domingo, 22 de novembro de 2020

Guerras e terrorismo: não se deve errar o alvo

Um soldado francês da Operação Barkhane, em 2016. (Pascal Guyot/ AFP)

Escrito em conjunto, BibliObs, 21 de novembro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 22 de novembro de 2020.

EM RESPOSTA À TRIBUNA: A França está sob ataque pelo que é, não pelo que faz, explica aqui um coletivo de sete pesquisadores, em resposta à coluna que publicamos na semana passada.

Por afetar a vida e a morte de nossos concidadãos, o terrorismo exige um debate que diga respeito à toda a comunidade nacional. É para esse debate que o fórum coletivo que surgiu no site "L’Obs" em 14 de novembro tenta contribuir, intitulado "Guerras e terrorismo: sair da negação". Os autores [da Tribuna] defendem uma tese no mínimo simplista: franceses, europeus, ocidentais, seriam os grandes responsáveis pelo que lhes acontece, pois são suas intervenções militares que provocariam, no Oriente Médio, reações violentas, radicalização e enfim atos de terrorismo.

É surpreendente que os autores, em sua maioria não-especialistas no assunto, afirmem certezas tão rústicas em um campo tão contestado cientificamente. Porque, se o debate é plenamente legítimo, também exige ser informado, racional e ansioso por restaurar a complexidade das situações políticas.

Controle de planejamento de ataques

Vamos primeiro acabar com a falsa equivalência moral proposta pelos autores entre assassinatos deliberados de civis de um lado, erros ou "danos colaterais" dos bombardeios, do outro: é tão difundida quanto falsa. Esses danos às vezes são significativos, e só podemos lamentar que qualquer guerra seja acompanhada por vítimas civis.

Em alguns casos, como a Rússia está fazendo na Síria com o apoio do regime de Bashar al-Assad, as populações são alvejadas deliberadamente e cidades inteiras são esmagadas sob tapetes de bombas, na vã esperança de quebrar sua resistência. Se existe "terrorismo aéreo", como parecem pensar os autores da tribuna, é desse lado.

 Mas não é isso que a França está fazendo. Apenas os combatentes e aqueles que participam diretamente das hostilidades são visados. Como tal, o processo de planejamento de ataques é monitorado e sujeito a uma avaliação precisa do risco de danos às populações, hospitais, edifícios religiosos, etc. Nesse sentido, a vantagem militar esperada de um bombardeio é estritamente pesada em relação às perdas civis potenciais que resultariam, conforme prescrito pelo Direito Internacional Humanitário. Se, apesar dessas precauções, crimes de guerra fossem cometidos, a França não deixaria de processar os perpetradores. Caso contrário, a responsabilidade criminal de soldados e oficiais franceses poderia ser levada ao Tribunal Penal Internacional - uma jurisdição que a França, ao contrário de outros, aceitou. Portanto, seremos perdoados se lembrarmos o óbvio: usar a força em um conflito armado, que é complexo por definição, não é ser bombeiro nem incendiário piromaníaco, muito menos os dois.

Vamos então à tese principal da tribuna.

Atingido, mesmo sem intervenção nos países em questão

Historicamente, quando a França foi atingida pelo terrorismo de origem do Oriente Médio, geralmente não houve intervenção nos países em questão: pensamos no terrorismo palestino nos anos 1970, iraniano nos anos 1980, argelino nos anos 1990... O mesmo vale para vários projetos frustrados, como o que visava o mercado de Natal em Estrasburgo em 2000. Para Mohamed Merah, foi a ocupação israelense que "justificou" o assassinato de crianças judias (2012). Quanto aos ataques a "Charlie Hebdo" e o Hyper Cacher (2015), eles nada tiveram a ver com nossos engajamentos militares. O padre Hamel (2016), Xavier Jugelé (2017), as vítimas da estação ferroviária Saint-Charles (2017), ou Samuel Paty (2020), também não foram mortos em nome de uma suposta vingança por Operações exteriores francesas.

