segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

O fim da visão de longo prazo da China


Por Robet N. Hein, The Strategy Bridge, 21 de janeiro de 2016.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 4 de outubro de 2019.

Muitas vezes é creditado à China a visão de longo prazo para atingir seus objetivos estratégicos; no entanto, esse luxo pode estar chegando ao fim. Há uma história frequentemente citada sobre o ex-primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, que, quando questionado sobre os efeitos da Revolução Francesa na China, demonstrou a longa visão chinesa ao responder: "É muito cedo para dizer". Os estrategistas dos EUA, por outro lado, costumam ter uma capacidade limitada de planejar além da administração atual. Eles observaram a China crescer lentamente em poder, tanto militarmente quanto economicamente, nas últimas décadas, com um objetivo discutível a longo prazo de substituir os EUA como a potência global dominante, concentrando o tempo todo seus esforços em guerras no Oriente Médio. A China permaneceu nas sombras da segurança global, raramente se aventurando a enfrentar mesmo desafios regionais, esperando que sua ascensão gradual, a longo prazo e hegemônica, se tornasse um fait accompli [fato consumado]. Essa esperança agora pode estar em risco.

Zhou Enlai e Henry Kissinger. Henry Kissinger é geralmente creditado por perguntar a Zhou Enlai sobre os efeitos da Revolução Francesa na China.
(Bettmann/Corbis)

Demografia


Um pôster chinês de 1986 defendendo a Política de Filho-Único.
(Projetado por Zhou Yuwei)

Uma população em expansão com escassos recursos agrícolas levou os líderes chineses a adotarem uma Política de Filho-Único em 1979. Embora essa política atenuasse o crescimento exponencial da população e impedisse uma catástrofe malthusiana, o efeito é um envelhecimento demográfico que pesará muitíssimo sobre o poder/controle chinês nas próximas décadas. Em resumo, uma multidão relativamente pequena com menos de 30 anos precisará apoiar uma multidão muito maior com mais de 70 anos. As ramificações já estão sendo sentidas. Em 2012, a força de trabalho da China diminuiu em 3,5 milhões e está prevista a continuação de seu declínio. Algumas estimativas indicam que em 2020, Xangai, uma cidade com quase 15 milhões de pessoas, terá uma população na qual um terço terá mais de 60 anos. Além disso, o Wall Street Journal estima que em meados do século a população da China será composta de 186 homens solteiros para cada 100 mulheres solteiras, uma receita para o aumento do crime e da dissensão (e também uma taxa de natalidade em declínio contínua). A capacidade da China de manter uma força de trabalho auto-sustentável está diminuindo rapidamente.

Uma economia em desaceleração

A China experimentou um crescimento meteórico na sua economia, alcançando anos de crescimento contínuo superiores a 10%. Esses dias acabaram. O crescimento trimestral mais recente da China ficou abaixo de 7%, com as projeções continuando em declínio na próxima década e além. Por que isso importa? Se a China quiser se tornar uma potência global, precisará de fundos para isso. Esse dinheiro deve ser usado para investimento externo, compras militares e desenvolvimento contínuo da infraestrutura. Manter o crescimento do poder militar e econômico da China se tornará mais difícil e em breve começará um declínio lento e potencialmente irrecuperável.

A armadilha da classe média

Chineses tirando uma foto em frente a uma loja da Gucci.

Um terceiro fator que contribui para a desaceleração da China é um fenômeno chamado armadilha da classe média, em que um país transita de uma economia pobre para uma classe média através de manufatura e têxteis básicos. A dificuldade está em desenvolver essas habilidades para levar a industrialização para o próximo nível, como fornecer educação e treinamento para as novas indústrias. A China não conseguiu desenvolver sua infraestrutura educacional para atender a seus requisitos. Os ricos são capazes de enviar seus filhos para o exterior, e a China envia mais de um quarto de milhão de seus estudantes para faculdades e universidades dos EUA. No entanto, sua incapacidade de atender à demanda educacional internamente limitará sua capacidade de atender às exigências domésticas profissionais, limitando assim sua capacidade de fazer a transição para uma economia avançada. Basicamente, a China é ótima em fazer “coisas”, mas quanto a China realmente desenvolveu? É claro que, à medida que a classe média aumenta e os salários melhoram, as indústrias em busca de mão-de-obra barata migram para outros lugares, como Indonésia, Malásia ou Vietnã, deixando a China em busca de funcionários e incapaz de desenvolvimento contínuo. Embora não seja inevitável, muitos países latino-americanos como o Brasil caíram nessa armadilha. Eles não podem competir com países com maiores capacidades em bens e serviços com uso intensivo de tecnologia. Porque, como a China, eles nunca desenvolveram as políticas e o ambiente institucional para dar o salto para o desenvolvimento econômico industrial ou de alta tecnologia - o que geralmente é chamado de política industrial.

