Capitão Valdemar (loiro, camisa preta). No centro, Coronel Santos e Castro (camisa preta e suíças).

Extratos do artigo escrito por Pedro Marangoni com o título "Quatro MLRS BM-21 Grad deteram os inimigos que avançavam sobre Luanda e mudaram o rumo da guerra?":
 
Quatro MLRS BM-21 Grad deteram os inimigos que avançavam sobre Luanda e mudaram o rumo da guerra?
Sim, mas como arma de efeito moral e não destrutivo.
 
Observando o comportamento dos africanos em combate, de um modo não-científico mas baseados em guerras recentes, verificaremos que a sua combatividade decresce do norte para o sul do continente negro. Minha experiência na África Austral mostrava que quem atacava vencia, quem era atacado recuava sempre e a maior parte das vítimas eram civis, não militares. Frentes elásticas e combatentes sem qualquer motivação mais profunda. Era a proporção de não-africanos – advisers, internacionalistas, mercenários, voluntários, etc., que decidia os confrontos. Estes eram tropas de conquista, os outros, de simples ocupação de terreno conquistado. E assim aconteceu também em Angola, de forma significativa.

Um BM-21-1 Grad russo em exibição em São Petersburgo, em maio de 2009.

Os combatentes não-africanos com ideais ou vontade de vencer eram afetados por armas que realmente eram perigosas e produziam baixas; a esmagadora maioria africana temia qualquer coisa que explodia e fizesse barulho. Desculpem-me por não ser politicamente correto, mas esta é a verdade.

Fui, nos anos setenta, advertido de que estaria fornecendo informações importantes ao inimigo, ao menosprezar em artigos escritos, o 122 soviético, que considerava uma arma de efeito moral, não efetiva para causar baixas. Mas assim o via, como os demais colegas de combate. Temíamos mais um morteiro 81. Um morteiro 120, então, nos pregava ao solo, irremediavelmente...

Observei incontáveis vezes, a marca deixada no asfalto ou no solo, por explosões do 122 e dos morteiros 120, 81 e 60. Os estilhaços dos morteiros rasgavam o solo no ponto de impacto, desenhando uma estrela, mostrando que varreram o solo em trajetória rasante, atingindo mesmo quem estivesse deitado. Já o 122 deixava poucas marcas, com estilhaços sendo lançados em ângulo mais fechado, mais alto e menos perigosos. Vários caíram a poucos metros de mim na Batalha de Quifangondo, sem maiores danos. Tenho certeza que qualquer morteiro caindo na mesma curta distancia teria me posto fora de combate.

Esquemática do BM-21 Grad.

Mas a capacidade de lançamento múltiplo, rápido, seqüêncial dos MLRS BM-21 é devastador para tropas mal-treinadas, inexperientes ou pouco motivadas. Sem nenhuma dúvida eles foram decisivos para o pânico e a debandada geral das tropas da FNLA e zairenses em Quifangondo.

E o que deteve a pequena tropa não-africana? Em primeiro lugar, os canhões anti-carro 76mm, que aproveitaram o absurdo avanço das frágeis Panhard totalmente descobertas; em segundo lugar, para segurar os poucos infantes que seguiriam atrás delas, as metralhadoras anti-aéreas (ZPU-4?) cujo tiro podíamos sentir sobre nossas cabeças e que não nos deixavam levantar do solo.

Mas, mesmo se as Panhards não fossem detidas e nosso pequeno grupo pudesse avançar, não teríamos ninguém nos seguindo, pois o grosso da tropa africana debandara apavorada pelo efeito psicologicamente devastador dos MLRS BM-21 Grad...

Resumindo, sim, concordo que esta arma foi decisiva não só no rumo da batalha, mas de toda a guerra. Acredito que se o indisciplinado exercito zairense entrasse em Luanda, tudo seria arrasado e saqueado e uma avalanche de tropas de Mobutu Sesse Seko se despejariam pela fronteira norte, numa ocupação criminosa. E nós, o pequeno grupo de comandos especiais que por um ideal, serviu de ponta de lança, seríamos dizimados ou presos ou expulsos, pois representávamos um obstáculo às barbáries zairenses em solo angolano.

Pedro Marangoni: "A bem da história militar será um mapa incomum, feito em conjunto pelos dois lados opostos envolvidos".

Mensagem de Sergei a Pedro:

"Estimado Pedro Marangoni!

Fico-lhe muito grato por suas mensagens relativas à Batalha de Quifangondo, em particular pelo artigo "Quatro MLRS BM-21 Grad deteram os inimigos que avançavam sobre Luanda e mudaram o rumo da guerra?", que já foi publicado no nosso website em russo e português.
Encontrei nas suas mensagens alguns elementos muito interessantes para mim, como histórico, em particular, em relação ao efeito provocado pelas metralhadoras anti-aéreas ZPU-4 de calibre 14,5 mm (os angolanos e cubanos os chamavam "cuatro bocas"), ao efeito moral, produzido por salvas de BM-21 e também acerca do número exacto de comandos especiais portugueses ao lado da FNLA e ELP (Exército de Libertação Português). E mais algumas perguntas, se permitir." 

Entrevista

Pedro Marangoni com a boina vermelha dos comandos especiais, posição no rio Onzo.
Na torre do seu Panhard-90 está o lema "A morte tem medo de nós!".

Serguei Kolomnin: O ELP – foi simplesmente o slogan, ou força real com a estructura, programa e o comando formados?

Pedro Marangoni: Como recebi sua mensagem em português correto, vejo que não é através de tradutor eletrônico e sim de quem tem ótimos conhecimentos da língua portuguesa, portanto ficarei mais a vontade para responder em meu idioma.

O ELP só seria mencionado de forma politica, tentando comprometer a FNLA e também porque dizia-se que o Coronel Santos e Castro era ligado a este "exército" que considero apenas teórico, nunca chegou a existir como força real, coesa, organizada e pronta para combate. Apenas uma organização política. Nunca ajudou nossas tropas, que foram recrutadas entre portugueses refugiados na Rodésia, pelo comandante dos Flechas, Alves Cardoso, do DGS/PIDE. Mas os membros do grupo do Coronel Santos e Castro não eram mercenários, eram combatentes que viviam na África e quiseram ficar lá para passar ali a sua vida. Era composto por 153 portugueses, mais eu. O único militar do grupo que poderia se chamar de “estrangeiro" era eu, brasileiro, mas com dupla nacionalidade portuguesa. O Coronel Santos e Castro apareceria em Ambriz, como conselheiro militar de Holden Roberto e ligação com o nosso grupo. Depois passara a participar dos combates, fardado mas sem armas. Depois de Quifangondo volta à Europa.

