terça-feira, 15 de março de 2022

"Um grave fracasso": a escala dos erros militares da Rússia fica clara

Um helicóptero russo Ka-52 abatido em Hostomel em 24 de fevereiro, em uma foto divulgada pelas forças armadas da Ucrânia. (Efrem Lukatsky/AP)

Por Sam Jones, John Paul Rathbone e Demetri Sevastopulo, Financial Times, 12 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 15 de março de 2022.

A primeira fase da ofensiva foi retida por deficiências de inteligência, e planejamento e logística deficientes.

Três semanas após a invasão da Ucrânia, a escala dos erros militares da Rússia está se tornando clara.

O resultado da guerra do presidente russo Vladimir Putin ainda está longe de ser certo: existem poucas informações sobre as taxas de atrito das forças ucranianas, enquanto os militares da Rússia ainda superam em armas e homens o seu vizinho. As chances de escalada aumentaram enquanto a liderança russa procura recuperar o equilíbrio.


Mas na primeira fase de sua ofensiva, a crônica militar do Kremlin é de fracasso.

Autoridades de defesa ocidentais estimaram as baixas russas entre 2.000 e 6.000. Com base em proporções em conflitos semelhantes, isso implica três a quatro vezes mais capturados e feridos. Em seu ponto médio, essa estimativa é maior, em três semanas, do que as perdas de militares dos EUA e do Reino Unido combinadas durante 20 anos no Afeganistão.

As perdas de material da Rússia também são significativas. O blog Oryx registrou 1.034 veículos russos, peças de artilharia e aeronaves destruídas, danificadas, abandonadas ou capturadas. Estes incluem 173 tanques, 261 veículos blindados e de combate de infantaria e 28 sistemas de mísseis terra-ar.

Justin Bronk, pesquisador do Royal United Services Institute do Reino Unido, que co-escreveu um livro sobre a modernização militar da Rússia sob Putin, disse que as perdas “são massivamente maiores do que em qualquer outro conflito recente”, incluindo Geórgia, Chechênia ou Afeganistão na década de 1980.

Analistas e oficiais militares ocidentais concordam com a principal causa das falhas na ofensiva militar da Rússia: uma falha de inteligência que distorceu o planejamento militar.

Disso resultaram falhas ligadas à tomada de decisões precipitadas, despreparo logístico, má manutenção de equipamentos e uso de tropas jovens e inexperientes que, juntas, culminaram em um colapso do moral russo na linha de frente.

O general Sir Richard Barrons, ex-chefe do Comando de Forças Conjuntas do Reino Unido, disse: “Há algo aqui que está sistemicamente errado . . . em algum lugar na arquitetura de inteligência russa, os fatos no terreno estão sendo convertidos em uma análise, mas essa análise é na verdade uma narrativa para apoiar os preconceitos da alta liderança [do Kremlin].”

"Os russos são muito bons em desfiles militares. Eles passam semanas deixando tudo brilhante. Mas é uma fachada."
- Autoridade de defesa européia.

Como resultado, a campanha pretendida pela Rússia – um ataque baseado na velocidade e na fraqueza política ucraniana – se transformou em uma operação de combate conjunta que exige planejamento logístico e de comunicação que não parece estar em vigor, dizem analistas.

Os primeiros fracassos da Rússia ocorreram nas primeiras 24 horas da guerra, quando as tropas spetsnaz secretas pré-posicionadas, cujo trabalho era paralisar a liderança política ucraniana, foram impedidas. As forças aerotransportadas da elite VDV, conhecidas por suas boinas azul-celeste, que deveriam tomar pontos-chave, como o aeroporto Hostomel, ao norte da capital, foram, após o sucesso inicial, repelidas pela forte resistência ucraniana. Duas aeronaves de transporte foram derrubadas sobre Hostomel pelas forças ucranianas.

“Os militares ucranianos como um todo esperavam esse tipo de invasão desde 2014”, disse Barrons. “E então eles receberam o presente dessas forças leves vindo aos poucos, subestimando-os, as quais eles conseguiram pegar em detalhe.”

