Mostrando postagens com marcador Michel Goya. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Michel Goya. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Conheça os modernos filósofos da guerra franceses

 

Por Michael Shurkin, War on the Rocks, 5 de janeiro de 2018.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de fevereiro de 2021.

Para os franceses, o choque dos ataques terroristas de 2015 veio não apenas do horror dos eventos, mas também da percepção de que sua nação estava de fato, como o então presidente François Hollande disse a eles, em guerra com o ISIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante). Claro, a França vinha lutando contra grupos islâmicos em várias frentes há algum tempo. Ela enviou uma brigada para o Mali em 2013 para lutar contra os afiliados da Al-Qaeda, levando o Le Figaro a notar que, pela primeira vez, o governo francês estava usando a palavra com "g", ou seja, guerre (guerra), em vez de recorrer a eufemismos. No ano seguinte, a França estendeu sua missão no Mali a toda a região do Sahel (Operação Barkhane) e iniciou as operações no Iraque e na Síria contra o ISIL (Operação Chammall). A França também vinha travando uma guerra clandestina contra afiliados da Al-Qaeda no Chifre da África por vários anos, e as forças francesas lutaram e morreram ao lado de tropas americanas no Afeganistão. Os ataques de 2015 trouxeram a guerra para casa, não apenas por causa da carnificina em solo francês, mas porque o governo desdobrou, como parte da Operação Sentinela, cerca de 10.000 soldados encarregados de proteger locais "sensíveis", incluindo aeroportos e atrações turísticas, restaurantes kosher e sinagogas.

Para aceitar o fato de estarem em guerra, os franceses se voltaram não apenas para os intelectuais e comentaristas públicos usuais, mas também para uma espécie relativamente rara na França: os que podem ser chamados de especialistas em segurança nacional. Vários deles estão associados ao pequeno mas saudável ecossistema de think tanks da França, que se beneficiam do apoio do governo, e cujos pesquisadores às vezes vão de um lado para outro entre suas casas institucionais e o serviço governamental. Existem dois pensadores, no entanto, que se destacam tanto por causa de sua proeminência pública, mas também porque casam o melhor das tradições intelectuais da França com credenciais militares sérias. O General Vincent Desportes e o Coronel Michel Goya baseiam-se em carreiras focadas no estudo e na prática da guerra e compartilham uma visão mais sombria e hobbesiana do que normalmente se encontra nos debates públicos franceses. Isso por si só os torna guias atraentes para o mundo sombrio em que os franceses agora se encontram. Desportes e Goya também são incomuns em um país no qual se espera que os oficiais militares não falem em público ou compartilhem suas opiniões abertamente, um legado do Putsch de Argel de 1961. Depois que alguns oficiais do exército tentaram derrubar o presidente Charles de Gaulle e estabelecer uma junta militar, todos os lados acharam melhor que os militares falassem o menos possível.

De fato, Desportes supostamente arruinou sua carreira em 2010 quando, em uma entrevista ao Le Monde, criticou a estratégia americana no Afeganistão e a estratégia francesa de seguir os americanos. Isso lhe rendeu a ira do então ministro da Defesa Hervé Morin. Em um editorial de maio de 2016 no Le Monde, Desportes criticou o ex-primeiro-ministro Alain Juppé por insistir que os oficiais "calassem a boca ou saíssem". Mais recentemente, ele tem sido implacável em suas críticas ao novo presidente da França, Emmanuel Macron, por sua forma de lidar com os militares e por "incompetência".

Para os americanos, Desportes e Goya fornecem informações preciosas sobre as perspectivas de algumas das melhores mentes do Exército Francês, um exército que conta como o aliado mais ativo e capaz dos Estados Unidos. Os oficiais franceses merecem ser ouvidos porque são estudantes assíduos das forças armadas americanas e do modo de guerra americano. Eles oferecem críticas bem intencionadas, mas às vezes mordazes, que só podem vir de um amigo próximo. Desportes e Goya postulam que os americanos estão certos em acreditar que o “hard power” (poder duro/coercitivo) continua sendo indispensável, e que os legisladores não devem ter vergonha de ordenar suas forças armadas a derramarem sangue e correrem o risco de derramar seu próprio sangue. Eles também expressam sérias reservas sobre como os americanos lutam nas guerras e o que eles vêem como o "culto" à alta tecnologia dos militares americanos.

Vincent Desportes


Desportes é um oficial de cavalaria blindada aposentado. Como todos os oficiais-generais franceses, ele se formou no equivalente francês de West Point, Saint-Cyr, e cresceu por meio de um sistema que recompensa a destreza intelectual e a eloqüência junto com as habilidades de liderança. Ele também se formou no U.S. Army War College e serviu como adido de defesa nos Estados Unidos. Uma de suas últimas funções oficiais no serviço francês foi dirigir um dos mais proeminentes think tanks internos do Exército francês, o Centre de Doutrine et d'Emploi des Forces (Centro de Doutrina e de Emprego de Forças), que entre outras coisas combina algumas das funções do Comando de Treinamento e Doutrina do Exército dos EUA e seu Centro de Lições Aprendidas do Exército.

Desportes apresenta uma visão de mundo sombria em seus muitos ensaios e entrevistas publicados, bem como em seu trabalho recente mais importante, La dernière bataille de France: Lettre aux Français qui croient encore être défendus (Última batalha da França: Carta aos franceses que ainda pensam que são defendidos), escrita e publicada entre os ataques de janeiro e novembro de 2015. Seu ponto de partida nesse livro e ao longo de sua escrita é que o mundo é perigoso e a França deve ter a capacidade de agir militarmente e unilateralmente: “É hora de voltar à dura realidade do mundo para entender os limites da solidariedade internacional e, portanto, para restaurar nossa capacidade de defesa nacional.” Uma razão, ele argumenta, é que o futuro da França está tudo menos garantido. “Não é porque a França 'era' que a França 'será’”, escreve ele. Além disso, o poder militar da França é, em sua opinião, a única razão pela qual a França é importante.

O ceticismo de Desportes em relação ao internacionalismo reflete três preocupações. Uma é que nem sempre se pode esperar que países com interesses diferentes apoiem uns aos outros. Referindo-se ao filme de Steven Spielberg de 1998 sobre a invasão da Normandia, Desportes insiste na Última Batalha da França que o soldado Ryan é um mito, e a França não pode esperar que os americanos mais uma vez sacrifiquem os seus para salvá-la.

O segundo é o sentimento de complacência que o general pensa que os compromissos multinacionais fomentam. A OTAN tem seus usos, Desportes escreve no livro, “mas a organização se tornou a partir de agora mais perigosa do que útil, pois dá aos europeus uma falsa sensação de segurança, uma boa desculpa para renunciar aos seus próprios meios de defesa”.

A terceira preocupação é a americanização dos militares franceses. Qualquer pessoa familiarizada com as forças armadas da OTAN pode testemunhar a propagação da profunda influência das forças armadas dos EUA. Considere, por exemplo, o amplo uso de definições, termos (chavões), táticas e doutrinas militares americanas. Qualquer força operando em uma coalizão com americanos deve seguir as normas americanas e, mesmo sem a presença dos americanos, os militares da OTAN costumam recorrer a essas normas como referência comum.

Desportes desaprova por uma série de razões, entre elas seu desgosto pelo modo de guerra americano e pela cultura estratégica americana, que, ele argumenta, fetichiza a tecnologia e impede os estrategistas de compreenderem a natureza fundamentalmente política da maioria dos conflitos. Os americanos, diz ele, confundem guerra com duelo tecnológico. Eles constroem armas em prol de armas. Um caso em questão que ele oferece é a chamada “transformação” ou “revolução nos assuntos militares”, a ideia americana de que a tecnologia de rede digital combinada com munições de precisão estava revolucionando a guerra e oferecia aos Estados Unidos uma grande vantagem sobre seus oponentes. Ele cita a publicação militar americana Joint Vision 2010, que é repleta de entusiasmo por alta tecnologia, como um excelente exemplo do "credo" religioso das forças armadas americanas.

