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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O Afeganistão e a grande falha na doutrina de contra-insurgência dos EUA


Por Michael Shurkin, The Hill, 25 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de agosto de 2021.

Enquanto lutamos para entender o fracasso americano no Afeganistão, um elemento importante que deve ser incluído na discussão é uma falha fundamental no cerne da doutrina da contra-insurgência (counterinsurgencyCOIN) americana. Essa doutrina tem raízes históricas que remontam às Guerras Indígenas e às Filipinas. Mas em sua versão contemporânea, a doutrina COIN americana é quase sinônimo do Manual de Campanha 3-24 (Field Manual 3-24, FM 3-24) do Exército dos EUA, publicado originalmente em 2006 sob o imprimatur do General David Petraeus. Petraeus, por sua vez, inspirou-se fortemente na doutrina COIN francesa, que por sua vez tem raízes nas aventuras coloniais do fin-de-siècle da França, mas alcançou sua expressão máxima na Guerra da Argélia (1954-1962). E é precisamente aí que reside o problema.

A inspiração direta de Petraeus foi o tenente-coronel francês David Galula (1919-1967), que não foi o único oficial francês a desenvolver a doutrina COIN na década de 1950 e nem mesmo necessariamente o melhor, mas foi o único que escreveu em inglês. Galula escreveu de forma convincente sobre a necessidade de fornecer segurança às populações locais e minimizar as operações de combate em favor dos esforços de corações e mentes.

Contre-Insurrection: Théorie et pratique.
David Galula.

Galula fez com que seus homens se integrassem nas comunidades locais; ele conquistou a confiança dos aldeões e conseguiu mobilizar os moradores locais para fornecer segurança e isolar os insurgentes. Ele não lutou muito e criticou o que os americanos mais tarde chamariam de operações "cinéticas" como improváveis de alcançarem resultados significativos. Há uma linha direta de suas ideias com as de Petraeus e, mais tarde, com a direção que o General Stanley McChrystal deu enquanto estava no comando no Afeganistão.

As ideias de Galula não são sem mérito, e há muito que os franceses fizeram na Argélia que podem ser aplicáveis em outros lugares. Mas Petraeus e outros entusiastas americanos nos anos 2000 parecem ter esquecido inteiramente o contexto histórico em que Galula escreveu e a diferença fundamental entre então e agora: Galula escreveu em um contexto colonial. Estamos operando em um contexto pós-colonial. O objetivo de Galula era perpetuar o domínio colonial. Ele, como oficial francês, estava lutando em nome da França para fortalecer a legitimidade da França. Em contraste, nós lutamos em nome de outra pessoa para fortalecer a legitimidade de outra pessoa.

Na sua forma mais concreta, a diferença entre as configurações coloniais e pós-coloniais resume-se ao que se pode oferecer à população, que, de acordo com o FM 3-24, é o verdadeiro “centro de gravidade” em uma insurgência. Galula enfatiza em seus escritos que uma parte fundamental do argumento do regime colonial para a população é que o poder colonial não vai a lugar nenhum. Portanto, alinhar-se com o poder colonial e apoiá-lo tácita ou ativamente é uma escolha razoável. Pode-se confiar no que sempre estará lá.


Esse argumento sem dúvida ajudou a França a recrutar um grande número de locais para lutar sob as cores francesas. Em contraste, a potência estrangeira pós-colonial que divulga sua intenção de partir no momento em que chega pela primeira vez enfrenta uma situação muito mais difícil para reunir e manter apoio.

Ninguém realmente descobriu como uma intervenção militar de terceiros reforça a legitimidade de um Estado-cliente em um contexto pós-colonial. O FM 3-24 não tem respostas. Curiosamente, a doutrina francesa atual, atualizada em 2013, pelo menos reconhece explicitamente que tudo mudou e destaca os limites do que uma força interventora pós-colonial pode fazer. Em essência: a liderança política existente no estado cliente tem que reescrever o contrato social, cujo fracasso é o que fez a insurgência prosperar. Mas não é o lugar da força interveniente escrevê-lo, nem é o seu lugar impor uma ordem estranha.