O segundo componente do ataque inicial – o rápido avanço das forças russas, evitando cidades e destinado a cercar rapidamente as unidades militares ucranianas regionais que eles acreditavam que seriam paralisadas por causa de um governo central sem liderança – ampliou ainda mais a vulnerabilidade russa.

“É como se eles estivessem tratando isso como uma missão de policiamento militar, não uma invasão real contra um exército moderno”, disse uma autoridade militar ocidental. Vídeos nas mídias sociais mostram até tropas da Rosguardia, a milícia doméstica da Rússia, avançando para as cidades, sem apoio, como força de linha de frente.

Moradores de Odesa aprendem manuseio e táticas com armas.
(Maria Senovilla/EPA-EFE/Shutterstock)

Quando, vários dias depois, os comandantes russos perceberam que precisavam usar um poder de fogo mais sério, eles o fizeram de forma caótica: enormes colunas de tanques e artilharia avançaram, mas os ucranianos explodiram pontes, fazendo com que os avanços parassem. Os planejadores russos parecem ter falhado em antecipar essa resposta básica, disse outra autoridade militar ocidental, apontando que unidades de engenharia e construtores de pontes não estavam nem perto da frente do avanço em algumas colunas.

“O que vimos no terreno é um plano extremamente ruim, juntamente com absolutamente nenhum aviso aos comandantes operacionais de que estavam prestes a lançar suas tropas em combate operacional, o que criou um enorme número de problemas para eles”, disse Bronk, de Rusi. É, ele acrescentou, uma “grave falha” dos “TTPs” – táticas, técnicas e procedimentos.

Até os temidos sistemas antiaéreos da Rússia ficaram vulneráveis aos drones turcos Bayraktar TB2 baratos operados pelos ucranianos. Imagens no Twitter, por exemplo, mostram o TB2 ucraniano atacando os lançadores Buk, o mesmo sistema de mísseis usado para derrubar a aeronave comercial MH17 em 2014.


No terreno, enquanto isso, os milhares de mísseis antitanque que as potências ocidentais vêm fornecendo à Ucrânia há semanas se mostraram eficazes, com soldados de infantaria móveis capazes de emboscar e atacar grupos avançados isolados de veículos leves russos e unidades pesadas estacionárias presas em colunas com flancos desprotegidos.

A inteligência de código aberto sugere que a infraestrutura de comunicações militares da Rússia teve um desempenho ruim: os rádios Azart e Akveduk criptografados de ponta que supostamente começaram a ser lançados para unidades russas em 2017 parecem estar em falta ou têm alcance inadequado, segundo observou um relatório da Rusi.

Nas redes sociais, foram postadas fotos de russos usando rádios chineses baratos e não criptografados e seus próprios telefones celulares para entrar em contato com os comandantes. Como resultado, mesmo entusiastas de rádio amador a centenas de quilômetros de distância conseguiram sintonizar as comunicações militares russas em tempo real, como mostram os tópicos do Twitter com dezenas de mensagens russas gravadas.

Equipamentos inadequados foram a causa de outras falhas: imagens foram compartilhadas por ucranianos de veículos russos com pneus triturados presos na lama. Especialistas dizem que os pneus são quase certamente baratos, versões de nível civil daqueles que os militares russos precisam, sugerindo, como no caso dos rádios, corrupção endêmica nas compras de defesa da Rússia.

“Os russos são muito bons em desfiles militares. Eles passam semanas deixando tudo brilhante. Mas é uma fachada”, disse uma autoridade de defesa européia.

A maior questão que continua a deixar os analistas perplexos, porém, é por que a Rússia ainda não fez uso de seu poder aéreo muito superior para proteger melhor suas forças e reverter o desastre no solo – embora tenha lançado um ataque aéreo devastador contra uma base militar no oeste da Ucrânia no domingo, perto da fronteira polonesa.