Pluralismo crescente

A Revolução do Guarda-Chuva de Hong Kong na praça do Almirantado em 10 de dezembro de 2014.
(Pasu Au Yeung)

Os protestos estão em ascensão na China, especialmente os de pequena escala, com dezenas ou algumas centenas de pessoas presentes, ocorrem com freqüência. Em 1º de janeiro, por exemplo, houve manifestações em Pequim, Nanchang, Nanquim, Hangzhou, Wuhan, Changde e Dalian. Embora nem sempre sejam politicamente motivados, eles estão crescendo em número. E em 2015, milhares de manifestantes tomaram as ruas de Hong Kong com guarda-chuvas para reduzir os efeitos previstos do gás lacrimogêneo. Embora Hong Kong seja um caso um tanto especial, essas “manifestações-de-guarda-chuva” mostram uma desconexão entre o governo e as pessoas não vista desde os protestos de 1989 na Praça Tienanmen. O governo da China está mais preocupado com seus próprios cidadãos do que com ameaças externas. Isso é evidente por um orçamento de segurança interna de 769,1 bilhões de yuans, que excede o muito divulgado orçamento de defesa chinês de 740,6 bilhões de yuans. O Partido Comunista está descobrindo o preço de uma economia mais forte: uma classe média que exige direitos básicos. Em 2014, a liderança chinesa estava tão preocupada com sua situação doméstica que o Partido Comunista instruiu as autoridades do partido a cortarem: promoção da democracia constitucional; promoção de valores universais; promoção de direitos individuais; neoliberalismo; imprensa aberta; niilismo histórico (questionando a interpretação da história do partido); e questionar reformas. Este não é um sinal de uma administração saudável, mas de uma que se vê em perigo. O Partido Comunista está lutando para limitar as sementes da democracia.

Conclusão

Com uma população em envelhecimento, uma economia em desaceleração, e uma classe média crescente desejosa de liberdades individuais, a China não tem mais o luxo de buscar uma hegemonia global gradual. A percepção de que o crescimento contínuo e irrestrito está terminando ajuda a explicar o senso de urgência que a China está exibindo através do rápido crescimento militar e do alcance econômico global dos últimos anos. A China não encontra mais conforto em um horizonte infinito de eventos; ao contrário, estão chegando ao reconhecimento de que o declínio é iminente. O poder da China ainda está subindo, mas a inclinação dessa linha está se achatando rapidamente, e a China sabe que, se não atingir seus objetivos em breve, a oportunidade poderá ser perdida. Isso sugere que a China provavelmente se tornará mais agressiva na consecução de seus objetivos na próxima década. A melhor resposta que o Ocidente tem para impedir as ambições chinesas no curto prazo é garantir um nível de dissuasão forte o suficiente para demonstrar que os custos adicionais para a China simplesmente não valem a pena.

Sobre o autor:

Capitão* Robert N. Hein é um Oficial de Guerra de Superfície de carreira, e membro da Guilda dos Escritores Militares. Ele já comandou o USS Gettysburg (CG-64) e o USS Nitze (DDG-94). As visões e opiniões expressas são suas e não refletem as do Departamento da Marinha, do Departamento de Defesa ou do governo dos EUA.

*Capitão-de-Mar-e-Guerra na Marinha do Brasil, ou Coronel no Exército Brasileiro ou Força Aérea Brasileira.

Bibliografia recomendada:

Bully of Asia:
Why China's dream is the new threat to World Order,
Steven W. Mosher.

Poder Naval da China.
Mar da China Meridional: Palco de um futuro conflito naval?

Leitura recomendada:



Quer entender a história chinesa? Estes 5 eventos são a chave

Carga do 98º Regimento de Infantaria durante a Batalha de Chin-Kiang-Foo, 21 de julho de 1842.

Por Bryan W. Van Norden, The National Interest, 28 de outubro de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 28 de outubro de 2019.