Desportes considera o modo de guerra americano como intrinsecamente falho e, em qualquer caso, muito caro para a França seguir. Necessita de equipamento tão caro que aqueles que não têm os bolsos fundos da América são forçados a reduzir suas forças para pagar por itens novos e atualizados, criando uma espécie de espiral mortal para forças armadas que já estão reduzindo seu tamanho por causa dos cortes no orçamento. A França e outras forças aliadas estão se tornando requintadas - ou seja, neste caso, altamente capazes e muito caras - mas raras. Isso é um problema porque, Desportes insiste, os números são importantes e a maioria dos conflitos exige o controle do espaço, em vez de simplesmente localizar e atacar o inimigo. O controle do espaço requer “volume”. O resultado é um exército francês que pode prevalecer em uma batalha, mas não pode vencer uma guerra.

Cortar orçamentos para financiar combates “ao estilo americano” também é problemático porque resulta em lacunas nas capacidades francesas, o que obriga a França a depender ainda mais da ajuda americana. De fato, a confiança da França nos Estados Unidos para conduzir suas operações militares (os Estados Unidos fornecem rotineiramente reabastecimento aéreo, transporte aéreo pesado e inteligência) dá a Washington um poder de veto de fato sobre muitas atividades militares francesas. Há muitos precedentes: os Estados Unidos usaram sua capacidade de diminuir o apoio às forças armadas francesas para limitar a ação francesa na Indochina, no Sinai e na Argélia, bem como em várias ocasiões na África. Capacidades diminuídas também se traduzem em resiliência diminuída e coerência operacional geral diminuída. Desportes compara "transformação" com a Linha Maginot, cujo custo, diz ele, forçou a França a cortar uma série de capacidades que reduziram a "coerência operacional" da força e enfraqueceram gravemente o todo. Para Desportes, está claro que o modo de guerra americano também não funciona para os americanos: eles perdem suas guerras.

Desportes apoiou a decisão de Hollande de declarar guerra ao ISIL e seu eventual envio de forças militares para o Iraque e a Síria, mas ele defendeu um compromisso maior do que o que Hollande estava preparado para fazer e preferiu se concentrar na África. Invocando a doutrina Pottery Barn de Colin Powell (você quebra, você compra) durante o depoimento perante o Senado francês, ele explicou que, como os Estados Unidos "quebraram" o Iraque e "criaram" o ISIL, eles deveriam assumir a liderança no tratamento do ISIL. A França, entretanto, “quebrou” a Líbia e tem uma participação direta na África, onde pode alavancar suas vantagens comparativas. Se dependesse de Desportes, a França teria um exército muito maior - grande o suficiente para vencer e grande o suficiente para lutar à maneira francesa em vez de seguir a liderança americana - e então apontá-lo-ia para o sul.

Há no pensamento dos Desportes, deve-se notar, mais do que um pouco da outra regra famosa de Powell, sua "Doutrina Powell". Isso pode ser resumido pelo ditado clássico americano "go big or go home" ("vá com tudo ou vá para casa"). Daí a crítica de Desportes em sua infame entrevista ao Le Monde sobre a abordagem de Obama no Afeganistão e a decisão de "aumentar" as forças dos EUA lá. “Todos sabiam”, afirmou Desportes, “o número deveria ser zero ou 100.000 a mais... Não se faz meias-guerras”.

Desportes também é um crítico ferrenho da Operação Sentinelle, que ele considera um mau uso dos militares e um desperdício de recursos. Os soldados simplesmente não são adequados para o que significa trabalho policial e patrulhamento das ruas da cidade, diz ele. Tempo e dinheiro gastos no Sentinelle são tempo e dinheiro que não estão sendo gastos na preparação para o tipo de conflito a que se destinam as forças armadas da França. Além disso, todos os soldados nas ruas francesas não estão disponíveis para o serviço em outro lugar. A Sentinelle, para Desportes, indica uma falha em entender para que servem os militares e sua contínua relevância no mundo de hoje. Ele argumenta que “o poder brando só funciona se você tiver um poder duro”, e a França não está investindo no tipo de poder duro que acredita que precisa para garantir sua segurança e ter uma voz no mundo.

O argumento de Desportes em favor do hard power e sua rejeição do multilateralismo - essencialmente, bom, mas perigoso confiar nele - contrasta fortemente com os repetidos apelos de muitos líderes europeus para que suas nações unam seus recursos militares, o que na maioria dos casos implicaria em abrir mão de algumas capacidades nacionais ou autonomia de ação. Os holandeses chegaram ao ponto de entregarem sua brigada aeromóvel ao Exército Alemão, onde faz parte da força de reação rápida da Alemanha, e agora estão integrando uma brigada de infantaria mecanizada em uma divisão Panzer alemã.

Talvez de maior interesse para o público americano seja a crítica de Desportes ao modo de guerra americano e sua obsessão por alta tecnologia. Ainda assim, parece claro que a tecnologia da qual ele desconfia é impossível de descartar agora que está aqui, mesmo que seus benefícios não sejam confirmados. Uma força militar que aspira a se manter em uma guerra até mesmo contra os russos pode se dar ao luxo de não investir em alta tecnologia? Curiosamente, para os militares franceses, a resposta parece ser "não". Avança com alta tecnologia na busca pela modernização. O Exército francês, por exemplo, está bem envolvido em um programa conhecido como SCORPION, que se assemelha ao fracassado Future Combat Systems americano e apresenta uma família de veículos blindados de última geração e outros equipamentos que se conectam a uma nova rede de computadores massiva. Por outro lado, a abordagem francesa para a guerra centrada na rede é comparativamente mais modesta em sua ambição e modesta sobre os benefícios esperados - de uma forma que talvez reflita o ceticismo de Desportes. Os franceses parecem estar se movendo em direção a algo como um meio-termo entre a visão de Desportes e o tipo de entusiasmo sem fôlego que alguém poderia ter encontrado no Pentágono no início dos anos 2000.

Outro problema com a escrita de Desportes é que, apesar de todas as suas críticas ao jeito americano (eles perdem suas guerras), raramente fica claro quais alternativas ele tem em mente. Como a França poderia ter lutado de maneira diferente no Afeganistão se possuísse os meios para lutar do seu jeito? Desportes não responde bem a essa pergunta, embora se possa inferir que ele poderia ter optado por não lutar se não houvesse recursos suficientes e nenhum caminho claro a seguir. Mais uma vez, lembramo-nos da Doutrina Powell.

Michel Goya


Goya serviu como soldado de infantaria nas tropas navais da França, uma parte do Exército francês que no século XIX fazia parte da Marinha e sempre teve uma vocação colonial e foco expedicionário. Ao contrário de Desportes, Goya subiu na hierarquia depois de servir como sargento e conquistou uma vaga em uma escola que contrata ex-alistados e graduados. Goya serviu na década de 1990 com as forças francesas nos Bálcãs, mas no final de sua carreira na ativa, ele assumiu um turno acadêmico como diretor de pesquisa no Centre de Doutrine et d'Emploi des Forces (Centro de Doutrina e de Emprego de Forças) e em sua organização irmã, o Institute de Recherche Stratégique de l'École Militaire (Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar), outro dos mais proeminentes think tanks da defesa francesa.

