“E, respondendo Ele, disse-lhes: Digo-vos que, se estes se calarem, as próprias pedras clamarão.”
Lucas 19:40.
Após um mês de invasão russa na Ucrânia, entre muitas incertezas, ao menos um fato delineia-se de forma clara: a iniciativa de Vladimir Putin foi um enorme equívoco. Ampliou-se sobremaneira o afastamento russo em relação à Comunidade Internacional, com reflexos devastadores na economia de um país já combalido nessa área desde a queda da União Soviética, e as justificativas russas para a invasão foram rechaçadas de maneira acachapante na ONU e outros fóruns. Para piorar a situação, mesmo no plano militar, que seria, ao menos em tese, o mais promissor, os russos enfrentam dificuldades. A Operação Especial, como gostam de denominar, está demorando muito mais que o previsto por todos – incluindo o autor destas linhas –, consumindo recursos humanos e financeiros importantes. A consequente elevação do número de vítimas civis contribui para piorar a já péssima reputação de que goza o Kremlin.
Com tantos revezes nos aspectos político, econômico e militar, a pergunta que não quer calar é: O que levou Vladimir Putin a tomar uma decisão tão radical, com consequências potencialmente ruins para o seu próprio regime? O número de interpretações se avoluma em publicações diuturnas na imprensa. De palpiteiros a analistas de reconhecida competência, todos procuram decifrar o enigma da esfinge putinista, esgrimindo argumentos que vão do político ao psicológico. Poucos, porém, parecem confiar nas ferramentas do Realismo Clássico para a realização dessa tarefa, refletindo o esprit-du-temps no qual vivemos desde a queda do Muro. O realismo é encarado como algo demodê, superado.
Na opinião deste que vos escreve, os preconceitos de nossa época, embora
naturais – todas as épocas os têm –, atrapalham o entendimento da questão. Se formos
analisar a trajetória de Vladimir Putin, veremos que um traço comum de sua
mentalidade é justamente o realismo político, tanto no plano interno quanto externo. O
triunfalismo liberal que governa as mentes ocidentais, por essa razão, tem sido causa de
muitos dos desacertos entre o Ocidente e a Rússia, como bem pontua John
Mearsheimer [1], apesar de eu discordar de algumas de suas conclusões, por exemplo,
quanto à absoluta responsabilidade do Ocidente pelo caso em tela. A responsabilidade
de fato existe, mas é relativa.
Sim, têm razão os que, como Mearsheimer, afirmam que a Rússia foi
sistematicamente alienada da Ordem Internacional pela política externa americana
desde o fim da URSS. Legítimas preocupações de segurança do Estado russo foram
ignoradas, mesmo em questões que diziam respeito à sua periferia histórica - vale
relembrar o episódio em que Clinton comunica a invasão da Sérvia a Yeltsin não antes,
e sim depois de a decisão ser unilateralmente tomada pelos EUA [2], ultrajando e
humilhando um líder que sempre se mostrou disposto a cooperar com o Ocidente. Mas
a Rússia é grande o suficiente para não ser tomada como um ator meramente passivo
no tabuleiro internacional de poder: ela toma suas decisões e deve ser responsabilizada por elas. O ressentimento por três décadas de declínio explica muito da atual
animosidade russa, porém não é justificativa suficiente para ações como a que se
verifica agora na Ucrânia, sobretudo em se tratando de um dos garantes do
Memorando de Budapeste, no qual se comprometeu a jamais atentar contra a
soberania territorial do vizinho. Acordos a respeito de questões tão sensíveis existem para
serem honrados.
As alegações russas, portanto, devem ser encaradas com uma dose saudável
de ceticismo. Se a perspectiva de uma Ucrânia incorporada à União Européia é
incômoda e a de uma admissão à OTAN inaceitável, nenhuma das duas se concretizou.
O simples fato de os ucranianos elegerem um governo encarado como “pró-ocidental”
é assunto interno de um país soberano, não devendo ser objeto de ingerência de
qualquer natureza, a não ser que, e aqui quero começar minha contribuição com este
texto, o objetivo russo não seja apenas reconstruir sua zona de influência no leste
europeu, mas iniciar uma nova etapa de expansão imperial.
E por que diabos isso seria sequer desejável para a Rússia? Aos adeptos do
liberalismo político isso não faz sentido, pois a era dos impérios é um passado a ser
esquecido. No mundo pós-moderno, a interdependência comercial regularia os
conflitos internacionais, tornando as guerras obsoletas e os impérios inviáveis. No lugar
dos campos de batalha, teríamos a OMC (Organização Mundial do Comércio) e outras
‘Instituições’, bem ao sabor de Francis Fukuyama em O Fim da História. Ocorre que, feliz
ou infelizmente, a história não acabou, tampouco as grandes nações deixaram de
comportar-se como impérios: os EUA, campeões da nova ordem global, invadiram o
Iraque, o Afeganistão e a Síria, além de protagonizarem diversas intervenções nos
Bálcãs e no Oriente-Médio. Decerto não estavam nesses lugares para fazer caridade ou
comércio, e sim para defender os interesses geopolíticos americanos na base da força.
A globalização, tão celebrada e promovida pelas potências ocidentais, tem seus
perdedores, podendo ser encarada como uma forma tão moderna quanto insidiosa de
imperialismo, baseada na exploração das assimetrias de desenvolvimento regionais.
