sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Conheça os modernos filósofos da guerra franceses

 

Por Michael Shurkin, War on the Rocks, 5 de janeiro de 2018.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de fevereiro de 2021.

Para os franceses, o choque dos ataques terroristas de 2015 veio não apenas do horror dos eventos, mas também da percepção de que sua nação estava de fato, como o então presidente François Hollande disse a eles, em guerra com o ISIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante). Claro, a França vinha lutando contra grupos islâmicos em várias frentes há algum tempo. Ela enviou uma brigada para o Mali em 2013 para lutar contra os afiliados da Al-Qaeda, levando o Le Figaro a notar que, pela primeira vez, o governo francês estava usando a palavra com "g", ou seja, guerre (guerra), em vez de recorrer a eufemismos. No ano seguinte, a França estendeu sua missão no Mali a toda a região do Sahel (Operação Barkhane) e iniciou as operações no Iraque e na Síria contra o ISIL (Operação Chammall). A França também vinha travando uma guerra clandestina contra afiliados da Al-Qaeda no Chifre da África por vários anos, e as forças francesas lutaram e morreram ao lado de tropas americanas no Afeganistão. Os ataques de 2015 trouxeram a guerra para casa, não apenas por causa da carnificina em solo francês, mas porque o governo desdobrou, como parte da Operação Sentinela, cerca de 10.000 soldados encarregados de proteger locais "sensíveis", incluindo aeroportos e atrações turísticas, restaurantes kosher e sinagogas.

Para aceitar o fato de estarem em guerra, os franceses se voltaram não apenas para os intelectuais e comentaristas públicos usuais, mas também para uma espécie relativamente rara na França: os que podem ser chamados de especialistas em segurança nacional. Vários deles estão associados ao pequeno mas saudável ecossistema de think tanks da França, que se beneficiam do apoio do governo, e cujos pesquisadores às vezes vão de um lado para outro entre suas casas institucionais e o serviço governamental. Existem dois pensadores, no entanto, que se destacam tanto por causa de sua proeminência pública, mas também porque casam o melhor das tradições intelectuais da França com credenciais militares sérias. O General Vincent Desportes e o Coronel Michel Goya baseiam-se em carreiras focadas no estudo e na prática da guerra e compartilham uma visão mais sombria e hobbesiana do que normalmente se encontra nos debates públicos franceses. Isso por si só os torna guias atraentes para o mundo sombrio em que os franceses agora se encontram. Desportes e Goya também são incomuns em um país no qual se espera que os oficiais militares não falem em público ou compartilhem suas opiniões abertamente, um legado do Putsch de Argel de 1961. Depois que alguns oficiais do exército tentaram derrubar o presidente Charles de Gaulle e estabelecer uma junta militar, todos os lados acharam melhor que os militares falassem o menos possível.

De fato, Desportes supostamente arruinou sua carreira em 2010 quando, em uma entrevista ao Le Monde, criticou a estratégia americana no Afeganistão e a estratégia francesa de seguir os americanos. Isso lhe rendeu a ira do então ministro da Defesa Hervé Morin. Em um editorial de maio de 2016 no Le Monde, Desportes criticou o ex-primeiro-ministro Alain Juppé por insistir que os oficiais "calassem a boca ou saíssem". Mais recentemente, ele tem sido implacável em suas críticas ao novo presidente da França, Emmanuel Macron, por sua forma de lidar com os militares e por "incompetência".

Para os americanos, Desportes e Goya fornecem informações preciosas sobre as perspectivas de algumas das melhores mentes do Exército Francês, um exército que conta como o aliado mais ativo e capaz dos Estados Unidos. Os oficiais franceses merecem ser ouvidos porque são estudantes assíduos das forças armadas americanas e do modo de guerra americano. Eles oferecem críticas bem intencionadas, mas às vezes mordazes, que só podem vir de um amigo próximo. Desportes e Goya postulam que os americanos estão certos em acreditar que o “hard power” (poder duro/coercitivo) continua sendo indispensável, e que os legisladores não devem ter vergonha de ordenar suas forças armadas a derramarem sangue e correrem o risco de derramar seu próprio sangue. Eles também expressam sérias reservas sobre como os americanos lutam nas guerras e o que eles vêem como o "culto" à alta tecnologia dos militares americanos.