5 grandes eventos isto é.

Pontos-chave: A China moderna foi moldada por várias convulsões e mudanças em larga escala.

Como Shakespeare nos lembra, "o que é passado é prólogo". Esse é especialmente o caso da China, uma nação com uma história escrita contínua de três milênios. Em particular, o conhecimento de cinco grandes eventos históricos é essencial para entender completamente a política e a política externa da China contemporânea.

Reino do Imperador Kangxi (1661-1722)

O que foi isso? A última dinastia chinesa foi a Qing (1644-1911), e atingiu seu pico sob o Imperador Kangxi. O reinado de Kangxi foi um período de eflorescência na literatura e nas artes, mas também um período de expansão militar agressiva. O território efetivamente controlado pela China variou bastante ao longo do tempo. Muitas regiões que agora fazem parte da República Popular não estiveram tradicionalmente sob controle chinês, incluindo o Tibete, Xinjiang, Taiwan e Mongólia interior. De fato, alguns dos povos dessas áreas dominavam os chineses. No entanto, no final do reinado de Kangxi, a China havia conquistado todas essas províncias e muito mais.

Por que isso importa agora? Como Harold M. Tanner aponta em seu excelente China: A History (China: Uma História), o Ocidente normalmente entende as mudanças que a China sofreu desde a morte de Mao Tsé-Tung (1976) como uma questão de "se abrir" após um período de "isolamento auto-imposto". Por outro lado, a narrativa chinesa é de uma“ recuperação da glória perdida”. A imagem dessa glória é o reinado de Kangxi, no qual a China era o poder econômico, militar e cultural indiscutível da Ásia. E embora as fronteiras da China de Kangxi não sejam características da maior parte da história chinesa, elas normalmente coincidem com a visão da China sobre o que "pertence" a ela. Assim, Taiwan, que não é governado pela República Popular desde 1949, e não tinha presença substancial da China antes do século XVII, é considerado digno de guerra. E, como eu sempre lembro meus alunos em idade militar, os Estados Unidos têm um tratado de defesa com Taiwan, que nos obriga a defendê-los no caso de um ataque do continente.

China: A History,
Harold M. Tanner.

Guerras do Ópio (1839-1842, 1856-1860)

O que foi isso? No início do século XIX, a Grã-Bretanha estava gastando grandes quantidades de prata para comprar sedas chinesas, produtos de porcelana e especialmente chá. O inglês “tea” vem de , a palavra chá no dialeto de Fujian, da qual os britânicos exportavam seus produtos. No entanto, a China não precisava de nada que a Grã-Bretanha estivesse vendendo, criando um sério desequilíbrio comercial. Comerciantes britânicos engenhosos facilitaram o uso recreativo de ópio, que eles cultivavam na Índia controlada pelos britânicos e depois vendiam na China. A Corporação Bancária de Hong Kong-Xangai, agora conhecida como HSBC, foi fundada para atender às necessidades dos comerciantes britânicos na China. Isso resolveu o problema comercial da Grã-Bretanha, mas criou uma crise de dependência na China. Quando a China tentou fazer cumprir suas leis contra a importação de ópio, a Grã-Bretanha reagiu travando uma guerra em nome do "livre comércio". As forças armadas britânicas, tecnologicamente superiores, esmagaram os chineses. Como resultado das Guerras do Ópio, a China foi, nas palavras contundentes de um diplomata ocidental, "entalhada como em melão" em "esferas de influência". O Reino Unido e outras potências europeias forçaram a China a aceitar tratados que essencialmente lhes permitiam governar partes do território da China. Foi também durante esse período que Hong Kong foi "arrendada" à Grã-Bretanha.

O navio a vapor Nemesis da Companhia das Índias Orientais (fundo à direita) destruindo juncos de guerra chineses durante a Segunda Batalha de Chuenpi, em 7 de janeiro de 1841.