Como Desportes, Goya defendeu uma estratégia “África em Primeiro Lugar”, e os dois estão de acordo na maioria das questões. Mas enquanto Desportes favorece amplas pinceladas de nível estratégico, Goya se deleita com os detalhes de estudos de caso históricos, que ele apresenta em seu blog “La Voie de l'Épée” (O Caminho da Espada) e em antologias publicadas como a de 2011, Res Militaris. Ele é particularmente fascinado por como soldados, unidades de combate, exércitos e nações respondem ao choque do combate e como eles se adaptam conforme as ameaças evoluem. Goya acredita que o sucesso na guerra depende de certas qualidades humanas: é um artigo de fé para ele que exércitos que encorajam líderes inteligentes a se adaptar e improvisar podem prevalecer sobre forças maiores e mais bem equipadas. Assim, por exemplo, em Res Militaris, ele argumenta que as unidades da França Livre que lutaram ao lado dos britânicos na Líbia em 1941 superaram em muito as unidades francesas maiores e mais bem armadas que lutaram na França em 1940 porque os líderes da França Livre se adaptaram e improvisaram. Eles usaram suas armas de maneiras novas e encontrando soluções táticas para ameaças que haviam causado sofrimento às unidades francesas maiores.


Goya, como Desportes, critica fortemente a conduta americana no Afeganistão, e sua crítica deveria ser leitura obrigatória para aqueles que desejam compreender o curso dessa guerra. Mas sua análise mais instigante é a guerra de Israel contra o Hezbollah em 2006 (que Desportes também cita com frequência). Goya quer saber como um exército grande e tecnologicamente superior não conseguiu derrotar um inimigo muito menor. O problema, ele argumenta, era basicamente psicológico. Primeiro, Israel falhou em preparar seus soldados para o choque do combate. Seus líderes também não aceitaram que a guerra exigiria a perda de soldados, por isso evitou um ataque terrestre e manteve sua fé no poder aéreo - com o resultado de permitir que os civis alvos dos mísseis do Hezbollah suportassem o impacto da guerra enquanto protegiam as tropas (Goya teme que a França esteja fazendo a mesma coisa hoje em sua luta contra o ISIL, observando a disparidade entre o número de vítimas civis e vítimas militares francesas). Ele também argumenta que os líderes israelenses se comprometeram tanto com a transformação e com o modo de guerra americano que não conseguiam reconhecer a desconexão entre as capacidades que haviam adquirido com grande custo e o mundo real. A tecnologia rapidamente se revelou quase inútil, sugere Goya, e os líderes israelenses não conseguiram se adaptar.

Goya compara o modo de guerra americano em suas iterações americana ou israelense com um modo de luta nitidamente francês, personificado por seu próprio braço do Exército francês, os fuzileiros navais. Era e é normal para a França enviar pequenas formações de fuzileiros para pontos críticos e esperar que os oficiais subalternos lidem com situações perigosas contando com seus próprios recursos e inteligência.

O resultado, escreve Goya, é uma “abordagem abrangente” que se concentra em prestar atenção ao ambiente humano e às interações entre as tropas e as populações locais, em vez de depender da força bruta. Comparando a conduta francesa e americana no Afeganistão e em outros teatros, Goya descreve os americanos como menos ágeis - com comandantes de escalão inferior menos capacitados para agir e se adaptar por conta própria e muito mais dependentes do poder de fogo. O jeito americano, ele escreve, é mais seguro, mas exceto para aqueles raros conflitos em que destruir combatentes inimigos é de fato a chave para a vitória, geralmente não contribui para vencer guerras. O jeito francês busca estimular a adaptação, principalmente nos níveis mais baixos, com os “decisores” mais próximos da luta, e é menos focado em destruir o inimigo com poder de fogo. Também é mais barato, embora talvez mais caro em vidas dos soldados. Sua visão de comando é consistente com a adoção do comando de missão pelo Exército francês, que envolve capacitar os subordinados a descobrirem por si próprios como atingir seus objetivos, e fazer isso com o tipo de restrição de recursos a que os oficiais franceses estão acostumados.

Goya expressou repetidamente a frustração com a incapacidade da França (e da Europa) de reunir os recursos necessários para lutar e vencer o ISIL e aceitar os custos financeiros e humanos que uma guerra real exigiria. Logo após os ataques à bomba de março de 2016 em Bruxelas, por exemplo, ele redigiu uma resposta à onda usual de declarações como "Je suis Bruxelles" ou "Je suis Charlie", em vez disso declarando "Je suis la Guerre" (eu sou a guerra). Mais recentemente, em um artigo intitulado "La Drôle de Guerre: Update", Goya focou em duas operações contra-ISIL da França: Sentinelle, a missão de segurança interna e Chammal, a campanha aérea e terrestre no Iraque e na Síria. Com relação à Sentinelle, Goya é totalmente hostil a uma operação militar que causou a morte de menos de uma dúzia de terroristas, mas a um custo impressionante em termos de trabalho, dinheiro e tempo que o Exército poderia gastar em treinamento. “Não é certo que a vontade do Estado Islâmico tenha sido particularmente afetada”, escreve ele. Pelo contrário, “é provável que esteja satisfeito com a existência desta operação”. Goya parece preferir que os políticos aceitem o risco de que a retirada de tropas das ruas da França resulte em mais mortes de civis. Isso é guerra. Aqui, encontra-se também um eco de seu interesse pela psicologia da guerra: Goya insiste repetidamente que os formuladores de políticas devem entender o "verdadeiro" significado da guerra e preparar o público para seu custo real (ou seja, soldados voltando para casa em caixões).

Se a Sentinelle é muito grande e inútil, de acordo com Goya, a Chammal é muito pequena e muito mal adaptada ao seu objetivo declarado de erradicar o ISIL. Ele observa que as forças desdobradas pela França foram escassas:

"Dois grupos de treinamento, um grupo de forças especiais, um esquadrão de caças-bombardeiros que às vezes é reforçado por aeronaves navais... e uma bateria de quatro canhões de 155mm... Voilà, isso é tudo que a França é capaz de comprometer em uma guerra total (porque devemos lembrar que os dois adversários querem acabar um com o outro)."

Ele continua:

"Vamos dizer com clareza: não se está realmente procurando destruir [ISIL], mas sim "contribuir um pouco para a destruição" [do ISIL], sabendo muito bem que a maior parte do trabalho está sendo feito por forças locais no terreno, e que somos responsáveis apenas por cerca de 5% dos ataques aéreos da coalizão."

Goya está incomodado não apenas pela escassez do esforço da França, mas também por sua relutância em aceitar riscos. A França precisa estar disposta a arriscar a morte de seus soldados, em vez de procurar poupar soldados às custas de vidas de civis. Basicamente, ao enviar apenas alguns soldados por preocupação com sua segurança, acaba-se matando mais civis direta e indiretamente. Diretamente, porque o bombardeio aéreo, por mais cuidadoso que seja, invariavelmente mata civis, e indiretamente, porque ao optar por não conduzir uma campanha terrestre, está optando por não encerrar rapidamente o combate. O resultado é que “esta guerra é, portanto, a primeira em nossa história em que as perdas humanas são de quase 99% de civis”. Goya acrescenta: “É sempre surpreendente que tenhamos ido à guerra sem querer fazer guerra”.

A mensagem de Goya para os franceses se resume ao velho ditado romano: "Se você quer paz, prepare-se para a guerra". Ele procura dissipar as ilusões de que o hard power e o recurso às armas são menos importantes no mundo de hoje. Ele elabora uma visão de um modo de guerra francês, insistindo que ele oferece uma promessa maior do que o modo americano porque, essencialmente, aposta na inteligência e criatividade de seus jovens comandantes, em vez de tecnologia e poder de fogo. Claro, como aconteceu com Desportes, é difícil saber como a França poderia lutar no Afeganistão de forma diferente se pudesse lutar como quisesse, ou como poderia lutar contra a Rússia de forma diferente no caso de uma guerra na Europa Oriental.