Vincent Desportes


Desportes é um oficial de cavalaria blindada aposentado. Como todos os oficiais-generais franceses, ele se formou no equivalente francês de West Point, Saint-Cyr, e cresceu por meio de um sistema que recompensa a destreza intelectual e a eloqüência junto com as habilidades de liderança. Ele também se formou no U.S. Army War College e serviu como adido de defesa nos Estados Unidos. Uma de suas últimas funções oficiais no serviço francês foi dirigir um dos mais proeminentes think tanks internos do Exército francês, o Centre de Doutrine et d'Emploi des Forces (Centro de Doutrina e de Emprego de Forças), que entre outras coisas combina algumas das funções do Comando de Treinamento e Doutrina do Exército dos EUA e seu Centro de Lições Aprendidas do Exército.

Desportes apresenta uma visão de mundo sombria em seus muitos ensaios e entrevistas publicados, bem como em seu trabalho recente mais importante, La dernière bataille de France: Lettre aux Français qui croient encore être défendus (Última batalha da França: Carta aos franceses que ainda pensam que são defendidos), escrita e publicada entre os ataques de janeiro e novembro de 2015. Seu ponto de partida nesse livro e ao longo de sua escrita é que o mundo é perigoso e a França deve ter a capacidade de agir militarmente e unilateralmente: “É hora de voltar à dura realidade do mundo para entender os limites da solidariedade internacional e, portanto, para restaurar nossa capacidade de defesa nacional.” Uma razão, ele argumenta, é que o futuro da França está tudo menos garantido. “Não é porque a França 'era' que a França 'será’”, escreve ele. Além disso, o poder militar da França é, em sua opinião, a única razão pela qual a França é importante.

O ceticismo de Desportes em relação ao internacionalismo reflete três preocupações. Uma é que nem sempre se pode esperar que países com interesses diferentes apoiem uns aos outros. Referindo-se ao filme de Steven Spielberg de 1998 sobre a invasão da Normandia, Desportes insiste na Última Batalha da França que o soldado Ryan é um mito, e a França não pode esperar que os americanos mais uma vez sacrifiquem os seus para salvá-la.

O segundo é o sentimento de complacência que o general pensa que os compromissos multinacionais fomentam. A OTAN tem seus usos, Desportes escreve no livro, “mas a organização se tornou a partir de agora mais perigosa do que útil, pois dá aos europeus uma falsa sensação de segurança, uma boa desculpa para renunciar aos seus próprios meios de defesa”.

A terceira preocupação é a americanização dos militares franceses. Qualquer pessoa familiarizada com as forças armadas da OTAN pode testemunhar a propagação da profunda influência das forças armadas dos EUA. Considere, por exemplo, o amplo uso de definições, termos (chavões), táticas e doutrinas militares americanas. Qualquer força operando em uma coalizão com americanos deve seguir as normas americanas e, mesmo sem a presença dos americanos, os militares da OTAN costumam recorrer a essas normas como referência comum.

Desportes desaprova por uma série de razões, entre elas seu desgosto pelo modo de guerra americano e pela cultura estratégica americana, que, ele argumenta, fetichiza a tecnologia e impede os estrategistas de compreenderem a natureza fundamentalmente política da maioria dos conflitos. Os americanos, diz ele, confundem guerra com duelo tecnológico. Eles constroem armas em prol de armas. Um caso em questão que ele oferece é a chamada “transformação” ou “revolução nos assuntos militares”, a ideia americana de que a tecnologia de rede digital combinada com munições de precisão estava revolucionando a guerra e oferecia aos Estados Unidos uma grande vantagem sobre seus oponentes. Ele cita a publicação militar americana Joint Vision 2010, que é repleta de entusiasmo por alta tecnologia, como um excelente exemplo do "credo" religioso das forças armadas americanas.

Desportes considera o modo de guerra americano como intrinsecamente falho e, em qualquer caso, muito caro para a França seguir. Necessita de equipamento tão caro que aqueles que não têm os bolsos fundos da América são forçados a reduzir suas forças para pagar por itens novos e atualizados, criando uma espécie de espiral mortal para forças armadas que já estão reduzindo seu tamanho por causa dos cortes no orçamento. A França e outras forças aliadas estão se tornando requintadas - ou seja, neste caso, altamente capazes e muito caras - mas raras. Isso é um problema porque, Desportes insiste, os números são importantes e a maioria dos conflitos exige o controle do espaço, em vez de simplesmente localizar e atacar o inimigo. O controle do espaço requer “volume”. O resultado é um exército francês que pode prevalecer em uma batalha, mas não pode vencer uma guerra.

