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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

COMENTÁRIO: Putin pode se agarrar ao poder, mas sua lenda está morta


Por Mark Galeotti, CNN Opinion, 11 de novembro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 28 de novembro de 2022.

Nota do Editor: Mark Galeotti é diretor executivo da consultoria Mayak Intelligence e professor honorário da University College London. Ele é autor de vários livros sobre a história da Rússia, mais recentemente "Putin's Wars: from Chechnya to Ukraine". As opiniões expressas neste comentário são dele.

CNN - Apesar de algumas especulações frenéticas sobre a perda da Rússia da região ucraniana ocupada de Kherson nesta semana, ainda é muito cedo para prever quando e como o presidente Vladimir Putin entregará o poder – seja porque ele foi deposto, se aposentou ou simplesmente morreu no cargo.

Alto general russo anuncia retirada da cidade-chave de Kherson


No entanto, o que já podemos ver são alguns dos processos que podem moldar e levar a essa partida. Mais precisamente, mesmo agarrado ao poder, Putin nunca viverá à altura da imagem que criou para si mesmo.

Especialmente nos primeiros meses da guerra, houve muita especulação sobre sua saúde, com alegações de que ele tinha de tudo, desde câncer no sangue até Parkinson. Muito disso diminuiu, especialmente porque o aspecto inchado e os espasmos estranhos que foram fixados como prova parecem ter passado.

Não era de surpreender que isso atraísse tanto interesse, oferecendo uma espécie de deus ex machina para os governos ocidentais ansiosos por uma solução rápida para os dilemas do conflito.

Soldados russos carregando um ferido.

No entanto, de acordo com oficiais de inteligência dos EUA que estudaram a questão, embora Putin possa ter problemas de saúde recorrentes - há muito se sabe que ele sofre de problemas nas costas e pode até estar sofrendo de uma condição que comprometeu seu sistema imunológico, explicando as extremas medidas tomadas para protegê-lo da Covid-19 – não há indícios de algo que possa levar à sua morte iminente ou incapacidade.

No entanto, ele tem 70 anos e sua saúde realmente se tornou uma questão existencial para o sistema. Afinal, embora a constituição russa estipule o que acontece se ele morrer no cargo – o primeiro-ministro assume o cargo de presidente interino até que eleições antecipadas possam ser realizadas – não há nenhuma disposição caso ele fique incapacitado por um período substancial de tempo, nem há um vice-presidente capaz de substituí-lo.

Esse é exatamente o tipo de crise política que pode gerar uma luta intra-elite, que pode derrubar esse regime.

Tropa de choque do OMON prendendo um manifestante.

Afinal, por enquanto, as chances de um golpe palaciano são pouco maiores do que as de Putin ser derrubado por protestos nas ruas. Múltiplas forças de segurança se equilibram: em Moscou, por exemplo, a guarnição militar, uma divisão especial da Guarda Nacional e o Regimento do Kremlin, todos se reportam a diferentes cadeias de comando. O Serviço Federal de Segurança vigia todos os três – e o Serviço Federal de Proteção, por sua vez, os vigia.

Enquanto Putin for capaz de controlar os chefes desses chamados “ministérios de poder” e eles comandarem a lealdade de suas agências, ele parece difícil de derrubar.

No entanto, por mais que pareça firmemente no controle, o que está acontecendo é que seu sistema está se tornando cada vez mais frágil, perdendo os recursos que no passado lhe deram resiliência para responder a desafios inesperados.


Obviamente, isso significa recursos financeiros. À medida que as sanções se impõem e os custos da guerra aumentam, o dinheiro fica mais apertado. Quase um terço do orçamento de 2023 (mais de 9 trilhões de um total de 29 trilhões de rublos) será destinado à defesa e segurança. Isso deixa proporcionalmente menos para apoiar os orçamentos regionais e manter à tona as indústrias em dificuldades.

No entanto, também significa enfraquecimento da legitimidade e da boa vontade dos serviços de segurança e das elites locais. Os índices de aprovação de Putin sempre foram artificialmente altos, uma vez que não há oposição significativa para ele ser medido, mas ainda assim estão caindo.

"A máquina militar de Putin está quebrada; a economia de seu país está tão abalada que levará anos para se recuperar; sua reputação como um mentor geopolítico em frangalhos."

Mark Galeotti.

A Guarda Nacional, a principal força encarregada de controlar os protestos nas ruas, foi dizimada lutando na Ucrânia. Membros da Guarda Nacional também estão zangados por terem sido usados como bucha de canhão em uma guerra para a qual a gloriosa tropa de choque não foi treinada e nem equipada.

Enquanto isso, enquanto os resmungos dentro da elite permanecem cuidadosamente silenciados, eles são evidentes. Assim como fez durante a Covid-19, Putin está descartando o trabalho árduo e impopular de formar “batalhões de voluntários” e manter a economia de guerra nas mãos de seus prefeitos e governadores regionais. Enquanto alguns, como o governador de São Petersburgo, Alexander Beglov, aproveitaram isso como uma oportunidade para cortejar a aprovação de Putin, muitos outros estão silenciosamente chocados.

Tudo isso torna ainda mais difícil prever o futuro de Putin e seu regime. Mesmo regimes frágeis e estagnados podem durar muito tempo. A Rússia czarista estava indiscutivelmente com morte cerebral em 1911, quando o primeiro-ministro brutalmente reformista Petr Stolypin foi assassinado, mas ainda durou três anos de catástrofe na Primeira Guerra Mundial antes de desmoronar em 1917.

