domingo, 3 de outubro de 2021

França no Pacífico: o que ela tem feito e por que isso é bom para a América


Por Michael Shurkin, 9 Dash Line, 20 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de outubro de 2021.

Na controvérsia em torno do recente acordo de três vias Austrália-Reino Unido-Estados Unidos (Australia-United Kingdom-United StatesAUKUS) para fornecer à Austrália tecnologia de submarino nuclear - ao preço de enfurecer a França ao romper um acordo de mais de US$ 60 bilhões para vender submarinos franceses à Austrália, tem havido uma tendência de ignorar o valor do papel francês no Indo-Pacífico, tanto para a Austrália quanto para os EUA. Só o tempo dirá com que gravidade a atual crise diplomática afetará a política francesa, mas deve ficar claro que alienar a França não faz sentido. Era do interesse da América, da Austrália e até do Reino Unido manter a França ao seu lado e trabalhar para fortalecer seu relacionamento com ela. Talvez a Austrália consiga submarinos melhores no final, mas devemos nos perguntar se, pelo menos, todo o caso poderia ter sido administrado de forma diferente.

Sim, a França é uma potência indo-pacífica


A primeira questão que deve ser abordada é a relevância da França no Indo-Pacífico. Pensamos na França como uma potência exclusivamente europeia, mas graças aos resquícios de seu passado colonial - o que os próprios franceses às vezes chamam cinicamente de “confete do império”, a França pode legitimamente se ver como uma potência do Pacífico e do Oceano Índico. Possui vários territórios no Indo-Pacífico, que abrigam 1,6 milhão de cidadãos franceses e dão à França vastas Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE) marítimas que somam 9 milhões de quilômetros quadrados. A França também mantém uma força militar permanente de 7.000 homens e mulheres, o que é único para uma nação europeia. Estes incluem, de acordo com o Ministério das Forças Armadas da França, 2.000 soldados e cinco navios dedicados à “Zona Sul do Oceano Índico”, 1.660 soldados e quatro navios designados para a “Zona de Responsabilidade” da Nova Caledônia, e 1.180 soldados e três navios designados para a zona da Polinésia Francesa. A França também envia rotineiramente navios e aeronaves para águas francesas e internacionais nos dois oceanos para mostrar a bandeira, muitas vezes na forma de seu porta-aviões nuclear e suas escoltas ou um dos grandes navios de assalto anfíbio da classe Mistral da França.

Rejeitando a França como fizeram com o acordo AUKUS, Austrália, EUA e Reino Unido excluíram um aliado ansioso para aumentar seu papel na segurança do Indo-Pacífico e o fizeram de uma maneira que quase inteiramente coincidiu com os interesses americanos e australianos.

No entanto, na última década, e especialmente sob o presidente francês Emmanuel Macron, Paris tem enfatizado ruidosamente sua identidade como uma nação “indo-pacífica” ao estender a mão para outras potências indo-pacíficas para construir relações bilaterais e multilaterais. Diplomatas franceses têm se ocupado em fechar acordos com vários países, como Índia e Indonésia, com o objetivo de fomentar as relações comerciais, bem como a cooperação em defesa e segurança, ou ambos combinados na forma de venda de armas. Em 2018, Macron invocou o surgimento de um “eixo Paris-Délhi-Canberra”, e a França atualizou seu relacionamento com a Austrália e o Japão, bem como com a Índia, Indonésia, Cingapura e Vietnã. O acordo do submarino de 2016 com a Austrália foi um triunfo para o predecessor de Macron, e os dois países recentemente haviam chegado a acordos relacionados ao acesso às bases australianas. A França também tem atuado em instituições e fóruns multilaterais regionais. A participação francesa na Enforcement Coordination Cell (ECC) - uma coalizão naval organizada para fazer cumprir as sanções da ONU contra a Coreia do Norte, que foi descrita como a “joia escondida” da cooperação de segurança Indo-Pacífico - é particularmente digna de nota. No geral, tem havido um claro aumento na atividade militar francesa. Como assinalou o Le Monde, se em dois anos o número de tropas desdobradas para a região não aumentou, o “ritmo de exercícios, missões e intercâmbios diplomáticos” [...] "intensificou-se claramente”.

Presença francesa no Indo-Pacífico.

O governo francês expôs seus motivos em publicações oficiais, como a Estratégia de Defesa Francesa de 2019 no Indo-Pacífico. Isso inclui a defesa de uma “ordem internacional baseada em regras” (que a Casa Branca citou recentemente como o motivo do acordo AUKUS), a preservação e promoção das relações comerciais com as nações do Indo-Pacífico e a proteção das rotas marítimas essenciais para o comércio global. A França vê essas coisas ameaçadas pela proliferação nuclear, pirataria, terrorismo e qualquer coisa que ameace a ordem internacional em larga escala. Finalmente, Paris tem um forte interesse em proteger e aumentar seu já massivo comércio com os países do Indo-Pacífico, onde encontra mercados crescentes para bens e serviços franceses, sem mencionar armamentos franceses de ponta, como caças Rafale e submarinos. As vendas de armas dessa natureza contribuem muito para sustentar as indústrias de defesa da França, que Paris considera necessárias para manter sua autonomia estratégica.