Cortar orçamentos para financiar combates “ao estilo americano” também é problemático porque resulta em lacunas nas capacidades francesas, o que obriga a França a depender ainda mais da ajuda americana. De fato, a confiança da França nos Estados Unidos para conduzir suas operações militares (os Estados Unidos fornecem rotineiramente reabastecimento aéreo, transporte aéreo pesado e inteligência) dá a Washington um poder de veto de fato sobre muitas atividades militares francesas. Há muitos precedentes: os Estados Unidos usaram sua capacidade de diminuir o apoio às forças armadas francesas para limitar a ação francesa na Indochina, no Sinai e na Argélia, bem como em várias ocasiões na África. Capacidades diminuídas também se traduzem em resiliência diminuída e coerência operacional geral diminuída. Desportes compara "transformação" com a Linha Maginot, cujo custo, diz ele, forçou a França a cortar uma série de capacidades que reduziram a "coerência operacional" da força e enfraqueceram gravemente o todo. Para Desportes, está claro que o modo de guerra americano também não funciona para os americanos: eles perdem suas guerras.

Desportes apoiou a decisão de Hollande de declarar guerra ao ISIL e seu eventual envio de forças militares para o Iraque e a Síria, mas ele defendeu um compromisso maior do que o que Hollande estava preparado para fazer e preferiu se concentrar na África. Invocando a doutrina Pottery Barn de Colin Powell (você quebra, você compra) durante o depoimento perante o Senado francês, ele explicou que, como os Estados Unidos "quebraram" o Iraque e "criaram" o ISIL, eles deveriam assumir a liderança no tratamento do ISIL. A França, entretanto, “quebrou” a Líbia e tem uma participação direta na África, onde pode alavancar suas vantagens comparativas. Se dependesse de Desportes, a França teria um exército muito maior - grande o suficiente para vencer e grande o suficiente para lutar à maneira francesa em vez de seguir a liderança americana - e então apontá-lo-ia para o sul.

Há no pensamento dos Desportes, deve-se notar, mais do que um pouco da outra regra famosa de Powell, sua "Doutrina Powell". Isso pode ser resumido pelo ditado clássico americano "go big or go home" ("vá com tudo ou vá para casa"). Daí a crítica de Desportes em sua infame entrevista ao Le Monde sobre a abordagem de Obama no Afeganistão e a decisão de "aumentar" as forças dos EUA lá. “Todos sabiam”, afirmou Desportes, “o número deveria ser zero ou 100.000 a mais... Não se faz meias-guerras”.

Desportes também é um crítico ferrenho da Operação Sentinelle, que ele considera um mau uso dos militares e um desperdício de recursos. Os soldados simplesmente não são adequados para o que significa trabalho policial e patrulhamento das ruas da cidade, diz ele. Tempo e dinheiro gastos no Sentinelle são tempo e dinheiro que não estão sendo gastos na preparação para o tipo de conflito a que se destinam as forças armadas da França. Além disso, todos os soldados nas ruas francesas não estão disponíveis para o serviço em outro lugar. A Sentinelle, para Desportes, indica uma falha em entender para que servem os militares e sua contínua relevância no mundo de hoje. Ele argumenta que “o poder brando só funciona se você tiver um poder duro”, e a França não está investindo no tipo de poder duro que acredita que precisa para garantir sua segurança e ter uma voz no mundo.

O argumento de Desportes em favor do hard power e sua rejeição do multilateralismo - essencialmente, bom, mas perigoso confiar nele - contrasta fortemente com os repetidos apelos de muitos líderes europeus para que suas nações unam seus recursos militares, o que na maioria dos casos implicaria em abrir mão de algumas capacidades nacionais ou autonomia de ação. Os holandeses chegaram ao ponto de entregarem sua brigada aeromóvel ao Exército Alemão, onde faz parte da força de reação rápida da Alemanha, e agora estão integrando uma brigada de infantaria mecanizada em uma divisão Panzer alemã.