Soldados russos posando para uma foto antes de um ataque, 1916.

No entanto, isso significa que o estado de Putin é muito menos capaz de lidar com o tipo de crise inesperada que é ao mesmo tempo difícil de prever e, no entanto, inevitável. Isso pode ser qualquer coisa, desde a derrota generalizada na Ucrânia até um colapso econômico regional em cascata em casa, as forças de segurança se recusando a reprimir os protestos nas ruas ou Putin ficando gravemente doente.

Nessas circunstâncias, como em março de 1917 (fevereiro pelo antigo calendário russo), talvez o comandante-em-chefe seja confrontado por seus generais e políticos e induzido a renunciar pelo bem da Mãe Pátria.

Parece difícil no momento imaginar tal cenário, mas no geral a elite russa, tanto política quanto militar, não é “Putinista”, mas oportunistas impiedosos. Eles apoiaram Putin porque é do interesse deles; eles continuam leais porque os riscos de se opor a ele por enquanto parecem muito maiores.

Soldados ucranianos inspecionando um tanque russo destruído.

No entanto, se eles começarem a acreditar que ele é vulnerável, provavelmente se distanciarão dele rapidamente. Ninguém quer ser o último leal de um regime condenado.

Aconteça o que acontecer, porém, os sonhos de Putin de estabelecer a Rússia como uma grande potência com base em sua força militar acabaram, assim como suas ambições de garantir um legado como um dos grandes construtores de Estado da nação.

Sua máquina militar está quebrada; a economia de seu país está tão abalada que levará anos para se recuperar; sua reputação como um mentor geopolítico em frangalhos. Putin-o-homem pode ainda se agarrar ao poder por anos, mas Putin-a-lenda está morto.

Coluna blindada russa na Ucrânia.
Sobre o autor:

Mark Galeotti em frente ao Kremlin e à Catedral de São Nicolas.

Mark Galeotti é um estudioso de assuntos de segurança russos com uma carreira que abrange a academia, serviços governamentais e negócios, um autor prolífico e frequente comentarista da mídia. Ele dirige a consultoria Mayak Intelligence e é professor honorário da Escola de Estudos Eslavos e do Leste Europeu da University College London, além de ter bolsas de estudos com a RUSI, o Conselho de Geoestratégia e o Instituto de Relações Internacionais de Praga. Foi Chefe de História na Keele University, Professor de Assuntos Globais na New York University, Pesquisador Sênior no Foreign and Commonwealth Office e Professor Visitante na Rutgers-Newark, Charles University (Praga) e no Moscow State Institute of International Relações. Ele é autor de mais de 25 livros, incluindo A Short History of Russia (Penguin, 2021) e The Great Bear at War: The Russian and Soviet Army, 1917–Present (Osprey Publishing, 2019).

Bibliografia recomendada:

Putin's Wars:
From Chechnya to Ukraine,
Mark Galeotti.

Leitura recomendada:

COMENTÁRIO: Putin como Líder Supremo da Rússia1º de fevereiro de 2020.

O futuro que a Rússia nos promete, de Olavo de Carvalho24 de fevereiro de 2022.

As Pedras Estão Clamando: Uma perspectiva realista sobre a invasão russa na Ucrânia28 de março de 2022.

Os condutores da estratégia russa16 de julho de 2020.

O identidade da Stasi do Putin foi encontrada em arquivo alemão11 de março de 2020.

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Por que a Rússia vai perder esta guerra?, 28 de fevereiro de 2022.

E se a Rússia perder? Uma derrota para Moscou não será uma vitória clara para o Ocidente10 de março de 2022.

E se a Rússia vencer? Uma Ucrânia controlada pelo Kremlin transformaria a Europa19 de março de 2022.

segunda-feira, 28 de março de 2022

As Pedras Estão Clamando: Uma perspectiva realista sobre a invasão russa na Ucrânia


“E, respondendo Ele, disse-lhes: Digo-vos que, se estes se calarem, as próprias pedras clamarão.” 
Lucas 19:40.

Após um mês de invasão russa na Ucrânia, entre muitas incertezas, ao menos um fato delineia-se de forma clara: a iniciativa de Vladimir Putin foi um enorme equívoco. Ampliou-se sobremaneira o afastamento russo em relação à Comunidade Internacional, com reflexos devastadores na economia de um país já combalido nessa área desde a queda da União Soviética, e as justificativas russas para a invasão foram rechaçadas de maneira acachapante na ONU e outros fóruns. Para piorar a situação, mesmo no plano militar, que seria, ao menos em tese, o mais promissor, os russos enfrentam dificuldades. A Operação Especial, como gostam de denominar, está demorando muito mais que o previsto por todos – incluindo o autor destas linhas –, consumindo recursos humanos e financeiros importantes. A consequente elevação do número de vítimas civis contribui para piorar a já péssima reputação de que goza o Kremlin.

