Por Frédéric Jordan, L'Écho du Champ de Bataille, 5 de fevereiro de 2017.
Tradução Filipe do A. Monteiro, 11 de setembro de 2020.
O exército russo está hoje novamente envolvido em vários teatros de operações: na Síria, no Cáucaso ou na Ucrânia. Ele demonstra grandes qualidades táticas diante de adversários irregulares, convencionais ou simplesmente híbridos. Se esse despertar militar continua sendo fruto de um esforço de profissionalização e equipamentos empreendido por Moscou há vários anos, a doutrina atual, considerada pelos exércitos ocidentais como нелинейная война ou guerra não-linear, ela continua sendo a herdeira do pensamento operacional soviético da década de 1950. Na verdade, ao reler a "Doctrine militaire soviétique" de Raymond L. Garthoff (Doutrina Militar Soviética, edições Plon, 1956), é finalmente muito fácil encontrar os princípios básicos que ainda impulsionam o engajamento russo hoje, em particular a busca por surpresa, atordoamento e o uso da artilharia o mais próximo possível das unidades blindadas para, in fine, favorecer a manobra. Para Garthoff, “os princípios essenciais da ação em campo são a ofensiva, a manobra, a iniciativa, a concentração e a economia de forças, a surpresa e a finta, a rapidez do avanço e da perseguição, o aniquilamento de toda resistência, a manutenção de reservas poderosas e o uso simultâneo e combinado das diversas armas”. Essas bases são, aliás, aquelas estabelecidas na história russa por Pedro, o Grande, que na reconstrução do seu exército enfatizou a manobra, a ofensiva, a autonomia da cavalaria e a iniciativa.
Além dessas linhas gerais, os militares soviéticos assimilaram a herança do Marechal Bulganin, que considera que a ciência militar também abrange questões relativas às possibilidades econômicas e morais do país e também do inimigo. Esta visão, semelhante ao que a OTAN chama de abordagem abrangente, é bem implementada hoje em dia em face da ameaça assimétrica ou híbrida.
Mais precisamente, no nível tático-operacional, o combate ofensivo é o aspecto fundamental assumido pelas operações do Exército Vermelho de ontem e, provavelmente, das forças russas contemporâneas. Além disso, é interessante notar que nas batalhas do Donbass, apenas as batalhas ofensivas trouxeram sucesso aos beligerantes. O rompimento sobre um eixo principal deve, neste contexto, permitir a exploração rápida dos ganhos, em profundidade, porque ela está apoiada em ações secundárias ou de apoio (ver o croqui) e esta, para manter a iniciativa e embalar o ritmo de condução das operações em detrimento do adversário. O equilíbrio de poder é a chave para permitir a supremacia e não se baseia apenas em um cálculo numérico, mas em um conjunto de critérios técnicos ou morais ou mesmo táticos (terreno, comando, astúcia, etc). A defesa não é negada mas serve apenas para poupar forças a favor do eixo principal de ataque, de forma a ganhar tempo ou desorganizar o inimigo atacante e isto, antes de lançar uma contra-ofensiva dentro das melhores condições ou sobre uma oportunidade. Os generais soviéticos lembram aos jovens oficiais que "nossos regulamentos nos ensinam que a vitória sempre pertence àquele que, ousando no combate, mantém constantemente a iniciativa e dita sua vontade ao inimigo".
Croqui mostrando "O esquema da ofensiva segundo a doutrina soviética". |
As operações no nível tático são assim explicitadas nas academias militares em 1950 como sendo a combinação de quatro formas elementares que são o ataque frontal, o rompimento, a manobra de flanco e o envelopamento. A busca por assaltos concêntricos e ataques nas alas ou cerco é o fundamento pragmático. Além disso, os ataques contra a retaguarda devem ser buscados neste desejo de fragmentar o inimigo e ultrapassá-lo além do seu segundo escalão.