Talvez de maior interesse para o público americano seja a crítica de Desportes ao modo de guerra americano e sua obsessão por alta tecnologia. Ainda assim, parece claro que a tecnologia da qual ele desconfia é impossível de descartar agora que está aqui, mesmo que seus benefícios não sejam confirmados. Uma força militar que aspira a se manter em uma guerra até mesmo contra os russos pode se dar ao luxo de não investir em alta tecnologia? Curiosamente, para os militares franceses, a resposta parece ser "não". Avança com alta tecnologia na busca pela modernização. O Exército francês, por exemplo, está bem envolvido em um programa conhecido como SCORPION, que se assemelha ao fracassado Future Combat Systems americano e apresenta uma família de veículos blindados de última geração e outros equipamentos que se conectam a uma nova rede de computadores massiva. Por outro lado, a abordagem francesa para a guerra centrada na rede é comparativamente mais modesta em sua ambição e modesta sobre os benefícios esperados - de uma forma que talvez reflita o ceticismo de Desportes. Os franceses parecem estar se movendo em direção a algo como um meio-termo entre a visão de Desportes e o tipo de entusiasmo sem fôlego que alguém poderia ter encontrado no Pentágono no início dos anos 2000.

Outro problema com a escrita de Desportes é que, apesar de todas as suas críticas ao jeito americano (eles perdem suas guerras), raramente fica claro quais alternativas ele tem em mente. Como a França poderia ter lutado de maneira diferente no Afeganistão se possuísse os meios para lutar do seu jeito? Desportes não responde bem a essa pergunta, embora se possa inferir que ele poderia ter optado por não lutar se não houvesse recursos suficientes e nenhum caminho claro a seguir. Mais uma vez, lembramo-nos da Doutrina Powell.

Michel Goya


Goya serviu como soldado de infantaria nas tropas navais da França, uma parte do Exército francês que no século XIX fazia parte da Marinha e sempre teve uma vocação colonial e foco expedicionário. Ao contrário de Desportes, Goya subiu na hierarquia depois de servir como sargento e conquistou uma vaga em uma escola que contrata ex-alistados e graduados. Goya serviu na década de 1990 com as forças francesas nos Bálcãs, mas no final de sua carreira na ativa, ele assumiu um turno acadêmico como diretor de pesquisa no Centre de Doutrine et d'Emploi des Forces (Centro de Doutrina e de Emprego de Forças) e em sua organização irmã, o Institute de Recherche Stratégique de l'École Militaire (Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar), outro dos mais proeminentes think tanks da defesa francesa.

Como Desportes, Goya defendeu uma estratégia “África em Primeiro Lugar”, e os dois estão de acordo na maioria das questões. Mas enquanto Desportes favorece amplas pinceladas de nível estratégico, Goya se deleita com os detalhes de estudos de caso históricos, que ele apresenta em seu blog “La Voie de l'Épée” (O Caminho da Espada) e em antologias publicadas como a de 2011, Res Militaris. Ele é particularmente fascinado por como soldados, unidades de combate, exércitos e nações respondem ao choque do combate e como eles se adaptam conforme as ameaças evoluem. Goya acredita que o sucesso na guerra depende de certas qualidades humanas: é um artigo de fé para ele que exércitos que encorajam líderes inteligentes a se adaptar e improvisar podem prevalecer sobre forças maiores e mais bem equipadas. Assim, por exemplo, em Res Militaris, ele argumenta que as unidades da França Livre que lutaram ao lado dos britânicos na Líbia em 1941 superaram em muito as unidades francesas maiores e mais bem armadas que lutaram na França em 1940 porque os líderes da França Livre se adaptaram e improvisaram. Eles usaram suas armas de maneiras novas e encontrando soluções táticas para ameaças que haviam causado sofrimento às unidades francesas maiores.