Serguei Kolomnin: O que pode dizer da ajuda dos EUA à FNLA e ao ELP?

Pedro Marangoni: Quanto  à ajuda dos EUA, tínhamos pouco apoio e se os EUA ajudavam mais, provavelmente a ajuda era desviada por Mobutu. Muitos artigos também exageram a atuação dos norte-americanos, que pouco interviram e pouco nos ajudaram. Muitos livros históricos agora apenas mais uma obra politica, repleta de mentiras e exageros; estes livros prestam-se para falsear a história da descolonização e dificultar para que as gerações pós-guerra conheçam o que se passou realmente e aprendam a não repetir erros do passado.

FAPLA: Baluarte da paz em Angola.

Serguei Kolomnin: Na edição "FAPLA: baluarte da paz" (Berger-Levrault International, Paris. pg. 110) lê-se, que a ponte sobre o rio Bengo tinha sido  destruída pelos sapadores das FAPLA para impedir o avanço da tropa da FNLA. Alguns angolanos participantes na Batalha de Quifangondo (FAPLA) mencionam a [ponte] do Panguila também como destruída. O General Xavier, actual responsável da Academia Militar das Forcas Armadas Angolanas também insiste no facto que a ponte sobre o rio Bengo tinha sido destruída.

Outro ex-combatente (FAPLA) Álvaro António, que era capitão, actualmente colocado na Unidade da Guarda Presidencial (UGP) na entrevista à TV angolana afirma: "Nesta altura em que se destruiu a ponte estavam a atravessar três viaturas, entre as quais um tanque que ainda não tinha passado, tendo os outros dois caído com a ponte, morrendo os seus ocupantes". Ele acrescentou ainda, "que desta acção resultou a captura de quatro mercenários norte-mericanos que permaneceram encarcerados na ex-sala do director da Escola Primária da Fazenda experimental da Funda".

Se a ponte do Bengo estava destruída, de que maneira a tropa da FNLA tencionara e conseguiria atravessar o rio? À nado?

Ou a ponte sobre o rio Bengo continuava a funcionar, tendo só alguns danos não significativos? Conforme a minha experiência militar, explodir e destruir a ponte sólida, construída em betão [concreto] é uma coisa nada fácil…

Detalhe da pintura "Batalha do Kifangondo" mostrando os Panhard avançando pela ponte do Panguila; esta representada - incorretamente - como destruída.

Pedro Marangoni: Encontrei as recordações do general angolano Xavier honestas, parece-me ele realmente esteve em Quifangondo. Mas nenhuma das duas pontes estavam destruídas e não entendo porque os angolanos insistem em mentir sobre um facto que daria até mais valor à luta deles... Claro com a ponte destruida, seria uma defesa mais segura, praticamente admitindo que não conseguiriam deter o inimigo. A ponte destruída seria uma proteção a mais.

Talvez a  ponte do Bengo estivesse sabotada, não destruída, ou seja, colocaram as cargas explosivas e não detonaram, tal seria feito apenas se não conseguissem nos deter! Será que isso aconteceu também na ponte do Panguila, onde encontramos os cordéis detonantes? E a explosão teria falhado?

Um grupo de comandos com o Capitão Valdemar precedeu o grande ataque, infiltrando-se pela madrugada e tomando a primeira ponte, a do Panguila. Apenas cordéis detonantes foram encontrados, sem explosivos. Eu próprio passei por ela, intacta. A segunda ponte também, no primeiro ataque foi avistada inteira pelos blindados e também pelos aviões de reconhecimento.

Se a ponte do Bengo estava destruída, como posteriormente as FAPLA/cubanos avançaram contra o Morro da Cal e Caxito? Pelas pontes... A preocupação da FNLA era que as duas pontes fossem destruídas quando avançássemos e a engenharia zairense só tinha uma ponte disponível para construir.

Ainda sobre pontes: a única ponte importante que foi destruída pelo MPLA, quando do grande avanço da FNLA rumo à Luanda foi a de Porto Quipiri, na saída de Caxito. Aí a engenharia zairense construiu uma [ponte] flutuante, de madeira e depois uma grande ponte metálica, que permanece até hoje.

O depoimento do Capitão Álvaro António... lembremos sempre: a primeira vítima da guerra é a verdade... Atualmente existem mais heróis que combatentes na ocasião da batalha... estaria ele lá? Lembremos que os cubanos, de arma na mão, tiveram que obrigar os angolanos a voltarem para os postos de combate, pois fugiam em pânico. Não existiram, por exemplo, quatro mercenários norte-americanos capturados! No combate, foram capturados apenas o municiador da Panhard-90 Remédios, o condutor da Panhard-60 Serra e seu atirador Oliveira, todos portugueses. Americano só havia um, observador do CIA, sempre desarmado, que não saiu do Morro da Cal. Os autênticos mercenários apareceram no Norte de Angola um mês depois de Quifangondo, e eram na verdade ingleses e americanos, mas não conseguiram nada, pois a luta já tinha terminado.

O comando Remédios.

O meu grande amigo Remédios foi capturado porque foi ferido com gravidade (está vivo e hoje mora em [local omitido]), mas Serra e Oliveira suspeita-se que forçaram a queda da Panhard-60 no pântano para se entregarem, desertando. Talvez você tenha conhecido Oliveira, fiquei surpreso ao vê-lo na televisão, anos mais tarde como comandante militar das FAPLA num setor no Sul de Angola!