Por que isso importa agora? As Guerras do Ópio começaram o que a China chama de "Século das Humilhações" nas mãos de potências estrangeiras. Como um adulto que foi vítima de bullying na escola, a China continua ofendendo-se com qualquer coisa que remotamente indique que outras pessoas a estão coagindo ou tentando pegar o que lhe pertence. As chamadas para o “Tibete Livre” podem ressoar em todo o espectro político nos Estados Unidos, mas a China as vê como exemplos de estrangeiros interferindo em seus assuntos internos. De fato, a China comparou repetidamente o movimento de independência tibetano à secessão dos Estados Confederados e até sugeriu que, como afro-americano, o presidente Obama deveria apreciar a política da China no Tibete. As conseqüências do controle britânico de Hong Kong também continuam sendo sentidas. Apesar de terem retornado ao controle chinês em 1997, os hongkongneses (que sentem-se mais à vontade falando inglês ou cantonês) se referem aos continentais de língua mandarim que inundaram Hong Kong como "gafanhotos"*. Os status de Hong Kong e Tibete estão relacionados, pois todas as concessões feitas a uma parte (como maior soberania local) certamente serão exigidas pela outra.

*Nota do tradutor: No original, "locusts", que dá a ideia de enxame de pragas.

A Rebelião Taiping (1850-1864)

O que foi isso? A perda da Primeira Guerra do Ópio ajudou a alimentar a Rebelião Taiping. Os Taiping eram um grupo de cristãos chineses não-ortodoxos, liderados por um homem que alegava ser o irmão mais novo de Jesus. Procurando estabelecer um reino celestial utópico na terra, milhões de Taiping fanáticos fizeram uma rebelião anti-governamental. A rebelião foi eventualmente debelada, mas não antes que vinte milhões de chineses tivessem morrido de ambos os lados, devido não apenas ao combate, mas também à fome, doenças e crimes associados ao conflito. Para colocar isso em perspectiva, a população atual do estado de Nova York também é de cerca de vinte milhões.

Por que isso importa agora? As atitudes ocidentais em relação à religião são moldadas pela experiência das guerras religiosas na Europa após a Reforma Protestante (1517). Após séculos de brutal violência sectária, os ocidentais passaram a ver o valor da liberdade e da tolerância religiosas. John Locke (1632-1704), que tem uma grande influência na filosofia política dos EUA, deu uma expressão paradigmática a essa perspectiva ocidental sobre religião em sua "Carta sobre a tolerância". Em contraste, a Rebelião Taiping ensinou à China os perigos de permitir que movimentos religiosos, especialmente os novos, cresçam em força. Consequentemente, quando o governo chinês suprime o Falun Gong, ou intervém nos assuntos dos cristãos chineses, os ocidentais contextualizam como uma violação de um direito humano fundamental, enquanto muitos chineses vêem isso como um esforço legítimo para impedir movimentos que poderiam se tornar perigosamente apocalípticos.

Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945)

O que foi isso? As sementes da Segunda Guerra Sino-Japonesa podem ser rastreadas até o final do Período Tokugawa do Japão (1603-1868). Era uma era de paz e prosperidade no Japão, mas aquela em que a sociedade era dominada pelo Shogun, um ditador militar, que governava o Japão com punho de ferro e proibia o contato estrangeiro. Esse isolacionismo chegou a um fim abrupto em 1853, quando o comodoro americano Matthew Perry chegou à Baía de Tóquio, exigindo que o Japão assinasse um tratado comercial. Quando os japoneses hesitaram, Perry começou a disparar seus canhões em edifícios aleatórios no porto até que eles mudaram de idéia. Enquanto o primeiro encontro do Japão com o Ocidente moderno foi tão desastroso quanto o da China, o Japão foi capaz de se modernizar rapidamente em resposta. As razões para as diferentes respostas da China e do Japão são complexas, mas incluem o fato de que, no Japão, a modernização poderia ser considerada uma "restauração" da autoridade do Imperador Meiji contra o Shogun, e não como uma derrocada generalizada do hierarquia social. O livro Empress Dowager Cixi: The Concubine Who Launched Modern China (A Imperatriz-Viúva Cixi: a concubina que lançou a China moderna), de Jung Chang, é um trabalho de leitura muito agradável que discute as lutas da China para se modernizar.

Tropas chinesas nacionalistas com uma bandeira japonesa capturada.