Goya, como Desportes, critica fortemente a conduta americana no Afeganistão, e sua crítica deveria ser leitura obrigatória para aqueles que desejam compreender o curso dessa guerra. Mas sua análise mais instigante é a guerra de Israel contra o Hezbollah em 2006 (que Desportes também cita com frequência). Goya quer saber como um exército grande e tecnologicamente superior não conseguiu derrotar um inimigo muito menor. O problema, ele argumenta, era basicamente psicológico. Primeiro, Israel falhou em preparar seus soldados para o choque do combate. Seus líderes também não aceitaram que a guerra exigiria a perda de soldados, por isso evitou um ataque terrestre e manteve sua fé no poder aéreo - com o resultado de permitir que os civis alvos dos mísseis do Hezbollah suportassem o impacto da guerra enquanto protegiam as tropas (Goya teme que a França esteja fazendo a mesma coisa hoje em sua luta contra o ISIL, observando a disparidade entre o número de vítimas civis e vítimas militares francesas). Ele também argumenta que os líderes israelenses se comprometeram tanto com a transformação e com o modo de guerra americano que não conseguiam reconhecer a desconexão entre as capacidades que haviam adquirido com grande custo e o mundo real. A tecnologia rapidamente se revelou quase inútil, sugere Goya, e os líderes israelenses não conseguiram se adaptar.

Goya compara o modo de guerra americano em suas iterações americana ou israelense com um modo de luta nitidamente francês, personificado por seu próprio braço do Exército francês, os fuzileiros navais. Era e é normal para a França enviar pequenas formações de fuzileiros para pontos críticos e esperar que os oficiais subalternos lidem com situações perigosas contando com seus próprios recursos e inteligência.

O resultado, escreve Goya, é uma “abordagem abrangente” que se concentra em prestar atenção ao ambiente humano e às interações entre as tropas e as populações locais, em vez de depender da força bruta. Comparando a conduta francesa e americana no Afeganistão e em outros teatros, Goya descreve os americanos como menos ágeis - com comandantes de escalão inferior menos capacitados para agir e se adaptar por conta própria e muito mais dependentes do poder de fogo. O jeito americano, ele escreve, é mais seguro, mas exceto para aqueles raros conflitos em que destruir combatentes inimigos é de fato a chave para a vitória, geralmente não contribui para vencer guerras. O jeito francês busca estimular a adaptação, principalmente nos níveis mais baixos, com os “decisores” mais próximos da luta, e é menos focado em destruir o inimigo com poder de fogo. Também é mais barato, embora talvez mais caro em vidas dos soldados. Sua visão de comando é consistente com a adoção do comando de missão pelo Exército francês, que envolve capacitar os subordinados a descobrirem por si próprios como atingir seus objetivos, e fazer isso com o tipo de restrição de recursos a que os oficiais franceses estão acostumados.

Goya expressou repetidamente a frustração com a incapacidade da França (e da Europa) de reunir os recursos necessários para lutar e vencer o ISIL e aceitar os custos financeiros e humanos que uma guerra real exigiria. Logo após os ataques à bomba de março de 2016 em Bruxelas, por exemplo, ele redigiu uma resposta à onda usual de declarações como "Je suis Bruxelles" ou "Je suis Charlie", em vez disso declarando "Je suis la Guerre" (eu sou a guerra). Mais recentemente, em um artigo intitulado "La Drôle de Guerre: Update", Goya focou em duas operações contra-ISIL da França: Sentinelle, a missão de segurança interna e Chammal, a campanha aérea e terrestre no Iraque e na Síria. Com relação à Sentinelle, Goya é totalmente hostil a uma operação militar que causou a morte de menos de uma dúzia de terroristas, mas a um custo impressionante em termos de trabalho, dinheiro e tempo que o Exército poderia gastar em treinamento. “Não é certo que a vontade do Estado Islâmico tenha sido particularmente afetada”, escreve ele. Pelo contrário, “é provável que esteja satisfeito com a existência desta operação”. Goya parece preferir que os políticos aceitem o risco de que a retirada de tropas das ruas da França resulte em mais mortes de civis. Isso é guerra. Aqui, encontra-se também um eco de seu interesse pela psicologia da guerra: Goya insiste repetidamente que os formuladores de políticas devem entender o "verdadeiro" significado da guerra e preparar o público para seu custo real (ou seja, soldados voltando para casa em caixões).

Se a Sentinelle é muito grande e inútil, de acordo com Goya, a Chammal é muito pequena e muito mal adaptada ao seu objetivo declarado de erradicar o ISIL. Ele observa que as forças desdobradas pela França foram escassas:

"Dois grupos de treinamento, um grupo de forças especiais, um esquadrão de caças-bombardeiros que às vezes é reforçado por aeronaves navais... e uma bateria de quatro canhões de 155mm... Voilà, isso é tudo que a França é capaz de comprometer em uma guerra total (porque devemos lembrar que os dois adversários querem acabar um com o outro)."