Um tanque ucraniano na região de Luhansk. As forças de Kiev resistiram fortemente ao poder de fogo russo.
(Anatolii Stepanov/AFP/Getty Images)

Um alto funcionário de defesa americano disse que a Ucrânia foi “muito criativa” na forma como usou suas defesas aéreas, fazendo uso altamente eficaz de drones baratos, e as forças do país estavam apresentando uma resistência muito mais feroz do que a inteligência russa esperava. “Eles estão colocando recursos onde são mais necessários [e] estão fazendo isso rapidamente. Eles estão sendo adaptáveis e ágeis . . . em quase um tipo de estilo hit-and-run”, disse ele.

As forças armadas da Rússia não têm experiência em combater uma guerra conjunta terrestre e aérea tão extensa, disse a autoridade. “Esta é uma operação que eles nunca conduziram antes, sem sentido desde a Segunda Guerra Mundial.”

A autoridade disse que a Rússia também está tendo problemas para integrar suas forças terrestres e aéreas em uma força “conjunta”. Ele disse que, embora a Rússia tenha atualizado suas forças armadas e adquirido sistemas sofisticados, “não parece . . . que eles desenvolveram os conceitos operacionais adequados para usar esses recursos modernos”.

As falhas resultaram em um colapso generalizado, se talvez temporário, no moral, de acordo com o Pentágono e a inteligência de defesa britânica. Há até evidências de soldados russos sabotando seu próprio equipamento, disseram autoridades.

A idade média dos soldados russos na Ucrânia é de 20 a 25 anos, de acordo com um oficial militar ocidental, em comparação com 30 a 35 anos para os ucranianos, que são mais abastecidos e têm uma causa do seu lado.

Muitos dos jovens soldados russos destacados nesse meio tempo nem sabiam que estavam sendo enviados para a Ucrânia, muito menos que teriam que atirar em iguais falantes de russo.

"Tornou-se claro que muita infantaria russa simplesmente não está disposta a atacar", disse Chris Donnelly, um conselheiro sobre as forças armadas soviéticas de quatro secretários-gerais da OTAN. “Uma vez que o moral realmente começa a desmoronar assim, você não tem mais um exército.”

Os russos usaram recrutas e tropas juniores mal-treinadas, disse Donnelly, em uma reversão aparentemente automática dos comandantes operacionais à tática soviética de enviar forças descartáveis ​​primeiro para “absorver poder de fogo”.

Um comboio de evacuação passa por um veículo blindado russo destruído nos arredores de Kiev.
(Vadim Ghirda/AP)

A questão é como a Rússia vai se adaptar. Nos últimos dias, as forças russas intensificaram o uso de fogo de longo alcance e lançaram mais de 800 mísseis no total. Também havia sinais de que colunas de forças ao norte e leste de Kiev estavam se preparando para tentar uma nova abordagem.

Alguns dos tanques e outros veículos de um longo comboio que no ponto mais próximo fica a 15km de Kiev também saíram da estrada principal. Não está claro se eles estão sendo enviados em uma direção diferente ou se escondendo sob as árvores.

Em outros lugares, os objetivos da Rússia parecem ser cercar e sitiar um número suficiente de cidades ucranianas, tomar Kiev e derrubar o governo Zelensky. Enquanto as forças russas lutaram no norte, no sul elas tiveram muito mais sucesso e ainda podem aplicar força considerável.

Permanecem dúvidas sobre a capacidade das forças ucranianas de continuar lutando e quanto de munição antiaérea ainda resta.

Dentro das forças armadas ucranianas, também há um desânimo crescente com a mudança ocidental em relação ao apoio militar adicional, como presentear jatos MiG ou armas antiaéreas de longo alcance mais pesadas e montadas em veículos.

Enquanto isso, o uso de artilharia bruta e bombas não-guiadas pela Rússia está causando um pesado número de civis. E a maioria dos sinais aponta para uma nova escalada do Kremlin.

O perigo, disse um alto oficial da inteligência britânica aposentado, é que, ao tentar se livrar de seus desastres táticos na Ucrânia, Moscou “caia num beco sem saída estratégico com consequências ainda piores” – para a Ucrânia e possivelmente para o mundo.

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