Com tantos revezes nos aspectos político, econômico e militar, a pergunta que não quer calar é: O que levou Vladimir Putin a tomar uma decisão tão radical, com consequências potencialmente ruins para o seu próprio regime? O número de interpretações se avoluma em publicações diuturnas na imprensa. De palpiteiros a analistas de reconhecida competência, todos procuram decifrar o enigma da esfinge putinista, esgrimindo argumentos que vão do político ao psicológico. Poucos, porém, parecem confiar nas ferramentas do Realismo Clássico para a realização dessa tarefa, refletindo o esprit-du-temps no qual vivemos desde a queda do Muro. O realismo é encarado como algo demodê, superado.


Na opinião deste que vos escreve, os preconceitos de nossa época, embora naturais – todas as épocas os têm –, atrapalham o entendimento da questão. Se formos analisar a trajetória de Vladimir Putin, veremos que um traço comum de sua mentalidade é justamente o realismo político, tanto no plano interno quanto externo. O triunfalismo liberal que governa as mentes ocidentais, por essa razão, tem sido causa de muitos dos desacertos entre o Ocidente e a Rússia, como bem pontua John Mearsheimer [1], apesar de eu discordar de algumas de suas conclusões, por exemplo, quanto à absoluta responsabilidade do Ocidente pelo caso em tela. A responsabilidade de fato existe, mas é relativa.

Sim, têm razão os que, como Mearsheimer, afirmam que a Rússia foi sistematicamente alienada da Ordem Internacional pela política externa americana desde o fim da URSS. Legítimas preocupações de segurança do Estado russo foram ignoradas, mesmo em questões que diziam respeito à sua periferia histórica - vale relembrar o episódio em que Clinton comunica a invasão da Sérvia a Yeltsin não antes, e sim depois de a decisão ser unilateralmente tomada pelos EUA [2], ultrajando e humilhando um líder que sempre se mostrou disposto a cooperar com o Ocidente. Mas a Rússia é grande o suficiente para não ser tomada como um ator meramente passivo no tabuleiro internacional de poder: ela toma suas decisões e deve ser responsabilizada por elas. O ressentimento por três décadas de declínio explica muito da atual animosidade russa, porém não é justificativa suficiente para ações como a que se verifica agora na Ucrânia, sobretudo em se tratando de um dos garantes do Memorando de Budapeste, no qual se comprometeu a jamais atentar contra a soberania territorial do vizinho. Acordos a respeito de questões tão sensíveis existem para serem honrados.


As alegações russas, portanto, devem ser encaradas com uma dose saudável de ceticismo. Se a perspectiva de uma Ucrânia incorporada à União Européia é incômoda e a de uma admissão à OTAN inaceitável, nenhuma das duas se concretizou. O simples fato de os ucranianos elegerem um governo encarado como “pró-ocidental” é assunto interno de um país soberano, não devendo ser objeto de ingerência de qualquer natureza, a não ser que, e aqui quero começar minha contribuição com este texto, o objetivo russo não seja apenas reconstruir sua zona de influência no leste europeu, mas iniciar uma nova etapa de expansão imperial.

E por que diabos isso seria sequer desejável para a Rússia? Aos adeptos do liberalismo político isso não faz sentido, pois a era dos impérios é um passado a ser esquecido. No mundo pós-moderno, a interdependência comercial regularia os conflitos internacionais, tornando as guerras obsoletas e os impérios inviáveis. No lugar dos campos de batalha, teríamos a OMC (Organização Mundial do Comércio) e outras ‘Instituições’, bem ao sabor de Francis Fukuyama em O Fim da História. Ocorre que, feliz ou infelizmente, a história não acabou, tampouco as grandes nações deixaram de comportar-se como impérios: os EUA, campeões da nova ordem global, invadiram o Iraque, o Afeganistão e a Síria, além de protagonizarem diversas intervenções nos Bálcãs e no Oriente-Médio. Decerto não estavam nesses lugares para fazer caridade ou comércio, e sim para defender os interesses geopolíticos americanos na base da força. A globalização, tão celebrada e promovida pelas potências ocidentais, tem seus perdedores, podendo ser encarada como uma forma tão moderna quanto insidiosa de imperialismo, baseada na exploração das assimetrias de desenvolvimento regionais.


A Rússia é, com certeza, uma das perdedoras desse arranjo, e a maior entre os países considerados potências geopolíticas. Apesar de um saldo migratório positivo, consequência do influxo de migrantes russófonos das ex-repúblicas soviéticas, o país viu sua população decair em 4 milhões de habitantes de 1991 a 2021 devido ao declínio na natalidade [3], sendo as difíceis condições econômicas, a alta prevalência de vício em drogas e álcool e a desagregação familiar as principais causas. Nos anos 1990, o país vivia uma crise de identidade, tanto em relação a si quanto ao seu lugar no mundo. No plano interno, o governo Putin patrocinou uma verdadeira Renascença Ortodoxa, a fim de revitalizar as tradições erodidas pelas décadas de ateísmo de estado; em matéria de política externa, tratou de reconstruir a imagem de Rússia forte, alcançando relativo sucesso. As indústrias energética, bélica e alimentícia foram privilegiadas, reforçando o caráter pragmático da Administração Putin, que focou na produção de bens essenciais para a sobrevivência dos Estados.