Um fato interessante é que nem mesmo o MPLA nos considerava realmente mercenários, apenas usavam como propaganda, pois meus colegas capturados não foram julgados com os ingleses e americanos e tiveram tratamento mais humano. Além de Remédios, Serra e Oliveira, capturados em Quifangondo, anteriormente haviam sido capturados na Batalha de Caxito, em 7 de Setembro de 1975, os comandos especiais brancos Quintino, Fernandes e Pereira. Eles estão na foto do seu  arquivo:

Comandos especiais Quintino, Fernandes e Pereira, junto aos companheiros angolanos negros, após serem capturados no Caxito.

Resumindo, no Quifangondo ficaram no terreno uma Panhard-90, uma Panhard-60 e um caminhão Mercedes zairense; brancos capturados – 3, todos portugueses. O tal capitão mente.

Serguei Kolomnin: Qual foi o destino da maioria dos comandos portugueses após o desastre do Quifangondo?  Portugal ? África do Sul?

Pedro Marangoni: Como já disse, o Coronel Santos e Castro voltou à Europa. Outros foram-se embora depois que abandonamos a luta em Fevereiro de 1976; alguns continuaram a luta. Por exemplo, o meu  colega a quem chamávamos "Passarão". Tomei conhecimento que ele retornou do Zaire e continuou combatendo sozinho (ele havia nascido lá, era um africano branco a quem negavam a pátria), fazendo emboscadas contra os cubanos, formou e comandou um pequeno grupo, atuando na região de Ambriz, até que em Outubro de 1977, sofreu queimaduras graves com o mosquiteiro que pegou fogo e agonizou por duas semanas até morrer. Foi enterrado pelos africanos na mata perto da Fazenda Loge, região de Ambriz.

Passarão de pé, na extrema direita.

Após Angola, os comandos portugueses voltaram para a Rodésia, alguns foram para o Brasil, buscando uma pátria nova e outros para Portugal, país que alguns nunca haviam estado, africanos brancos de várias gerações e que foram muito discriminados pelos portugueses na Europa.

Serguei Kolomnin: É de conhecimento geral que, atacando contra Quifangondo, a FNLA e os zairenses foram apoiados pela artilharia de longo alcance sul-africana. O que poderia dizer a este respeito?

Pedro Marangoni: As peças 140mm G-2 sul-africanas chegaram ao Morro da Cal na tarde do dia 9 e começaram o fogo de barragem no dia 10 por volta das 05:00h;  foram diminuindo a intensidade do fogo até cessarem de vez, não sei precisar o momento. Segundo o сoronel Santos e Castro, que me informou pessoalmente, às 16:30h (04:30pm) os sul-africanos se retiraram do local com todo o material, sem autorização ou comunicar a ninguém. Os sul-africanos fugiram durante o combate. Após Caxito, abandonaram os obuseiros sem as culatras e foram resgatados em Ambriz, já de noite, por um helicóptero. Fugiram de helicóptero para um barco na costa de Ambriz, levando as culatras dos obuseiros 140mm G-2. Tudo à revelia da FNLA. Os obuseiros posteriormente foram rebocados pela FNLA, mas sem poder usá-los, acabaram em Ambrizete como ferro velho.

Serguei Kolomnin: Poderia pormenorizar o dispositivo de combate e a composição da força da FNLA e zairenses? Quantos carros Panhard, soldados (FNLA e zairenses), peças de artilharia haviam no palco de combate no dia 10 de Novembro perante o último ataque contra Quifangondo?

Pedro Marangoni: Números aproximados.

Artilharia: 
  • 1 canhão 130mm,
  • África do Sul 3 obuseiros 140mm,
  • FNLA alguns morteiros 120mm.
Cavalaria:

Comandos Especiais: 
  • 1 Panhard-90 (destruída),
  • 2 Panhards-60 (uma destruída e uma avariada),
  • 1 VTT Panhard com um grupo de combate, retornou ileso sem lançar a tropa,
  • um jeep com canhão 106mm sem recuo (não participou).
Zaire:
  • Cerca de 10 jeeps com canhão 106mm sem recuo (não participaram),
  • Umas 15 Panhards diversas, nenhuma participou do combate, assim que transpuseram a ponte do Panguila descarregaram toda a munição e recuaram.
  • Vários canhões anti-aéreos 20mm montados em jeeps (não participaram).
Infantaria:
  • Comandos: dos 154, cerca de 80 participaram do combate, apenas uns 10 cruzaram a ponte do Panguila avançando, o restante não avançou, permaneceu diante da ponte.   
  • FNLA: cerca de 800 homens (não tenho certeza, número aproximado), nenhum cruzou a ponte do Panguila.
  • Zaire: um batalhão de infantaria (dizem dois, não sei), uma equipe de engenharia; dois caminhões Mercedes carregados de soldados zairenses cruzaram a ponte do Panguila e começaram a morrer sem chance de defesa na primeira curva depois da ponte. Poucos voltaram, quase todos feridos. Um dos caminhões retornou à noite, após o combate, com alguns homens.
Quando recuei para o Morro da Cal, debaixo de cerrado bombardeio, por volta das 18:00h (06:00pm) do dia 10, tudo estava completamente deserto e as únicas viaturas eram o jeep do estado-maior e a nossa VTT Panhard.

Na noite de 11 de Novembro 1975, após a derrota, juntamente com o Coronel Santos e Castro,  apenas 26 homens ficaram na frente de combate no Morro da Cal, todos comandos especiais, portugueses, entre eles todos os oficiais. Nenhum dos quadros da FNLA.  A FNLA simplesmente fugiu  mato adentro sem comando e os zairenses recuaram para o Caxito.

Serguei Kolomnin: A maioria das fontes (livros, recordações) mencionam os três aviões da FA sul-africana  "Buccanir" a bombardear as posições FAPLA/cubanas na manhã do dia 10 de Novembro.

De outro lado,  o General Xavier (Jornal de Angola, 13 de Janeiro 2010. General Xavier: História vivida em Kifangondo) diz o seguinte: "as FAPLA estavam à espera de uma investida maior no dia 10 de Novembro de 1975. O relógio indicava 05H00, quando dois aviões se fizeram aos céus flagelando as posições das FAPLA, no Morro de Kifangondo. A primeira impressão é que fomos bombardeados pela aviação, mas não. Eram vôos de reconhecimento que iam verificar os acessos, principalmente o estado das pontes…" E acrescenta: "eram avionetas de reconhecimento, que partiam da pista do Ambriz ou de pequenas pistas em fazendas como a Martins de Almeida".