É difícil avaliar quanta influência Desportes e Goya têm na opinião pública francesa, mas pelo menos está claro que eles conquistaram uma audiência relativamente grande graças aos seus escritos e às frequentes aparições na mídia. Além disso, o clima mudou. Hollande em 2015 anunciou que faria crescer o Exército francês pela primeira vez desde a Guerra da Argélia, formalmente pedindo uma suspensão dos cortes de defesa - movimentos Desportes e Goya aplaudiram enquanto mantinham dúvidas sobre o que viria a seguir. Macron também prometeu aumentar o orçamento de defesa, embora ainda não se veja até que ponto ele cumpre essa promessa. Enquanto isso, o interesse dos jovens em ingressar no exército disparou em 2015, e a França não parece ter problemas para cumprir suas metas de recrutamento, o que diz algo sobre a visão dos jovens franceses sobre as forças armadas e a ideia de lutar. As pesquisas indicam que o público tem os militares em alta conta e apóia fortemente as operações da França no exterior.

Para os americanos, os argumentos dos dois pensadores franceses a favor do hard power beiram o auto-evidente, já que o público americano tende a não questionar grandes orçamentos de defesa ou a necessidade de intervenções militares. A seriedade com que Desportes e Goya encaram a guerra, no entanto, torna sua opinião sobre como ela deve ser feita particularmente valiosa. Eles acreditam na necessidade de lutar e acreditam que se deve lutar para vencer, o que, por sua vez, levanta questões sobre quando se deve lutar e como. Embora certamente não critiquem os Estados Unidos por estarem dispostos a lutar, eles vêem problemas significativos no modo de guerra americano e concordam que os franceses devem evitar emulá-lo. Sua mensagem mais profunda, no entanto, é aquela que os líderes e públicos de ambos os países devem prestar atenção: a necessidade de ser honesto sobre o que é a guerra e o que ela exige.

Michael Shurkin é cientista político sênior da RAND Corporation, organização sem fins lucrativos e não-partidária.

Bibliografia recomendada:


Leitura recomendada:

O Estilo de Guerra Francês, 12 de janeiro de 2020.

O que um romance de 1963 nos diz sobre o Exército Francês, Comando da Missão, e o romance da Guerra da Indochina, 12 de janeiro de 2020.

COMENTÁRIO: Por que ler Beaufre hoje?12 de fevereiro de 2021.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A Arte da Guerra em Duna


Pelo Ten-Cel Michel Goya, La Vóie de l'Épée, 9 de janeiro de 2016.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de setembro de 2020.

O universo de Duna é um universo de grande riqueza, misturando em um estilo barroco, mas muito coerente, elementos inteiros de sociedades humanas passadas e elementos de pura imaginação. A guerra é praticada ali de uma maneira particular, mas permanece guerra com sua própria gramática.

Como destruir uma Casa Grande

O sistema político de Duna é o resultado de uma Grande Convenção (tipo Magna Carta) que rege as relações entre a Casa Imperial, os grandes senhores feudais reunidos na assembléia de Landsraad e a Guilda dos Navegantes que detém o monopólio dos vôos espaciais. A guerra é tolerada ali, desde que não perturbe esse equilíbrio de poder. É exercido principalmente entre Casas e às vezes, sob certas condições, entre o Trono e uma Casa. A Guilda é normalmente neutra.


Essas guerras são limitadas por três fatores. O primeiro é a fragmentação de poderes e a preocupação em evitar que um ator (a Casa Imperial de Corrino em primeiro lugar) se torne hegemônico. Qualquer casa que se torna muito poderosa vê os outros se unindo contra ela. A segunda restrição é a dos custos e, particularmente, dos custos de transporte. Normalmente as operações de mundo a mundo precisam passar pela Guilda e a projeção do espaço é muito cara. O último é a presença de armas atômicas. Seu uso é proibido pela Convenção, mas, ao contrário das máquinas pensantes, sua existência não é. Podemos, portanto, considerar (supondo que os princípios da dissuasão nuclear se apliquem da mesma forma às famílias e aos Estados-nação) que os "atômicos" mantêm um interesse em um segundo emprego improvável ou como ultima ratio.

As guerras, portanto, assumem uma forma ampla, uma vez que quase tudo pode ser usado contra o adversário - sabotagem econômica, corrupção, pressão diplomática, invasões, assassinatos, etc. - mas superficiais devido a esses limites de escalar aos extremos. Portanto, normalmente não terminam com a destruição do adversário. No entanto, dois fatores podem levar a que esses limites sejam empurrados ou mesmo ultrapassados: o ódio, como aquele que os Atreides e Harkonnens têm um pelo outro, e uma ameaça à circulação da especiaria, um elemento essencial para o funcionamento da Guilda e, portanto, também do Império.

A Terceira Guerra Mundial: Agosto de 1985.
General Sir John Hackett.

A busca pela destruição total de uma Grande Casa, como a dos Atreids, sem o uso primário das armas atômicas, é complexa. Uma estratégia convencional de primeiro ataque contra as armas atômicas inimigas é difícil, especialmente com o emprego de campos de força. A única solução é dominar o adversário com um ataque rápido e massivo o suficiente para atingir um resultado decisivo antes mesmo que a decisão de usar a arma final possa ser tomada. Esse foi o cenário de engajamento na "margem de erro" da dissuasão descrita pelo General Hackett em 1979 no livro A Terceira Guerra Mundial. Obviamente, esta é a escolha feita pelo barão Vladimir Harkonnen.

A dificuldade é que o custo da projeção de força e a eficácia dos campos de força de Holtzman (que podem ser comparados às muralhas de um castelo fortificado) favorecem a defesa em relação ao ataque. Para obter um equilíbrio de poder esmagador, é necessário, portanto, reunir uma massa considerável (e, portanto, ruinosa) e se possível beneficiar de uma "quinta coluna".

A massa é alcançada reunindo todas as forças Harkonnen e se beneficiando da ajuda de uma ou duas legiões de Sardaukar do Imperador, tanto qualitativas (um único Sardaukar vale vários combatentes "regulares") quanto quantitativas. Para Vladimir Harkonnen, é um risco duplo: militar primeiro porque se descobre em outro lugar, e financeiro, já que a expedição é ruinosamente custosa. O fracasso pode ser fatal para a Casa Harkonnen. Este é um risco político para o imperador Shaddam IV, a quem o Landsraad pode ver como tendo quebrado o equilíbrio e ajudado a destruir - o que é pior, por traição - uma Grande Casa. A divulgação desta intervenção pode desencadear uma guerra geral contra a Casa Corrino. Além disso, os Sardaukar, como os "voluntários" de certas épocas, lutam sob o uniforme de soldados Harkonnens. A quantidade é uma qualidade em si, e a massa utilizada para a operação, dez vezes maior que àquela estimada pelo mentato dos Atreides, Thufir Hawat, contribui para a surpresa estratégica. Ela também intervém antes que os Atreides sejam capazes de se fortalecer consideravelmente, graças à aliança com os Fremen.

Legionário Sardaukar.

O ataque maciço dos Harkonnens é consideravelmente facilitado pela "quinta coluna" presente no local, composta pelos agentes mantidos em Arrakis após a partida dos Harkonnens, e especialmente pelo traidor Yueh que não só abaixa os campos de força Holtzman de Arrakeen, mas também neutraliza o duque Leto. É um cavalo de Tróia, desta vez oposto aos Atreides, que permite tanto abrir as portas ao sitiante quanto matar o líder adversário, centro de gravidade clausewitziano desses atores políticos. Quando certos indivíduos são de importância desproporcional, eles devem ser colocados contra outros indivíduos, aqueles capazes de se aproximar deles para atingi-los.

Sob essas condições, o plano Harkonnen só poderia ter sucesso, mas como todos os planos complexos, não poderia ter sucesso total.

Aquiles e Holtzman


Em Duna, os combatentes aparentemente têm todo o armamento clássico da ópera espacial, feixes de laser e campos de força em particular, mas com aquela sutileza mutante que quando os dois se encontram causa uma explosão de intensidade variável, mas podendo ser até o de uma pequena arma atômica. Isso poderia dar origem a táticas suicidas interessantes (muito fáceis de conseguir com a concepção da vida humana que reina neste universo), especialmente contra os grandes escudos de proteção, mas Frank Herbert tacitamente as exclui. Na verdade, uma das duas tecnologias, o laser, é pouco utilizada, exceto quando não há risco de presença de escudos no campo adversário, o que é o caso em particular no deserto de Arrakis. Notemos de passagem que poderia ter sido o inverso - o escudo considerado muito perigoso - o que obviamente teria mudado as condições do combate, mas também todo o universo de Duna tanto quanto o combate faz o exército e o exército faz Estado.