Tais iniciativas, contudo, não foram capazes de evitar a estagnação econômica. Dados da série histórica do Banco Mundial apontam uma média de crescimento muito baixa no período entre 1990 e 2021, ou seja, a economia russa hoje é relativamente menor do que era ao final da URSS. Três décadas perdidas que cobraram seu preço na indústria militar: apesar de manter o status tecnológico de ponta, o orçamento de defesa russo tem, atualmente, tamanho similar ao de potências médias como Reino Unido e França [4]. Nesse ínterim, a China avançou de roldão sobre a Eurásia, tradicional área de influência: Cazaquistão, Quirguistão e Turcomenistão já possuem mais relações econômicas com a China do que com a Rússia, e a situação no Uzbequistão e no Tajiquistão evolui rapidamente no mesmo sentido. Astana aparece como parceiro preferencial dos chineses, destino de investimentos vultuosos no contexto da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative – BRI)[5]. Se a expansão da OTAN e da União Européia a leste é incômoda para os russos, é lógico pensar que o mesmo se aplica a esses desenvolvimentos no subcontinente eurasiano, área que MacKinder costumava chamar de Pivô Geográfico da História.


E por que Moscou não verbaliza seu desconforto neste caso? Provavelmente por lhe faltar condições. A deterioração das relações com o ocidente fez de Pequim a única alternativa de parceria estratégica, o que não significa que essa relação não tenha suas tensões. A relação comercial Sino-Russa é desfavorável à última: enquanto aquela exporta produtos de valor agregado, esta comercializa majoritariamente matérias-primas. Espremida por dois imperialismos em expansão constante, é natural que a Rússia se sinta ameaçada. Mantidos tais padrões de desenvolvimento demográfico e econômico, não é nenhum exagero afirmar que existe um risco real de vassalização no médio prazo. Talvez seja a esse tipo de ameaça existencial que o Porta-Voz do Kremlin, Dmitry Peskov, se referiu em entrevista recente [6].

Minha tese é que esse impasse, mais do que qualquer condicionamento ideológico, psicológico ou político, leva a Rússia ao ataque. Incapazes de se adaptarem aos novos arranjos de domínio por meio das assimetrias de desenvolvimento e se vendo, eles mesmos, vítimas desses processos, os russos tratam de reconstruir seu Lebensraum (espaço vital) à moda antiga, a pontapés. E o observador atento notará que a tática não foi posta em prática agora, de sopetão, mas cuidadosamente preparada e implementada por meio de aproximações sucessivas. Geórgia (2008), Criméia (2014) e agora toda a Ucrânia - em cada uma das ocasiões o Kremlin testou a reação ocidental e progrediu em escala. Outra característica comum dessas incursões militares é que foram precedidas por momentos de alta nas cotações das principais commodities de exportação, reforçando o caixa com moeda forte, já prevendo sanções econômicas como reação.


Tudo leva a crer que a Rússia perdeu a confiança na capacidade de projetar-se por meios políticos. As tentativas de manutenção de sua esfera de influência geoestratégica foram malogradas, nos casos da CEI (Comunidade de Estados Independentes) e da OTSC (Organização do Tratado de Segurança Coletiva), por sua própria iniciativa: a Geórgia se retirou após a invasão da Abecásia e da Ossétia do Sul e a Ucrânia em 2018, por razões óbvias. Já a Comunidade Econômica Eurasiática, hoje União Econômica Eurasiática (UEE), não decola pela baixa performance econômica de seus membros. Com um tal histórico, fica difícil pensar em reversão do quadro por meios convencionais.

Resta, portanto, a força como último recurso. Se ela, sozinha, será suficiente para tornar a Rússia novamente competitiva na corrida das potências mundiais, eu duvido. Contudo, enquanto ela for capaz de reagir agressivamente a um declínio que parece cada vez mais inexorável, é certo que muitos danos serão causados à estabilidade mundial. E se a hipocrisia desta geração calar as poucas vozes capazes de declarar a verdade sobre a Política de Poder, não haverá problema: as ‘pedras’ da Realpolitik clamarão e far-se-ão ouvir, ainda que por meio de bombas e mísseis.

Éder Fonseca
23 de março de 2022


Notas

quinta-feira, 10 de março de 2022

VDV: A polícia de choque glorificada da Rússia


Por Kamil GaleevTwitter, 10 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 10 de março de 2022.

Resumo: Os paraquedistas de "elite" são policiais de choque glorificados. Eles foram usados como tropas aerotransportadas apenas na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968. Na Ucrânia em 2022 eles esperavam desbaratar um motim, mas enfrentaram um exército regular e foram destruídos.

Como vai a guerra na Ucrânia? Hoje eles confirmaram a morte do major-general russo Suhovetsky. Ele é sem surpresa um paraquedista. Então, vamos discutir o papel dos paraquedistas na doutrina militar russa. Isso lançará uma luz sobre o curso desta guerra e por que a Rússia a perdeu.🧵

Major-General Andrei Sukhovetskiy.

Os paraquedistas têm um status mais lendário do que qualquer outra tropa na Rússia. Eles são uma força de elite que compõem a Reserva do Alto Comando Supremo. Eles devem liderar a ofensiva, sendo lançados atrás das linhas inimigas e mantendo o terreno antes que o resto do exército chegue.


Exceto que eles não são usados dessa maneira. Se você olhar para esta foto você vai entender o porquê. É muito fácil atirar em todos eles no ar antes que eles atinjam o chão. É por isso que em praticamente todos os conflitos - Afeganistão, Karabakh, Geórgia, Chechênia - eles foram usados como infantaria regular.

