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domingo, 31 de julho de 2022

A Importância do Nível Operacional: As Ofensivas de Ludendorff de 1918

Ludendorff em seu estudo no Quartel-General, 1918.

Por Lorris Beverelli, The Strategy Bridge, 28 de outubro de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 31 de julho de 2022.

É amplamente aceito que existem três níveis de guerra. Do mais geral ao mais local, são os níveis estratégico, operacional e tático. Estratégia é o alinhamento de meios e formas para atingir um fim político. Estratégia é ganhar a guerra. A tática consiste em alcançar localmente a vitória por meio de uma série de ações que, tomadas globalmente, participam direta ou indiretamente da realização da estratégia. As táticas são tipicamente sobre vencer batalhas. Por fim, as operações consistem em conectar a tática à estratégia. Para isso, o nível operacional visa criar campanhas – uma série de ações táticas que perseguem objetivos operacionais específicos – para, em última análise, atingir objetivos estratégicos específicos. O nível operacional é tipicamente sobre ganhar uma série de campanhas para cumprir a estratégia declarada.

Cada nível de guerra é essencial para alcançar o sucesso e todos são igualmente importantes. As Ofensivas de Ludendorff de 1918 ilustram por que o nível operacional é essencial. Este artigo fornecerá o contexto estratégico antes de apresentar os objetivos da campanha alemã, sua execução e uma análise seguida de uma conclusão.

Contexto estratégico

Em 3 de março de 1918, a Rússia se retirou oficialmente da Grande Guerra. Logo depois, a Romênia seguiu.[1] A Alemanha viu a retirada desses dois estados, notadamente o primeiro, como uma oportunidade para enfrentar os exércitos francês e britânico em termos mais iguais e aliviar as dificuldades na frente interna.[2] O general intendente Erich Ludendorff, que estava no comando das forças alemãs, queria desferir um golpe o mais cedo possível para alcançar a vitória decisiva.[3] A entrada dos Estados Unidos na guerra forneceu mão de obra e suprimentos que a Alemanha não poderia igualar, e nem a Alemanha nem seus aliados suportariam a tensão de uma guerra defensiva contínua.[4] O Comando Supremo do Exército Alemão acreditava que somente o rompimento da Entente levaria à vitória.[5]

Objetivos

Para quebrar a Entente, Ludendorff queria uma campanha rápida e única visando especificamente as forças britânicas no Ocidente antes da chegada americana.[6] O objetivo estratégico geral era simples. Os alemães deveriam perfurar a defesa britânica entre Arras e o rio Oise, então girar para o norte e envelopar a linha britânica, para permitir um empurrão o qual traria os defensores contra os portos do Canal e os destruiria.[7] Especificamente, um ataque bem sucedido através do eixo Péronne-Albert-Abbeville poderia separar os britânicos dos franceses e afunilá-los para o mar.[8]

Ofensiva de Ludendorff, 1918.
(Wikimedia)

Para isso, Ludendorff tinha inicialmente três exércitos à sua disposição: o 17º no norte, o 2º no centro e o 18º no sul.[9] Os 2º e 17º Exércitos primeiro tiveram que ir para sudoeste para limpar o saliente de Cambrai, e então redirecionar no meio da batalha para ir para noroeste em direção a Arras e Vimy.[10] Especificamente, o 2º teve que chegar a Péronne e depois Amiens, enquanto o 17º teve que romper entre Arras e Cambrai, depois chegar a Bapaume e seguir para o norte em direção a Saint-Pol.[11] O 18º essencialmente só teve que proteger o flanco sul dos franceses.[12] O plano operacional foi projetado para permitir que os alemães rompessem as linhas britânicas rapidamente e as envolvessem antes de um possível contra-ataque.[13]

Os britânicos foram o alvo por várias razões. Os alemães acreditavam que os franceses seriam muito resistentes, e que os britânicos eram mais propensos a desistir de terrenos que não os seus.[14] Eles também achavam que o fim do apoio britânico levaria ao colapso francês.[15] Os alemães consideraram o primeiro como sendo taticamente mais fraco do que o último, e que a prontidão geral britânica foi diminuída pela instabilidade na estrutura da força, treinamento e extensão excessiva de suas linhas.[16]

Execução da campanha

Toda a campanha foi subdividida em várias operações de março a julho de 1918. A primeira foi a operação Michael, iniciada em 21 de março. O ataque no sul foi muito bem sucedido, enquanto o ataque do norte nem tanto. Consequentemente, o objetivo operacional crítico, indo para a costa via Péronne-Albert-Abbeville, foi alterado. O peso do ataque foi transferido para o sul para o 2º e 18º Exércitos com Amiens como seu objetivo, o qual eles não conseguiram alcançar.[17]

A partir deste momento, o plano original passou a ser objeto de mudanças na tentativa de se adequar a cada situação. Ludendorff concluiu que uma nova ofensiva contra os britânicos ao norte de Péronne seria realizada em uma frente muito estreita. Já na noite de 21 de março, os alemães fizeram mudanças táticas diferentes das posições previamente acordadas, e Ludendorff moveu divisões da Reserva Geral não para a frente, onde estava o objetivo, mas para o sul, para o setor do 18º Exército, onde o ponto fraco tático foi encontrado. Em 23 de março, as ordens do Comando Supremo do Exército alemão apontavam para uma mudança do eixo de ataque para o sul. Consequentemente, enquanto o objetivo permaneceu o mesmo, a disposição tática mudou muito.[18]

Operação Michael: retirada das tropas britânicas, março de 1918.
(Wikimedia)

Independentemente disso, a primeira ofensiva foi um grande sucesso tático. Produziu os avanços territoriais mais significativos no Ocidente desde 1914 e, em um dia, os atacantes capturaram uma área fortificada de 300 quilômetros quadrados, a primeira na frente ocidental.[19] Entre 24 e 26 de março, as forças da Entente perderam quase 10 quilômetros por dia, e no dia 27, os atacantes empurraram os franceses por 15 quilômetros e capturaram Montdidier.[20] Os alemães ganharam quase 65 quilômetros e ameaçaram o entroncamento ferroviário vital de Amiens.[21] No entanto, a direção final de Michael não permitiu o envolvimento decisivo inicialmente pretendido. Além disso, o 17º e o 2º Exércitos não puderam ampliar a frente com suas forças exaustas.[22] A ofensiva foi um sucesso tático, mas não alcançou nenhum dos objetivos operacionais ou estratégicos declarados.

As ofensivas alemãs nos próximos quatro meses também alcançariam sucesso tático geral com ganhos territoriais significativos. No entanto, eles não atingiriam objetivos operacionais ou estratégicos reais. No entanto, Ludendorff continuou atacando, pois queria manter a iniciativa e obter uma decisão.[23] Após vários meses de ofensivas, o objetivo estratégico de derrotar os britânicos não foi alcançado.[24] Ludendorff deixou suas tropas em um enorme saliente exposto em todas as frentes, recusando-se a ordenar uma retirada. Eles se tornaram objeto de golpes cada vez mais destrutivos.[25]

A Entente sofreu mais baixas do que os alemães, mas tinha mais reforços disponíveis e um forte apoio industrial.[26] Esses fatores, entre outros, permitiram à Entente receber duros golpes dos alemães antes de contra-atacar decisivamente. As forças alemãs estavam agora frágeis e seus melhores soldados haviam sido perdidos nas ofensivas.[27] Todas as operações seguintes se tornaram tentativas de manter uma frente ininterrupta ou conduzir uma retirada ordenada.[28] Os alemães perderam a iniciativa e nunca a recuperariam.[29]

Análise

As ofensivas alemãs de março-julho de 1918 demonstraram a capacidade alemã de alcançar grande sucesso tático. Em meados de julho de 1918, o território controlado pelo Império Alemão estava em sua maior extensão, aproximando-se de Paris.[30] No entanto, as ofensivas foram um completo fracasso operacional e estratégico. Uma das principais razões é a incapacidade de Ludendorff de seguir os objetivos operacionais declarados. De fato, Ludendorff ordenou assaltos que não serviam aos objetivos operacionais e estratégicos iniciais, objetivos que ele perdeu de vista. Ele dissipou suas forças em uma série de ataques que alcançaram sucesso tático, mas nenhuma decisão operacional ou estratégica.[31] Ele o fez apesar de saber que tinha apenas forças suficientes para um ataque frontal.[32]

Enquanto os objetivos estratégicos e operacionais eram claros, Ludendorff se deixava levar pelos sucessos táticos e queria obsessivamente explorar avanços locais. Ele dava mais ênfase à questão das táticas bem-sucedidas do que aos objetivos estratégicos a serem alcançados. Ludendorff afirmou que um plano estratégico que ignorasse o fator tático fracassaria, e que sem sucesso tático os objetivos estratégicos não podem ser alcançados.[33] Embora axiomático, não significa que o aspecto tático deva prevalecer. Deve ser considerado igualmente com os aspectos estratégicos e operacionais.