Na verdade, os observadores australianos e americanos podem não reconhecer que o acordo submarino entre a França e a Austrália sempre foi, para a França, mais do que apenas empregos: tratava-se de manter vivas as indústrias de defesa francesas particularmente estratégicas, estratégico aqui se referindo a coisas vitais para a nação e sua habilidade de agir de forma independente no cenário mundial. Mais especificamente, isso se refere a armas nucleares e mísseis, aviões e navios necessários para desdobrá-los, o que também implica em propulsão nuclear. Essa é uma prioridade estratégica para a França e algo que a diferencia da Grã-Bretanha, que se sente confortável em contar com fornecedores americanos para componentes-chave de suas capacidades nucleares, por exemplo. Na verdade, em 1958, o Reino Unido e os EUA assinaram um acordo de compartilhamento de tecnologia nuclear, o fruto do qual inclui grande parte da tecnologia no coração das atuais ogivas nucleares do Reino Unido, bem como os mísseis e submarinos que as lançam. Mais ou menos na mesma época, a França notoriamente tomou outra direção, insistindo em ser capaz de fazer coisas vitais por si mesma, pelo menos porque a Paris do pós-guerra considerou imprudente confiar nos Estados Unidos para garantir sua segurança na era nuclear. O fato de fazer suas próprias coisas também significar empregos é a cereja do bolo.

As visões francesas sobre a China


No topo da lista de ameaças da França à ordem internacional no Indo-Pacífico está a aparente ambição da China de desafiar o domínio americano no Pacífico e sua ameaça à liberdade de navegação no Mar do Sul da China. As opiniões francesas sobre a China não são, portanto, fundamentalmente diferentes daquelas dos Estados Unidos. Deve-se notar também que, enquanto durante a Guerra Fria a França se apresentava como uma terceira via entre os Estados Unidos e a União Soviética, Macron deixou claro que desta vez a França está ao lado da América. Seria “inaceitável”, afirmou Macron, “alegar estar à mesma distância dos EUA que da China”, em grande parte porque a França e a América partilham valores, enquanto a França e a China não. Tecnicamente, Macron estava falando da posição da União Europeia, não da França, mas suas observações contrastam fortemente com os comentários da chanceler alemã, Angela Merkel, enfatizando a distância entre a UE e os EUA sobre a China. Em outras palavras, a visão de Macron era um ponto de vista francês e não europeu genérico. Ele estava falando pela França.

No entanto, há uma diferença significativa na maneira como a França se aproxima da China, ou pelo menos como a França fala sobre a China. A diplomacia francesa se concentra menos em desafiar a China do que em fortalecer os laços bilaterais e multilaterais entre todos aqueles que estão preocupados com a China, tudo em nome de causas genéricas como a defesa da liberdade dos mares e da “ordem baseada em regras” ou o combate à pirataria e proliferação. A França pode ver a China como a maior ameaça na região à liberdade dos mares e à ordem internacional baseada em regras, mas os franceses preferem evitar dizer isso em voz alta. Como explicou Macron em fevereiro, ele quer evitar um cenário em que a União Europeia e a comunidade internacional se unam “todas juntas contra a China”. Isso, ele explicou, tinha o maior potencial possível para conflito e seria “contraproducente” porque “forçará a China a aumentar sua estratégia regional” enquanto a pressiona a “diminuir sua cooperação” em outras questões de interesse global.

Convergência

A abordagem francesa se adapta a um amplo espectro de países, o que lhe confere uma vantagem em relação aos Estados Unidos. A ênfase da França em “valores compartilhados” ressoa com alguns, enquanto outros estão simplesmente com medo da China e desejam proteger o comércio internacional. Para a Austrália e o Japão, o relacionamento próximo da França com os EUA era um pré-requisito para relações mais estreitas com a França. Eles apostaram sua segurança nos Estados Unidos e apreciaram o fato de Paris e Washington DC terem se tornado muito mais próximos em questões de defesa e segurança, o que significa que nunca houve uma escolha entre a França e os Estados Unidos. Para muitos outros, o que importava mais era a distância da França dos EUA, por menor que fosse na prática. A parceria com a França era uma forma de se aproximar dos EUA sem se aliar a eles; isso até fornece uma medida de negação plausível.

Soldados franceses e indianos durante um exercício conjunto na Índia.