Tudo o que a força interveniente pode fazer é apoiar a estrutura política indígena existente, enquanto a estrutura política indígena existente orienta “e até mesmo restringe” a força de intervenção. Esta abordagem exige necessariamente grande modéstia por parte do país interveniente, uma vez que atribui a responsabilidade pelo sucesso em grande parte à nação anfitriã. Isso também significa que há uma tensão quase inevitável entre a agenda da força interveniente e seu cliente, e entre sua linha do tempo e o próprio ritmo do anfitrião.

A distinção entre colonial e pós-colonial e a modéstia exigida no último contexto lança luz considerável sobre o que deu errado para os EUA no Afeganistão. Sem a distinção em mente, nosso governo e militares foram vítimas de níveis inadequados de ambição e prestaram atenção insuficiente aos pontos fortes e fracos de seus parceiros afegãos, que estavam no assento do motorista.

Significava também que tudo o que acontecesse estaria de acordo com suas prioridades, e em seu ritmo, no qual não tínhamos motivos para esperar que corresponderia à nossa necessidade incessante de alcançar o sucesso antes do final de cada período de atuação, desdobramento ou mandato presidencial.

Michael Shurkin é um ex-oficial da CIA e cientista político sênior da RAND.
Ele é diretor de programas globais da 14 North Strategies e fundador da Shurbros Global Strategies.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:




sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

David Galula e a teoria da contra-insurgência: um livro para ler

Pelo General François Chauvancy, Theatrum Belli, 11 de agosto de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de fevereiro de 2021.

Combina a análise do contexto histórico da contra-insurgência, as reflexões sobre a insurgência e a contra-insurgência de ontem e hoje sem descartar a luta contra o islamismo radical, a grave criminalidade que ameaça as democracias pela desestruturação do Estado que ela organiza, enfim a contratação de um oficial francês por assimilação, assunto tão interessante no contexto atual de nossa sociedade.

O apoio dado pelo General americano Petraeus ao conhecimento do pensamento de David Galula está presente em grande parte por meio desta obra (Cf. também minhas postagens de 21 de outubro de 2012, "Os novos centuriões: um documento sobre o General Petraeus" e do 13 Setembro de 2011 “Quais lições militares dez anos após 11 de setembro?”).

O autor, Driss Ghali, marroquino, com muitos diplomas franceses, residente no Brasil - o que é uma pena porque não poderá apresentar suas reflexões diante de nossos tomadores de decisão militares e políticos - traz uma visão sintética da contra-insurgência percebida tanto por David Galula como também pela ligação que o autor estabelece entre a Guerra da Argélia e os conflitos contemporâneos. Lutar contra uma rebelião ou insurreição tornou-se o destino comum dos combates militares de nossas democracias ocidentais ontem na Ásia, hoje no Oriente Médio e na África.

Publicado pela Éditions Complicités em maio de 2019, este livro analisa o pensamento de David Galula, um esquecido teórico militar francês e então (um tanto) destacado por nossos conflitos contemporâneos, primeiro no Afeganistão e pelo general americano Petraeus.

Reflexões sobre o desenvolvimento do pensamento militar e sua disseminação

O autor nos leva a uma viagem pela história recente da França, com uma visão equilibrada das estratégias de cada um, a meu ver e valorizando com razão a assimilação que tanto trouxe à França. Esta obra fascinante revela a vida pouco conhecida de um judeu nascido na Tunísia em 1919, que se tornou francês por sua família em 1924, um oficial de Saint-Cyr em 1938 que não negou a França em 1941 apesar dela tê-lo rejeitado* (mas pelo Exército que o reintegrou em 1943), atípico, com uma rica carreira operacional.

*Nota do Tradutor: Galula graduou-se na École spéciale militaire de Saint-Cyr com a promoção número 126 de 1939-1940. Em 1941, foi expulso da oficialidade francesa, de acordo com o Estatuto dos Judeus do Estado de Vichy. Depois de viver como civil no Norte da África, ingressou no I Corpo do Exército de Libertação e serviu durante a libertação da França, sendo ferido durante a invasão da ilha de Elba em junho de 1944.

Este jovem oficial, por um tempo um espião a serviço da França quando foi removido do Exército, foi designado para o adido militar francês em Pequim de 1945 a 1947. Ele aprendeu mandarim lá (embora nunca tenha aprendido árabe), e foi feito prisioneiro pelos comunistas chineses. Lá ele descobriu a teoria da guerra revolucionária de Mao. Não será menos ferozmente anticomunista. Após uma breve estada na Europa, foi nomeado adido militar em Hong Kong de 1949 a 1956, antes de se juntar voluntariamente à Argélia em 1956 para comandar uma companhia do 45º Batalhão de Infantaria Colonial.