Como poderia comentar estas palavras do veterano? Eram bombardeiros da África do Sul ou avionetas de reconhecimento FNLA? Se havia realmente aviação sul-africana envolvida nessa batalha?

Pedro Marangoni: Aviões? Isto é muito interessante, confirmo as palavras do General Xavier, eram apenas dois aviões nossos, convencionais, civis, de observação, decolados de Ambriz, mas já era dia claro. Os primeiros tiros dos 140 sul-africanos foram em Luanda e depois foram recuando o alcance para atingir Quifangondo, coincidindo com a passagem dos aviões, o que para leigos poderia ser tomado por um bombardeio aéreo.

Mistério: realmente por volta das 05:00h ouvi um ruído semelhante a jatos de combate em grande altitude e depois três explosões surdas, não mais, abafadas entre o morro de Quifangondo e Luanda . Aviões ou uma experiência de tiro com canhões de uma fragata sul- africana que estava ao largo, com alcance suficiente para atingir o local? Isto é apenas uma conjectura minha, sem informações. Nem o Coronel Santos e Castro ou o Major Alves Cardoso foram comunicados de ajuda de aviões ou marinha sul-africanas. Se houve uma tentativa, não foi além, talvez devido à dificuldade de execução (proximidade das forças oponentes no terreno).

Serguei Kolomnin: No seu livro "А Opção pela Espada" há um mapa bastante pormenorizado e bem claro das posições FNLA/zairenses - FAPLA/cubanas no Quifangondo. Mesmo com o número exato das peças e obuseiros (1 canhão 130mm zairense, 3 obuseiros 140mm sul-africanos, FNLA etc). Você indicou os quatro BM-21 nas posições FAPLA/cubanas por acaso ou tinha informação mais ou menos exata? Muitas fontes dizem que eram seis.

Conforme minha opinião, baseada em certas recordações, eram quatro BM-21, que chegaram ao Quifangondo nas vésperas do dia 10 de Novembro. Como poderia comentar isso?

O que poderia dizer à respeito do mapa da batalha feita do ponto de vista dos angolanos, que  está exposta no nosso?

Mapa angolano da Batalha de Quifangondo.

Pedro Marangoni: O mapa de Quifangondo exposto ali é um documento valioso. E aparentemente as posições das FAPLA/cubanas estão próximas daquilo que imaginei. Existe, no índice, um símbolo para ponte destruída para impedir o avanço inimigo! Novamente a insistência das pontes destruídas, e note-se que estranhamente não se acha no terreno tal símbolo, apenas no índice. As menções de mercenários referem-se ao nosso grupo, pois os mercenários de Callan só chegariam [em Angola] mais tarde. Nossas posições e rota de ataque, e posterior retirada estão corretas, apenas não existem datas.  Nota-se que, colocam corretamente o nosso grupo na vanguarda e a FNLA na nossa retaguarda. Com exceção do símbolo ponte destruída e do suposto bombardeamento da aviação, me parece um mapa honesto.

Esquema da Batalha do Quifangondo por Pedro Marangoni.

O meu mapa foi feito de memória, sem escala e sem consulta a um mapa real do terreno; e apenas o que visualizei no decorrer do combate. O lado da FNLA/Zaire/Comandos é exato; do lado inimigo são minhas conjecturas. O número e localização de canhões anti-carro por informação do Tenente Paes na primeira investida.

O número de BM-21 calculei pela sequência de lançamentos, quando caíram em maior intensidade, pela concentração das explosões; apenas uma hipótese que agora me parece acertada.

Observação: em meu livro, "Órgãos de Stálin", juntamente com monocaxito, era a terminologia genérica que dávamos a qualquer míssil 122, de lançador simples ou não, sem significar BM-21.

Se você tiver dados confiáveis, autorizo que atualize com mais precisão a metade das FAPLA-cubanos no mapa.

Serguei Kolomnin: Poderia fazer uns comentários acerca das fotos expostas na  nossa página, dedicada a este tema?

As fotos nº 9 e nº 11 com Panhards destruídas são originais do período em Angola. Talvez saiba quem está junto com Holden Roberto na foto nº 3? Foto nº 4  - são soldados da FNLA ou zairenses?

Foto 3: Holden Roberto.

Pedro Marangoni: Foto nº 3: Em primeiro plano não sei identificar; atrás, ao lado de Holden, é o jornalista brasileiro e assessor do Presidente, Fernando Luás da Camara Cascudo.

Foto 4: Tropas FNLA no Zaire.

Foto nº 4: Esta foto me parece ser dos tempos mais fortes da FNLA, antes da guerra civil e mesmo do 25 de Аbril de 1974, e foi feita no Zaire, provavelmente na base de Quinkuzo. Nunca mais se viu tal concentração de tropas.

Fotos 9 e 11: viaturas destruídas Panhard 60 e Panhard 90, respectivamente.

Não dá para identificar; mas em toda a guerra civil os comandos perderam apenas uma Panhard-90, a do Tenente Paes em Quifangondo.

Comandos Quintino, Fernandes e Pereira, capturados no Caxito.

Foto nº 12: Como já disse são os primeiros comandos especiais capturados na batalha de Caxito em 7 de Setembro de 1975, onde participaram de improviso e com armamento obsoleto, sendo envolvidos devido à enorme inferioridade numérica; bateram-se bem. Da esquerda para a direita, (brancos) Quintino, pelotão G3; Fernandes, paraquedista, pelotão MAG; Pereira, motorista do caminhão Mercedes.

Encontrei mais fotos que tem mais relação com Quifangondo, fotos nunca publicadas, em mal estado, mas importantes e autorizo a publicação no site. Foram me dadas pelo autor, Azevedo, tripulante, que escapou da Panhard-60 cujos dois tripulantes foram capturados em Quifangondo.

Obuseiro 140mm sul-africano.

Três Panhards do ELNA/FNLA.

Mostram a chegada da artilharia sul-africana no Morro da Cal. Ao lado, uma torre de madeira, marco geodésico que marcava nossa posição ao inimigo e que ninguém se preocupou em derrubar e também as nossas três Panhards, estacionadas no abrigo onde passamos a noite antes do combate.