O mesmo vale para nossos vizinhos. Os atentados cometidos na Alemanha (2016, 2020) e nos Países Baixos [Holanda] (2018, 2019) seriam devido ao intervencionismo em todos os azimutes de Berlim e de Haia? Os de Estocolmo (2017), Helsinque (2017) e Viena (2020) teriam sido causados pelos bombardeios maciços dos exércitos sueco, finlandês e austríaco? É difícil reconhecer em nossos pacíficos vizinhos os “países cruzados” estigmatizados pelos jihadistas... São, por outro lado, democracias liberais, às vezes atacadas exatamente por isso, por seus valores, conforme ilustrado em particular pelo assassinato de Theo van Gogh em Haia em 2004, depois de dirigir um curta-metragem denunciando a submissão das mulheres no Islã. Além disso, muitas tentativas - em outras palavras, ataques fracassados - têm como alvo Estados que raramente intervêm fora de suas fronteiras, exceto para operações de manutenção da paz; pensamos na Irlanda, Suíça, Finlândia...

Finalmente, devemos novamente e sempre lembrar que mais de 80% das vítimas do jihadismo são muçulmanos porque a grande maioria dos ataques ocorre em países onde o Islã é majoritário. Estas populações ficariam tranquilas ao saber que o risco de terrorismo está ligado ao intervencionismo militar do seu governo... Infelizmente para elas, não é o caso, como compreenderam às suas custas as famílias dos 50 civis moçambicanos, principalmente adolescentes, que foram decapitados e esquartejados no início deste mês (artigo).

Na outra direção, a equação é igualmente duvidosa.

Reversão de causalidade

É claro que podemos discutir a eficácia das intervenções militares nas quais a França participa, mas no estado atual do nosso conhecimento científico, não há evidências tangíveis de que o uso da força armada em um teatro externo gere ou exacerbe o terrorismo jihadista, que recordamos é um fenômeno globalizado, do qual a França, infelizmente, não é a única vítima. Em geral, esses processos de entrada na violência terrorista são por definição complexos: torná-los uma reação apaixonada à dominação das potências ocidentais constitui, na melhor das hipóteses, uma forma de ingenuidade, na pior, uma forma de condescendência. Esses movimentos não esperaram que as intervenções francesas se organizassem e agissem determinando sua própria agenda.

Fazer dessas intervenções uma das principais causas do terrorismo é reverter a causalidade.

Não teria havido nenhuma intervenção significativa do Ocidente no Afeganistão ou na Síria sem a ascensão da Al-Qaeda e do Daesh. A principal operação estrangeira atualmente liderada pela França, apoiada por vários outros países, incluindo muitos atores regionais, está ajudando a proteger uma população 90% sunita dos abusos de grupos terroristas armados. A intervenção no Mali, Estado-membro da Organização da Conferência Islâmica, foi iniciada a pedido do seu governo, em plena conformidade com o direito internacional. Não apenas é duvidoso que as intervenções militares irão gerar um "novo" terrorismo, mas, neste caso, elas pretendem acabar com as franquias islâmicas cujos crimes atingem principalmente as comunidades muçulmanas locais.

Também é errar sobre as condições para o desenvolvimento de redes jihadistas.

O nascimento dos principais movimentos jihadistas como Al-Qaeda e Daesh foi principalmente devido à dinâmica regional e conflitos dentro do Islã político. Assim, a Al-Qaeda não é o produto inevitável das intervenções ocidentais: é a presença americana na Arábia Saudita que era intolerável para Osama bin Laden, muito mais do que as intervenções militares dos Estados Unidos. O mesmo vale para o Daesh. É claro que existe um nexo causal entre a invasão do Iraque - que, convém lembrar, a França se opôs - e seu surgimento, mas sua afirmação no cenário internacional não foi escrita. Porque sem a dissolução do exército iraquiano e do Partido Baath, e sem os dez anos de governo sectário do primeiro-ministro xiita Nouri Al-Maliki, o crescimento surpreendente desta organização não teria ocorrido. E uma das principais fontes de terroristas na Síria foi Bashar al-Assad, que não hesitou em libertar milhares de jihadistas das prisões de Damasco para atiçar a guerra civil. Lembremos, além disso, que os regimes autoritários da região não estão alheios ao surgimento do terrorismo dentro deles: na ausência de qualquer fôlego democrático, favorecem o surgimento das formas mais radicais de protesto e facilitam a passagem à violência.

Reivindicação de oportunidade

As ligações causais diretas entre as intervenções militares e as ações terroristas são raras, frequentemente indiretas e tênues e, na maioria das vezes, oportunistas.