O campo de força Holtzman se assemelha à armadura de cavaleiros pela quase-invulnerabilidade que fornece a seus portadores, no entanto, com duas diferenças notáveis: é infinitamente mais manobrável do que a armadura, o que nega a vantagem de mobilidade que poderia ter existido para benefício dos não-portadores leves, e acima de tudo é aparentemente barato, o que torna seu uso muito comum. Sua única fraqueza é que pode ser perfurado por objetos lentos, o que requer uma punhalada à arma branca. A alta tecnologia, portanto, requer paradoxalmente um retorno às formas ancestrais de confronto. Herbert exclui as táticas coletivas do tipo falange, que no entanto deveriam ser possíveis, em favor de um combate puramente homérico composto por um conjunto de confrontos individuais ou em pequenas equipes (pouco desenvolvidos pelo autor enquanto então pode-se ver imediatamente o benefício que pode haver em um ataque de dois homens a um portador de escudo). O combate em Duna exige excelência individual alcançada por meio de uma mistura de virtudes guerreiras - coragem e agressão em primeiro lugar - e domínio da esgrima. Adquirir essa excelência leva tempo e requer profissionalização de fato, bem como a constituição de uma aristocracia guerreira. Essa aristocracia desenvolve então uma cultura específica que lhe garante o monopólio da violência, o que por sua vez pode explicar a recusa de qualquer tática de massa, mas também a torna vulnerável ao aparecimento dessa mesma massa no campo de batalha. Civis amadores são excluídos de um campo de batalha onde não têm chance de sobrevivência, mas também são excluídos em grande parte das próprias guerras.

Ilíada e Odisséia.
Homero.

Na Ilíada, existem os heróis, que têm um nome, e os guerreiros anônimos que servem para defender os primeiros. Duna tem sua cota de heróis-esgrimistas como Duncan Idaho, Gurney Halleck ou Conde Fenring e seus soldados comuns que fazem o papel de bucha de espada. Duncan Idaho pode, portanto, se orgulhar de ter matado mais de 300 em nome do duque Leto. Mas os heróis são raros e, se forem extravagantes, dificilmente farão diferença em batalhas que são agregados de milhares de micro-batalhas. Frank Herbert, portanto, apresenta uma categoria intermediária que combina número e qualidade: combatentes de elite, como os Sardaukar, os Fremen e alguns Atreides. Os Fremen têm as qualidades guerreiras mais fortes, os Atreids são excelentes técnicos e os Sardaukar combinam as duas características em proporções menores. Cada um desses homens é capaz de derrotar vários soldados comuns, e sua presença decide o destino das batalhas. É de todo interesse a presença de Sardaukar (10 a 20% das tropas apenas) na força de ataque desdobrada por Vladimir Harkonnen contra os Atreides, com esse medo, no entanto, de que essas poucas brigadas pudessem ser usadas pelo Imperador para varrê-lo ele mesmo. O interesse desses combatentes de elite, evidente no nível tático, é ainda mais gritante no nível operacional quando se considera o custo da projeção interplanetária de um único homem.

Aliás, Frank Herbert insiste muito na importância de ambientes extremos, como o deserto de Arrakis ou a opressão do planeta-prisão Salusa Secundus, para desenvolver qualidades guerreiras. Ele certamente pensa nos beduínos árabes do século VII, que constituem seu modelo para os Fremen. Esta teoria é muito discutível, os ambientes extremos secretando especialmente sociedades adaptadas, mas congeladas ou mesmo aprisionadas. Os inuítes ou os índios amazônicos, por exemplo, nunca formaram um exército de conquistadores. Basicamente, essa teoria também assume que sociedades ricas e agradáveis ​​são frágeis e seus exércitos são fracos. A história, e especialmente a Segunda Guerra Mundial, mostra que as coisas são muito mais complexas.

Os Fremen são um caso especial no universo militar de Duna, pois ambos são perfeitamente adequados ao seu ambiente, muito resistentes em combate e numerosos. Assim, eles introduzem massa em uma escala desconhecida na equação. O ataque Harkonnen, considerado como considerável, mobilizou 10 legiões, sendo 100 brigadas ou algumas centenas de milhares de homens, onde o mentate Thufir Hawat esperava um ataque de no máximo algumas dezenas de milhares, o que parece constituir a norma das batalhas. Todos esses números também parecem muito baixos quando se trata de controlar um planeta inteiro, mas é verdade que as populações também não parecem grandes. Com uma população de cultura guerreira de dez milhões de Fremen, eleva-se para um potencial de dois a três milhões de combatentes adultos do sexo masculino e igual número de combatentes secundários. Isso obviamente muda a situação, como a chegada dos piqueiros suíços na segunda metade do século 15 ou o levée en masse revolucionário de 1792 mudaram a face da guerra travada até então na Europa com pequenos exércitos profissionais. Também podemos pensar nos contingentes profissionais ocidentais que enfrentam os 10 milhões de pashtuns em idade para portar armas no Afeganistão ou no Paquistão. A atitude e lealdade dos Fremen são, portanto, uma parte essencial da geopolítica do Império.

Operação de estabilização em Arrakis


À parte os casos, muito raros, de extermínio do inimigo, uma vitória militar torna-se vitória política apenas se houver aceitação da derrota por quem perdeu o duelo de armas. No esquema trinitário de Clausewitz, é o poder político que nota a derrota e aceita a paz, podendo o povo apenas seguir as decisões de seu governo. Se a ação militar não se contenta em apenas derrotar o exército adversário, mas também tem o efeito de destruir o poder político, nos privamos de um interlocutor e corremos o risco de ver aparecer um ou mais outros que vão continuar a guerra de outra maneira.

Os americanos não são os Harkonnens (talvez a Casa Imperial) e Paul Muad'dib não é Osama Bin Laden, Mullah Omar ou Saddam Hussein, mas a situação em Arrakis em 10191 após a captura de Arrakeen tem algumas semelhanças com aquela do Afeganistão em 2001 e especialmente do Iraque em 2003, mas um Iraque que seria o único produtor mundial de petróleo.

A guerra dos assassinos não termina com a morte do duque Leto, ela simplesmente se transforma. Os sobreviventes Atreides se juntam à endêmica guerra de guerrilha Fremen contra os Harkonnen, a quem eles odeiam, para constituir uma forma muito eficaz de "combate acoplado" entre um poder externo e combatentes locais. Os Fremen trazem o número, suas qualidades de luta e sua adaptação perfeita ao ambiente do deserto; os Atreides trazem os armamentos atômicos de família, uma "assistência técnica militar" e, acima de tudo, um líder carismático, uma mistura de Lawrence da Arábia, do Profeta Muhammad e do Mahdi sudanês. Não é mais uma reação de anticorpos a uma presença estrangeira hostil, mas uma verdadeira jihad.

Diante dessa oposição, que vai se desenvolvendo gradativamente, surge sistematicamente o problema do diagnóstico inicial, quase sempre com a tentação de minimizá-lo e modelá-lo de acordo com suas necessidades. Para o governo francês em 1954, os ataques do Toussaint Rouge* na Argélia foram perpetrados por bandidos e para o comando americano em 2003, os ataques da guerrilha que surgiram no triângulo sunita iraquiano em maio-junho foram os últimos tiros do regime deposto e do seu líder em fuga. Essa avaliação inicial condiciona uma resposta difícil de se livrar depois. Afastando-se da política tradicional de pura exploração econômica (em todos os sentidos da palavra) do planeta Arrakis, e pouco prejudicada por considerações humanitárias que só existem, na melhor das hipóteses, no âmbito dos signatários da Grande Convenção, os Harkonnnens e os Imperiais que recuperaram o controle de Arrakis viam os Fremen como um incômodo que devia ser eliminado pelo extermínio.