Outra foto mostra a Panhard-90 do Tenente Paes, pronta para descer ao Panguila, com a flâmula onde se lia «Ouso»! As fotos coloridas mostram no jeep, após a conquista de Quicabo, o comando Remédios, que foi capturado em Quifangondo, com sua M79, que o General Xavier relata estar no museu em Luanda.

A Panhard 90 do Tenente Paes, pronta para descer ao Panguila.
O tenente morreu quando o seu blindado foi destruído, o único Panhard 90 perdido pelo ELNA.

O comando Remédios com seu lança-granadas M79, hoje exposto no museu de Luanda.

A outra e da “Força Aérea da FNLA”, logo após meu bombardeio, junto com Rabelo, um piloto civil, contra a emissora oficial em Luanda. Os homens com tarja preta são os técnicos em explosivos, uma equipe de muito valor, que prepararam as cargas que lancei.

O avião civil usado no bombardeio à rádio em Luanda e a equipe FNLA.

Como conclusão queria dizer o seguinte: publicando estas fotos e meus depoimentos o Veteranangola.ru assim amplia a contribuição não só para a reconstrução da verdadeira história militar de Angola, bem como para alertar sobre injustiças de cunho social, discriminatório, por parte de europeus e africanos e que devem ser conhecidas pelo menos como uma homenagem e retratação às vítimas.

A bem da história militar será um mapa incomum, feito em conjunto pelos dois lados opostos envolvidos. Creio que é uma oportunidade de mostrar ao mundo que militares em confronto são profissionais em trabalho, não inimigos pessoais.


FIM

Bibliografia recomendada:

A Opção pela Espada.
Pedro Marangoni.


Panhard Armoured Car:
1961 onwards (AML 60, AML 90 and Eland).

Leitura recomendada:


Operação Quartzo - Rodésia 198028 de janeiro de 2020.

Tiro em Cobertura Rodesiano15 de abril de 2020.

FOTO: Batedores cubanos em Angola, 8 de junho de 2021.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

ENTREVISTA: Ex-espião soviético Viktor Suvorov


Por Luke Harding, The Guardian, 29 de dezembro de 2018.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 14 de junho de 2021.

"Eles me perdoariam? Não."
- Viktor Suvorov.

Deserções da agência de espionagem mais poderosa de Moscou são tão raras que acredita-se que haja apenas dois exemplos vivos. Um é Sergei Skripal, que quase morreu este ano. O outro é o entrevistado.

Viktor Suvorov passou oito anos trabalhando para a agência de inteligência militar da Rússia, o GRU. (Sebastian Nevols / The Guardian)

Viktor Suvorov (nascido Vladimir Bogdanovich Rezun, 20 de abril de 1947) estava em casa quando soube da notícia. Um ex-espião russo, Sergei Skripal, foi encontrado envenenado em um banco de parque em Salisbury. Skripal e sua filha Yulia estavam em estado crítico no hospital; não estava claro se eles viveriam.

Viktor Suvorov estava em casa quando soube da notícia. Um ex-espião russo, Sergei Skripal, foi encontrado envenenado em um banco de parque em Salisbury. Skripal e sua filha Yulia estavam em estado crítico no hospital; não estava claro se eles viveriam.

Suvorov ouviu o que aconteceu com os Skripals por meio de “outros canais”, não apenas pelas notícias da BBC, ele me disse. Uma figura travessa de 71 anos, falando comigo nos escritórios de seu agente literário em Londres, uma sala repleta de dezenas de livros, ele é um pouco tímido sobre o que ele pode querer dizer, mas parece haver pouca dúvida de que ele está falando sobre a inteligência britânica. “Não gostaria de discutir isso”, diz ele com um sorriso bem-humorado.

Suvorov passou oito anos trabalhando para a agência de inteligência militar da Rússia, o GRU (Glavnoye Razvedyvatel'noye Upravleniye / Diretório Principal de Inteligência), o antigo serviço de Skripal. Durante a Guerra Fria, Suvorov foi considerado um oficial brilhante, destinado a grandes feitos neste mundo sombrio. Ele passou quatro anos disfarçado na Suíça, onde era seu trabalho procurar agentes estrangeiros em nome do GRU. Ele era muito bom nisso. Então, um dia, em junho de 1978, ele fez um telefonema enigmático para o consulado britânico em Genebra.

Atual brasão do GRU.
Glavnoye Razvedyvatel'noye Upravleniye / Diretório Principal de Inteligência.

Suvorov encontrou-se com um espião britânico fluente em russo em uma floresta. Ele havia trazido com ele sua esposa - também uma oficial da GRU - e seus dois filhos pequenos. Em poucas horas, a inteligência britânica contrabandeou os Suvorovs para fora do país. Ele se encontrou no Reino Unido, um lugar que conhecia apenas dos thrillers de Ian Fleming e cuja língua ele não falava.

Nos tempos comunistas, havia deserções regulares da KGB; ela era voltada para dentro - seu objetivo era esmagar ameaças internas e dissidências. Enquanto isso, o GRU, a agência de espionagem mais poderosa e secreta de Moscou, procurava inimigos externos e estava perpetuamente nas sombras. Deserções do GRU eram extremamente raras. Acredita-se que haja apenas dois exemplos vivos: Suvorov e Skripal.

Mark Urban, autor de "The Skripal Files".

É improvável que Skripal dê entrevistas tão cedo; seu paradeiro desde que deixou o hospital permanece desconhecido, pelo menos fora dos serviços de inteligência. Ao contrário de Suvorov, Skripal não era um desertor, como tal: ele nunca teve a intenção de acabar na Grã-Bretanha. Em 2004, ele foi preso na Rússia por espionar para o MI6 e condenado por traição; ele parece ter traído o GRU por dinheiro. Seis anos depois, ele deixou uma prisão russa para Salisbury, após uma troca de espiões mediada pelos Estados Unidos. Um livro recente do jornalista da BBC Mark Urban o retrata como um nacionalista russo desavergonhado, que aplaudiu a anexação da Crimeia por Vladimir Putin do conforto de seu carro comprado pelo MI6.