A Índia é um exemplo disso. Um relatório publicado pelo Senado francês em 2020 observou que o longo compromisso da Índia com o "não-alinhamento" durante a Guerra Fria significou que ela manteve distância dos EUA ao ser atraída pela França por causa da política francesa de se posicionar como uma terceira via entre os dois superpoderes. No entanto, os interesses indianos e americanos convergiram nos últimos anos. Isso pode ser visto na compra de armamento americano pela Índia, na assinatura de acordos bilaterais de defesa e na participação da Índia em exercícios militares. No entanto, a Índia “não desejava entrar em uma aliança restritiva com os Estados Unidos” e “os indianos não desejam abraçar a política americana em relação à China”. Essa preferência por afirmar a independência, sugere o relatório, é a razão por trás da decisão da Índia de comprar um sistema de defesa aérea russo. Nesse contexto, a França, com suas armas de alta tecnologia e uma política da China próxima da América, mas não idêntica, é um parceiro perfeito para a Índia. Também ajuda que a Austrália - outro parceiro de escolha para a França - esteja se tornando cada vez mais valiosa na estimativa da Índia. O resultado final para a França, de acordo com o relatório, é que o "amadurecimento" da Índia para a parceria com a França representa uma grande oportunidade para a França, não apenas por causa das enormes oportunidades econômicas que a Índia oferece. Além disso, a disposição da França de permitir que a Índia produza itens de defesa franceses na Índia está de acordo com o desejo da Índia de aumentar sua própria base industrial de defesa.

O interesse em uma fonte alternativa de armas ocidentais de ponta está, sem dúvida, ajudando a alimentar o boom das vendas de armas francesas aos países do Indo-Pacífico nos últimos anos: comprar armas de alta tecnologia da França é uma boa maneira de diversificar as fontes de tais itens enquanto evitando a bagagem política associada às armas americanas, chinesas ou russas. O fato das armas francesas não estarem sujeitas aos Regulamentos do Tráfico Internacional de Armas dos Estados Unidos (American International Traffic in Arms RegulationsITAR) também é uma vantagem.

O submarino francês Émeraude (S604) daMarine Nationale em patrulha na costa de Guam em 11 de dezembro de 2020.

A França também presume que sua força militar a torna atraente para os países do Indo-Pacífico, e Paris gosta de telegrafar que tem vontade e capacidade para usar a força na região. A participação francesa em maio deste ano no exercício anfíbio ARC21 envolvendo meios militares dos EUA, Austrália e Japão é um bom exemplo. Isso também ajuda a explicar por que a França tomou a atitude incomum de anunciar que seu submarino de ataque nuclear Émeraude havia visitado o Mar da China Meridional neste inverno, enquanto normalmente tal informação é mantida em segredo. Hugo Decis, um especialista naval do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos que observa as atividades navais francesas no Indo-Pacífico, também observou em e-mails ao autor como era incomum para a França enviar um submarino de ataque nuclear “a leste de Málaca”, em estreita cooperação com os EUA, Japão e Austrália e no Mar da China Meridional. Ele especulou que isso poderia ser uma “amostra do que está por vir para a Marinha francesa no Indo-Pacífico”, ou seja, operações “a leste de Malaca e em estreita cooperação com aliados e parceiros”, o que contrastava com desdobramentos mais típicas na área. No verão, em parte para demonstrar capacidades adicionais, a França desdobrou caças Rafale e aeronaves de apoio em territórios franceses no Pacífico. No final de junho, a mesma aeronave vôou para o Havaí e participou de exercícios de treinamento com aeronaves dos EUA antes de retornar pelo continente americano. Os franceses fizeram questão de parar em Langley, Virgínia, para comemorar o 240º aniversário da vitória franco-americana sobre os britânicos em Yorktown, nas proximidades.

Excluindo um aliado


A França está claramente determinada a ser um jogador importante no Indo-Pacífico, onde se beneficia da força militar e da convergência de interesses com uma ampla gama de parceiros. A França também pode ganhar muito dinheiro com as relações comerciais e vendas de armas que acompanham a melhoria das relações, ao mesmo tempo em que melhora seu perfil global. A França também tem tentado habilmente explorar seu próprio posicionamento cuidadoso em relação aos Estados Unidos, enquanto trabalha para garantir que tenha voz em tudo o que acontece na região e liberdade de manobra suficiente para agir da maneira que achar adequada.

Rejeitando a França como fizeram com o acordo AUKUS, Austrália, EUA e Reino Unido excluíram um aliado ansioso para aumentar seu papel na segurança do Indo-Pacífico e o fizeram de uma maneira que quase inteiramente coincidiu com os interesses americanos e australianos. Na verdade, ambos os países deveriam considerar uma maior integração francesa nos acordos de segurança do Indo-Pacífico como uma prioridade. Afinal, a França, além de seu hard power, pode complementar os EUA diplomaticamente apresentando-se como o não exatamente aliado americano da América, e também pode envolver a União Europeia, que é muito importante para as relações comerciais com a China pelo tamanho da economia europeia. Quanto ao Reino Unido, não está claro como ele ganha com o negócio AUKUS além de impulsionar seu próprio senso de relevância. O fato é que, depois do Brexit, o Reino Unido precisa se preocupar com suas relações com a França mais do que nunca, especialmente se Londres tem alguma preocupação com a segurança dentro e ao redor do continente europeu.

Michael Shurkin é um ex-oficial da CIA e cientista político sênior da RAND. Ele é diretor de programas globais da 14 North Strategies e fundador da Shurbros Global Strategies.

Bibliografia recomendada:

L'emergence d'une Europe de la défense:
Difficultés et perspectives.
Dejana Vukcevic.

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