Taticamente, nos encontramos novamente no caso clássico de uma força tecnologicamente superior enfrentando uma guerra de guerrilha protegida por sua adaptação a um ambiente particular e protetor (selva, montanha, população local de campos de arroz ou cidades do Eufrates). Os Fremen, por outro lado, não se beneficiam da proteção dos escudos Holtzman, que têm a particularidade dos irritantes vermes da areia. A tentação é forte para os Harkonnens de limitar os riscos usando o domínio do ar para rastrear o inimigo com o laser.


A essa estratégia de desgaste, de outra forma ineficaz, os Fremen coordenados por Paul Atreides responderam com uma estratégia de pressão econômica, impedindo que o inimigo explorasse a especiaria. Os Sardaukar deixaram a frente e os Harkonnen recusaram-se a fazer o esforço de treinar combatentes aptos ao deserto, até porque, segundo um padrão clássico nas ditaduras, a realidade da situação no terreno estava mascarada no topo da organização. Depois de alguns anos, a estratégia de jogo Go* de Paul Atreides tornou possível controlar a maior parte do planeta e provocar uma aceleração de eventos. A ameaça finalmente óbvia à produção de especiarias provoca tanto a formação de uma coalizão de Casas liderada pelo Imperador e, portanto, a possibilidade de um confronto decisivo em nível intergaláctico, mas também, de forma mais sutil, o controle da Guilda dos Navegantes totalmente dependente da especiaria. Assim, chegamos ao estágio final e ao fim da guerra popular, conforme descrito por Mao Tsé-Tung. A batalha final contra o imperador é o equivalente a Dien Bien Phu em 10196.

O principal problema tático que surge novamente é o de remover o escudo de defesa do Imperador. O modo de ação usado é uma grande tempestade de areia cuja eletricidade estática é conhecida por saturar o campo de força. Isso requer primeiro destruir as montanhas que bloqueiam sua passagem e é aqui que intervêm os armamentos atômicos. O tabu atômico é, portanto, quebrado, em verdade de maneira indireta por um emprego em um obstáculo natural, para permitir a penetração no campo adversário. Com a superioridade numérica dos Fremen e o uso surpresa de vermes da areia, a continuação da luta não está mais em dúvida. Estranhamente, a luta termina com um duelo homérico, um risco considerável já que a pessoa do Muad'Dib é tão importante e que não se justifica estrategicamente.


Post script: notas do tradutor

Jornal com o Toussaint Rouge como capa.

O Toussaint Rouge, também conhecido como Toussaint Sanglante é o nome dado à série de ataques que ocorreram em 1 de novembro de 1954 - o festival católico do Dia de Todos os Santos - na Argélia Francesa. Normalmente é considerada a data de início da Guerra da Argélia, que durou até 1962 e levou à independência da Argélia da França. Os ataques ocorreram da meia-noite às duas da manhã, com 30 ataques a bomba e sabotagem em alvos policiais e militares; matando 4 militares franceses, 4 civis pied-noirs (franceses nascidos na Argélia) e 2 argelinos, com 1 pied-noir ferido.

Tabuleiro de Go.

O Go é um jogo de tabuleiro abstrato de estratégia para dois jogadores, em que o objetivo é cercar mais território do que o oponente. O jogo foi inventado na China há mais de 2.500 anos e acredita-se que seja o mais antigo jogo de tabuleiro continuamente jogado até os dias de hoje. Um documentário fez a comparação de que Giap e o comando norte-vietnamita em Hanói estavam jogando Go enquanto Westmoreland e o comando americano em Saigon estavam jogando Xadrez.

Bibliografia recomendada:




Leitura recomendada:


sábado, 29 de agosto de 2020

COMENTÁRIO: Quando se está no deserto...


Pelo Tenente-Coronel Michel Goya, La Voie de l'Épée, 24 de agosto de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 28 de agosto de 2020.

Às vezes, imaginamos que nossas operações no exterior seguem grandes projetos e planos bem elaborados com objetivos estratégicos de longo prazo claros. Nada está mais longe da verdade.

Na verdade, agimos, ou mais frequentemente, reagimos simplesmente porque o Presidente da República decidiu que algo tinha que ser feito, geralmente muito rapidamente, para responder, a pedido: um grito de socorro de um chefe de Estado ligado à França, uma forte emoção veiculada pela mídia ou a pedido dos Estados Unidos, muito mais raramente da União Européia. Trata-se sobretudo da imagem que o presidente quer dar de si e / ou da França como "en être" ("ser"), pesar em coalizão, agradar a..., justificar nosso assento permanente no Conselho de Segurança etc. Tudo isso conta mais do que o que você realmente deseja alcançar no terreno, o famoso "estado final desejado" que os militares exigem sem que seja frequentemente satisfeito. No nível político, "fazer" muitas vezes já é um fim em si mesmo e a imprecisão do "por que" é liberdade de ação. Quanto ao horizonte de tempo, raramente ultrapassa um ano, dois ou três no máximo.

Patrulha francesa no Vale de Uzbin, no Afeganistão.

Na prática, então, engajamo-nos e aí vemos, persuadidos em 80% de que o assunto será encerrado rapidamente. Lembremo-nos do Ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian, no início de dezembro de 2013, anunciando um engajamento na República Centro-Africana por seis meses, e depois criticando os “autoproclamados especialistas” que apontaram que estava lá sem dúvida, uma previsão um pouco otimista. Esta operação, Sangaris, finalmente terminará três anos depois. Um erro de fator seis é bastante comum.

O erro de previsão é de fato comum, principalmente quando neste nível de decisão não sabemos a complexidade da região na qual intervimos. Concentrados no problema atual, esquecemos cada vez mais que em torno dele também podem acontecer coisas muito importantes, uma crise econômica, a Primavera Árabe, o colapso de um Estado vizinho em nossa área de atuação, alguma crise séria qualquer que seja no Leste Europeu, um grande ataque terrorista em nosso solo, uma pandemia, etc. Muitas coisas externas, na verdade, vão mudar a situação local. É verdade que raramente estamos interessados ​​em eventos de baixa probabilidade, mesmo que sejam possíveis grandes choques e quando imaginamos sistematicamente que estaremos deixando um teatro de operações no próximo ano, estamos convencidos de que seu ambiente não terá tempo para se mover.

Combatentes da GIA durante a Guerra Civil Argelina (1991-2002).

Em suma, sempre anunciamos algo rápido buscando no curso da ação o fim que justificará que este será curto. Nossa atual campanha militar no Sahel não é exceção. Pequeno passo para trás. Tudo começou em 2008 quando nosso inimigo local, a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (Al-Qaida au Maghreb islamique, AQIM), ex-Grupo Salafista para a Pregação e Combate (Groupe salafiste pour la prédication et le Combat, GSPC) e, em parte, o ex-Grupo Islâmico Armado (Groupe Islamiste Armé, GIA) que planejava esmagar um avião comercial em Paris, e ataques organizados e assassinatos de franceses na França e na Argélia, decide trazer a luta contra nós para o Sahel. A AQIM era então baseada no norte do Mali, a zona cega da região em uma aceitação mais ou menos tácita de Argel e Bamako, desde que a organização visasse os outros. Na região, a AQIM assassina e, especialmente, sequestra cidadãos europeus e, em particular, franceses.