A Rússia é, com certeza, uma das perdedoras desse arranjo, e a maior entre os
países considerados potências geopolíticas. Apesar de um saldo migratório positivo,
consequência do influxo de migrantes russófonos das ex-repúblicas soviéticas, o país viu
sua população decair em 4 milhões de habitantes de 1991 a 2021 devido ao declínio
na natalidade [3], sendo as difíceis condições econômicas, a alta prevalência de vício
em drogas e álcool e a desagregação familiar as principais causas. Nos anos 1990, o
país vivia uma crise de identidade, tanto em relação a si quanto ao seu lugar no mundo.
No plano interno, o governo Putin patrocinou uma verdadeira Renascença Ortodoxa, a
fim de revitalizar as tradições erodidas pelas décadas de ateísmo de estado; em matéria
de política externa, tratou de reconstruir a imagem de Rússia forte, alcançando relativo
sucesso. As indústrias energética, bélica e alimentícia foram privilegiadas, reforçando o
caráter pragmático da Administração Putin, que focou na produção de bens essenciais
para a sobrevivência dos Estados.
Tais iniciativas, contudo, não foram capazes de evitar a estagnação econômica.
Dados da série histórica do Banco Mundial apontam uma média de crescimento muito
baixa no período entre 1990 e 2021, ou seja, a economia russa hoje é relativamente
menor do que era ao final da URSS. Três décadas perdidas que cobraram seu preço na
indústria militar: apesar de manter o status tecnológico de ponta, o orçamento de
defesa russo tem, atualmente, tamanho similar ao de potências médias como Reino
Unido e França [4]. Nesse ínterim, a China avançou de roldão sobre a Eurásia, tradicional
área de influência: Cazaquistão, Quirguistão e Turcomenistão já possuem mais relações
econômicas com a China do que com a Rússia, e a situação no Uzbequistão e no Tajiquistão evolui rapidamente no mesmo sentido. Astana aparece como parceiro
preferencial dos chineses, destino de investimentos vultuosos no contexto da Nova Rota
da Seda (Belt and Road Initiative – BRI)[5]. Se a expansão da OTAN e da União Européia
a leste é incômoda para os russos, é lógico pensar que o mesmo se aplica a esses
desenvolvimentos no subcontinente eurasiano, área que MacKinder costumava
chamar de Pivô Geográfico da História.
E por que Moscou não verbaliza seu desconforto neste caso? Provavelmente por
lhe faltar condições. A deterioração das relações com o ocidente fez de Pequim a
única alternativa de parceria estratégica, o que não significa que essa relação não
tenha suas tensões. A relação comercial Sino-Russa é desfavorável à última: enquanto
aquela exporta produtos de valor agregado, esta comercializa majoritariamente
matérias-primas. Espremida por dois imperialismos em expansão constante, é natural
que a Rússia se sinta ameaçada. Mantidos tais padrões de desenvolvimento
demográfico e econômico, não é nenhum exagero afirmar que existe um risco real de
vassalização no médio prazo. Talvez seja a esse tipo de ameaça existencial que o Porta-Voz do Kremlin, Dmitry Peskov, se referiu em entrevista recente [6].
Minha tese é que esse impasse, mais do que qualquer condicionamento
ideológico, psicológico ou político, leva a Rússia ao ataque. Incapazes de se
adaptarem aos novos arranjos de domínio por meio das assimetrias de desenvolvimento
e se vendo, eles mesmos, vítimas desses processos, os russos tratam de reconstruir seu
Lebensraum (espaço vital) à moda antiga, a pontapés. E o observador atento notará
que a tática não foi posta em prática agora, de sopetão, mas cuidadosamente
preparada e implementada por meio de aproximações sucessivas. Geórgia (2008),
Criméia (2014) e agora toda a Ucrânia - em cada uma das ocasiões o Kremlin testou a
reação ocidental e progrediu em escala. Outra característica comum dessas incursões
militares é que foram precedidas por momentos de alta nas cotações das principais
commodities de exportação, reforçando o caixa com moeda forte, já prevendo
sanções econômicas como reação.
Tudo leva a crer que a Rússia perdeu a confiança na capacidade de projetar-se por meios políticos. As tentativas de manutenção de sua esfera de influência
geoestratégica foram malogradas, nos casos da CEI (Comunidade de Estados
Independentes) e da OTSC (Organização do Tratado de Segurança Coletiva), por sua
própria iniciativa: a Geórgia se retirou após a invasão da Abecásia e da Ossétia do Sul
e a Ucrânia em 2018, por razões óbvias. Já a Comunidade Econômica Eurasiática, hoje
União Econômica Eurasiática (UEE), não decola pela baixa performance econômica de
seus membros. Com um tal histórico, fica difícil pensar em reversão do quadro por meios
convencionais.
Resta, portanto, a força como último recurso. Se ela, sozinha, será suficiente para
tornar a Rússia novamente competitiva na corrida das potências mundiais, eu duvido.
Contudo, enquanto ela for capaz de reagir agressivamente a um declínio que parece
cada vez mais inexorável, é certo que muitos danos serão causados à estabilidade
mundial. E se a hipocrisia desta geração calar as poucas vozes capazes de declarar a
verdade sobre a Política de Poder, não haverá problema: as ‘pedras’ da Realpolitik
clamarão e far-se-ão ouvir, ainda que por meio de bombas e mísseis.
Éder Fonseca
23 de março de 2022
Notas
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