Ao se concentrar excessivamente no nível tático, ele não conseguiu articular objetivos táticos que fossem coerentes com os objetivos operacionais. Ludendorff argumentou que bastava abrir um buraco e que o resto se seguiria.[34] Em vez de ter em mente todo o propósito da campanha, ele continuou adaptando o plano de acordo com as circunstâncias e eventos locais, muitas vezes diariamente.[35] Tal método poderia, em teoria, ser absolutamente relevante dependendo da situação. No entanto, o plano deve sempre ter em mente o objetivo geral da campanha e a natureza do adversário enfrentado.[36] Ludendorff não conseguiu fazê-lo.

Por exemplo, entre 28 de março e 6 de abril, os alemães perderam tempo e meios que poderiam ter beneficiado a operação maior contra os britânicos no norte – o verdadeiro objetivo da campanha alemã – atacando obstinadamente outros locais.[37] Além disso, ele decidiu atacar o Chemin des Dames, onde nenhum avanço tático poderia ter quebrado as tropas francesas, a maior parte das quais ainda estava fresca. Em vez disso, ele deveria ter se concentrado na captura de Amiens ou Abbeville, que eram os únicos objetivos decisivos ao alcance possível, já que sua ocupação poderia ter dividido os franceses e os britânicos.[38]

No final de maio, Ludendorff tomou a decisão de suspender a ofensiva no Flandres e enviar todas as suas forças para Champagne, em parte para ameaçar Paris.[39] Embora esse alvo fosse certamente tentador, esse movimento não perseguiu os objetivos operacionais e estratégicos inicialmente declarados de toda a campanha. Os alemães até tentaram ampliar sua zona em Champagne, embora isso significasse adiar novos ataques contra os britânicos e dar a eles e aos americanos tempo para se fortalecerem.[40] Mais uma vez, Ludendorff não seguiu os objetivos operacionais e estratégicos inicialmente declarados.

Ignorar os objetivos operacionais de Michael também teve consequências negativas subsequentes para o próximo grande passo do plano alemão. De fato, a operação Georgette foi lançada por Ludendorff em 28 de março, apesar dos objetivos operacionais iniciais não terem sido alcançados.[41] Seus objetivos eram enfraquecer as forças britânicas e forçá-las a recuar para Calais, e tomar pelo menos os nós de transporte de Hazebrouck e, se possível, de Saint-Omer.[42] No entanto, Michael não conseguiu enfraquecer suficientemente os britânicos e, mais importante, falhou em atrair suas reservas para o sul.[43] Mas os alemães decidiram começar Georgette mesmo assim, pois não havia outra alternativa.[44]

Ludendorff também não reconheceu que a Entente tinha recursos humanos e suprimentos superiores, um bom sistema logístico e estava lutando como uma única força coordenada.[45] Consequentemente, suas ofensivas operacional e estrategicamente inúteis tinham ainda menos chances de serem algo mais do que taticamente bem-sucedidas.

A campanha alemã planejou uma série de ataques suficientemente rápidos entre Picardia e Flandres em uma área suficientemente ampla para atrapalhar a manobra das reservas britânicas. Esses ataques também tinham que ser poderosos o suficiente para tomar os nós de transporte de Amiens, Saint-Pol, Hazebrouck e, se possível, de Abbeville e Saint-Omer.[46] Mas a série de decisões tomadas por Ludendorff, baseadas em oportunidades táticas, tornaram esse plano discutível. Atacou locais e objetivos secundários que não atendiam aos objetivos operacionais e estratégicos inicialmente declarados, quando deveria ter concentrado todas as suas forças nos objetivos principais da campanha para ter a chance de obter algum efeito estratégico positivo.

Uma multidão de prisioneiros alemães capturados pelo Quarto Exército Britânico na Batalha de Amiens.
(Wikimedia)

Conclusão

Claro, o único fracasso em seguir os objetivos operacionais inicialmente declarados não explica inteiramente o fracasso alemão em 1918. Os alemães foram incapazes de montar mais de uma ofensiva ao mesmo tempo, o que significa que a Entente poderia organizar mais facilmente suas forças para enfrentar as ofensivas alemães.[47] A Entente também concebeu meios para enfrentar melhor os poderosos ataques alemães depois de saber como eles funcionavam. Seus soldados e líderes também merecem crédito por serem capazes de organizar defesas e contra-ataques eficazes. Finalmente, a estratégia alemã, mesmo que os objetivos operacionais tenham sido cumpridos, pode muito bem não ter tido sucesso de qualquer maneira, dado o contexto estratégico em 1918 e devido a falhas na estratégia e no plano de campanha alemães.[48] No entanto, uma coisa é certa: o não cumprimento dos objetivos operacionais esmagou qualquer chance de sucesso. A excelência tática não poderia compensar essa falha.

Sobre o autor:

Lorris Beverelli é um cidadão francês que possui um Master of Arts em Estudos de Segurança com uma concentração em Operações Militares pela Universidade de Georgetown. As opiniões expressas neste artigo são exclusivas do autor e não representam a política ou posições do governo francês ou das forças armadas.