A tendência geral da França, então, é claramente para o abandono militar da África, a fim de voltar os olhos mais promissores para as monarquias do Golfo. No entanto, uma exceção foi feita para enfrentar a AQIM ao decidir reforçar a guerra secreta do DGSE* por um dispositivo do Comando de Operações Especiais (Commandement des opérations spéciales, COS), cujo ex-comandante é o chefe de gabinete privado do presidente Sarkozy. Esta campanha discreta inclui primeiro um componente de ajuda e reforço dos exércitos locais, a Mauritânia aceita e dará as boas-vindas enquanto o Mali se recusa. Em 2010, um pequeno grupo de forças especiais, Sabre, foi destacado para Burkina Faso para uma ação direta contra a AQIM.O dispositivo é leve e discreto. Parece adaptado ao contexto. Com a aproximação da eleição presidencial, provavelmente esperamos ter resultados decisivos, libertando concretamente o maior número possível de reféns, nos próximos dois anos, e tanto quanto possível para prejudicar a AQIM.

*Nota do Tradutor: Direction générale de la sécurité extérieure (DGSE), a Direção Geral da Segurança Exterior, o serviço secreto francês. Sucessor do antigo Serviço de Documentação Exterior e de Contra-Espionagem (Service de documentation extérieure et de contre-espionnage, SDECE) da Guerra Fria, e conhecido coloquialmente como "2e Bureau".

Ato pró-Assad em Damasco, capital da Síria, durante a Primavera Árabe, 28 de novembro de 2011.

E então as coisas mudam muito rapidamente desde o final de 2011 em grande parte devido a, voltamos a isso, turbulências do ambiente e não particularmente à Primavera Árabe. O principal fenômeno, então, é o rápido aumento do poder dos grupos armados, que, coincidentemente, estão se desenvolvendo especialmente no norte do Mali. Podemos ver tanto a volta do movimento nacionalista tuaregue, quanto um retorno ao significado original desde o fim do regime do coronel Kadafi, com a criação do Movimento Nacional pela Libertação de Azawad (Mouvement national de libération de l’Azawad, MNLA) e a formação de organizações jihadistas que recrutaram mais localmente do que os argelinos da AQIM, como o Movimento pela Unicidade e Jihad na África Ocidental (Mouvement pour l’unicité et le jihad en Afrique de l’Ouest, MUJAO) ou Ansar Dine. Essas pessoas não são psicopatas vindos do planeta Marte, são movimentos políticos com um estabelecimento necessariamente local, muitas vezes seguindo o padrão daquele estado, e um exército de voluntários que se juntam às fileiras por múltiplas razões. E enquanto elas existirem, essas razões fornecerão voluntários.

Eles também não são superpotências militares. Cada uma dessas organizações tem pouco mais de mil combatentes permanentes, mas diante do vácuo, pouco já é muito. Cada uma das katibas* desses grupos, colunas PKMR (Pick-up, Kalashnikovs, Metralhadoras, RPG-7) de cerca de 200 combatentes bastante motivados, competentes e adaptados ao ambiente, possui vários níveis táticos de lacuna em tudo que as Forças Armadas Malinenses (Forces Armées MaliennesFAMa) podem alinhar do lado oposto. Ou seja, cada luta será automaticamente uma derrota, às vezes contundente, para as FAMa. O Mali, seu estado paralisado e corrupto, seu exército logicamente no mesmo estado, estão, portanto, em uma posição extremamente vulnerável. Pior, o estado do Mali está sofrendo de "inércia consciente". Ele vê os problemas, mas o esforço para lidar com eles é muito grande. Assim, ele observa a catástrofe acontecer, mas não pode se mover para evitá-la.

*NT: Uma katiba é uma formação tradicional da África do norte e Sahel, geralmente uma formação ligeira valor companhia, com uma centena de homens, ou pelotão - com 30 homens - variando em número e composição. Seu nome ficou famoso na Guerra da Argélia por ser a unidade de base da ALN (o braço armado da FLN), e foi adotado pelos grupos insurrecionais magrebinos. O nome Katiba também serviu de título para o romance de Jean-Christophe Rufin, de 2010, em referência à AQMI.

Katiba.
De Jean-Christophe Rufin, 400 páginas, 2010.

A esta altura, poderíamos ter feito algo, nós franceses? Somos então monopolizados pela eleição presidencial e pela corrida entre os candidatos para acelerar a retirada do Afeganistão. Depois das experiências do Iraque e do Afeganistão, a tendência não é mais para as intervenções. Para os europeus que são por natureza cautelosos com as operações militares, o tempo para grandes intervenções, mesmo as mais brandas, acabou, elas não se repetirão. Para os europeus menos cautelosos, leia-se os britânicos, os danos diretos ou indiretos dessas experiências deixaram sua ferramenta militar em um estado ainda pior do que o nosso. Mesmo os americanos estão mais hesitantes sob a presidência de Obama. Não foi bem compreendido na época, mas somos os últimos entre os países ocidentais a não sermos inibidos por experiências recentes. Pelo contrário, guerrear e lutar, depois do Afeganistão, não são mais palavras ruins.

No período recente, em 2012, quando nosso contingente afegão se retirava (sem seus intérpretes), estávamos no escuro. Ninguém nas fileiras imaginava que estaríamos envolvidos em uma operação de guerra de curto prazo em grande escala. Nosso inimigo no momento era o Bercy e para economizar nossos orçamentos, estávamos até começando a falar, com horror, em envolvimento com a segurança interna. A figura imposta das apresentações em PowerPoint da época era a evocação do importante papel do exército japonês na gestão do desastre do tsunami de Fukushima. E então tudo muda.

O Mali começa a explodir no início de 2012. Ato 1, o MNLA, às vezes auxiliado por outros grupos armados, expulsa as FAMa do norte do país e proclama a independência de Azawad. Ato 2, o desastre desencadeia um golpe de Estado que paralisa as instituições por meses. Ato 3 grupos jihadistas expulsam o MNLA e dividem o norte do país, que se torna, antes mesmo do retorno em vigor do Estado Islâmico no Iraque, um primeiro proto e lamentável estado controlado e administrado por jihadistas. E aí percebemos que não há quem realmente se oponha... exceto a França, mas há também o dilema africano: intervimos, somos acusados de intrusão neocolonial; não intervimos, somos acusados de não prestar assistência a um país amigo em perigo. Portanto, estamos relutantes. A solução que surge então é necessariamente africana com o restabelecimento das instituições do Mali sob a égide da CEDEAO*. A CEDEAO também vai formar uma força inter-africana, a Missão Internacional de Apoio ao Mali sob Liderança Africana (Mission internationale de soutien au Mali sous conduite africaine, MISMA), para ajudar as FAMa a restaurar a autoridade do Estado em todo o país. Veremos que é muito superficial, mas parece consistente. O recém-eleito presidente Hollande afirma que a França apoiará a MISMA e as FAMa. Portanto, de volta ao antigo modo de ação de apoio e suporte, como a Operação Noroit em Ruanda ou Manta-Épervier no Chade. Isso funciona se o nível tático das forças apoiadas não estiver muito longe daquele das forças inimigas. Este raramente é o caso.

*NT: Communauté économique des États de l'Afrique de l'Ouest, Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental.

Soldados malinenses, armados e equipados de forma semelhante aos jihadistas, durante a Operação Serval, 2013.

O problema é que a solução da CEDEAO não funciona bem. A MISMA, como todas as forças inter-africanas, leva muito tempo para se estabelecer. Como todas as coalizões, leva muito tempo para discutir a participação de uns e outros, especialmente porque não existe uma “nação-quadro” para fazer 80% do trabalho. Precisamos de alguns equipamentos específicos, para transporte e comando em particular, e acima de tudo um financiamento suficiente que só pode vir de fora, o que pode levar anos. Além disso, fica claro, em retrospecto, que a MISMA foi malfeita e que o plano não teria dado certo.

Todas essas dificuldades para gerar forças são tão recorrentes que eram previsíveis em 2012. Ainda assim, continuamos e, à força da espera, é o inimigo que ataca primeiro.

Em janeiro de 2013, a MISMA ainda não estava lá, o exército malinense não fez nenhum progresso e não consideramos/desejamos/pudemos posicionar um batalhão francês em pontos-chave no centro do país. Portanto, não há nada sólido e a coluna PKMR de Ansar Dine rumo ao sul está destinada a penetrá-lo como manteiga doce e semear a desordem.