Seus escritos não apareceram até que ele ingressou na vida civil nos Estados Unidos e por seu encontro com Henry Kissinger em 1964. No entanto, notemos, como para outros antes e depois dele, as reflexões que saem da estrutura tradicional não fazem escola a menos sejam apoiadas ao longo do tempo por uma autoridade que impõe o desenvolvimento desse pensamento. Afinal, o General Poirier, na época tenente-coronel, não poderia contribuir para o desenvolvimento da estratégia de dissuasão nuclear se não fosse por que De Gaulle o protegia da alta hierarquia militar. O desenvolvimento de um pensamento original está sujeito à permanência desse apoio e isso é cada vez menos o caso, dado o relativamente pouco tempo gasto no cargo, particularmente com oficiais militares.

Além disso, como Driss Ghali nos lembra, a burocracia, ou seja, o funcionamento hierárquico, é hostil a qualquer inovação que possa perturbar seu funcionamento lubrificado e bem estabelecido e, portanto, ao seu questionamento, primeiro intelectual, depois tecnológico e organizacional. O exército nisso não é diferente de outras organizações. Só a derrota pode forçá-lo a mudar.

D. Galula conseguiu, no entanto, interessar parcialmente os seus líderes, comunicando os seus pensamentos. Mas ainda hoje é possível a um capitão ou comandante enviar um briefing sobre um problema, diretamente a um chefe do Estado-Maior das Forças Armadas ou a um chefe do Estado-Maior do Exército? Fora da hierarquia? Não tenho certeza a princípio porque a humildade inerente a ser um oficial é um lembrete de que o conhecimento geralmente é adquirido pelo posto. No entanto, Galula finalmente teve a sorte de ser empregado fora da hierarquia e acima do nível normal de responsabilidade do seu posto. Então, a irritação potencial de elementos da cadeia hierárquica, sempre existirá. Resta a publicação de livros ou artigos em revistas especializadas, mas é eficaz? Apenas o "zumbido" pode chamar a atenção do leitor hoje!

As reflexões suscitadas por este trabalho

De que adianta uma insurgência senão a retirada, por propaganda e terror, de todo apoio a um governo legal, tornando-o ilegítimo e indefensável? Quando nem a população, nem a administração, incluindo sua polícia, não querem mais proteger as instituições, o Estado desmorona. Não é isso que ameaça a França hoje, é claro, com diferentes "insurgentes" e com vários objetivos, incluindo extrema esquerda, extrema direita, islâmicos, irmãos muçulmanos, até coletes amarelos...

Além disso, falta um termo para qualificar os inimigos da República para não colocá-los em uma denominação que os valorize. A noção de "rebelde contra a República" poderia ser de seu interesse. Obriga-nos a definir o que a comunidade nacional pode ou não aceitar em nome da sua necessária coesão. Um "rebelde" é, por definição, oposto à autoridade que deve ser claramente estabelecida e afirmada. “Um rebelde contra a República” é aquele que se opõe ao nosso sistema político, às nossas instituições, à nossa sociedade, senão à nossa cultura, às nossas tradições, à nossa história. Neste caso, o cursor do que é aceitável em uma democracia se desloca para mais rigor e autoridade do que para liberdades sem contrapartida, causando caos, nosso enfraquecimento, e a falta de proteção dos cidadãos em muitas áreas.

Os conflitos de ontem e de hoje evocados com equilíbrio neste livro levam naturalmente a algumas conclusões. Em relação ao conflito argelino que o exército francês venceu (Mas o que fazer com uma vitória militar se não conseguirmos concluir a paz? Problema ainda não resolvido), entendo melhor a atitude anti-francesa da FLN no poder hoje. A FLN perdeu sua guerra militar e seu exército, no cerne do poder, não pode admitir esse estado de coisas. 50 anos depois, é óbvio o fracasso político de um governo que capitalizou essa farsa de uma vitória inglória. Na verdade, o reconhecimento de qualquer arrependimento francês significaria o de uma vitória militar da FLN que nunca aconteceu e que "legitimaria" o papel de predadores destes "combatentes pela independência".