Ele continua:

"Vamos dizer com clareza: não se está realmente procurando destruir [ISIL], mas sim "contribuir um pouco para a destruição" [do ISIL], sabendo muito bem que a maior parte do trabalho está sendo feito por forças locais no terreno, e que somos responsáveis apenas por cerca de 5% dos ataques aéreos da coalizão."

Goya está incomodado não apenas pela escassez do esforço da França, mas também por sua relutância em aceitar riscos. A França precisa estar disposta a arriscar a morte de seus soldados, em vez de procurar poupar soldados às custas de vidas de civis. Basicamente, ao enviar apenas alguns soldados por preocupação com sua segurança, acaba-se matando mais civis direta e indiretamente. Diretamente, porque o bombardeio aéreo, por mais cuidadoso que seja, invariavelmente mata civis, e indiretamente, porque ao optar por não conduzir uma campanha terrestre, está optando por não encerrar rapidamente o combate. O resultado é que “esta guerra é, portanto, a primeira em nossa história em que as perdas humanas são de quase 99% de civis”. Goya acrescenta: “É sempre surpreendente que tenhamos ido à guerra sem querer fazer guerra”.

A mensagem de Goya para os franceses se resume ao velho ditado romano: "Se você quer paz, prepare-se para a guerra". Ele procura dissipar as ilusões de que o hard power e o recurso às armas são menos importantes no mundo de hoje. Ele elabora uma visão de um modo de guerra francês, insistindo que ele oferece uma promessa maior do que o modo americano porque, essencialmente, aposta na inteligência e criatividade de seus jovens comandantes, em vez de tecnologia e poder de fogo. Claro, como aconteceu com Desportes, é difícil saber como a França poderia lutar no Afeganistão de forma diferente se pudesse lutar como quisesse, ou como poderia lutar contra a Rússia de forma diferente no caso de uma guerra na Europa Oriental.

É difícil avaliar quanta influência Desportes e Goya têm na opinião pública francesa, mas pelo menos está claro que eles conquistaram uma audiência relativamente grande graças aos seus escritos e às frequentes aparições na mídia. Além disso, o clima mudou. Hollande em 2015 anunciou que faria crescer o Exército francês pela primeira vez desde a Guerra da Argélia, formalmente pedindo uma suspensão dos cortes de defesa - movimentos Desportes e Goya aplaudiram enquanto mantinham dúvidas sobre o que viria a seguir. Macron também prometeu aumentar o orçamento de defesa, embora ainda não se veja até que ponto ele cumpre essa promessa. Enquanto isso, o interesse dos jovens em ingressar no exército disparou em 2015, e a França não parece ter problemas para cumprir suas metas de recrutamento, o que diz algo sobre a visão dos jovens franceses sobre as forças armadas e a ideia de lutar. As pesquisas indicam que o público tem os militares em alta conta e apóia fortemente as operações da França no exterior.

Para os americanos, os argumentos dos dois pensadores franceses a favor do hard power beiram o auto-evidente, já que o público americano tende a não questionar grandes orçamentos de defesa ou a necessidade de intervenções militares. A seriedade com que Desportes e Goya encaram a guerra, no entanto, torna sua opinião sobre como ela deve ser feita particularmente valiosa. Eles acreditam na necessidade de lutar e acreditam que se deve lutar para vencer, o que, por sua vez, levanta questões sobre quando se deve lutar e como. Embora certamente não critiquem os Estados Unidos por estarem dispostos a lutar, eles vêem problemas significativos no modo de guerra americano e concordam que os franceses devem evitar emulá-lo. Sua mensagem mais profunda, no entanto, é aquela que os líderes e públicos de ambos os países devem prestar atenção: a necessidade de ser honesto sobre o que é a guerra e o que ela exige.

Michael Shurkin é cientista político sênior da RAND Corporation, organização sem fins lucrativos e não-partidária.

Bibliografia recomendada:


Leitura recomendada:

O Estilo de Guerra Francês, 12 de janeiro de 2020.

O que um romance de 1963 nos diz sobre o Exército Francês, Comando da Missão, e o romance da Guerra da Indochina, 12 de janeiro de 2020.

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