Notas:
  1. Hew Strachan, The First World War, New York: Viking Penguin, 2004, 270.
  2. William Philpott, War of Attrition: Fighting the First World War, New York: The Overlook Press, 2014, 305.
  3. Strachan, The First World War, 291.
  4. Major Patrick T. Stackpole, German Tactics in the “Michael” Offensive - March 1918, Pickle Partners Publishing, 2014, Chapter 1 – Introduction, Kindle; Lieutenant-Colonel Philip Neame, German Strategy in the Great War, London: Edward Arnold & Co., 1923, 102.
  5. Stackpole, German Tactics, Chapter 1 – Introduction.
  6. Pierre Jardin, “Ludendorff, le tacticien dépassé par la stratégie,” Guerres & Histoire, no. 33 (October 2016), 83; Stackpole, German Tactics, Chapter 1 – Introduction; Timothy T. Lupfer, “The Dynamics of Doctrine: The Changes in German Tactical Doctrine During the First World War,” Leavenworth Papers no. 4 (July 1981), 37; Neame, German Strategy, 102.
  7. Stackpole, German Tactics, Chapter 4 – Analysis of the Offensive – German Plan and Task Organization.
  8. Neame, German Strategy, 103.
  9. Stackpole, German Tactics, Chapter 4 – Analysis of the Offensive – German Plan and Task Organization.
  10. Neame, German Strategy, 107.
  11. Michel Goya, Les vainqueurs : Comment la France a gagné la Grande Guerre, Paris: Editions Tallandier, 2018, 111.
  12. Neame, German Strategy, 107.
  13. Stackpole, German Tactics, Chapter 4 – Analysis of the Offensive – German Plan and Task Organization.
  14. Ibid., Chapter 1 – Introduction; Strachan, The First World War, 293.
  15. Stackpole, German Tactics, Chapter 1 – Introduction.
  16. Ibid., Chapter 3 – Preparation of the Offensive – The British Defense.
  17. Neame, German Strategy, 107.
  18. Ibid., 107-8.
  19. Strachan, The First World War, 296; Goya, Les vainqueurs, 135-36.
  20. Goya, Les vainqueurs, 120, 123.
  21. Strachan, The First World War, 296.
  22. Jardin, “Ludendorff,” 84.
  23. Strachan, The First World War, 297.
  24. Goya, Les vainqueurs, 196.
  25. Jardin, “Ludendorff,” 84.
  26. Goya, Les vainqueurs, 170.
  27. Ibid., 187.
  28. Neame, German Strategy, 115.
  29. Ibid., 114.
  30. Strachan, The First World War, 298.
  31. Jonathan M. House, Combined Arms Warfare in the Twentieth Century, Lawrence: University Press of Kansas, 2001, 55.
  32. Jardin, “Ludendorff,” 84.
  33. Neame, German Strategy, 103.
  34. Philpott, War, 312.
  35. Ibid., 313.
  36. Ludendorff se comportou na frente ocidental como na Rússia, e assumiu que os métodos alemães usados no leste seriam tão eficientes na França contra inimigos diferentes (Strachan, The First World War, 293).
  37. Goya, Les vainqueurs, 125.
  38. Neame, German Strategy, 112.
  39. Goya, Les vainqueurs, 158.
  40. Ibid., 164.
  41. Ibid., 127.
  42. Ibid.
  43. Ibid., 128.
  44. Ibid., 127.
  45. Philpott, War, 322.
  46. Goya, Les vainqueurs, 136-37.
  47. Ibid., 188.
  48. Especificamente, nocautear temporariamente um beligerante provavelmente não seria decisivo – como mostrado na Polônia em 1915, na Romênia em 1916 e na Itália em 1917 – especialmente nesta fase da guerra (Philpott, War, 312). Além disso, as táticas e operações alemãs seriam eficazes contra linhas finas apoiadas por uma logística ruim, mas provavelmente não seriam ótimas contra a logística muito eficaz, defesas profundas e grande mão de obra da Entente (Ibid., 313). Além disso, considerável poder de combate alemão foi desperdiçado na missão defensiva do 18º Exército. De fato, o 18º foi aumentado, em vez do 2º e, em particular, do 17º, embora tivessem que realizar o esforço crítico (Stackpole, German Tactics, Chapter 4—Analysis of the Offensive—German Plan and Task Organization). Finalmente, os alemães não reconheceram o impacto das reservas da Entente que poderiam ser lançadas na batalha. A Entente tinha reservas suficientes para conter ofensivas contra Amiens e, logo após o início de Michael, a coalizão tinha cerca de 60 divisões de reserva apoiadas por excelentes comunicações rodoviárias e ferroviárias. Portanto, por mais bem-sucedida que fosse a operação, era quase certo que as reservas da Entente poderiam ter chegado ao campo de batalha a tempo de evitar um avanço crítico (Philpott, War, 312; Neame, German Strategy, 109).
Leitura recomendada:

sábado, 30 de julho de 2022

A continuação da política por outros meios: a França na Segunda Guerra Mundial

Por Lorris Beverelli, The Strategy Bridge, 30 de setembro de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 30 de julho de 2022.

Introdução

Quando se trata da França na Segunda Guerra Mundial, a maioria dos estudos natural e compreensivelmente se concentra em sua dramática derrota em 1940. No entanto, o público em geral parece esquecer um resultado mais duradouro: como a França conseguiu ganhar um lugar entre os vencedores da guerra. De fato, apesar de ter perdido seu status pré-guerra como potência internacional principal, sofrendo uma derrota dolorida em 1940, levando à ocupação e anexação alemãs, e sendo um ator secundário durante a guerra, a França em 1945 garantiu um lugar entre os vencedores. O General Charles de Gaulle e a França Livre, através de sua agudeza militar e política, juntamente com sua perseverança implacável, conseguiram realizar essa façanha. Isso foi feito principalmente graças ao uso das ferramentas militares à sua disposição – incluindo inteligência – que foram diretamente instrumentalizadas para obter ganhos políticos concretos.

Todo estudante de estratégia militar sabe que a guerra é a continuação da política; a força deve ser usada na busca de um ou vários objetivos políticos mais ou menos específicos. Consequentemente, a forma como a força é usada varia com base em tais objetivos. Charles de Gaulle e a França Livre demonstraram bem esses princípios. Este artigo irá primeiro detalhar como eles usaram a inteligência, antes de mostrar como eles usaram as forças armadas na busca de objetivos políticos. Ao fazê-lo, este artigo visa fornecer um exemplo concreto que ilustra o mais famoso princípio de Clausewitz.

O General Charles de Gaulle durante a Segunda Guerra Mundial.

O Bureau Central de Renseignements et d'Action: coletando inteligência para influência política

Depois de fugir para Londres após o desastre de 1940, o General de Gaulle criou sua entidade política, a França Livre. Seu objetivo era continuar lutando contra o Eixo e, eventualmente, libertar a França.

Entre suas instituições estava um serviço de inteligência que tinha vários nomes, mais conhecido como Bureau central de renseignements et d’action, ou Bureau Central de Inteligência e Ação. Com meios limitados em 1940, os fundadores desse serviço de inteligência inicialmente viram na ação clandestina a melhor maneira de participar ativamente do conflito e afirmar a futura afirmação de que a França era uma vencedora da guerra.[1] Seu líder, André Dewavrin, também conhecido como Coronel Passy, queria colocar a inteligência a serviço direto da política e desejava que o Bureau Central de Inteligência e Ação se tornasse mais do que um mero serviço de inteligência fornecendo informações. Ele queria negociar com os Aliados, inteligência militar por influência política.[2] Eventualmente, foi isso que aconteceu.

O papel político do Bureau Central de Inteligência e Ação centrou-se na Resistência Francesa. A Resistência, nos planos da França Livre, teve que ser o catalisador do Gaullismo e foi usada tanto como alavanca para os Aliados quanto como meio de exercer influência política na França.[3] O serviço de inteligência, consequentemente, procurou organizar e controlar os múltiplos movimentos da Resistência. Organizá-los e controlá-los tinha vários propósitos.

Primeiro, permitiria à França Livre minar o regime de Vichy e garantir a legitimidade de Charles de Gaulle.[4] De fato, o general francês queria fazer Vichy parecer nada mais que um pseudo-governo e estabelecer a França Livre como a autoridade central provisória que salvaguardava os interesses franceses. Seria também uma forma de ser reconhecido pelos Aliados como depositário da soberania francesa e pelo povo francês como autoridade pública.[5]

Em segundo lugar, permitiria à França Livre afirmar seu papel e credibilidade entre os Aliados. Charles de Gaulle queria provar que sem a participação da Resistência, que ele controlaria idealmente, a coleta de informações e a ação militar na França seriam efetivamente impossíveis. Era essencial mostrar que o envolvimento da França Livre era necessário para a condução de qualquer tipo de operação aliada na França.[6]

Multidões de patriotas franceses se alinham nos Champs-Élysées para ver tanques franceses livres e meias-lagartas da 2ª Divisão Blindada do General Leclerc passando pelo Arco do Triunfo, depois que Paris foi libertada em 26 de agosto de 1944. Entre a multidão podem ser vistas faixas em apoio a Charles de Gaulle.
(Biblioteca do Congresso/Wikimedia)

Em terceiro lugar, a organização e controle da Resistência seria uma forma do Bureau Central de Inteligência e Ação impedir uma insurreição geral na França antes da libertação do país. O serviço de inteligência da França Livre não queria que tal evento acontecesse, pois poderia levar à destruição de seus ativos no solo, o que deixaria os gaullistas incapazes de apoiar os desembarques aliados. Consequentemente, isso os privaria dos principais meios para gerar um papel entre os vencedores no final da guerra.[7]

Finalmente, o controle centralizado dos movimentos da Resistência foi uma forma de impedi-los de desenvolver suas próprias ambições políticas significativas e de se considerarem atores independentes.[8] Mesmo no final de 1942, grande parte da Resistência não era de forma alguma gaullista, e alguns deles preferiam lidar diretamente com os britânicos ou os americanos sem se referir à França Livre.[9]

Portanto, durante a guerra, o Bureau Central de Inteligência e Ação coletou informações e as usou como alavanca para ganhar influência política na França. A França Livre finalmente conseguiu unificar os movimentos da Resistência sob seu guarda-chuva e dominar o cenário político interno durante a libertação do país. O trabalho do serviço de inteligência da França Livre ajudou a França a conquistar seu lugar entre os líderes da ordem mundial do pós-guerra.