Desde a Segunda Guerra Mundial, houve apenas três casos em que os paraquedistas russos foram lançados sobre o inimigo pelo ar:

  • Hungria, 1956
  • Tchecoslováquia, 1968
  • Ucrânia, 2022

Portanto, os paraquedistas agem como paraquedistas apenas quando não esperam resistência de outro exército regular.


Os paraquedistas não são tão fortes. O poder de fogo de um regimento de paraquedistas de "elite" é muito mais fraco do que o de um regimento de infantaria "não-elite" regular. Eles não podem derrotar um exército. Mas eles não deveriam lutar contra um exército. Eles devem suprimir motins e rebeliões.


Todo o conceito dos paraquedistas russos do VDV faz todo o sentido se considerarmos que eles não são tanto soldados quanto a polícia de choque. Eles não precisam lutar contra outros exércitos regulares, eles precisam reprimir motins e protestos desorganizados.


Como os paraquedistas são as tropas de choque do regime, eles precisam parecer assustadores para assustar qualquer amotinado. Todo o seu status lendário é uma enorme Psyop (operação psicológica). Isso não é segredo, forças muito bem treinadas como as do GRU consideram esses caras fraudadores.



Por esta razão, os paraquedistas absolutamente precisam ser muito altos. A aptidão física não é suficiente, você precisa ser muito grande. Por quê? Porque eles precisam ser assustadores. Porque seu armamento principal é puramente psicológico. As pessoas deveriam ver esses caras grandes e perceber que a resistência não tem sentido.

Daí todo o status "lendário", mitologia e iconografia bem desenvolvidas. Não há outras tropas com simbologia tão desenvolvida tais como os paraquedistas. Considere este exemplo onde Elias, o Profeta, recebe uma boina de paraquedista azul.


Toneladas de músicas, visuais, etc. são dedicados aos paraquedistas, mais do que a qualquer outra tropa. Por quê? Novamente, porque VDV são tropas psyop e são impotentes sem uma mitologia completamente desenvolvida. Assim, o governo investe fortemente na construção dessa mitologia.


2 de agosto é o dia do VDV. Então, todos os anos, ex-paraquedistas (ou quem decidiu usar a camiseta e a boina azul claras) pulam nas fontes públicas.


... assediar civis.


... e a polícia. Pessoas comuns (ou soldados) receberiam longas penas de prisão por espancarem os policiais. Mas não os paraquedistas. Eles são tropas de choque do regime e o regime vai manter seu status de fodão. Eles são tão fodas porque eles têm total apoio do Estado.


É por isso que os paraquedistas de "elite" compõem a Reserva do Alto Comando Supremo. Não é uma reserva para uma grande guerra. Não. É uma reserva para reprimir motins na Rússia ou em países vizinhos. E isso é feito em grande parte através de psyops. Assim, eles trabalham duro para parecerem assustadores.


Quando a Rússia decidiu reprimir a insurreição no Cazaquistão no ano passado, enviou para lá sua glorificada polícia de choque - os paraquedistas. Vê as listras azuis claras em seus coletes? Apenas o VDV as usa.


Sejamos honestos, o Kremlin vê a Ucrânia como uma província rebelde. A própria existência deste país é um motim. E se você precisa reprimir um motim, você manda a polícia de choque. Então Putin enviou paraquedistas e eles foram completamente desbaratados; porque eles não esperavam uma resistência organizada.

Os paraquedistas russos foram usados como paraquedistas apenas durante a repressão da "revolta fascista" na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968. Por quê? Porque eles sabiam que não iriam enfrentar outro exército regular lá. Para que eles possam desencadear seu psyop sem temer as consequências.


Quando Putin invadiu a Ucrânia, ele pensou que estava reprimindo mais um motim no Leste Europeu. E enviou sua tropa de choque esperando que o exército ucraniano fugisse ou se rendesse. Mas isso não aconteceu. E uma vez que isso não aconteceu, toda a sua operação especial modelada no Redemoinho de 1956 ou o Danúbio de 1968 falhou.

Os paraquedistas deveriam assumir o controle das principais cidades e aglomerações logísticas, para que a ocupação do país pelo exército ocorresse sem problemas. Mas o exército ucraniano abriu fogo e eles falharam. E depois desse fracasso inicial, todo o plano foi quebrado.


O exemplo mais dramático desse fracasso foram os veículos russos presos na lama do início da primavera. Você vê que eles estão tentando colocar troncos de árvores sob suas rodas para desatolá-os. Parece bom, não funciona.


Putin esperava que o exército ucraniano se rendesse. Inesperadamente, não apenas o exército, mas até mesmo civis comuns a quem o governo deu armas começaram a atacar as linhas de suprimentos russas. A Rússia não planejou a guerra e simplesmente avançou com apenas um escalão do exército, então as linhas de suprimentos ficaram desprotegidas.
Como resultado, as colunas que avançaram ficaram sem combustível e simplesmente ficaram atolados nas estradas e nos campos. Essa é a explicação mais plausível para esta coluna russa simplesmente ficar em campo e ser filmada por civis.

A Blitzkrieg de Putin falhou porque não era uma Blitzkrieg. Blitzkrieg é uma operação de guerra contra um inimigo que luta. Mas a Rússia lançou uma operação especial esperando que os ucranianos se rendessem. É por isso que eles enviaram sua polícia de choque glorificada. Claro, eles foram batidos.


