domingo, 5 de setembro de 2021

Carlos Magno: Depois do Afeganistão, a Europa se pergunta se a França estava certa sobre a América


Da The Economist, 4 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

O ritual anual do Dia da Bastilha é um momento para os franceses colocarem bandeirinhas, beberem champanhe e celebrarem os mitos da fundação da república. Em 14 de julho deste ano, porém, quando o embaixador francês  em Cabul, David Martinon, gravou uma mensagem aos concidadãos, a gravidade esmagou a festa. “Mes chers compatriotes”, ele começou, “a situação no Afeganistão é extremamente preocupante”. A embaixada francesa, disse ele, concluiu a evacuação de funcionários afegãos. Os franceses foram instruídos a partirem em um vôo especial três dias depois. Depois disso, dada a “evolução previsível” dos eventos no Afeganistão, ele declarou - um mês inteiro antes da queda de Cabul - que a França não poderia mais garantir-lhes uma saída segura.

Quando os franceses começaram a retirar funcionários afegãos e suas famílias em maio, até amigos os acusaram de derrotismo e de apressar o colapso do regime. O esforço de evacuação em agosto (de 2.834 pessoas, em 42 vôos) foi imperfeito e deixou alguns afegãos vulneráveis para trás. Enquanto os aliados lutavam para tirar seus funcionários afegãos de Cabul, os franceses se viram tão dependentes quanto qualquer outro da segurança americana. No entanto, tem havido uma satisfação silenciosa em Paris. Seus planos mostraram “uma previsão impressionante”, diz Lord Ricketts, um ex-embaixador britânico na França.

Se os franceses agiram cedo, fazendo sua própria avaliação da inteligência compartilhada, isso se deveu em parte a uma pegada menor no solo. A França lutou no Afeganistão ao lado de aliados da OTAN em 2001. “Somos todos americanos”, publicou a primeira página do Le Monde após o 11 de setembro. Em seguida, retirou todas as tropas até 2014, em parte para se concentrar em seu próprio esforço de contra-insurgência no Sahel. No entanto, a decisão em Cabul também foi mais fácil de tomar porque os franceses têm menos escrúpulos em fazer suas próprias coisas, mesmo quando isso irrita os Estados Unidos. Enquanto os europeus pensam nas implicações perturbadoras do fiasco afegão e no que ele diz sobre a dependência de uma América unilateral, o clima na Grã-Bretanha e na Alemanha é de choque e mágoa. Para os franceses, que tiraram da crise de Suez em 1956 a lição de que nunca poderiam confiar totalmente nos Estados Unidos, uma conclusão reforçada sob as presidências de Obama e Trump, o Afeganistão serviu para confirmar o que há muito suspeitavam.

Reembarque de um tanque M47 Patton francês do 8º Regimento de Dragões no Porto Said, no Egito, em 21 de dezembro de 1956.

Não é segredo que nem todos os europeus compartilham da opinião da França. Quando Emmanuel Macron subiu ao palco de painéis de madeira no anfiteatro da Sorbonne logo após sua eleição em 2017 e implorou por "soberania europeia" e uma "capacidade de agir autonomamente" em questões de segurança caso a Europa precisasse, sua voz era solitária. Na Alemanha e em pontos a leste, o apelo de Macron foi visto com irritação: mais uma incômoda tentativa gaullista de minar a OTAN e suplantar a América como fiador da segurança europeia.

As mentes mudaram um pouco desde então, pois Macron procurou tranquilizar os amigos de que sua ideia não é substituir, mas complementar a aliança transatlântica. Mesmo assim, no ano passado, Annegret Kramp-Karrenbauer, Ministra da Defesa da Alemanha, escreveu sem rodeios que "as ilusões de autonomia estratégica europeia devem acabar." Enquanto isso, na Grã-Bretanha, as ligações de Macron foram desconsideradas como irrelevantes para uma nação-ilha recentemente livre para forjar seu próprio papel global. A união da soberania europeia sobre a Defesa era algo que o Brexit foi projetado para evitar.

Paraquedistas da 82ª Divisão Aerotransportada "All American" provendo a segurança do aeroporto de Cabul.

O desastre no Afeganistão mudou a retórica. Tom Tugendhat, um parlamentar conservador que serviu no Afeganistão, exortou a Grã-Bretanha “a se certificar de que não dependemos de um único aliado”, nomeando a França e a Alemanha como parceiros em potencial. Ben Wallace, Secretário de Defesa da Grã-Bretanha, sugeriu que suas forças armadas deveriam estar prontas para "aderir a coalizões diferentes e não depender de uma única nação". Ele não precisou dizer qual. “Todos nós fomos humilhados da mesma forma pelos americanos”, disse um diplomata britânico, que aponta para um interesse comum em garantir que isso não aconteça novamente. Para a Alemanha tímida em relação à conflitos, o Afeganistão foi uma experiência formativa. A decepção foi dolorosa. Armin Laschet, o candidato conservador à chancelaria da Alemanha, descreveu a retirada como “o maior desastre que a OTAN já experimentou desde a sua fundação”.

Em suma, a Europa parece perceber que terá de fazer mais por si mesma. Quer os céticos entendam ou não, isso é exatamente o que o Monsieur Macron tem dito, e dirá novamente em um discurso antes da presidência rotativa da França no Conselho da UE em 2022. Ninguém, mas ninguém, vai dizer isso em voz alta. Mas o reconhecimento implícito é que, zut alors, o Monsieur Macron estava certo.

Aux armes, Européens

Sniper francês da Força Barkhane no Sahel malinense.

Duas grandes questões para os europeus decorrem desse pensamento desconcertante, no entanto, e nenhuma resposta fácil existe para nenhuma delas. Em primeiro lugar, o que a Europa realmente quer dizer com “soberania europeia” ou “autonomia estratégica”? A maioria dos países promete gastar mais em defesa, embora a Alemanha (ao contrário da Grã-Bretanha e da França) ainda falhe em cumprir a referência da OTAN de 2% do PIB. Além disso, há pouca clareza e ainda menos acordo, até porque o Brexit não deixou a Grã-Bretanha com vontade de trabalhar institucionalmente com a UE.

Devem os europeus aspirar apenas a uma gestão limitada de um conflito regional, como o Sahel ou o Iraque? Ou esperam enfrentar a defesa coletiva de seu continente? Os realistas defendem o primeiro, e apenas até certo ponto. Os entusiastas sugerem o último. No entanto, mesmo no Sahel, a França ainda precisa dos americanos para inteligência e logística. Em segundo lugar, a Europa está realmente preparada para fazer o que for preciso para sobreviver por conta própria? A evidência não é convincente. A Europa é melhor na criação de siglas do que na construção de capacidades. “Se não podemos nem cuidar do aeroporto de Cabul, existe uma grande lacuna entre nossa análise e nossa capacidade de ação”, diz Claudia Major, do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança.

O esforço implícito seria enorme. “Não tenho certeza se os europeus estão psicologicamente preparados para enfrentar o desafio”, escreveu Gérard Araud, um ex-embaixador francês na América, para o Conselho do Atlântico. O Monsieur Macron, como seu embaixador em Cabul, pode ter feito a escolha certa. Mas os europeus estão prontos para dar atenção a isso?

Bibliografia recomendada:

L'emergence d'une Europe de la défense:
Difficultés et perspectives.
Dejana Vukcevic.

Leitura recomendada:






FOTO: Fuzis SKS capturados, 1º de janeiro de 2021.


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