Consequentemente, o Bureau Central de Inteligência e Ação era mais do que um mero serviço de inteligência que se limitava à coleta e exploração de informações. Em vez disso, era uma ferramenta política, no sentido próprio de Clausewitz, e usava a inteligência como meio militar e político para participar diretamente da realização dos objetivos políticos gaullistas

O Exército Francês: ocupando territórios para ganho político

Desfile da 2ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria de Marinha das Forças Francesas Livres (FFL) em Spinay Wood, no Egito, em 17 de outubro de 1940.

O Exército Francês, renovado após sua derrota em grande parte graças à mão de obra proveniente das possessões francesas na África Subsaariana e do Norte da África e ao enorme apoio material americano, foi outra ferramenta para obter ganhos políticos. Como o Bureau Central de Inteligência e Ação, o Exército Francês seria um meio de provar a capacidade de combater o Eixo, libertar o país e ganhar um lugar entre os vencedores da guerra.[10] No entanto, seria uma tarefa delicada para Charles de Gaulle. Durante as campanhas aliadas de libertação, as forças francesas desempenharam principalmente um papel secundário, em parte por causa de seu número limitado. O general francês teve que usar cuidadosamente seus ativos para evitar que a França fosse um súdito impotente dos Aliados. Ele podia contar com dois elementos: a Resistência, que havia sido unificada em parte graças ao trabalho do Bureau Central de Inteligência e Ação, e também tropas regulares sob o comando dos generais Philippe Leclerc e Jean de Lattre de Tassigny.[11]

Na França e na Alemanha, o Exército Francês participou da luta contra o Eixo, permitindo que de Gaulle obtivesse ganhos políticos tanto no âmbito doméstico quanto no de coalizão, liberando e ocupando território. Dois eventos ilustram isso.

Carros M4 Sherman franceses do 501e RCC nos subúrbios de Estrasburgo, 23 de novembro de 1944.

A cidade de Estrasburgo, que fazia parte da região da Alsácia-Mosela, anexada pela Alemanha, foi libertada pelas forças francesas em 23 de novembro de 1944. No entanto, após o início da Batalha do Bulge em dezembro, o General Dwight Eisenhower temeu a frente quebraria. Portanto, ele ordenou que o 6º Grupo de Exército dos Estados Unidos mudasse sua postura em janeiro de 1945. Como consequência, Estrasburgo ficaria indefesa e exposta a uma nova ocupação alemã.[12] Embora a cidade fosse, do ponto de vista militar, relativamente sem importância, representava um valor simbólico para os franceses: eles não podiam simplesmente abandonar uma cidade francesa que não apenas havia sido ocupada, mas também anexada pelos alemães. Charles de Gaulle considerou que deixar Estrasburgo à sua própria sorte sem lutar seria um “desastre nacional irreparável”.[13]

Consequentemente, de Gaulle ordenou que o General de Lattre defendesse Estrasburgo, contrariando as ordens americanas, pois o Primeiro Exército francês fazia parte do 6º Grupo de Exércitos dos Estados Unidos, sob o comando do General Jacob Devers. Eventualmente, graças a conversas entre os generais de Gaulle e Eisenhower, os americanos concordaram em manter sua presença na cidade; eles a abandonariam apenas em caso de absoluta necessidade, e os franceses ficariam encarregados de sua defesa.[14]

Outro exemplo de de Gaulle usando as forças armadas para atingir diretamente um objetivo político ocorreu mais tarde. Em 28 de março de 1945, o general francês ordenou que suas tropas cruzassem o Reno, contra as ordens de Dwight Eisenhower, que havia atribuído uma missão defensiva aos franceses na margem oeste do rio.[15] Cerca de 200.000 soldados cruzaram o Reno três dias depois.[16] O objetivo era alcançar os estados alemães de Baden e Württemberg, que de Gaulle queria fazer parte de uma futura zona de ocupação francesa.[17] Durante o mês de abril, os franceses ocuparam as cidades alemãs de Karlsruhe, Freiburg e Stuttgart.[18] O General Devers então ordenou que o General de Lattre deixasse Stuttgart em 24 de abril. No entanto, de Gaulle manteve sua posição e ordenou que o Primeiro Exército francês segurasse a cidade, não importando o quê. Ignorando a ordem do General Devers, os franceses permaneceram desafiadores e até entraram em Ulm no mesmo dia, o que abriu caminho para a Áustria, cujo território estava agora em risco de cair nas mãos dos franceses.[19] O Danúbio foi então atravessado em 29 de abril, e as tropas do General Leclerc chegaram a Berchtesgaden em 4 de maio.[20]

Fronteiras e territórios de ocupação de 1945 a 1949.
Zonas de ocupação britânica (verde), francesa (azul), americana (laranja) e soviética (vermelha).

Essa série de movimentos foi uma forma de produzir um resultado político direto e concreto, a existência de uma zona de ocupação francesa claramente delimitada na Alemanha após a guerra. Na época, os Aliados concordaram em princípio com uma zona de ocupação francesa, mas não determinaram seus limites. Até que o pedido fosse atendido, os franceses decidiram que administrariam todo o território alemão ocupado por suas forças.[21] Eventualmente, Eisenhower obedeceu.[22] Apesar de contradizer diretamente as ordens aliadas, a França ganhou uma zona de ocupação na Alemanha, e o Primeiro Exército Francês tornou-se uma força de ocupação após ser dissolvido em 24 de julho de 1945.[23]

Conclusão

Durante a guerra, a França Livre e Charles de Gaulle usaram diretamente a inteligência e meios militares limitados para atingir objetivos políticos concretos. Essas vinhetas ilustram que a guerra é a continuação da política por outros meios. O Bureau Central de Inteligência e Ação e o Exército Francês participaram diretamente na realização de objetivos políticos claramente formulados, na medida em que mesmo objetivos militares táticos, como manter ou capturar uma cidade, serviram diretamente a objetivos políticos estratégicos.

A França é muitas vezes ridicularizada por sua derrota esmagadora de 1940. A verdade é que nenhum exército contemporâneo foi capaz de derrotar as forças terrestres alemãs no início da Segunda Guerra Mundial. Naquela época, a doutrina alemã e a excelência tática em terra permitiam que eles superassem as forças terrestres de todos os outros Estados. O Reino Unido tinha o Canal da Mancha — que permitiu à Força Aérea e à Marinha Reais deterem os alemães —, a União Soviética, uma imensa profundidade estratégica, e os Estados Unidos, o Atlântico. A Noruega tinha um corpo de água que poderia ter ajudado contra os alemães, mas não conseguiu evitar a invasão e foi derrotada. A França não tinha nada disso, assim como Tchecoslováquia, Polônia, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Grécia.

No entanto, a França conseguiu permanecer uma potência internacional (embora muito diminuída em comparação com seu status pré-guerra), ganhar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e ser considerada uma vencedora da Segunda Guerra Mundial. Fê-lo apesar da ocupação e anexação alemãs, apesar da existência do regime colaboracionista de Vichy, e apesar da enorme mas necessária dependência do apoio material americano e britânico durante quase toda a guerra. Aqui está a verdadeira vitória da França durante a Segunda Guerra Mundial. Não foi militar. Foi política. E quando se trata de guerra, o aspecto político é o que mais importa.

Sobre o autor:

Lorris Beverelli é um cidadão francês que possui um Master of Arts em Estudos de Segurança com uma concentração em Operações Militares pela Universidade de Georgetown. As opiniões expressas neste artigo são exclusivas do autor e não representam a política ou posições do governo francês ou das forças armadas.