"Você não pode imaginar o quão relaxante uma sentença de morte pode ser. Você não se preocupa com dinheiro, dores de cabeça ou adoecimento."

Suvorov, ao contrário, abandonou a União Soviética por razões ideológicas; ele se tornou um anticomunista apaixonado. Ele não considera sua deserção como traição: como ele aponta, ele deixou a URSS primeiro - mas todos os outros cidadãos soviéticos o seguiram quando ela deixou de existir. Nos últimos 40 anos, ele viveu sob sentença de morte. “Tenho duas sentenças de morte [do GRU e da Suprema Corte Soviética]”, sorri. “Você não pode imaginar como isso pode ser relaxante. Você não se preocupa com dinheiro, dores de cabeça ou adoecimento. Você pensa consigo mesmo: ‘Não importa! Eu estou morto!'"

O medo, sugere ele, pode ser pior do que a própria coisa, como um paciente que espera por um diagnóstico de câncer que se sente melhor ao receber as más notícias. “De repente, há um tubarão sangrento vindo em sua direção. Quando é desconhecido, é muito assustador. Quando você chega perto, você suspeita que é feito de borracha.”

Icebreaker, seu livro mais famoso.
Trata sobre Stalin tentando usar Hitler como o quebra-gelo da revolução comunista global.

Na primeira noite depois que Suvorov chegou à Grã-Bretanha, ele começou a escrever, diz ele. Ele estava determinado a não viver do Estado e ganhar seu dinheiro de forma independente - se necessário, diz ele, limpando banheiros na estação Paddington. Mas ele se tornou um escritor de sucesso surpreendente, autor de 19 livros em russo, incluindo vários sobre a história da Segunda Guerra Mundial, que juntos venderam mais de 10 milhões de cópias. Ele é famoso na Rússia - embora não tenha voltado desde que desertou - e conhecido em todos os países da antiga Europa Oriental. Seu trabalho apareceu em inglês, mas principalmente em edições há muito tempo esgotadas.

O Reino Unido é o lar de um pequeno grupo de desertores soviéticos e russos. O mais proeminente, Oleg Gordievsky, causou danos incomensuráveis à inteligência soviética, passando 11 anos dentro da KGB como agente duplo britânico. Agora com 80 anos, Gordievsky mora em algum lugar nos condados ao redor de Londres. Suvorov sugere que, desde Skripal, sua própria segurança aumentou.

Em seus livros, Suvorov tornou públicos detalhes sensíveis sobre o GRU, sua estrutura secreta e suas residências estrangeiras ao redor do mundo. Seu romance Aquarium é um relato emocionante do ethos brutal e métodos implacáveis do GRU. Ele começa com novos recrutas vendo imagens de um homem sendo colocado, ainda vivo, em um crematório em chamas. Isso, dizem a eles, é o que acontecerá com eles se traírem o serviço; um veterano comenta que a única saída da agência é pela chaminé do GRU. (Esta morte horrível foi aparentemente inspirada por eventos reais. Foi sugerido que a vítima era Oleg Penkovsky, executado por traição em 1963, embora Suvorov diga que não.)

Oleg Penkovsky.

Ele diz que a agência nunca perdoa quem a deixa. Isso inclui Skripal, que saiu da Rússia segurando um perdão oficial assinado por Putin. “O Estado pode perdoar. O GRU nunca o fará ”, diz Suvorov. No exílio, Skripal tinha um perfil tão baixo que Suvorov confessa que não tinha ouvido falar dele. Mas quando ele soube do destino de Skripal, envenenado por uma super-toxina, ele não teve dúvidas de quem estava por trás disso. “Claro, o GRU”, ele diz, com naturalidade.

O governo britânico fez um relato convincente de como dois assassinos de Moscou trouxeram o terror químico para a província de Wiltshire. Ambos são homens de carreira do GRU, identificados pelo site investigativo Bellingcat como Anatoliy Chepiga e Alexander Mishkin. Mishkin é médico, Chepiga um oficial das forças especiais; ambos foram condecorados como heróis da Rússia em 2014, possivelmente por trabalho secreto na Ucrânia. De acordo com relatos da mídia, a avó de Mishkin mostrou aos vizinhos um retrato emoldurado de seu filho apertando a mão de Putin.

Vladmir Putin, ex-agente da KGB.

A dupla admite ter estado em Salisbury - eles foram filmados pela CCTV - mas dizem que eram meros turistas. Suvorov acredita que este não foi seu primeiro assassinato e que eles pertencem a um “pequeno clube” de assassinos estatais russos. Ele é mordaz sobre seu profissionalismo e competência. “Na minha época, isso não teria sido possível! Tão idiotas!” ele diz. Ele descreve a operação como uma “cadeia de estupidez” que deixa pistas: voar de Moscou, ficar em um hotel e ir duas vezes a Salisbury.

"O chefe do GRU diria: ‘Toc, toc, Sr. Putin. Achamos que agora é a hora [de matar Skripal]. Está ok com você?'"

Ele não tem dúvidas de que o presidente da Rússia teria aprovado pessoalmente sua missão. “O chefe do GRU diria: ‘Toc, toc, Sr. Putin. Achamos que agora é a hora [de matar Skripal]. Tudo ok, senhor?' Há uma dimensão internacional. Ninguém correria tal risco sem a aprovação de Putin. Não é possível.”

Nos últimos anos, Skripal costumava viajar para o exterior. Isso levou a especulações de que ele ainda pode ter estado operacionalmente ativo - e que isso selou seu destino. Na opinião de Suvorov, Skripal foi envenenado pour décourager les autres*: para lembrar aos funcionários do GRU que a penalidade por cooperar com a inteligência inimiga é uma morte dolorosa e aterrorizante.

*Nota do Tradutor: francês, "por encorajar os outros", sentença de fuzilamento usada em desertores na Primeira Guerra Mundial.


Ele sugere que os assassinatos do Kremlin funcionam em um espectro. Existem as operações em que a vítima morre sem problemas, talvez por “ataque cardíaco”. E depois há os assassinatos mais exóticos, deliberadamente elaborados para criar barulho e escândalo - o assassinato de Trotsky com um picador de gelo é um exemplo clássico. A operação Skripal deveria ser mais próxima da primeira, ele pensa, embora todos no GRU entendam a mensagem.