Os ataques justificados por campanhas militares ocidentais - como as de Londres em 2004 ou Madrid em 2005 - são mais a exceção do que a regra. Acima de tudo, essa "justificativa" pode ser uma exigência de expediente, com a função de aumentar a divergência sobre a legitimidade de uma operação militar. Na demanda por um ataque, o discurso de "vingança" contra os "descrentes" pode de fato constituir um elemento de propaganda de grupos jihadistas com o objetivo de alimentar divisões nas sociedades democráticas.

No comunicado de imprensa reivindicando o ataque do Bataclan, tratava-se, portanto, de uma ligação com nossas ações no Iraque e na Síria, o Daesh alegando ter agido porque a França teria "se gabado (...) de atingir os muçulmanos na terra do Califado com seus aviões”. No entanto, esta foi apenas uma justificativa entre muitas. Sobretudo, ao insistir no fato de que Paris é "a capital das abominações e da perversão", que os espectadores do Bataclan estiveram em "uma festa de perversidade", que a França foi golpeada porque "ousou insultar nossos Profeta”, o comunicado de imprensa mostrou que a França foi antes de mais nada visada por seus valores, os de uma democracia liberal protegendo a liberdade de expressãoFinalmente, o Daesh estava tentando nos aprisionar em uma escolha diabólica: a de nos submeter à sua lei mortal ou, ao contrário, de provocar uma intervenção no terreno para fechar sobre nós uma "armadilha afegã".

Em outras palavras, esse discurso de "vingança" pode ser um elemento de propaganda de grupos jihadistas com o objetivo de alimentar divisões nas sociedades democráticas. É importante não cair na armadilha.

Supervisão parlamentar insuficiente, mas não inexistente

Por fim, dizer que na França, o Parlamento "só precisa ficar em silêncio" é um exagero grosseiro. A França certamente não tem a mesma tradição parlamentar de alguns de seus vizinhos e aliados, e é isso que lhe permite agir rapidamente quando necessário, em resposta ao pedido das autoridades do Mali em 2013, por exemplo. No entanto, desde a reforma constitucional de 2008, existe um procedimento de informação e acompanhamento do Parlamento sobre estas intervenções militares: o governo tem a obrigação de informar o mais tardar três dias após o início da operação e deve especificar os objetivos perseguidos. Além disso, a autorização parlamentar é necessária se a intervenção exceder quatro meses. Nos últimos doze anos, a Assembléia Nacional falou sete vezes - para não falar dos muitos relatórios parlamentares publicados sobre questões de defesa. Pode-se considerar que esse controle parlamentar é insuficiente, mas também não é inexistente.

Nosso país é um objetivo prioritário para os movimentos jihadistas porque é o lar da maior população muçulmana da Europa e porque incorpora valores republicanos e democráticos que eles odeiam. Os jihadistas são, em primeiro lugar, os inimigos do modelo liberal. A França é bem atacada pelo que é, não pelo que faz. A cessação das operações militares estrangeiras não mudaria este desejo de destruir regimes que permitiram a emancipação social, política e econômica, embora imperfeita, das sociedades ocidentais. Se o terrorismo jihadista reage a alguma coisa, é muito mais ao legado do Iluminismo do que a intervenções militares que constituem uma forma - imperfeita e insuficiente - de reduzir a ameaça.

É necessária introspecção sobre a relevância de nossas escolhas estratégicas. Todos podem fazer sua parte. Mas é importante fazer isso sem ignorar os fatos mais básicos, com lucidez e sem preconceitos motivados por vieses ideológicos.

Autores:

  • Delphine Deschaux-Dutard (mestre de conferências da Universidade de Grenoble Alpes),
  • Julian Fernandez (professor da Universidade de Paris 2),
  • Beatrice Heuser (professora da Universidade de Glasgow),
  • Jean-Vincent Holeindre (professor da universidade Paris 2),
  • Jean-Baptiste Jeangène Vilmer (diretor do Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar),
  • Jenny Raflik Grenouilleau (professora da Universidade de Nantes),
  • Bruno Tertrais (vice-diretor da Fundação para a Pesquisa Estratégica).

Bibliografia recomendada:

Estado Islâmico:
Desvendando o Exército do Terror.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

Submissão.
Michel Houellebecq.

O Mundo Muçulmano.
Peter Demant.

Leitura recomendada:


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