Notas:
  1. Sébastien Albertelli, “Les services secrets de la France Libre : le Bureau Central de Renseignement et d’Action (BCRA), 1940-1944,” Guerres mondiales et conflits contemporains, no. 242 (2011/2), 8.
  2. David De Young De La Marck, “De Gaulle, Colonel Passy and British Intelligence, 1940-1942,” Intelligence and National Security 18, no. 1 (2003), 23.
  3. Neste contexto, “Gaullismo” significa o ethos, ideais e objetivos da França Livre..
  4. Douglas Porch, The French Secret Services: From the Dreyfus Affair to the Gulf War (New York: Farrar, Straus & Giroux, 1995), 225-26.
  5. Albertelli, “Les services,” 11.
  6. Porch, The French Secret Services, 226.
  7. Albertelli, “Les services,” 10.
  8. Ibid., 16-7.
  9. Porch, The French Secret Services, 187.
  10. Claire Miot, “L’armée, meilleure carte politique du Général,” Guerres & Histoire, no. 24 (April 2015), 50.
  11. Olivier Wieviorka, “Démobilisation, effondrement, renaissance 1918-1945,” in Histoire militaire de la France, II. De 1870 à nos jours, editado por Hervé Drévillon, Olivier Wieviorka (Paris: Editions Perrin, 2018), 450.
  12. Ibid., 470.
  13. Miot, “L’armée,” 52.
  14. Ibid.      
  15. Ibid., 53.
  16. Wieviorka, “Démobilisation,” 472.
  17. Miot, “L’armée,” 53.
  18. Wieviorka, “Démobilisation,” 472.
  19. Miot, “L’armée,” 53.
  20. Wieviorka, “Démobilisation,” 472.
  21. Miot, “L’armée,” 53.
  22. Ibid.
  23. Wieviorka, “Démobilisation,” 474.
Bibliografia recomendada:

A Segunda Guerra Mundial:
Histórias e estratégias,
Philippe Masson.

Leitura recomendada:

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Faríamos melhor? Arrogância e validação na Ucrânia


Por David Johnson, War on the Rocks, 31 de maio de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 10 de junho de 2022.

Os infelizes russos estão se debatendo na Ucrânia. Seus soldados mal preparados e não profissionais são incapazes de guerra de armas combinadas modernas. Mesmo que os soldados russos estivessem treinados e prontos, o incompetente corpo de oficiais russos – cheio de puxa-sacos corruptos – é incapaz de empregá-los de forma eficaz.

A mais recente evidência da inépcia russa é a aniquilação de uma unidade que tentava atravessar o rio Siverskyi Donets na região do Donbas, no leste da Ucrânia. O Ministério do Interior ucraniano (que não é uma fonte imparcial sobre esses assuntos) informou que elementos de uma brigada russa, detectados por reconhecimento aéreo, sofreram pesadas perdas: “70 unidades de veículos blindados russos queimados como resultado de ataques de artilharia das Forças Armadas. Dos 550 militares da brigada russa, 485 foram mortos”.

Ou assim nos disseram. Mas será que é mesmo assim?


Os comentaristas ocidentais estão em grande parte satisfeitos com esta narrativa e atacaram o fiasco da travessia do rio como mais uma evidência de um exército russo que continua a lutar diante da resistência determinada por forças ucranianas bem treinadas e motivadas. Em um artigo no Wall Street Journal, especialistas militares dissecaram as deficiências russas, atribuindo seu fracasso principalmente à preparação inadequada e à má liderança. Eles dizem que esse fracasso é um dos muitos que “indicam problemas mais altos em sua cadeia de comando do que no nível do campo de batalha e provavelmente indicam que a liderança sênior está pressionando por ganhos que as tropas não estão preparadas para alcançar”. Assim, “a Rússia está oferecendo ao mundo lições sobre como não fazer as coisas, dizem os veteranos de combate ocidentais”.

E se, no entanto, os analistas estiverem vendo as lições da Ucrânia incorretamente, através de lentes refratadas por seus próprios preconceitos e arrogância? E se a variável chave não for o profissionalismo dos militares russos, mas a natureza desta guerra?

Como veremos, as doutrinas dos EUA e da Rússia são semelhantes para uma operação de travessia de rio e muitos outros tipos de manobras táticas e operacionais. Se o fracasso da Rússia é atribuível a falhas de pessoal, então a guerra não desafia os atuais conceitos e capacidades de combate dos EUA – se forem exercidos por profissionais. Se o problema não for pessoal, as abordagens dos EUA podem ser invalidadas. Daí a pergunta: as forças dos EUA se sairiam melhor em uma guerra como a da Ucrânia?

Aprendendo a “engolir”


Esse abanar de dedos para os desajeitados militares russos é novo. Muitos analistas militares, se não a maioria, pensavam que a guerra na Ucrânia terminaria rapidamente com um fato consumado russo. O Exército Vermelho está na cidade — a resistência é inútil!

Muitas dessas avaliações foram baseadas em jogos de guerra envolvendo os países bálticos – o flanco oriental vulnerável da OTAN. Eles mostraram que os russos estariam em Tallinn, na Estônia, e Riga, na Letônia dentro de 60 horas. Era aqui que se acreditava que os russos representavam o desafio de segurança mais significativo, e os jogos buscavam entender quais aumentos na postura das forças da OTAN proporcionariam dissuasão.

Dada a geografia e a modesta presença de tropas nos Estados Bálticos, essas descobertas eram plausíveis. A distância da fronteira russa para Riga é de apenas cerca de 130 milhas (209km), e os três Estados Bálticos são essencialmente uma faixa bastante estreita com a Rússia e a Bielorrússia diretamente em suas fronteiras. Além disso, os russos têm um enclave militarizado em Kaliningrado, montado no Passo de Suwalki, que controla o acesso terrestre da Polônia ao Báltico. Além disso, as forças da OTAN nesses países, nos níveis empregados nos jogos de guerra, seriam significativamente superadas em número e em inferioridade de poder de fogo por qualquer invasão russa.


A invasão da Ucrânia obviamente não está indo como esperado pela comunidade analítica ocidental, muito menos pelos russos. Não se deve, no entanto, esquecer que a Ucrânia não é o Báltico. A Ucrânia tem profundidade estratégica e forças militares substanciais, que vêm se reorganizando e treinando sob a supervisão da OTAN desde a invasão russa de 2014. Eles também estão recebendo apoio material maciço e em grande parte desimpedido do Ocidente.

No entanto, os analistas militares ocidentais deixaram de ser impressionados pelo poder militar russo para desapontados por seu desempenho na Ucrânia. Talvez seja a hora de respirar fundo e simplesmente “engolir”.

Por que a Rússia foi bloqueada?


Grande parte da análise agora está focada em identificar as causas dos surpreendentes fracassos russos, buscando culpar por que os russos não podem efetivamente empregar seu equipamento sofisticado. A resposta aparentemente está em uma diferença crucial: os russos não são como nós.

Uma avaliação recente do Instituto de Guerra Moderna de West Point é emblemática do que hoje é uma visão de amplo consenso de que falhas logísticas e a incapacidade de conduzir armas combinadas eficazes são o Calcanhar de Aquiles das forças armadas russas. Isso se deve em parte à falta de treinamento e experiência de combate. Mais fundamentalmente, é porque seus soldados são mal liderados e não têm o corpo de suboficiais e o poder de comando de missão de líderes subordinados prevalente nos EUA e em outras forças armadas ocidentais. Assim, a vantagem ucraniana é que “tem tentado modelar suas forças armadas nos padrões da OTAN e dos EUA, incluindo a construção de seu próprio corpo de sargentos por meio do envolvimento em programas como o Programa de Aprimoramento da Educação de Defesa da OTAN”.

Consequentemente, nas palavras de uma análise,

as forças armadas russas que muitos acreditam ser a segunda mais forte do mundo têm sérias limitações. Provou ser uma fachada de novos tanques e aviões reluzentes escondendo todos os problemas de desempenho e comando mencionados acima, até que eles tiveram que lutar.

Em suma, a Rússia tem um “Exército de Potemkin”.

E se o diagnóstico estiver errado?


É difícil argumentar com os sintomas do desempenho russo, mas e se o diagnóstico estiver errado? E se os militares ocidentais compartilham uma doença semelhante, mas não conseguem vê-la por causa de avaliações superficiais dos russos?