Eles enviaram apenas um escalão de tropas por terra. Eles queriam ocupar um país indefeso e não se importaram em cobrir suas linhas de abastecimento. Claro que eles foram cortados e agora milhares de veículos russos estão atolados sem combustível.

O plano de Putin falhou e é por isso que ele começou a escalar a violência. Aqui você vê um dormitório estudantil da universidade de Kharkiv após um bombardeio russo.

Ou bairros residenciais de Kiev.

A única questão é se os ucranianos serão capazes de se manter firmes até o iminente colapso econômico da Rússia. Vai acontecer muito mais cedo do que a maioria espera, vou escrever sobre isso amanhã de uma forma mais detalhada. De qualquer forma, o plano de Putin de uma operação especial falhou.

Ela falhou por dois motivos. Em primeiro lugar, depois de 2014, os ucranianos reconstruíram seu exército e seu Estado para o confronto iminente com a Rússia. Em segundo lugar, quando a Rússia finalmente atacou, os ucranianos não se caíram numa psyop vazia e não ficaram com medo. E se você não tem medo, psyop não funciona. Fim do tópico.🧵

E se a Rússia perder? Uma derrota para Moscou não será uma vitória clara para o Ocidente

Por Liana Fix e Michael Kimmage, Foreign Affairs, 4 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 9 de março de 2022.

[Esse artigo é uma análise em duas partes. A outra pode ser lida aqui.]

O presidente russo, Vladimir Putin, cometeu um erro estratégico ao invadir a Ucrânia. Ele julgou mal o teor político do país, que não estava esperando para ser libertado pelos soldados russos. Ele julgou mal os Estados Unidos, a União Européia e vários países - incluindo Austrália, Japão, Cingapura e Coréia do Sul - todos os quais eram capazes de ação coletiva antes da guerra e todos agora estão empenhados na derrota da Rússia na Ucrânia. Os Estados Unidos e seus aliados e parceiros estão impondo altos custos a Moscou. Toda guerra é uma batalha pela opinião pública, e a guerra de Putin na Ucrânia – em uma era de imagens da mídia de massa – associou a Rússia a um ataque não provocado a um vizinho pacífico, ao sofrimento humanitário em massa e a múltiplos crimes de guerra. A cada passo, a indignação resultante será um obstáculo para a política externa russa no futuro.

Protestando contra a guerra em Helsinque, Finlândia, março de 2022.

Não menos significativo do que o erro estratégico de Putin foram os erros táticos do exército russo. Tendo em conta os desafios da avaliação nos estágios iniciais de uma guerra, pode-se dizer com certeza que o planejamento e a logística russos foram inadequados e que a falta de informação dada aos soldados e até mesmo aos oficiais nos escalões superiores foi devastadora para o moral. A guerra deveria terminar rapidamente, com um relâmpago que decapitaria o governo ucraniano ou o obrigaria a se render, após o que Moscou imporia neutralidade à Ucrânia ou estabeleceria uma suserania russa sobre o país. Violência mínima pode ter igualado sanções mínimas. Se o governo tivesse caído rapidamente, Putin poderia ter alegado que estava certo o tempo todo: porque a Ucrânia não estava disposta ou capaz de se defender, não era um país real – exatamente como ele havia dito.

Mas Putin será incapaz de vencer esta guerra em seus termos preferidos. De fato, existem várias maneiras pelas quais ele poderia perder. Ele poderia atolar seus militares em uma ocupação dispendiosa e fútil da Ucrânia, dizimando o moral dos soldados da Rússia, consumindo recursos e entregando nada em troca, mas o anel vazio da grandeza russa e um país vizinho reduzido à pobreza e ao caos. Ele poderia criar algum grau de controle sobre partes do leste e sul da Ucrânia e provavelmente Kiev, enquanto lutava contra uma insurgência ucraniana operando a partir do oeste e se engajando em guerrilhas em todo o país – um cenário que seria uma reminiscência da guerra partisan que ocorreu em Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, ele presidiria a gradual degradação econômica da Rússia, seu crescente isolamento e sua crescente incapacidade de suprir a riqueza de que dependem as grandes potências. E, consequentemente, Putin pode perder o apoio do povo e das elites russas, de quem ele depende para continuar a guerra e manter seu poder, mesmo que a Rússia não seja uma democracia.

Ilustração de um assalto à baioneta na Guerra Russo-Japonesa 1904-05.

Putin parece estar tentando restabelecer alguma forma de imperialismo russo. Mas ao fazer essa aposta extraordinária, ele parece não ter se lembrado dos eventos que desencadearam o fim do império russo. O último czar russo, Nicolau II, perdeu uma guerra contra o Japão em 1905. Mais tarde, ele foi vítima da Revolução Bolchevique, perdendo não apenas sua coroa, mas sua vida. A lição: governantes autocráticos não podem perder guerras e permanecer autocratas.

Nesta guerra, não há vencedores

É improvável que Putin perca a guerra na Ucrânia no campo de batalha. Mas ele pode perder quando a luta terminar e a pergunta se tornar: E agora? As consequências não intencionais e subestimadas desta guerra sem sentido serão difíceis para a Rússia suportar. E a falta de planejamento político para o dia seguinte – comparável aos fracassos de planejamento da invasão do Iraque pelos EUA – fará sua parte para tornar esta guerra invencível.