O território nacional já não está imune à ação de movimentos que visam a desestabilização do Estado, possivelmente por ações armadas e terroristas, sejam esses movimentos com fins políticos como os extremistas essencialmente de esquerda, os mais determinados e experientes, com fins religiosos com o Islã político dos irmãos muçulmanos dando a ilusão de perseguir objetivos diferentes do islamismo radical do Daesh ou da Al-Qaeda, possivelmente para fins criminosos ou mafiosos. O exemplo da América do Sul, seja no Brasil ou no México, deve nos fazer refletir sobre esse peso do crime. Proteger e capacitar os cidadãos a viverem da maneira mais decente possível continua sendo uma missão fundamental que D. Galula e seus sucessores, para quem a compreendeu, nos ensinam (Cf. Minha postagem de 27 de abril de 2014, “Os comandos aéreos e a contra-insurgência na Argélia” e o papel de cerca de 750 SAS* que ajudaram o desenvolvimento da Argélia rural e de mais de um milhão de argelinos). Quando a administração é deficiente, os militares podem cumprir parte dessa função.

*NT: As sections administratives spécialisées (SAS) foram unidades militares francesas responsáveis por "pacificar" setores, promovendo a "Argélia Francesa" durante a Guerra da Argélia, servindo de assistência educacional, social e médica às populações rurais muçulmanas para conquistá-las ideologicamente para a causa da França.

No entanto, pertencer a uma causa é sem dúvida a parte mais importante da guerra de contra-insurgência. Não é o meio mais importante, mas sim homens motivados que farão a diferença. A guerra de informação está no centro das ações de contra-insurgência ontem e hoje. O que conta em particular é essa história comum que faz as pessoas concordarem, mas também combate os equívocos. De acordo com a mídia dominante e o discurso político, qualquer opinião é respeitável em nome dos valores democráticos. O tempo de escolha, entretanto, é agora necessário para um forte compromisso pelo menos dentro do Estado. Isso deve ser eficaz e inspirar confiança nos cidadãos. Todo mundo tem seu lugar. No entanto, os últimos acontecimentos na França mostraram uma desconfiança crescente e agressiva contra o Estado e dúvidas no seio das administrações.

No entanto, pensar na contra-insurgência e seus modos de ação não significa abandonar as forças armadas de alta intensidade. O inimigo convencional ainda existe, certamente não em nossas fronteiras, mas futuros engajamentos como parte de uma coalizão contra as novas potências mundiais devem ser considerados. Além disso, o combate de alta intensidade força a reflexão e o desenvolvimento de novos equipamentos, para administrar a complexidade do mundo moderno ao contrário da contra-insurgência que é uma guerra entre populações, com uma abordagem intercultural, social, econômica e informacional. A alta tecnologia proporcionada pelos armamentos convencionais permite a destruição do inimigo inclusive na contra-insurgência certamente dando a imagem do uso de um martelo para esmagar uma mosca, portanto a um custo significativo, mas com baixas perdas para nós.

Para concluir

Por fim, seja em território nacional ou no exterior, “proteger a população” garante a vitória sobre qualquer rebelião ou eventual insurreição contra a República, ameaças hoje representadas por desvios populistas ou extremistas, políticos ou religiosos. Para Galula, ontem como hoje, “Protegemos primeiro, seduzimos depois”. Não se trata de conquistar corações e mentes primeiro, mas criar as condições para que isso seja possível. Isso começa naturalmente com uma afirmação real da autoridade do Estado e de seus representantes.

O General François Chauvancy é Saint-cyrien, brevetado pela Escola de Guerra, doutor em ciências da informação e da comunicação (CELSA), titular do terceiro ciclo de relações internacionais pela faculdade de Direito de Sceaux, General (2S) François CHAUVANCY serviu no Exército nas unidades blindadas das tropas navais. Ele deixou o serviço ativo em 2014. Ele é um especialista em questões de doutrina sobre o emprego de forças, em funções relacionadas ao treinamento de exércitos estrangeiros, contra-insurgência e operações de informação. Nessa qualidade, foi o responsável nacional da França para a OTAN nos grupos de trabalho em comunicação estratégica, operações de informação e operações psicológicas de 2005 a 2012.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular: Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.

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