A este respeito, o caso da travessia do rio é particularmente instrutivo. Todos os comentaristas do artigo do Wall Street Journal enfatizam a dificuldade dessas operações. Os comentários do General de Brigada reformado do Exército dos EUA, Peter DeLuca, são representativos: "Todo o combate deve ser um balé altamente orquestrado de violência cinética, humanos, veículos e aeronaves... e a travessia de um rio é uma das manobras mais complicadas." Consequentemente, ele continua, “tudo precisa ser coordenado para ser eficaz, e não vimos os russos fazerem isso na Ucrânia”. Um engenheiro comando britânico, Tony Spamer, também opinou, baseando seus comentários em suas experiências no Afeganistão. “Nós nunca teríamos chegado a um local e tentado cruzá-lo.” Em vez disso, ele explicou que “suas unidades conduziriam até sete ensaios em baixa velocidade em sua base e depois praticariam em velocidade, cada vez reduzindo minutos das operações perigosas antes de entrar em ação”.


Os profissionais militares citados no artigo entram em detalhes sobre como eles teriam feito essa operação de maneira diferente: reconhecimento elaborado, protegendo o lado distante do rio primeiro, engano usando vários locais de cruzamento falsos, usando fumaça para obscurecer a operação, etc. Todos esses são princípios doutrinários sólidos para a travessia de um rio. Ironicamente, o artigo observa que essa também é uma doutrina russa: “As tropas russas envolvidas parecem ter ignorado sua própria doutrina militar e manuais de combate, lançando uma tentativa precipitada de uma manobra que requer planejamento cuidadoso, recursos extensivos e supervisão estrita”. A provável razão para o desastre russo no rio Siverskyi Donets: “a liderança sênior está pressionando por ganhos que as tropas não estão preparadas para alcançar”.

Os russos, no entanto, realizaram várias travessias bem-sucedidas do rio Siverskyi Donets para posicionar forças para operações ofensivas contra Izyum. Essas travessias permitiram aos russos posicionar forças para operações ofensivas na região ao sul do rio.


Esses cruzamentos, assim como outras operações russas bem-sucedidas, recebem pouca atenção da mídia. Nem os fracassos ucranianos figuram com destaque nas reportagens da guerra. Este é provavelmente o resultado de uma sofisticada campanha de informação ucraniana em todos os meios de comunicação, reforçada por histórias positivas de jornalistas cujo acesso é cuidadosamente administrado pelo governo ucraniano. Esse controle de informações é reforçado pela excelente segurança operacional de suas forças armadas. De fato, foi o governo ucraniano que distribuiu o vídeo da travessia malfeita do rio Siverskyi Donets.

A travessia fracassada do rio é retratada como mais uma evidência de que o fraco desempenho russo até agora na Ucrânia é uma falha de liderança, agravada por soldados inexperientes e inadequadamente treinados com moral em constante declínio.

Isso é de se esperar dos ucranianos que, afinal, estão engajados em um possível conflito existencial no qual as narrativas da mídia internacional desempenham um papel fundamental na obtenção de apoio. No entanto, aqueles que são cativados por histórias de fracassos russos devem pensar cuidadosamente sobre o motivo disso, talvez porque validem sua competência pessoal e a dos militares de seu país.

Um diagnóstico reconfortante para a doença errada

O que é reconfortante em culpar os fracassos russos em sua prática, e não em sua doutrina, é que isso isenta os militares ocidentais de qualquer exigência de examinar minuciosamente sua própria doutrina. Isso é importante porque, como vários artigos observam, a doutrina para uma operação de travessia de rio é semelhante entre as forças armadas.

Soldados americanos em um barco de assalto cruzam o rio Volturno em meados de outubro de 1943, durante a primeira grande travessia de rio na Europa pelas tropas aliadas.

A doutrina da travessia de rios baseia-se em grande parte nas lições aprendidas a duras penas da Segunda Guerra Mundial na Europa, quando todos os exércitos enfrentaram o desafio de atravessar rios e outros obstáculos para manobrar. De fato, uma travessia de rio com oposição foi uma das operações mais difíceis de executar. Talvez o exemplo mais infame seja a tentativa de janeiro de 1944 de cruzar o Rio Rapido durante a campanha italiana. Essa operação falhou diante da oposição alemã determinada e resultou em altas baixas americanas. Houve também exemplos bem-sucedidos, mais notavelmente a travessia noturna de barco do rio Reno em 22 de março de 1945 em Nierstein pela 5ª Divisão de Infantaria, parte do Terceiro Exército do General George Patton — “a primeira travessia de barco do rio Reno por um exército invasor desde Napoleão Bonaparte.” Um exemplo mais famoso foi a captura anterior da ponte Ludendorf sobre o Reno em Remagen, em 7 de março de 1945.

A Segunda Guerra Mundial foi a última vez que o Exército dos EUA ou o Exército Russo realmente cruzaram um rio contra um adversário competente e bem armado. As operações no Afeganistão eram geralmente discricionárias, e as travessias de rios, embora complexas, enfrentavam pouca oposição lá. Tampouco foram um componente crítico para o sucesso de uma operação, enquanto na Segunda Guerra Mundial eram, e na Ucrânia são. Daí o senso de urgência russo.

Qual é a doença?

A história da travessia de rios destaca a verdadeira doença que aflige tanto os russos quanto seus observadores ocidentais: inexperiência crônica no combate ofensivo contra um adversário competente que é capaz, na descrição de hoje, de contestar todos os domínios em uma guerra prolongada que gera alto número de baixas. Nem a Rússia e nem o Ocidente tiveram experiências operacionais ou de combate relevantes para a guerra na Ucrânia em mais de uma geração, se não desde a Segunda Guerra Mundial.


Por experiência operacional quero dizer prática em desdobrar, manobrar e apoiar grandes formações de vários escalões em operações conjuntas contra um inimigo competente e bem armado, determinado a lutar e capaz de fazê-lo. Ambas as forças armadas têm líderes veteranos com anos de experiência em combate. A Rússia está ocupada com suas forças armadas desde a década de 1990 na Chechênia, Geórgia, Crimeia, Ucrânia e Síria, e em outros países com seus contratados militares do Grupo Wagner. Os Estados Unidos e muitos de seus aliados da OTAN são veteranos do Afeganistão, e os militares norte-americanos e britânicos prestaram amplo serviço no Iraque. No entanto, as Operações Escudo do Deserto/Tempestade no Deserto e Operação Liberdade do Iraque, as últimas operações de combate em grande escala dos EUA, foram contra oponentes que eram amplamente superados e ocorreram em um ambiente onde os Estados Unidos desfrutavam de supremacia aérea e controle marítimo totais.

O desafio ucraniano é diferente daquele enfrentado pelos russos. Os ucranianos estão defendendo e têm uma profunda experiência nesse tipo de operação na região do Donbas desde a invasão em 2014. Resta saber se eles podem ou não assumir a ofensiva em qualquer escala no futuro. A Guerra Russo-Ucraniana, em 24 de maio, tem apenas três meses, o que é curto para os padrões de qualquer grande guerra. Poder-se-ia recordar utilmente que demorou de 7 de julho a 26 de setembro de 1941 para que o ataque alemão à União Soviética na Operação Barbarossa alcançasse e tomasse Kiev. A guerra atual parece estar evoluindo para uma prolongada guerra de desgaste. Portanto, a estratégia russa de manobra limitada e forte dependência de fogos ainda pode ser boa. Eles parecem estar aprendendo, como o analista da Rússia, Michael Kofman, apontou em um recente podcast do War on the Rocks. Esse prolongamento das grandes operações de combate também está além da experiência de oficiais ocidentais em serviço.

No início da guerra, o pessoal da ativa da Rússia e os principais sistemas de armas alocados para a invasão superavam significativamente os da Ucrânia quase em dois para um. Dados precisos sobre baixas e perda de material são difíceis de obter, principalmente na Ucrânia, onde os dados são compreensivelmente considerados um segredo nacional. No entanto, se os números relatados por cada combatente estiverem no corretos, essas estimativas mostram que ambos os lados estão sofrendo níveis significativos de desgaste, principalmente no seu pessoal.

Se isso for verdade, então a Ucrânia está potencialmente em sérios problemas se a guerra continuar por muito mais tempo. A observação de Carl von Clausewitz é tão verdadeira agora quanto era no século XIX: “É claro que é da natureza das coisas que, além da força relativa dos dois exércitos, uma força menor se esgote mais cedo do que uma maior; ela não pode percorrer um curso tão longo e, portanto, o raio de seu teatro de operações deve ser restrito”. Resta saber se a Rússia, com sua força de trabalho inexplorada, mas em grande parte não treinada, pode manter forças utilizáveis em campanha por mais tempo do que a Ucrânia, que também está mobilizando suas reservas e voluntários.