Soldados malinense e francês na Operação Serval, 2013.

É o pânico. O presidente interino Dioncounda Traoré pede ajuda diretamente a François Hollande. O Presidente da República aceita e de repente nos reconectamos com tudo o que foi nossa força nas operações das décadas de 1960 e 1970: rápido processo decisório estratégico, proximidade de forças pré-posicionadas, reatividade de forças em alerta e, sobretudo, tomadas de risco e combate assumidas.

É claro que, embora a ajuda dos Aliados com o transporte aéreo, uma de nossas fraquezas recorrentes, seja inestimável, nenhum deles está se juntando a nós na linha de frente. Os países da UE não estão combatendo e, para muitos, não estão interessados na África. No local, empregamos diplomaticamente à frente as FAMa, depois os batalhões africanos da MISMA que chegam com urgência, mas na realidade são os franceses que vão para o camarote, com o corajoso contingente chadiano.

As forças francesas com as forças africanas e as forças armadas do Mali continuam a controlar o anel do Níger e a consolidar o sistema militar nas cidades de Timbuktu e Gao com a instalação de vários elementos da MISMA e das FAMa. Enquanto os ataques aéreos continuam ao norte de Kidal, o exército chadiano entrou na cidade para protegê-la.

Uma coluna das Forças Armadas do Chade servindo no Mali (Forces armées tchadiennes en intervention au Mali, FATIM), em algum lugar entre Kidal e Tessalit. Esses homens desempenharam um papel fundamental na guerra contra a AQMI.

Em três meses, as batalhas mais importantes foram vencidas, todas as cidades foram libertadas e a base da AQIM destruída. É modelo do gênero. No entanto, o inimigo não é destruído, mas sobretudo expulso. No máximo, eliminamos 20% do potencial dos grupos jihadistas, preservando os grupos tuaregues que se mantiveram discretos e até nos ajudaram contra os jihadistas. Foi bom na época, mas gerou críticas depois.

Esta campanha acabou, mas a guerra continua. O que fazer? Poderíamos sair do Mali e voltar à postura ligeira anterior, mesmo que isso signifique fortalecer a nossa capacidade de intervenção regional no caso de um novo problema grave. Escolhemos ficar no Mali, para “unir forças” com as eleições presidenciais do Mali em agosto de 2013, da qual esperávamos muito, depois “a sucessão”.

É uma ilusão. Não medimos (poderíamos, no entanto, não faltaram os alertas) o grau de "inércia consciente" do Mali, depois do vizinho Burkina Faso. Quanto à sucessão, como imaginar que o exército malinense se tornasse subitamente eficaz e legítimo graças aos cursos de formação da missão da União Europeia (European Union Training Mission in MaliEUTM)? Sejamos sérios. Um exército é um conjunto que certamente inclui a aquisição de competências básicas, mas também é uma adaptação ao ambiente de engajamento, equilíbrios, recrutamento, supervisão, gestão de carreira, etc. É impossível separar o funcionamento de um exército do Estado que o emprega. Desde 2013, a EUTM treinou ou retreinou mais de 14.000 soldados malinenses, várias vezes o que grupos irregulares podem formar no total na região. Por qual resultado? Nunca deixamos de ficar espantados (mas não surpreendidos) pela indignação do Almirante Guillaud, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da época, quando um oficial francês da EUTM mencionou a superficialidade da sua missão.

Almirante Édouard Guillaud, Chefe do Estado-Maior dos Exércitos Franceses, discursando na Place de la République em Estrasburgo, em 28 de junho de 2013, durante a mudança de comando no Eurocorps entre os generais Olivier de Bavinchove e Guy Buchsenschmidt.

Plano B: a Missão de Estabilização Multidimensional Integrada das Nações Unidas no Mali (Mission multidimensionnelle intégrée des Nations unies pour la stabilisation au Mali, MINUSMA). Tanto para os meios que são desdobrados com bastante rapidez. As nações voluntárias são sempre numerosas para participar dessas operações em que as Nações Unidas pagam por tudo. Efetivamente, existe o financiamento de um milhão de euros para desdobrar uma força multinacional que acaba por incluir 13.000 soldados, o que é mais uma vez várias vezes o número de combatentes irregulares em linha no Mali. Laurent Fabius, Ministro das Relações Exteriores, falou sobre isso com trêmulos na voz. Ele não sabia, portanto, que a MINUSMA, como todas as missões das Nações Unidas, não teria muita utilidade a um custo muito alto, uma vez que seria incapaz de organizar qualquer operação militar? Pior, a MINUSMA era tão fraca que pedia ajuda aos franceses contra os grupos armados. Como uma sucessão, é um fracasso.

Plano C: a força conjunta do G5-Sahel. Em si, é uma boa ideia criar um estado-maior comum e, a montante, uma escola de guerra comum em Nouakchott, capaz de comandar operações do tamanho de uma brigada. Mas foi só em 2017 que essa força foi oficialmente criada e, três anos depois, ainda está muito pouco operacional, pelos mesmos motivos mencionados acima para o MISMA.

Soldado chadiano e operador das forças especiais franceses em um posto de controle no Mali. As forças especiais francesas estabeleceram 7 destacamentos de ligação e apoio (détachements de liaison et d’appui, DLA) no seio de batalhões africanos da MINUSMA.

Nada que não fosse previsível em tudo isso, mas decidimos ficar no Mali e esperar. Estávamos mesmo tão confiantes de que no final de 2013 nos engajávamos também em uma operação de estabilização na República Centro-Africana (os seis meses descritos acima) que está se revelando mais difícil do que pensávamos, então mais alguns meses mais tarde no Iraque para estar na foto da nova coalizão americana. Poucos meses depois, no início de 2015, 10.000 soldados foram engajados nas ruas da França sem grande visão. Em todo caso, mostrar que estávamos fazendo supera, no espírito do político, a utilidade do fazer. Empilhamos sem nunca saber como retirar. O lado bom é que embora o contexto estratégico não tenha mudado de forma alguma (estava escrito em todos os lugares que um dia haveria ataques na França, pouco antes da linha sobre possíveis pandemias), a política de Defesa muda em tudo.


Obviamente, à força de meios reduzidos de dispersão, não sobra muito para o que tende a se tornar um deserto dos tártaros. Já que você não pode mudar muito a realidade, você começa mudando seu nome. A Barkhane substitui a Serval, mas é apenas uma questão de colocar racionalmente todas as forças da região sob um comando. Para fazer o quê? É fácil quando você tem apenas um martelo como ferramenta, você apenas bate. Além de raides e ataques, a Barkhane bate e espera. Ao custo de perder um soldado a cada dois meses em média e ao custo de um milhão de euros por combatente inimigo eliminado, espera-se depois de sete anos que o Mali deixe de ser inerte, que uma verdadeira força venha sabe-se lá de onde se proponha a nos suceder ou que uma mudança extraordinária remexa tudo de cabeça pra baixo. Com um pouco de sorte, pode nos ser favorável imaginar uma nova aventura em um ano e se ela durar mais tempo, será que teremos caído de novo em uma armadilha ainda previsível.

Michel Goya, tenente-coronel e editor do Centro de Doutrina de Emprego de Forças (Exército), é responsável por fornecer feedback das operações francesas e estrangeiras na região da Ásia/Oriente Médio. Ele é o autor de La Chair et l'Acier (Paris, Tallandier, 2004), que se concentra no processo de evolução tática do exército francês durante a Primeira Guerra Mundial. Este livro foi traduzido como A Invenção da Guerra Moderna pela Bibliex. Goya também foi o autor do livro Sous le Feu: La mort comme hypothèse de travail (traduzido no Brasil como Sob Fogo: A morte como hipótese de trabalho).

Bibliografia recomendada:







Leitura recomendada: