quinta-feira, 10 de junho de 2021

ENTREVISTA: A formação do Exército Nacional, com Frank D. McCann


Por Rodrigo GalloRevista Leituras da História, 16 de julho de 2014.

Historiador norte-americano defende que o papel das Forças Armadas brasileiras foi fundamental para a queda da Monarquia e a ascensão da República.

Hoje, o Exército brasileiro é pequeno, mas muito profissionalizado e respeitado em todo o mundo. Porém, para chegar neste nível de desenvolvimento militar, foram gastos anos de trabalho e preparação, que tiveram início antes mesmo da Proclamação da República. Essa foi uma das conclusões do historiador norte-americano Frank McCann, autor do livro Soldados da Pátria: História do Exército Brasileiro 1889-1937 (Cia. das Letras), que detalha minuciosamente um período de quase 40 anos da história bélica do País.

Segundo McCann, professor da University of New Hampshire (Estados Unidos), as Forças Armadas brasileiras tiveram uma participação essencial durante a transição do período monárquico para o republicano, pois, afinal, nenhuma organização civil teria condições de exigir o fim da coroa no Brasil exceto o próprio Exército. O povo, por exemplo, não era suficientemente forte e organizado para causar uma grande mudança na estrutura social. Além disso, muitos presidentes e ministros da época foram encontrados na carreira militar e continuaram influenciando os rumos do País por muito tempo.

Contudo, essa transformação no sistema político nacional não ocorreu de forma rápida e tranqüila. Foi um processo longo e gradativo, durante o qual houve revoltas em algumas partes do Brasil.

Logo no início das reformas políticas brasileiras, houve atritos entre o Estado e o poder eclesiástico no que diz respeito aos registros civis. Mas as brigas não ocorreram apenas no campo civil. Houve conflitos até mesmo entre o Exército e a Marinha. Segundo McCann, eram disputas de interesses, cujo pano de fundo envolvia sempre a profissionalização técnica e militar das Forças Armadas.

As revoltas, contudo, não podem ser vistas apenas de forma negativa. A Guerra de Canudos, por exemplo, contribuiu muito para o desenvolvimento da estrutura militar brasileira. O historiador norte- americano explica que o conflito foi importante para determinar mudanças fundamentais na estrutura do Exército, pois serviu para mostrar ao governo a real necessidade de investir na qualificação e profissionalização dos oficiais.

"O combate em Canudos entre as tropas legaes e os fanaticos de Antonio Conselheiro. Morte gloriosa do bravo capitão Salomão defendendo uma peça de artilharia." Legenda original do desenho de Angelo Agostini na revista Don Quixote, nº 82, 1897.

Mesmo hoje, tanto tempo depois da queda da Monarquia no Brasil, o Exército ainda segue parte das tradições daquela época, como canções de guerra e até mesmo a estrutura física de escolas e quartéis utilizados: prova de que certas características militares estão inseridas com bastante intensidade dentro da organização a ponto de resistiram por tanto tempo.

McCann ainda faz questão de ressaltar à Leituras da História que há uma diferença básica e crucial entre o Exército pós-republicano e o atual: agora, o projeto idealizado originalmente pelos chamados ‘jovens turcos’, de desvincular a organização da política e estruturá-la de forma adequada, foi definitivamente colocada em funcionamento. Esses oficiais, aliás, introduziram no País novos conceitos de estratégia militar, que haviam sido aprendidos durante o período de treinamento no exterior. De volta ao Brasil, eles fundaram a importante revista A Defesa Nacional, em que publicavam traduções de artigos bélicos alemães* para difundir detalhes técnicos, de treinamento e relativos à indústria bélica.

*Nota do Warfare: Os artigos não eram especificamente alemães, eram de todas as procedências disponíveis. Inclusive, artigos com visões totalmente opostas eram publicadas livremente e nos mesmos fascículos.

A seguir, confira a entrevista concedida com exclusividade pelo historiador norte-americano à Leituras da História.


Leituras da História - Na transição da Monarquia para a República, qual foi o papel das Forças Armadas brasileiras? E, no mesmo período, quais eram as diferenças ideológicas entre Exército e Marinha?