A Ucrânia não poderá fazer recuar os militares russos em solo ucraniano. As forças armadas russas estão em outra liga daquela da Ucrânia, e a Rússia é, obviamente, uma potência nuclear, enquanto a Ucrânia não é. Até agora, os militares ucranianos lutaram com determinação e habilidade admiráveis, mas o verdadeiro obstáculo aos avanços russos tem sido a própria natureza da guerra. Por meio de bombardeios aéreos e ataques de mísseis, a Rússia poderia nivelar as cidades da Ucrânia, alcançando assim o domínio sobre o espaço de batalha. Poderia tentar um uso em pequena escala de armas nucleares com o mesmo efeito. Caso Putin tome essa decisão, não há nada no sistema russo que possa detê-lo. “Eles fizeram um deserto”, escreveu o historiador romano Tácito sobre as táticas de guerra de Roma, atribuindo as palavras ao líder de guerra britânico Calgacus, “e chamaram isso de paz”. Essa é uma opção para Putin na Ucrânia.

Paraquedistas franceses contendo uma manifestação civil em Argel.

Mesmo assim, ele não seria capaz de simplesmente se afastar do deserto. Putin travou uma guerra por causa de uma zona-tampão controlada pela Rússia entre ele e a ordem de segurança liderada pelos EUA na Europa. Ele não poderia evitar erigir uma estrutura política para atingir seus objetivos e manter algum grau de ordem na Ucrânia. Mas a população ucraniana já demonstrou que não deseja ser ocupada. Resistirá ferozmente – por meio de atos diários de resistência e por meio de uma insurgência na Ucrânia ou contra um regime fantoche do leste da Ucrânia estabelecido pelo exército russo. A analogia da guerra da Argélia de 1954-62 contra a França vem à mente. A França era o poder militar superior. No entanto, os argelinos encontraram maneiras de exaurir o exército francês e minar o apoio em Paris para a guerra.

Ocupar a Ucrânia seria incalculavelmente caro.

Talvez Putin possa montar um governo fantoche com Kiev como capital, uma Ucrânia de Vichy. Talvez ele possa reunir o apoio necessário da polícia secreta para subjugar a população desta colônia russa. A Bielorrússia é um exemplo de país que segue um regime autocrático, repressão policial e o apoio dos militares russos. É um modelo possível para uma Ucrânia oriental governada pela Rússia. Na realidade, porém, é um modelo apenas no papel. Uma Ucrânia russificada pode existir como uma fantasia administrativa em Moscou, e os governos certamente são capazes de agir de acordo com suas fantasias administrativas. Mas nunca poderia funcionar na prática, devido ao tamanho da Ucrânia e à história recente do país.

Em seus discursos sobre a Ucrânia, Putin parece perdido em meados do século XX. Ele está preocupado com o nacionalismo germanófilo ucraniano da década de 1940. Daí suas muitas referências aos nazistas ucranianos e seu objetivo declarado de “desnazificar” a Ucrânia. A Ucrânia tem elementos políticos de extrema-direita. O que Putin não consegue ver ou ignora, no entanto, é o sentimento muito mais popular e muito mais potente de pertencimento nacional que surgiu na Ucrânia desde que reivindicou a independência da União Soviética em 1991. A resposta militar da Rússia à revolução Maidan de 2014 na Ucrânia, que varreu um governo corrupto pró-Rússia, foi um estímulo adicional a esse sentimento de pertencimento nacional. Desde que a invasão russa começou, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky tem sido perfeito em seus apelos ao nacionalismo ucraniano. Uma ocupação russa expandiria o senso de nacionalidade da política ucraniana, em parte criando muitos mártires para a causa – como a ocupação da Polônia pela Rússia imperial fez no século XIX.

Para funcionar, então, a ocupação teria que ser um empreendimento político maciço, ocorrendo em pelo menos metade do território da Ucrânia. Seria incalculavelmente caro. Talvez Putin tenha em mente algo como o Pacto de Varsóvia, através do qual a União Soviética governou muitos estados-nação europeus diferentes. Isso também era caro - mas não tão caro quanto controlar uma zona de rebelião interna, armada até os dentes por seus muitos parceiros estrangeiros e à procura de qualquer vulnerabilidade russa. Tal esforço drenaria o tesouro da Rússia.

O horror desta guerra vai sair pela culatra em Putin.

Enquanto isso, as sanções que os Estados Unidos e os países europeus impuseram à Rússia resultarão em uma separação da Rússia da economia global. O investimento externo cairá. O capital será muito mais difícil de adquirir. As transferências de tecnologia vão secar. Os mercados fecharão para a Rússia, possivelmente incluindo os mercados de gás e petróleo, cuja venda foi crucial para a modernização da economia russa por Putin. O talento comercial e empresarial sairá da Rússia. O efeito a longo prazo dessas transições é previsível. Como argumentou o historiador Paul Kennedy em A Ascensão e Queda das Grandes Potências, esses países têm a tendência de travar as guerras erradas, de assumir encargos financeiros e, assim, privar-se do crescimento econômico — a força vital de uma grande potência. No caso improvável de que a Rússia pudesse subjugar a Ucrânia, ela também poderia se arruinar no processo.