Os militares ocidentais também são condicionados pelo que Jeffrey Record chama de “fobia de baixas”. Ele atribui esse fenômeno à Guerra do Vietnã, mas observa que suas implicações modernas se manifestaram na Operação Allied Force em Kosovo. Sua tese é que os formuladores de políticas e oficiais militares de alto escalão dos EUA acreditam que o “uso da força em situações de intervenção opcional deve estar preparado para sacrificar até a eficácia operacional em prol da prevenção de baixas” e que na guerra contra a Sérvia, “a proteção da força foi concedida prioridade sobre o cumprimento da missão”. Para apoiar essa conclusão, Record cita o então presidente do da Junta de Chefes do Estado-Maior, General Hugh Shelton, para apoiar esta conclusão: “A principal lição aprendida com a Operação Allied Force é que o bem-estar de nosso povo deve continuar sendo nossa primeira prioridade”.

Consequentemente, os militares ocidentais se concentraram fortemente na proteção da força. Isso foi possível devido à natureza discricionária da maioria das operações – os tipos de operações que a maioria dos militares em serviço experimentou quase que exclusivamente durante suas carreiras. Há também uma preocupação sempre presente por trás da maioria das decisões operacionais de que a aversão pública percebida às baixas poderia desequilibrar a política. Isso não quer dizer que as guerras irregulares no Afeganistão e no Iraque não foram brutais e mortais. Elas certamente o eram nos níveis de soldado, grupo de combate, pelotão e companhia. Dito isto, as operações raramente envolviam o emprego de batalhões ou formações maiores em operações de armas combinadas.

Em mais de 20 anos de guerra no Afeganistão, nenhuma posição de pelotão foi perdida em combate. Os níveis de baixas eram extraordinariamente baixos, mesmo para os padrões da Guerra do Vietnã, e o atendimento médico foi rápido e abrangente. Finalmente, o combate era mortal apenas no nível do solo; aeronaves operavam em grande parte com impunidade fora do alcance das limitadas defesas aéreas adversárias. As perdas de aviação ocorreram em operações de baixa altitude e quase exclusivamente em helicópteros.

A guerra na Ucrânia demonstrou claramente os altos custos humanos da guerra em larga escala e de alta intensidade. As baixas russas no rio Siverskyi Donets e em outras batalhas mostram que estas são guerras em que companhia, batalhão e formações ainda maiores podem ser aniquiladas em um piscar de olhos, resultando em um grande número de soldados mortos em ação e feridos, bem como perdas significativas de material.

Consequentemente, na Ucrânia, estamos vendo o retorno do imperativo de preservação da força, em vez de proteção da força. Atualmente, isso está além da consciência dos militares ocidentais e da capacidade atual de atendimento a baixas de combate.

Mudar a mentalidade de “proteção da força” para “preservação da força” beira a heresia na cultura militar ocidental atual. Na Ucrânia, a Rússia está aprendendo a necessidade de preservação da força da maneira mais difícil – no implacável cadinho do combate. Uma pergunta razoável é se os governos ocidentais se prepararam ou não, muito menos seus cidadãos, para um conflito que poderia resultar em milhares de mortes e muito mais baixas em apenas algumas semanas. A conta do açougueiro despertaria a paixão das pessoas descritas na trindade do livro Da Guerra, de Carl von Clausewitz, mesmo em países com militares voluntários? Esse nível de baixas poderia desafiar, se não desequilibrar, a política?

Captura de águia de um regimento francês pela cavalaria da guarda russa em Austerlitz, por Bogdan Willewalde (1884).

O fato dos russos estarem reconstituindo unidades de novas tropas e remanescentes de unidades dizimadas em combate é a realidade do combate prolongado e de alta intensidade. Nossa própria história da Segunda Guerra Mundial mostra o custo potencial da guerra entre pares. A 1ª Divisão de Infantaria, em 443 dias de combate total no Norte da África, Sicília e Europa, sofreu 20.659 baixas. Este número é maior do que a força autorizada de 15.000 para uma divisão de infantaria americana na Segunda Guerra Mundial.

É importante ressaltar que esses níveis de baixas na guerra da Ucrânia também questionam a capacidade dos exércitos ocidentais de manterem a força de combate adequada em outras guerras que não sejam curtas e com baixas modestas. Muito está sendo feito sobre os russos confiarem em reservas mobilizadas às pressas para substituir as perdas. Ironicamente, como tem sido demonstrado desde as Guerras Napoleônicas, o levée en masse é um requisito para a guerra estatal prolongada neste nível. Os russos e os ucranianos têm sistemas para recrutar seus cidadãos; a prática foi abandonada, juntamente com sua infraestrutura de apoio, na maioria dos países ocidentais. Talvez este seja um caso de preparação prudente, em vez de um ato de desespero?

Esta guerra é a mesma, mas diferente


Enquanto muitos aspectos da guerra na Ucrânia ecoam as grandes guerras passadas, como a Segunda Guerra Mundial e, em menor grau, a Guerra da Coréia, existem várias novas dimensões. Uma em particular provavelmente explica o desastre da travessia do rio Siverskyi Donets: a vigilância onipresente do campo de batalha. Os ucranianos relataram que descobriram a operação de travessia russa por meio de reconhecimento aéreo. As fontes potenciais dessas informações são muito mais diversas e numerosas agora do que nos conflitos mais recentes. Elas incluem uma grande variedade de drones, imagens de satélite disponíveis comercialmente, inteligência de fontes ocidentais e outros meios.

Essa nova realidade significa essencialmente que não há lugar para uma formação relativamente grande se esconder. A surpresa, particularmente em um número limitado de pontos de travessia em um rio, pode não ser possível. Assim, esses tipos de operações de engano físico também podem ser inúteis. Finalmente, dada a sofisticação de muitos sensores, as cortinas de fumaça podem ser menos úteis do que no passado.

Call of Duty 4: Modern Warfare,
Missão 8: Death From Above


Essa nova realidade torna aqueles que criticam os russos não apenas errados, mas perigosos. Eles estão apegados a uma doutrina que pode estar completamente desatualizada no ambiente operacional atual. O fato de persistirem na visão de que a incompetência russa se deve principalmente a soldados destreinados e mal motivados, liderados por líderes corruptos e incompetentes, lhes dá uma resposta confortável que não invalida seus conhecimentos ou práticas atuais.

Compreensivelmente, os especialistas militares vêem a guerra através das lentes de suas próprias experiências: suas guerras. Como a guerra na Ucrânia está além de sua experiência direta, muitos observadores americanos contam com analogias com o que conhecem, como a Operação Tempestade do Deserto ou a fase inicial da Operação Liberdade do Iraque. Seus pontos de vista são justamente procurados, dada a escassez de conhecimento sobre operações militares entre a maioria dos formuladores de políticas civis e a população em geral. Assim, prevalece a visão deles de que o fracasso russo está na execução, não na doutrina.

Esses especialistas também oferecem conclusões reconfortantes: os mocinhos, que se parecem conosco, estão vencendo os bandidos, com nossa ajuda. É uma guerra justa. Nós nos sairíamos muito bem. Essas também são conclusões perigosas, de duas perspectivas.

Primeiro, elas validam as abordagens atuais dos EUA sem olhar além das explicações de primeira ordem para as inadequações russas de modo a aprender com elas. Na linguagem de como os militares americanos analisam as coisas – doutrina, organização, treinamento, material, liderança, pessoas, instalações e política – os militares russos são semelhantes na maioria dessas áreas aos militares americanos com duas exceções gritantes – suas deficiências óbvias na liderança e pessoal. Isso mostra a validade de nossa doutrina, organizações, treinamento e material – tanto disponíveis quanto desenvolvidos para competição e conflito potencial com a China e a Rússia. Não há necessidade de olhar por trás dessas portas se o verdadeiro problema são pessoas e líderes.

Não é?