Para vencer esta corrida contra o tempo no terreno, o autor traz a ideia soviética de "Força viva" do progresso, dando então um ritmo às operações que aumentam gradualmente de tamanho para culminar no momento certo: “A arte de conduzir uma operação consiste precisamente em saber lançar ataques contínuos de força cada vez maior. O choque final deve ser o mais forte; ele apresenta um caráter esmagador”. Assim, a força vital do ataque e da perseguição é medida pela velocidade média da progressão. A perseguição, por sua vez, pode ser frontal, mas é especialmente quando é paralela (em um ou dois flancos opostos) que é mais eficaz.
A implementação desses princípios envolve, portanto, a combinação de armas ou funções operacionais sem qualquer favorecimento, pois são utilizadas de maneira complementar no tempo e no espaço. As atuais tropas russas são uma ilustração disso quando estão engajadas na Europa ou em outro lugar, posicionando tanques, artilharia, helicópteros e forças especiais na Síria ou na Criméia. Portanto, se a infantaria continua sendo a arma principal sob a condição de ser dotada de capacidades que aumentem sua mobilidade (veículos blindados), a artilharia continua sendo a principal força de choque (Stalin a chama de "deusa da guerra"). Em 1946, o General Protchko também sublinhou que: "Nossa doutrina militar lutou contra teorias que procuravam minimizar o papel da artilharia na guerra moderna. Por maior que seja seu progresso, tanques e força aérea não podem substituir a artilharia. Ela foi e continua a ser a arma mais poderosa do Exército Vermelho". Consequentemente, ontem como hoje, as ofensivas de artilharia descritas na doutrina “consistem em ter a infantaria e os tanques permanentemente apoiados por uma artilharia massiva e ativa, e por fogo de morteiro durante todo o desenrolar da ofensiva". Isso explica o uso difundido de artilharia autopropulsada (veja nosso artigo sobre os combates no Donbass) na Frente Oriental de 1941 a 1945 ou na Ucrânia em 2015. Os tanques são obviamente a outra ferramenta importante para aumentar o choque, o fogo e a mobilidade. "A principal missão dos tanques pesados é destruir as defesas e armas anti-tanque do inimigo. A artilharia auto-propulsada é empregada em ligação imediata com os blindados para proteger seus flancos e retaguarda. Os tanques médios neutralizam pontos de partida do fogo inimigo".
Para concluir, mesmo que o pensamento militar russo contemporâneo tenha tido que levar em conta os desafios das novas formas de conflito, ele mantém a doutrina soviética como seu fundamento. Isso oferece verdadeiras chaves táticas para promover atordoamento, choque e manobra para preparar as guerras info-valorizadas de amanhã. Estas últimas provavelmente ocorrerão em escalas geográficas muito grandes e verão o engajamento de numerosas forças convencionais apoiadas por tecno-guerrilheiros dotados de poderosas e sofisticadas capacidades de agressão. Portanto, é importante voltar aos fundamentos da tática para não cairmos vítimas de nosso próprio sono doutrinário.
Bibliografia recomendada:
Leitura recomendada:
As forças armadas da Rússia sob Gerasimov, o homem sem doutrina, 6 de setembro de 2020.
Os condutores da estratégia russa, 16 de julho de 2020.
Repensando a estrutura e o papel das forças aeroterrestres da Rússia, 13 de julho de 2020.
Paraquedistas: a arma secreta da Rússia em uma invasão no Báltico, 26 de janeiro de 2020.
Operação Molotov: Por que a OTAN simplesmente entrou em colapso no verão de 2024, 21 de maio de 2020.
A Rússia está involuntariamente fortalecendo a OTAN?, 24 de fevereiro de 2020.
Mais do que uma década após a reforma militar, o trote ainda atormenta o exército russo, 19 de julho de 2020.
FOTO: Carro de Combate T-34/85 cubano modificado com um canhão D-30, 4 de agosto de 2020.
A intervenção russa em Ichkeria, 16 de agosto de 2020.
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