Uma variável chave nas consequências desta guerra é o público russo. A política externa de Putin foi popular no passado. Na Rússia, a anexação da Crimeia foi muito popular. A assertividade geral de Putin não agrada a todos os russos, mas agrada a muitos. Isso também pode continuar sendo o caso nos primeiros meses da guerra de Putin na Ucrânia. As baixas russas serão lamentadas e também criarão um incentivo, como todas as guerras, para tornar as baixas propositais, para prosseguir com a guerra e a propaganda. Uma tentativa global de isolar a Rússia pode sair pela culatra ao isolar o mundo exterior, deixando os russos basearem sua identidade nacional em queixas e ressentimentos.

Mais provável, porém, é que o horror desta guerra se volte contra Putin. Os russos não foram às ruas para protestar contra os bombardeios russos de Aleppo, na Síria, em 2016 e a catástrofe humanitária que as forças russas incitaram no curso da guerra civil daquele país. Mas a Ucrânia tem um significado totalmente diferente para os russos. Existem milhões de famílias russo-ucranianas interligadas. Os dois países compartilham laços culturais, linguísticos e religiosos. Informações sobre o que está acontecendo na Ucrânia chegarão à Rússia através das mídias sociais e outros canais, refutando a propaganda e desacreditando os propagandistas. Este é um dilema ético que Putin não pode resolver apenas pela repressão. A repressão também pode sair pela culatra por si só. Muitas vezes saiu na história russa: basta perguntar aos soviéticos.

Causa perdida

As consequências de uma perda russa na Ucrânia apresentariam à Europa e aos Estados Unidos desafios fundamentais. Assumindo que a Rússia será forçada a se retirar um dia, reconstruir a Ucrânia, com o objetivo político de recebê-la na UE e na OTAN, será uma tarefa de proporções hercúleas. E o Ocidente não deve falhar novamente com a Ucrânia. Alternativamente, uma forma fraca de controle russo sobre a Ucrânia pode significar uma área fraturada e desestabilizada de combates contínuos com estruturas de governança limitadas ou inexistentes a leste da fronteira da OTAN. A catástrofe humanitária seria diferente de tudo que a Europa viu em décadas.

Não menos preocupante é a perspectiva de uma Rússia enfraquecida e humilhada, abrigando impulsos revanchistas semelhantes aos que apodreceram na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Se Putin mantiver o poder, a Rússia se tornará um Estado pária, uma superpotência rebelde com forças militares convencionais castigadas, mas com seu arsenal nuclear intacto. A culpa e a mancha da guerra na Ucrânia permanecerão com a política russa por décadas; raro é o país que lucra com uma guerra perdida. A futilidade dos custos gastos em uma guerra perdida, o custo humano e o declínio geopolítico definirão o curso da Rússia e da política externa russa por muitos anos, e será muito difícil imaginar uma Rússia liberal emergindo após os horrores desta guerra.

Mesmo que Putin perca o controle sobre a Rússia, é improvável que o país emerja como uma democracia pró-ocidente. Poderia se separar, especialmente no norte do Cáucaso. Ou pode se tornar uma ditadura militar com armas nucleares. Os formuladores de políticas não estariam errados em esperar por uma Rússia melhor e pelo tempo em que uma Rússia pós-Putin pudesse ser genuinamente integrada à Europa; eles devem fazer o que puderem para permitir essa eventualidade, mesmo resistindo à guerra de Putin. Eles seriam tolos, no entanto, de não se prepararem para possibilidades mais sombrias.

A história mostrou que é imensamente difícil construir uma ordem internacional estável com um poder revanchista e humilhado perto de seu centro, especialmente um do tamanho e peso da Rússia. Para fazer isso, o Ocidente teria que adotar uma abordagem de isolamento e contenção contínuos. Manter a Rússia e os Estados Unidos dentro se tornaria a prioridade para a Europa em tal cenário, já que a Europa terá que arcar com o principal ônus de administrar uma Rússia isolada após uma guerra perdida na Ucrânia; Washington, por sua vez, gostaria de finalmente se concentrar na China. A China, por sua vez, poderia tentar fortalecer sua influência sobre uma Rússia enfraquecida – levando exatamente ao tipo de construção de bloco e domínio chinês que o Ocidente queria impedir no início da década de 2020.

Pagar qualquer preço?

Ninguém dentro ou fora da Rússia deve querer que Putin ganhe sua guerra na Ucrânia. É melhor que ele perca. No entanto, uma derrota russa ofereceria poucos motivos para comemoração. Se a Rússia cessasse sua invasão, a violência já infligida à Ucrânia seria um trauma que perduraria por gerações; e a Rússia não cessará sua invasão tão cedo. Os Estados Unidos e a Europa devem se concentrar em explorar os erros de Putin, não apenas fortalecendo a aliança transatlântica e incentivando os europeus a agir em seu desejo há muito articulado de soberania estratégica, mas também transmitindo à China as lições geminadas do fracasso da Rússia: desafiar as normas internacionais , como a soberania dos Estados, vem com custos reais, e o aventureirismo militar enfraquece os países que o praticam.

Se os Estados Unidos e a Europa puderem um dia ajudar a restaurar a soberania ucraniana, e se puderem simultaneamente empurrar a Rússia e a China para um entendimento compartilhado da ordem internacional, o maior erro de Putin se transformará em uma oportunidade para o Ocidente. Mas terá vindo a um preço incrivelmente alto.