Claro, não funcionou bem assim. Os Skripals sobreviveram e a trama desastrada foi descoberta. No mês passado, o Kremlin anunciou que o homem encarregado do GRU, Igor Korobov, havia morrido após uma “longa doença”. Suvorov acha que isso é verdade? “Não sei, mas meu instinto de espião me diz que Korobov foi assassinado”, diz ele. “Todos os que estão dentro do GRU entenderiam isso, 125%.” Ele teria sido morto, acrescenta Suvorov, para apagar uma testemunha que poderia provar ser culpada se ele pulasse para a vizinha Estônia usando um passaporte falso do GRU.

O banco em que os Skripals desabaram.

Uma questão intrigante é se a embaixada russa em Londres estava envolvida na operação de Salisbury. Ele saberia sobre novichok, o veneno deixado na porta da frente de Skripal, ou Moscou o teria mantido no escuro? Suvorov acredita que a embaixada pode ter dado apoio logístico, sem estar totalmente informada. Quem sabe tenha formado um pequeno círculo, ele suspeita. Incluiria os assassinos, um especialista técnico e um punhado de altos funcionários do Kremlin.

Como um espião rápido na Suíça dos anos 1970, Suvorov às vezes era solicitado a ajudar “ilegais” - agentes disfarçados que viviam no exterior. Ele nada sabia de suas atividades. Ele foi obrigado a verificar se havia uma marca de batom vermelho em um monumento no parque Mon Repos de Genebra, perto do apartamento de sua família. Todos os dias, sua esposa passava com seus filhos, sua filha e seu filho bebê em um carrinho de bebê. O batom significava um desejo de um ilegal de fazer contato.

Suvorov é uma figura de estatura médio-pequena, vestida com paletó de tweed e gravata roxa, que coloca para posar para fotos. Falamos em inglês e russo; ele se parece mais com um professor emérito do que com o recruta do GRU que uma vez saltou de pára-quedas ao lado de pelotões de inteligência militar e que atravessou incontáveis quilômetros de neve em noites congeladas.

Sergei Skripal.

Skripal - um “cara grande e esportivo”, como Suvorov o descreve - se assemelha melhor ao oficial típico do GRU. Ex-paraquedista, serviu disfarçado no Afeganistão e na China antes de ser destacado como “diplomata” em Malta e Espanha. Suvorov, entretanto, trabalhou em estreita colaboração com as Spetsnaz - forças especiais de elite soviéticas - procurando rotas de fuga para unidades de inteligência militar e recrutando informantes.

Skripal e Suvorov nunca se encontraram e parece improvável que algum dia se encontrem. A inteligência britânica desencoraja seus ativos de Moscou de confraternizarem, disse Suvorov, uma regra que surgiu após o assassinato de Alexander Litvinenko em 2006, depois que ele conheceu ex-agentes da KGB e bebeu chá radioativo. Suvorov diz que ele era um "amigo muito bom" de Litvinenko e falou com ele depois que foi levado ao hospital. Inicialmente, ele não acreditava que Litvinenko tivesse sido envenenado, mas durante uma ligação, a voz de Litvinenko vacilou "como um gramofone", diz ele, e o celular caiu de suas mãos. “Um cara tão legal. De repente ele foi morto. Uma morte terrível.”

Ruslan Boshirov e Alexander Petrov


Conheci Suvorov em 2015. Na época, um inquérito público estava em andamento sobre o assassinato de Litvinenko. Concluiu que Putin “provavelmente” aprovou a operação, juntamente com o chefe do FSB, órgão que sucedeu ao KGB. Os homens identificados pela investigação como os assassinos, Andrei Lugovoi e Dmitry Kovtun, eram assassinos horríveis: eles deixaram um rastro fantasmagórico de polônio em Londres e jogaram a arma do crime na pia do banheiro.

"As agências de espionagem de Moscou estão perdendo o controle? Suvorov diz que houve uma grande queda desde os dias de glória."

Em 2016, uma década após o assassinato de Litvinenko, uma equipe de oficiais do GRU invadiu os servidores do Partido Democrata dos EUA, de acordo com Robert Mueller, promotor especial que investiga conluio entre a campanha de Trump e a Rússia. A divulgação desses e-mails roubados pelo WikiLeaks prejudicou Hillary Clinton e ajudou seu oponente, que agora está na Casa Branca. A operação pode ser considerada uma grande vitória do Kremlin, mas dificilmente foi clandestina. Em julho, Mueller expôs a trama do GRU em uma acusação forense, constrangendo Putin e Trump.

As agências de espionagem de Moscou estão perdendo o controle? Suvorov diz que houve uma grande queda desde os dias de glória do GRU, nos anos 30 e 40, quando seus agentes roubaram os segredos atômicos dos Estados Unidos. Essa decadência é parte de uma degradação geral, ele pensa, afetando tudo na Rússia pós-comunista, da construção de foguetes ao jornalismo. O país está “desmoronando lentamente”, diz ele; aqueles que podem estão se mudando para o exterior.

O Homem: Ex-espião e autor de bestsellers

Suvorov foi recrutado pelo GRU em 1970. Seus livros foram publicados em 27 idiomas.
(Sebastian Nevols / The Guardian)

Viktor Suvorov é um pseudônimo literário: ele nasceu Vladimir Bogdanovich Rezun na Ucrânia soviética; seu pai um oficial militar, sua mãe uma enfermeira. (Suas raízes ucranianas são outro motivo pelo qual o Kremlin pega no seu pé, segundo fontes em Moscou.) Seu pai era um bolchevique convicto que acreditava que a URSS poderia florescer se não fosse pelos "bandidos do topo" e Suvorov cresceu um “comunista fanático”. Ele frequentou a escola militar, ingressou no Exército Vermelho e participou da invasão da Tchecoslováquia em 1968. Um oficial notável, ele treinou sargentos de reconhecimento tático e serviu na divisão de inteligência do quartel-general do distrito militar do Volga - uma experiência que Suvorov descreve em Aquarium.