Frank McCann - Uma resposta simples é que o papel das Forças Armadas foi fundamental na transição do período monárquico para o republicano. Na época, nenhum grupo civil tinha poder suficiente para abolir a coroa. É incerto até hoje se os golpistas estavam somente contra o ministério ou contra todo o sistema monárquico. Eu acho que, no princípio, o marechal Deodoro da Fonseca estava apenas procurando justiça para os oficiais punidos, mas durante as tensões do dia 15 de novembro ele mudou de objetivo e optou pela troca de todo o sistema. Até agora, acho que as explicações que temos não são satisfatórias. Porém, até alguém descobrir um documento dando justificativas mais claras, a história que temos é esta. É difícil analisar as diferenças entre o Exército e a Marinha. Ambos eram atrasados em termos de equipamento militar e treinamento. Acho que as duas instituições estavam frustradas porque não poderiam defender o Brasil no caso de ataque. Não sei se os marujos tinham os mesmos ideais sobre a Pátria, como entidade superior ao tipo de governo ou não, mas seria lógico pensar assim.

"Impossível governar com este Congresso. É mister que ele DESAPAREÇA PARA A FELICIDADE DO BRASIL."
Discurso do Marechal Deodoro durante a tentativa de fechar o Congresso Nacional.

"Proclamação da República", 1893, óleo sobre tela de Benedito Calixto (1853 - 1927). Acervo da Pinacoteca Municipal de São Paulo.

Nota da redação: A Proclamação da República ocorreu em 15 de novembro de 1889, liderada pelo marechal Deodoro da Fonseca, que assumiu provisoriamente o cargo de presidente. A primeira constituição brasileira, no entanto, só foi promulgada apenas em 1891.

LH - Quando e em que condições deu-se o desenvolvimento e a profissionalização do Exército brasileiro? E no que essa profissionalização acarretou para o desenvolvimento do País?

McCann - Essa é uma pergunta chave para o assunto. Vários capítulos do meu livro tratam desses problemas. Em parte, toda a crise com o Império estava ligada à profissionalização do Exército, mas isso foi diretamente ligado à grande falta de desenvolvimento nacional. Países pobres não tinham Exércitos fortes e altamente desenvolvidos. É bem possível que muitos militares não compreendiam o quanto o Brasil era pobre. O dinheiro do Império tinha valor forte nos mercados internacionais e as exportações eram altas. Então, eles poderiam ter pensado que o problema foi a atitude dos líderes civis que não gostavam de gastar a moeda em assuntos militares. Os oficiais sabiam muito claramente que o Exército deles era atrasado em relação aos da Europa. Eles sabiam que seria necessário aumentar o treinamento, mas de quem e com o quê?

A criação da revista A Defesa Nacional, pintura de Álvaro Martins.

LH - E o que faltava para conseguir realizar este treinamento?

McCann - Faltavam equipamentos modernos e faltavam recrutas com educação básica. Além disso, faltava apoio governamental. O desinteresse da elite pela educação produziu uma crise permanente em torno da missão do Exército de defender o País. A chamada crise militar do Império foi quase a mesma crise dos chamados ‘jovens turcos’, entre 1913 e 1918. Basicamente, pode-se não ter um grau alto de desenvolvimento profissional das Forças Armadas em uma sociedade desenvolvida. É preciso de educação, indústria, além de manter desenvolvimento científico. Para a profissionalização, era necessário desenvolvimento econômico e social.

Toda crise do Império estava ligada à profissionalização do Exército.

LH - Como ocorreu a transição do serviço militar opcional para o obrigatório no Brasil? No que isso implicou para o Exército?

McCann - Essa é uma parte importante da história militar do Brasil. Em 1874, o governo imperial criou a lei do serviço militar obrigatório, mas nunca foi possível colocá-la em prática. Ficou claro que, para ter um Exército moderno, era preciso ter soldados treinados e prontos para o combate, se fosse preciso. Gostaram dos modelos alemão e francês de ‘soldado-cidadão’, mas a idéia não combinava com a realidade brasileira daquela época. No século novo, com o quente desejo de modernizar o Brasil, a idéia ganhou mais forças. A Argentina implementou o serviço obrigatório e demonstrava condições de mobilizar-se rapidamente. Depois da crise do Acre, alguma coisa precisava ser feita. Em 1906, a primeiro turma de oficiais brasileiros foi mandada para servir com o Exército imperial alemão. Então, para ter um Exército moderno e funcional, era preciso de soldados de um tipo novo: não mais recrutados à força (o Exército era, na verdade, uma parte chave do sistema penal), mas de cidadãos vindo aos quartéis para cumprir um dever cívico.

Oficiais e soldados do Exército (esquerda) e dos Voluntários da Pátria (direita), 1865-68.

LH - Essa lei do serviço militar obrigatório entrou em vigor logo?

McCann - Em 1908, o Congresso aprovou a nova lei, mas a oposição cortou tão drasticamente o orçamento do Exército que o pequeno efetivo autorizado era preenchido por voluntários. Os oficiais que serviram com o Exército alemão estavam voltando com novas experiências (as três turmas tiveram um total de 32 oficiais que fundaram, em 1913, a importante revista militar A Defesa Nacional). Com as duas crises do Contestado e a Primeira Guerra Mundial (chamada na época simplesmente ‘A Grande Guerra’), os dirigentes políticos que pensavam que guerra era coisa do passado mudaram o ponto da vista. Houve muito debate público e, em 1916, a lei que havia sido criada em 1908 finalmente entrou em operação. Mas o que foi criado não era exatamente um serviço universal, mas um sorteio dos alistados. Alguns dos sorteados apresentaram objeções processuais, constitucionais e religiosas, e pediram dispensa. A coisa não produziu o Exército dos sonhos dos reformadores, mas foi uma etapa importante.

Para ter um exército moderno, era preciso ter soldados treinados e prontos para o combate.

LH - E houve mais mudanças depois do início da vigência da lei?

McCann - Desde então, o Exército precisou mudar quase tudo. Nas palavras do próprio ministro José de Caetano Faria, num discurso escrito por Estevão Leitão de Carvalho: ‘Precisamos concentrar todas as nossas energias nos trabalhos profissionais. Abandonemos de vez as ambições políticas e as ocupações colaterais e consagremos nossa atividade com decisão e patriotismo, a obra do Exército.’ Com isso, podemos entender que o Exército estava baseado num plano de 1915, reestruturado. Novos quartéis foram necessários, que começaram a surgir com Hermes da Fonseca na década de 1920. Para tratar com o novo tipo de soldado, não poderiam mais abusar deles. A disciplina mudou. Os quartéis mudaram e os uniformes também. O Exército, como tudo, passou a prestar mais atenção na educação, saúde, etc. Para o sistema funcionar, os oficiais teriam de tornar-se instrutores e educadores. Alguns oficiais receavam atrair as classes inferiores para um papel nacional ativo: o serviço militar obrigatório universal poderia enfraquecer o poder da oligarquia sobre as massas, e o alistamento não se aplicava aos trabalhadores rurais. No fim da década de 1910, a tarefa que os reformistas do Exército impuseram-se era nada menos que ‘a obra sublime de constituição de um povo digno deste maravilhoso Brasil’. Queriam ver uma mudança fundamental no comportamento social, particularmente das elites.

A Defesa Nacional, nº 322, 10 de março de 1941.

LH - Sabemos que houve uma ruptura entre o Estado civil e a sociedade clerical logo no início da República, por conta da briga pelos direitos de registros civis. Como o Exército comportou-se durante essa disputa?

McCann - Esse detalhe me escapou. Logicamente, dentro da liderança deveria ter existido um forte sentimento negativo contra a Igreja, porque imediatamente o corpo de capelães (mais ou menos 50) foi abolido. Eu tenho dúvidas sobre a ligação dessa ação e o positivismo. Mas note bem que a situação não durou muito tempo.

LH - Por que, em sua opinião, houve uma presença tão forte do Exército no cenário político brasileiro? A prova disso é que os primeiros presidentes eram militares, assim como os políticos de alto-escalão. Qual o motivo para essa atuação tão marcante do Exército no Estado brasileiro?

McCann - Na época, o Brasil tinha quatro tipos de homens cultos: padres, advogados, médicos e oficiais militares. Os militares pensaram que somente eles estavam apoiando totalmente a Pátria. Eles perderam a fé nos políticos convencionais. Deve-se lembrar que nos anos de 1890 não houve eleições com um eleitorado amplo. Também existia o problema de disciplina militar. Se o presidente fosse militar, ele poderia controlar melhor o que acontecia nas unidades. Logicamente, foi uma maneira ruim de cultivar a democracia. Mas esse não era o jogo da época.

Os militares pensavam que somente eles estavam apoiando totalmente a pátria.

Soldados do Exército brasileiro nos destroços do quartel do Batalhão Naval, dezembro de 1910.