Pode ser verdade que os russos não tenham um exército profissional totalmente voluntário, um forte corpo de suboficiais ou líderes orientados para o Comando de Missão que tomem a iniciativa. Se este último ponto é realmente verdadeiro nas forças armadas americanas – dada a evidência de aversão ao risco no Afeganistão e no Iraque – acredita-se fortemente que seja assim dentro da instituição. Há, no entanto, aqueles que duvidam. Nas palavras do então chefe do Estado-Maior do Exército, General Mark Milley: “Acho que somos excessivamente centralizados, excessivamente burocráticos e excessivamente avessos ao risco, o que é o oposto do que precisaremos em qualquer tipo de guerra”.

Ação das Pequenas Unidades Alemãs na Campanha da Rússia.
Publicação do Exército dos Estados Unidos da América.

O Exército dos EUA nas décadas de 1970 e 1980 olhou para a Wehrmacht da Segunda Guerra Mundial em busca de lições sobre como combater os soviéticos em menor número e vencer. Afinal, os alemães lutaram de fato contra o Exército Vermelho. Ex-oficiais nazistas, como o General Hermann Balck e o General Friedrich von Mellenthin, explicaram seu sistema e sua importância durante conferências e reuniões com oficiais e oficiais dos EUA. Versões americanizadas das práticas de educação militar profissional alemã, profissionalismo dos oficiais e incentivo à iniciativa subordinada por meio do Auftragstaktik, que se tornou o comando da missão americano, foram adotadas no Exército dos EUA como melhores práticas. Mas devemos lembrar que o mesmo tipo de Exército Vermelho destruiu a alardeada Wehrmacht nazista durante a Segunda Guerra Mundial em uma longa e desgastante guerra de desgaste, supostamente sofrendo da liderança centralizada semelhante e das doenças dos soldados treinados às pressas como hoje.

Além disso, uma história revisionista, não muito diferente da narrativa da Causa Perdida sobre a derrota dos Confederados na Guerra Civil dos EUA, foi vendida pelos alemães. Robert Citino escreveu que eles

"descreveram o exército soviético como uma horda sem rosto e irracional, com os oficiais aterrorizando seus homens em obediência e o ditador Josef Stalin aterrorizando os oficiais. Não havia sutileza. Sua ideia da arte militar era esmagar tudo em seu caminho através de números, força bruta e tamanho absoluto."

Assim, tal como o Exército da União, “‘a quantidade triunfou sobre a qualidade’. O melhor exército perdeu, em outras palavras, e a força de elite desapareceu sob os números superiores da manada'".

Essas percepções moldaram as visões dos EUA sobre as forças russas durante a Guerra Fria e, apesar de serem refutadas na década de 1990, ecoam nas avaliações atuais. Como o coronel reformado do Exército e diplomata, Joel Rayburn, disse em uma entrevista ao New Yorker: “Um exército ruim recebeu ordens para fazer algo estúpido”. Embora os oficiais agora sejam promovidos com base no clientelismo, isso não é tão diferente da exigência de confiabilidade política nas forças armadas russas na Segunda Guerra Mundial. O que deveria ter sido considerado então e agora é por que as forças alemãs foram esmagadas por um adversário tão inferior? Talvez pessoas suficientes, material e uma vontade indomável de lutar apesar das privações e contratempos sejam exatamente o que é realmente necessário para resistir e vencer na guerra entre pares. Ironicamente, esses são os traços exibidos pelos próprias forças armadas americanas na Segunda Guerra Mundial, pois fizeram sua parte para derrotar as potências do Eixo. Estes são também os traços russos sobre os quais Tolstoi escreveu, que superaram um dos exércitos mais célebres da história: O Grande Armée de Napoleão. Eles podem explicar o apoio contínuo do povo russo à guerra, apesar da descrença ocidental, que Putin enquadrou como uma guerra do Ocidente contra a Mãe Rússia e rotulou os ucranianos como “nazistas” para evocar ainda mais a Grande Guerra Patriótica.

Isso leva ao segundo perigo: arrogância. A implicação tácita da análise ocidental é que nos sairíamos melhor do que os russos porque somos melhores do que eles.

Somos mesmo?


As palavras do General James McConville, quando assumiu o cargo de chefe do Estado-Maior do Exército em agosto de 2019, não são apenas pontos de discussão, são profundamente acreditadas no Exército dos EUA e nos outros serviços sobre si mesmos: “Nosso Exército – Regular, Guarda Nacional e Reserva – é a força terrestre mais bem treinada, melhor equipada e melhor liderada que já entrou em campanha”. McConville também deu a principal razão pela qual isso é verdade: “As pessoas são sempre minha prioridade número 1: as pessoas do nosso Exército são nossa maior força e nosso sistema de armas mais importante”. Dadas essas convicções profundamente arraigadas, não é de surpreender que os militares que não compartilham as abordagens dos EUA fiquem aquém no campo de batalha.

Essas opiniões são perigosas nas avaliações ocidentais sobre a forças armadas ucranianas. Atualmente, a narrativa predominante é que a vantagem ucraniana é que eles evoluíram para um exército ocidental moderno, treinado por mais de uma década em métodos ocidentais. Eles são profissionais. Portanto, eles prevalecerão. Assim como nós faríamos. Novamente, nada a aprender aqui.

No entanto, a evidência real não é clara; as avaliações das proezas dos militares da Ucrânia podem ser ilusórias e arrogância. O título de um artigo do Wall Street Journal resume essa visão, dizendo que tudo se resumia a “anos de treinamento da OTAN”.

Deve-se lembrar que as iniciativas ocidentais para reformar as forças armadas ucranianas não começaram até depois da invasão russa de 2014. Embora tenham progredido, muitos dos oficiais superiores foram criados no sistema soviético. Quando visitei a Universidade de Defesa Nacional em Kiev, em 1996, em uma visita de intercâmbio como diretor de assuntos acadêmicos da nossa Universidade Nacional, todos os líderes seniores eram ex-oficiais soviéticos. Alguns também eram cidadãos russos que optaram por ficar na Ucrânia porque não havia nada na Rússia para onde voltar após o colapso da União Soviética.


Consequentemente, uma burocracia profundamente enraizada no estilo soviético e um modelo de treinamento permearam os militares ucranianos. Assim, sua reabilitação é fundamentalmente um esforço de reconstrução institucional e mudança de cultura de baixo para cima que levará tempo. Em particular, as iniciativas para criar um corpo de oficiais e suboficiais baseados no mérito e proficientes são esforços de décadas que estão apenas se enraizando nos níveis inferior e médio das forças armadas ucranianas. Consequentemente, muitas das táticas acima da pequena unidade parecem mais russas do que americanas, assim como a maioria dos equipamentos.

Uma indicação de que há alguma maneira de ir além do treinamento da OTAN é que há poucas evidências de que os ucranianos estejam executando operações ofensivas de armas conjuntas e combinadas. Essa capacidade será importante se a transição da defesa e tentativa de operações ofensivas para restaurar o território perdido para a Rússia. Além disso, a Ucrânia também parece estar cedendo terreno no Donbas para um avanço russo lento e de esmerilhamento.


Consequentemente, a análise da guerra na Ucrânia precisa abordar outra questão não formulada: e se essa visão de que pessoas e líderes de qualidade são o ingrediente mais importante na guerra moderna estiver errada? E se Stalin estivesse certo de que a quantidade tem uma qualidade própria? Se for esse o caso, então os ucranianos podem precisar de uma assistência muito maior se quiserem sobreviver a uma guerra de desgaste ao estilo russo.

Além disso, à medida que os Estados Unidos planejam como competirão e potencialmente combaterão a China e a Rússia no futuro, a abordagem deve ser caracterizada pela humildade e um desejo intenso de desafiar suposições, conceitos e capacidades existentes, em vez de validar as abordagens atuais.

Como aconteceu com a Rússia, pode acontecer conosco, e precisamos entender completamente o que “isso” é.

David E. Johnson, Ph.D., é um coronel reformado do Exército. Ele é pesquisador principal da RAND Corporation, sem fins lucrativos e apartidária, e acadêmico adjunto do Modern War Institute em West Point. De 2012 a 2014 fundou e dirigiu o Chefe do Estado-Maior do Grupo de Estudos Estratégicos do Exército para o Gen. Raymond T. Odierno.

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