Em 1970 ele foi recrutado pelo GRU. Ele agora fazia parte de uma organização de elite que era um grande rival da KGB. Sua desilusão com o sistema soviético começou apenas quando ele chegou a Genebra, diz ele, onde foi designado para a missão da ONU. Suvorov diz que foi convocado ao aeroporto um dia para assistir à chegada de um avião de transporte Ilyushin-76 de Moscou. Quando sua rampa foi abaixada, barras de ouro foram retiradas do compartimento de carga - para comprar comida da América. “Não podíamos nos alimentar”, diz ele.

Outra desilusão veio quando ele e sua “maravilhosa esposa espiã” Tatiana saíram de férias. Eles pegaram o trem de Basel e viajaram pela Alemanha Ocidental até Berlim Oriental, passando pelo muro. “Eram as mesmas pessoas, a mesma história, os mesmos malditos alemães. [Mas] é um Mercedes aqui e é um Trabant ali”, lembra ele com uma risada. Ele leu A Revolução dos Bichos de George Orwell. “A princípio pensei: ‘Estes não são porcos russos, são porcos de Berkshire’. Então percebi que era sobre as pessoas no Kremlin. Eles proibiram o livro dentro da União Soviética porque se reconheceram.”

"A Revolução dos Bichos" e "1984", clássicos de George Orwell.

Ele leu 1984. “Orwell nunca foi comunista, mas foi próximo deles. Ele entendeu que o estado totalitário tem que ser assim. Ele nunca visitou a URSS, mas percebeu tudo melhor do que qualquer um poderia imaginar”, diz Suvorov. Ele diz que sua esposa - filha de um oficial de inteligência - concordou em desertar com ele. Eles estão casados há 47 anos. “É uma conquista”, diz ele.

De sua nova casa no Reino Unido, Suvorov escreveu um dos livros mais influentes da era da perestroika, Icebreaker (Quebra-gelo). Quando foi publicado em 1988, seu argumento era herético: que Stalin havia planejado secretamente uma ofensiva contra a Alemanha de Hitler e teria invadido em setembro de 1941, ou o mais tardar em 1942. Stalin, escreveu ele, queria que Hitler destruísse a democracia na Europa, na forma de um quebra-gelo, abrindo caminho para o comunismo mundial. O livro minou a ideia de que a URSS era uma parte inocente, arrastada para a segunda guerra mundial. Os liberais russos apoiaram a tese de Suvorov; agora tem ampla aceitação entre os historiadores.

Ao todo, os livros de Suvorov foram publicados em 27 idiomas. Seu primeiro livro, The Liberators (Os Libertadores), foi um relato pessoal vívido da vida no exército soviético, e suas cartilhas sobre a inteligência militar soviética tornaram-se textos convencionais. Em uma entrevista anterior, ele apontou que existe uma tradição na literatura russa de oficiais militares transformarem suas experiências em livros - Tolstoi, Lermontov e Solzhenitsyn. Suvorov não se classifica entre esses grandes nomes, mas observa que a guerra oferece um rico material. “Há uma sensação de romance na batalha”, diz ele.

Pós-Skripal, ele escreveu um novo livro sobre o GRU, atualmente sendo traduzido do russo para o inglês e com publicação programada para o próximo ano. Ele diz que seus treinadores na academia GRU em Moscou nunca mencionaram explicitamente novichok para ele; a URSS desenvolveu o poderoso agente nervoso na década de 1970 e parece ser uma das muitas substâncias letais à disposição do GRU. Mas seus instrutores deixaram claro que, “de vez em quando”, o GRU tem que eliminar seus inimigos. Disseram-lhe: “Quando você fizer essa operação, um especialista irá encontrá-lo. Ele explicará pessoalmente como fazer.” O GRU tem sua própria diretoria de produtos químicos, diz ele.

Kontrol (Controle, 1994).
O primeiro de uma trilogia de sucesso sobre o período stalinista.

Além da tentativa de assassinato em Salisbury, o Kremlin interferiu na política britânica ao ajudar na votação do Brexit? Suvorov admite que não tem informações privilegiadas aqui, mas, com base em seu conhecimento dos métodos de Moscou, ele acha que era uma oportunidade: "Se houver qualquer tipo de problema interno no campo de seu inimigo, tente explorá-lo."

Apesar de nossa atual turbulência política, ele continua sendo um admirador da Grã-Bretanha, descrevendo-a como um lugar de grande “imaginação criativa”. E quanto a seus espiões? Ele se recusa a dizer muito sobre o MI6, a organização que o levou para uma nova vida, exceto que está cheio de pessoas “inteligentes” e “profissionais”.

Box da trilogia Controle (Контроль / Kontrol, 1995), Escolha (Выбор /Vybor, 2005) e Comedor de cobras (Змиеядеца /Zmiyeyadetsa, 2010). A trilogia foi cotada para uma adaptação no cinema.

Conheci muitos russos que vivem no exílio. Eles incluem desertores da KGB querendo ajuda com suas memórias, oligarcas que brigaram com Putin e oponentes políticos do regime em Moscou. Alguns se adaptam ao exílio; outros não. Suvorov é, sem dúvida, o mais feliz que encontrei. Ele ainda está em um casamento amoroso. Seus filhos adultos são inteligentes e bem-sucedidos, diz ele, e ele tem dois netos.

Ainda há toda a possibilidade do GRU tentar matá-lo, diz ele. Isso apesar do fato de que seus livros têm - até certo ponto - lisonjeado o GRU e servido como um anúncio de suas atividades subterrâneas. “Eles vão me perdoar? Não. Não é uma questão de saber se eles gostam ou não de mim. É um exemplo para todos os outros. Sim, você pode escapar. Sim, eles gostam dos seus livros. Mas eles vão se lembrar de você, sempre.”

Antes de apertarmos as mãos e seguirmos nossos caminhos separados, faço a Suvorov uma pergunta final e delicada. Não quero revelar o endereço da sua casa - não sei - mas onde devo dizer que ele mora? Suvorov ri novamente. “Diga Inglaterra. Ou talvez no País de Gales. Ou talvez Grã-Bretanha.”

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Bibliografia recomendada:

A KGB e a Desinformação Soviética: A visão de um agente interno,
Ladislav Bittman.

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