LH - Em certos momentos, como no início da República (no governo de Hermes da Fonseca), houve atritos entre Exército e Marinha, por conta da revolta dos marinheiros. Por que esse conflito ocorreu e em que circunstâncias? O que justifica essa diferença ideológica entre Marinha e Exército no País?

McCann - Precisamos de mais estudos sobre a história da Marinha brasileira. Acho que a revolta da Armada em 1893 teve algum fator importante no conflito entre Exército e Marinha. Era mais uma questão de ciúme pessoal, mas em 1910 a causa teve mais relação com a disciplina severa e a frustração dos marujos. Acho que não houve questões ideológicas envolvidas nesse conflito além das atitudes dos homens, das elites brancas, talvez cheias de medo, controlando marujos pobres, mal-educados e negros. Imagine uma revolta no vapor de guerra mais moderna do mundo na época!

"Nós, marinheiros(...) NÃO PODENDO MAIS SUPORTAR A ESCRAVIDÃO NA MARINHA BRASILEIRA, a falta de proteção que a Pátria nos dá, e até então não nos chegou, rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo."
Trecho inicial do ultimato dado pelos rebeldes da Revolta da Chibata ao Presidente Hermes da Fonseca.

LH - Durante a República Velha houve algumas insurgências na sociedade brasileira, como o tenentismo e a Guerra de Canudos. Quais eram as características das tropas que atuaram nestes conflitos? Fala-se que eram formadas por moradores locais, pois não havia um corpo fixo do Exército nestas regiões. Isso é correto? E o mais importante: por que esses conflitos ocorreram?

McCann - Canudos foi uma guerra completamente desnecessária. Os fatores para justificar isso são muitos, como a política estadual: Canudos era a segunda cidade da Bahia, em termos de população. Estava atraindo tanta gente que os senhores de terra sentiram-se ameaçados pela falta de trabalhadores. Os militares ficaram zangados após perderem as primeiras batalhas. O medo de uma possível restauração monárquica tomou conta da imprensa brasileira da época, que converteu Canudos num ninho monarquista. Havia muita bobagem de todos os lados. Outra vez, repito que o nível nacional de educação era muito baixo. Um pouco de paciência e muito conversa poderiam ter resolvido o caso sem conflitos armados. Mas vale lembrar que, na mesma época, nos Estados Unidos, índios e trabalhadores em greve foram mortos por causa da ignorância e do medo irracional. Claro que os guerreiros de Canudos eram simples sertanejos.

7º Batalhão de Infantaria nas trincheiras na Guerra de Canudos, 1897.

LH - As unidades vieram de um único local ou de vários Estados?

McCann - As unidades do Exército vinham de todo Brasil: da polícia militar de Manaus e Belém e de regimentos do Rio Grande do Sul. Mas a verdade é que a maioria das tropas foi formada por gente simples, algumas pessoas forçadas a entrar nas fileiras. O tenentismo é uma coisa completamente diferente, ligado mais ao desejo de profissionalização. O objetivo deles era convencer a geração acima deles de mudar a maneira de pensar, de ver o papel do Exército na sociedade. Mas vale lembrar que nessa parte da década de 1920, o Ministro de Guerra, Fernando Setembrino de Carvalho, fechou a Biblioteca do Exército porque ele preferia soldados com mentes vazias.

Nota da redação: A Guerra de Canudos é considerada um movimento sócio-religioso, que ocorreu entre 1893 e 1897, na região de Canudos, na Bahia. A insurreição foi liderada por Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro. O movimento, na época, foi taxado como monarquista e, por isso, houve repressão militar na região. No total, quatro expedições foram enviadas ao território baiano para combater os insurgentes, que culminou na morte de Conselheiro. Os conflitos foram testemunhados pelo escritor Euclides da Cunha, que na ocasião era repórter do jornal O Estado de São Paulo e, posteriormente, escreveu a obra ‘Os Sertões’, no qual narra a guerra.

"Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. SEBASTIÃO SAIRÁ COM TODO O SEU EXÉRCITO."
Antônio Conselheiro.

Uniformes dos oficiais e soldados de infantaria do Exército em Canudos, 1897.
(José Washt Rodrigues / Uniformes do Exército Brasileiro)

O Ministro da Guerra fechou a Biblioteca do Exército porque ele preferia soldados com mentes vazias.

LH - No capítulo 2 de Soldados da Pátria, o senhor cita que, após Canudos, o Exército ficou em ruínas. Por que isso ocorreu e como o Exército se reergueu?

McCann - O Exército mandou a Canudos cerca de 12 mil homens, quase a metade da força efetiva total. Houve registros de uns cinco mil mortos e feridos. Vários oficiais bem preparados morreram. Acho que, no fim, todo mundo entendeu que foi um desastre desnecessário. Ninguém fez pesquisas tratando dos efeitos psicológicos nos veteranos, mas sabemos que é bem provável que muitos dos sobreviventes sofreram por diversos anos depois. Na época, o Exército estava só no início da criação de um Estado-Maior baseado no sistema alemão. Por causa de Canudos, esse projeto levou muito mais tempo para ser implementado. Somente no governo de Hermes foi possível retomar ao caminho perdido. O momento chave foi quando Rio Branco convenceu Hermes a mandar para a Alemanha, em três grupos, os 36 oficiais mais tarde chamados os ‘jovens turcos’. Quase tudo que aconteceu depois foi ligado à experiência desses militares.

LH - O senhor comentou sobre os ‘jovens turcos’. Com que objetivo eles foram enviados à Alemanha?

McCann - Depois do desastre de Canudos, o Exército começou a tentar várias possibilidades de reforma. O Estado- Maior foi criado em 1899. A revolta da Escola Militar da Praia Vermelho, em 1904, causou seu fechamento e uma nova escola teve de ser aberta em Porto Alegre, a Escola de Guerra. Para preparar instrutores para os novos cursos projetados, o Ministério mandou seis oficiais de baixa patente servirem nos regimentos do Exército imperial alemão, por dois anos. Eles foram, mas não houve reforma porque faltou dinheiro. Em 1908, Rio Branco conseguiu um convite do governo alemão para os generais Hermes e Luís Mendes de Morais assistirem a manobras do Exército alemão. Hermes negociou com Berlim o envio de uma missão militar para supervisionar a reorganização do Exército. Então, a razão para a viagem dos oficiais brasileiros à Alemanha mudou um pouco. Agora, a idéia era ter um grupo de oficiais que poderiam assistir a missão. Em 1909, um segundo grupo de seis oficiais embarcou.


Neste intervalo, a Krupp (empresa bélica alemã) consolidou sua posição como fornecedora de artilharia, cedendo armas para os Fortes Copacabana e Leme. Em 1910, o terceiro grupo de 24 oficiais embarcou pra Alemanha. A missão alemã seria composta por um grupo de vinte a trinta oficiais sob comando do general Friedrich Colmar von der Goltz, conhecido escritor militar e reorganizador do Exército turco. A missão não deu certo principalmente porque os franceses, que já estavam treinando as forças estaduais de São Paulo desde 1906, montaram uma grande campanha de propaganda negativa. Os esforços dos militares franceses para influenciar a elite brasileira em favor de sua causa podem ser vistos nos relatórios do Estado-Maior francês. Era política francesa convencer a elite brasileira, como fora feito com o marechal Hermes, sobre a profunda convicção de que o Exército francês ainda era o Exército modelo.

LH - E essa idéia dos franceses foi aceita no Brasil?

McCann - Vários jornais brasileiros apoiariam os franceses. Os franceses e seus aliados brasileiros, como o senador mato-grossense Antonio Azeredo, impediram a missão alemã, mas não tiveram forças para impor uma missão francesa. Hermes prometera ao imperador alemão a assinatura de contratos com o Exército e a Marinha. Além dos franceses e paulistas, também os americanos e ingleses mostraram-se contrariados. A questão dividiu a oficialidade e o governo. Alguns altos oficiais opunham-se a qualquer missão estrangeira. Tamanha era a pressão sobre Hermes que lhe custava menos se opor à posição pró-alemã de seu ministro do exterior, Rio Branco, e recusar-se a honrar o compromisso assumido com Berlim do que mandar mais oficiais para juntarem-se aos que estavam completando seu treinamento na Alemanha. O governo teria pagado à Alemanha uma vultosa indenização para desfazer os acordos. A questão da missão militar estrangeira ficaria engavetada até o fim da Primeira Grande Guerra. Mas os oficiais com a experiência na Alemanha foram os que deram ao Exército um impulso reformista.

Era política francesa convencer a elite brasileira de que o Exército francês ainda era o modelo.

LH - Por que esses militares passaram a ser chamados de ‘jovens turcos’?

McCann - Foram chamados ‘jovens turcos’ porque, depois da revolução reformadora na Turquia, esta frase tornou-se comum no mundo inteiro e aplicada aos que queriam reformas.

Generalfeldmarschall Wilhelm Leopold Colmar Freiherr von der Goltz, 1917.

Nota da redação: após retornarem para o Brasil em 1913, os ‘jovens turcos’ fundaram a revista A Defesa Nacional, onde publicaram inúmeras traduções de textos militares alemães, difundindo detalhes técnicos, de treinamento e informações sobre a indústria bélica da Alemanha. Essas idéias de reforma tinham como base os pedidos de Benjamin Constant, que sofria influências claras do movimento positivista.

LH - Fala-se muito que havia castigos físicos como punição no Exército. Como essa cultura de punição começou?

McCann: A punição com castigos físicos fez parte de Exércitos de todo o mundo no século XIX. Aqui, não foi diferente, mas teve um agravante forte. Havia também o fator da escravidão e os efeitos que aquele sistema produzia na sociedade. Durante a República Velha, a maioria dos soldados eram negros e mestiços. Punição física era um método muito mais fácil do que educação.

"GETÚLIO [VARGAS] foi um sargento na fronteira do Mato Grosso, então ele SABIA DE PRIMEIRA MÃO SOBRE A VIDA DOS SOLDADOS."
Frank McCann.

LH - A hierarquia do Exército estava fragmentada na Revolução de 30. Por que o senhor acha que havia tanta diferença de pensamento entre o alto escalão e o restante dos militares?

McCann: Não foi todo o alto escalão, mas alguns, como Tasso Fragoso, foram campeões de reforma. Mas os outros foram acostumados com a vida militar; eles não viam razão de aprender novas táticas, usar novas armas, enfim tornar-se mais profissionais.

Uniformes dos regimentos de cavalaria e da Companhia de Carros de Assalto, 1922.
(Gustavo Barroso / Uniformes do Exército Brasileiro)

LH - Quais são as diferenças mais perceptíveis entre o Exército brasileiro no início da República e o do período de Getúlio Vargas?

McCann: É difícil ver os dois como o mesmo Exército. No primeiro caso, os governos não queriam ouvir problemas e sim deixá-los nos quartéis. No período Vargas, ele estava envolvido com tudo e tudo mundo. Ele prestava atenção às listas dos capitães que estavam prontos para serem promovidos ou não. Toda semana ele se reunia com o ministro da guerra, e correspondeu-se com muitos militares colhendo data, pontos de vista e sugestões. As reformas militares da década de 1930 tinham muita relação com a ação dele. Interessante que a experiência militar de Getúlio foi de um sargento na fronteira de Mato Grosso, então ele sabia em primeira mão sobre a vida dos soldados, mas sua vida ensinou-lhe como lidar com coronéis e generais.

LH - Nos quase 40 anos compreendidos em seu livro, é possível verificar elementos comuns ao Exército em todo este período?

Frank McCann: Sim, de uma forma geral, os Exércitos são entidades muito tradicionais. Ainda as unidades de hoje cantam canções da arma, do regimento, etc... Em muitas escolas e unidades pelo Brasil afora são usados edifícios construídos na época de Hermes. Para um soldado, isso dá a sensação de viver no passado. Até durante os chamados anos ‘militares’ eles sempre insistiram que eles foram trabalhando para um Brasil melhor. Eu não concordo com a maneira que eles fizeram isso, mas acho que eles foram sinceros na crença deles. Outra coisa; acho que os ‘jovens turcos’ ficariam felizes se eles pudessem ver os oficiais de hoje. O sonho que eles celebraram com a revista A Defesa Nacional é hoje uma realidade. O Exército de hoje ainda é pequeno, mas é muito profissional, solidamente fora da política e respeitado pelos outros exércitos do mundo.

Os “jovens turcos”, que lutaram pela profissionalização do exército, veriam seu sonho realizado na força de hoje.

Frank D. McCann, autor dos livros Soldados da Pátria e Aliança Brasil-Estados Unidos 1937-1945 e brasilianista militar famoso. Ele foi condecorado com o título de Comendador da Ordem do Rio Branco (1987) e com a Medalha do Pacificador (1995). McCann faleceu no dia 2 de abril de 2021. Ele foi chamado de "um grande americano e um grande amigo do Brasil".

Bibliografia recomendada:

Soldados da Pátria: História do Exército Brasileiro 1889-1937.

Leitura recomendada:





COMENTÁRIO: Pseudopotência, 1º de julho de 2020.


Nenhum comentário:

Postar um comentário