Na virada do século, o Japão tinha um exército e uma marinha modernos, o que lhe permitiu derrotar facilmente a China na Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-1895). Como resultado desse conflito, Taiwan foi cedida ao Japão. Mais tarde, o Japão conquistou o respeito das potências ocidentais com sua vitória na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), que lhe deu o controle da Manchúria. No final da Primeira Guerra Mundial, como recompensa pela luta do lado dos Aliados, o Japão recebeu privilégios econômicos e políticos especiais na província de Shandong que a Alemanha desfrutara anteriormente. A China, que lutou do lado dos Aliados com a promessa de que os privilégios alemães seriam completamente revogados (não apenas dados a outrem), ficou compreensivelmente indignada. O Japão acabou provocando uma guerra total com a China em 1937, no que foi efetivamente o começo da Segunda Guerra Mundial. Historicamente, uma consequência não intencional da guerra foi garantir a vitória dos comunistas. Os comunistas haviam sido quase aniquilados pelos nacionalistas pró-ocidentais antes do início da Segunda Guerra Mundial, mas conseguiram se reagrupar enquanto os nacionalistas eram os principais responsáveis pela luta contra os japoneses. Quando os japoneses se renderam, os comunistas tomaram de assalto as forças nacionalistas dizimadas e esgotadas.

A Operação Ichi-Go, a maior ofensiva japonesa


Por que isso importa agora? Em qualquer noite da semana na China, você pode ligar a televisão e ter a certeza absoluta de que encontrará uma minissérie sobre a "Guerra de Resistência Anti-Japonesa". O governo gosta de manter as feridas frescas como forma de incentivar o nacionalismo, mas não é preciso muito esforço. Não é preciso ser anti-japonês para reconhecer o horror do comportamento do Exército Imperial durante o conflito. Em seu livro recente, Chinese Comfort Women: Testimonies from Imperial Japan’s Sex Slaves (Mulheres de Conforto Chinesas: Depoimentos das escravos sexuais do Japão Imperial), a professora Peipei Qiu registrou para a posteridade a experiência de mulheres chinesas estupradas e/ou forçadas sistematicamente à prostituição sancionada pelo governo para soldados japoneses. Com esse tipo de pano de fundo histórico, qualquer disputa com o Japão aumenta de importância, seja sobre quem é o proprietário das Ilhas Senkaku ou a disposição do Japão em admitir seu passado militarista em seus livros didáticos de história.

A Revolução Cultural (1966-1976)

O que foi isso? Tendo levado os comunistas chineses à vitória na guerra civil contra os nacionalistas (1949), Mao Tsé-Tung foi capaz de instituir as radicais "reformas" agrícolas e industriais do Grande Salto Adiante (1958-1961). Os resultados foram desastrosos. Dezenas de milhões morreram de fome durante a "Grande Fome". As autoridades inicialmente relutaram em relatar a verdade por medo de serem perseguidas, mas quando a extensão do desastre se tornou conhecida, moderados como Deng Xiaoping começaram a deslocar Mao do poder. Mao respondeu lançando a “Grande Revolução Cultural Proletária”, na qual os alunos eram incentivados a abandonar a escola e se juntar aos Guardas Vermelhos paramilitares. Com toda a misericórdia da Inquisição e toda a objetividade dos julgamentos das bruxas de Salém, os guardas vermelhos humilharam, torturaram e mataram quem quer que parecesse ser um defensor do "feudalismo" ou "capitalismo". Na minha visita mais recente à China, conversei com um professor aposentado que me mostrou as cicatrizes de quando os guardas vermelhos enfiaram as unhas em suas mãos, tentando fazê-lo confessar ser um agente estrangeiro. A evidência contra esse professor? Ele estudou literatura alemã no exterior. Os oponentes políticos de Mao foram rapidamente expulsos como "contra-revolucionários", deixando-o novamente como o líder incontestado da China.

Por que isso importa agora? Após a morte de Mao em 1976, Deng Xiaoping liderou a China em uma direção muito mais moderada, e um aspecto significativo de seu governo foi reconhecer os erros de Mao. O slogan oficial é que Mao estava setenta por cento certo e trinta por cento errado. No entanto, a China continua lutando com o legado de Mao. Mao fundou a República Popular da China, então repudiá-lo completamente seria desmentir o comunismo. O Partido Comunista está muito intimamente envolvido no próprio tecido do governo para fazer isso. No entanto, não há quase nada reconhecível como “Pensamento de Mao Tsé-Tung” per se nas práticas reais da sociedade, cultura e economia chinesas. No entanto, a quantidade de apoio a Mao, pelo menos como um símbolo, costuma surpreender os visitantes de primeira viagem na China. Um número não-trivial de jovens, que não têm conhecimento em primeira-mão da Revolução Cultural, na verdade parece nostálgico. E até conheci intelectuais que foram “rusticados” durante a Revolução Cultural (enviados para fazer trabalhos forçados no campo) que acham que a China sob Mao tinha um espírito moral positivo que falta hoje na China.

Professor sendo humilhado publicamente por estudantes da Guarda Vermelha durante a Revolução Cultural.

Termino com um exemplo da cultura popular. O famoso filme de 2002 do diretor chinês Zhang Yimou, Hero (Herói), é um drama histórico sobre uma tentativa de assassinato contra o Primeiro Imperador da Dinastia Qin (221-207 aC). O público ocidental desfrutou de Hero por sua impressionante cinematografia e trama estilo Rashômon. No entanto, a maioria dos críticos ocidentais não conseguiu entender por que o filme era tão controverso na China. O público chinês sabe que Mao havia se comparado favoravelmente ao Primeiro Imperador, conhecido por sua crueldade. Quando o protagonista do filme de Zhang decide deixar o Primeiro Imperador viver, a mensagem parece ser que a China às vezes precisa de um líder cruel para unificá-la. Vemos que a besta gigante da história sempre se esconde abaixo da superfície na China, mesmo em um épico de artes marciais. Não é de admirar que Confúcio tenha descrito um verdadeiro professor como alguém bom em "manter vivos os ensinamentos do passado e entender o presente".

Sobre o autor:

Bryan W. Van Norden é professor de filosofia no Vassar College e autor mais recentemente do livro Introduction to Classical Chinese Philosophy (Introdução à Filosofia Clássica Chinesa, da Hackett Publishing, 2011).

Bibliografia recomendada:

Bully of Asia:
Why China's dream is the new threat to World Order,
Steven W. Mosher.

Leitura recomendada:

O fim da visão de longo prazo da China, 6 de janeiro de 2020.


A guerra no Estreito de Taiwan não é impensável, 2 de junho de 2020.

domingo, 5 de janeiro de 2020

GENERAL ATOMICS MQ-9 REAPER. O primeiro drone "hunter killer"

MQ-9 Reaper
FICHA TÉCNICA
Velocidade máxima: 482 km/h.
Velocidade de cruzeiro: 313 km/h.
Teto de serviço: 15200 m.
Alcance: 1852 km.
Motor: Um turbopropulsor Honeywell TP-301-10GD com 900 hp.
Comprimento: 11 m.
Envergadura: 20 m.
Altura: 3,8 m.
Peso: 2223 Kg (vazio).
Armamento: Carga de 1088 kg de armas que podem ser bombas GBU-38 JDAM,  bombas guiadas a laser GBU-12 Paveway II, mísseis antitanque AGM-114 Hellfire, guiados a laser, e mísseis ar ar. AIM-92 Stinger e AIM-9X Sidewinder.

Essa "modinha" de que Clausewitz-é-irrelevante não é uma blasfêmia. É simplesmente errada

(US Air Force)

Por Steve Leonard, Modern War Institute, 5 de março de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de novembro de 2019.

"Embora nosso intelecto sempre anseie por clareza e certeza, nossa natureza costuma achar fascinante a incerteza."
— Carl von Clausewitz, A Guerra.

Toda vez que leio outro comentário de estrategista de poltrona sobre a irrelevância contemporânea de Clausewitz, fico balançando a cabeça. De muitas maneiras, ler A Guerra é como ler a Bíblia: interpretações literais do texto geralmente levam os leitores a interpretações errôneas das idéias mais profundas e muitas vezes mais instigantes que sustentam a escrita. O reconhecimento e a compreensão do contexto da magnum opus (obra-prima) de Clausewitz é essencial para o desenvolvimento de uma compreensão dos conceitos em seu interior. Contexto é tudo.

Costuma-se dizer que Clausewitz é o menos lido, e o mais citado dos teóricos militares clássicos. Sua escrita não é tão expressivamente citável quanto Sun Tzu ou tão provocativamente diabólica quanto Maquiavel. Está impregnada de metáforas, escritas nos anos seguintes às guerras napoleônicas, quando Clausewitz lutava para entender um conceito que desafiava a ciência de seu tempo. Sua própria essência permeava A Guerra, de sua expressividade metafórica ao conceito onipresente de atrito. Enquanto outros teóricos falharam em compreender a causa subjacente da natureza imprevisível da guerra, Clausewitz dedicou mais de uma década de sua vida relativamente curta à definição do que é contemporaneamente reconhecido como complexidade e seu impacto inerente e inevitável na guerra.

A capacidade de Clausewitz de sintetizar as nuances da complexidade em A Guerra destaca tanto seu valor duradouro quanto sua eterna luta. O analista de defesa Alan Beyerchen observa que A Guerra "lida com a complexidade da guerra de maneira mais realista do que talvez qualquer outro trabalho", mas também atribui a onipresença de complexidade em A Guerra como o único fator que "torna seu trabalho tão significativo, mas tão difícil de assimilar". Além disso, Clausewitz exibiu uma compreensão fundamental das complexidades da guerra que são melhor definidas em termos amplamente estrangeiros na época: “Na guerra, é imbuído o entendimento de que toda guerra é inerentemente um fenômeno não-linear, cuja conduta muda seu caráter de maneiras que não podem ser analiticamente previstas."

Como Clausewitz revisou repetidamente A Guerra, ele sem dúvida desenvolveu uma compreensão mais profunda de suas próprias idéias sobre a complexidade. Sua teoria da guerra em evolução era contra-intuitiva à natureza linear e reducionista do pensamento que dominava a ciência desde os tempos de Newton. Como resultado, Clausewitz confiou na metáfora para suportar o ônus da prova.

Clausewitz começa A Guerra com três metáforas cada vez mais sofisticadas, porém proeminentemente não-lineares, para definir a guerra. A primeira dessas metáforas, a Zweikampf (literalmente, "luta dupla"), é introduzida no Capítulo Um do Livro Um d'A Guerra:

A guerra não passa de um duelo [Zweikampf] em maior escala. Incontáveis duelos vão compor a guerra, mas uma imagem dela como um todo pode ser formada imaginando um par de lutadores. Cada um tenta, através da força física, obrigar o outro a fazer sua vontade; seu objetivo imediato é arremessar seu oponente para torná-lo incapaz de resistência adicional. A guerra é, portanto, um ato de força para obrigar nosso inimigo a fazer a nossa vontade.

Com essa primeira definição mais básica da natureza da guerra, Clausewitz investiga um dos conceitos fundamentais da complexidade: interação (Wechselwirkung). A guerra, ele explica, não é "a ação de uma força viva sobre uma massa sem vida, mas sempre a colisão de duas forças vivas". A metáfora de dois lutadores é uma representação ideal da complexidade, onde "as posições e contorções corporais que emergem... muitas vezes são impossíveis de alcançar sem a força contrária e o contrapeso de um oponente.

Quando Clausewitz começa a expandir sua teoria da guerra para abranger o papel da política (Politik), ele invoca sua segunda definição clássica, frequentemente citada: "A guerra é apenas a continuação da política por outros meios". No processo de chegar a uma definição, Clausewitz apela à imagem metafórica da combustão para caracterizar a relação entre política e guerra:

O objeto político - o motivo original para a guerra - determinará, assim, o objetivo militar a ser alcançado e a quantidade de esforço necessária... O mesmo objeto político pode provocar diferentes reações em diferentes povos, e mesmo das mesmas pessoas em momentos diferentes. Portanto, podemos tomar o objeto político como um padrão apenas se pensarmos na influência que ele pode exercer sobre as forças que ele deve mover... Dependendo se suas características aumentam ou diminuem o impulso em direção a uma ação específica, o resultado varia. Entre dois povos e dois estados, pode haver tais tensões, tal massa de material inflamável, que a menor briga pode produzir um efeito totalmente desproporcional - uma explosão real.

O uso de Clausewitz dessa metáfora distintamente não-linear define os "parâmetros que determinam regimes fundamentais de comportamento em um sistema [complexo]". As condições políticas predominantes, não o objetivo político inicial, determinam os métodos militares utilizados; na guerra, a ligação entre fins e meios é fundamentalmente dinâmica, uma definição que contrasta a relação estática promovida pela maioria dos teóricos.

Ao desencadear essa relação metafórica, Clausewitz ilustra dois dos preceitos básicos da complexidade: o papel do feedback em um sistema complexo e o comportamento adaptativo que define a complexidade dinâmica. A afirmação de Clausewitz sobre a finalidade da guerra é indicativa do reconhecimento da Prússia da existência de feedback tanto de reforço (amplificação) quanto de equilíbrio (estabilização) em sua teoria da guerra em evolução. Sua descrição da natureza camaleônica da guerra reflete um entendimento de que, em última análise, a conduta de qualquer guerra afeta seu próprio caráter, e "seu caráter alterado retorna aos fins políticos que norteiam sua conduta".

Finalmente, Clausewitz baseia-se em sua metáfora mais complexa, porém essencial: a trindade onipresente (eine wunderliche Dreifaltigkeit). Na teoria militar, poucas outras representações da natureza da guerra são frequentemente debatidas com opiniões tão diversas. No entanto, nenhum outro elemento da escrita de Clausewitz é tão representativo da complexidade da guerra:

Como fenômeno total, suas tendências dominantes sempre fazem da guerra uma trindade paradoxal - composta de violência primordial, ódio, e inimizade, que devem ser consideradas uma força natural cega; do jogo do acaso e da probabilidade dentro da qual o espírito criativo está livre para vagar; e do seu elemento de subordinação, como instrumento de política, que o sujeita apenas à razão... Nossa tarefa, portanto, é desenvolver uma teoria que mantenha um equilíbrio entre essas três tendências, como um objeto suspenso entre três ímãs.

A trindade é geralmente mal interpretada como uma tríade estática representativa das forças que influenciam a condução da guerra. Para Clausewitz, os pontos não são passivos, mas atratores dinâmicos; a metáfora é outra ilustração de interação complexa. Clausewitz usa a trindade para enfrentar "o caos inerente a um sistema não-linear sensível às condições iniciais [grifo nosso]." Um pêndulo de aço suspenso entre três pontos magnéticos interativos se moverá em um padrão predefinido, mas o movimento preciso do pêndulo não pode ser matematicamente previsto devido a variações nas condições iniciais. Como na guerra, "a antecipação do tipo geral de padrão é possível, mas a previsibilidade quantitativa da trajetória real é [impossível]".

Marie von Clausewitz: A mulher por trás da criação d'A Guerra.

Clausewitz observou com um senso paradoxal de ironia: “Tudo na guerra é muito simples, mas a coisa mais simples é difícil. As dificuldades se acumulam e terminam produzindo um tipo de atrito que é inconcebível, a menos que alguém tenha passado por uma guerra.” Clausewitz entendeu ainda que“ incontáveis incidentes menores - do tipo que você nunca pode realmente prever - se combinam para diminuir o nível geral de desempenho, portanto, sempre fica aquém do objetivo pretendido.” Em sua luta para ilustrar a natureza ilusória e complexa da guerra, Clausewitz só conseguiu completar o Capítulo Um do Livro Um antes de sua morte prematura em 1831. A difícil tarefa de interpretar e comunicar sua visão de guerra caiu sobre sua esposa, Marie, que começou a "garantir e moldar seu legado" quase imediatamente após sua morte súbita e dolorosa. Seus esforços meticulosos para preservar seus escritos, embora em grande parte subestimados e pouco estudados, forneceram ao Ocidente seu tratado seminal sobre a guerra.

Se Clausewitz tivesse entrado em Bagdá com a Task Force 1-64 Armor durante a Thunder Run ou testemunhado o incrível sacrifício em Roberts Ridge durante a Operação Anaconda, ele teria, sem dúvida, reconhecido a onipresença do "atrito" no campo de batalha. Observando a guerra civil síria se transformar em uma guerra por procuração travada contra um dos regimes terroristas mais brutais do mundo, ele teria notado que mesmo o mais simples dos inimigos pode ter uma influência profunda na natureza e no caráter do conflito. Mas, quase duzentos anos após sua morte, seu único conselho vem em palavras que ecoam através do tempo. Estudamos A Guerra por uma razão simples: sua exploração do nexo da complexidade e da guerra não conhece pares. E à medida que a acusação de guerra se torna cada vez mais suscetível às nuances da complexidade, a relevância de Clausewitz apenas cresce com o tempo.

Steve Leonard é um contribuidor não-residente do Modern War Institute, um dos fundadores da Divergent Options, um ex-estrategista militar sênior e a força criativa por trás de Doctrine Man!! Ele é membro fundador do Military Writers Guild e colaborador frequente do projeto Art of Future Warfare do Atlantic Council. Seus trabalhos se concentram em questões de política externa, segurança nacional, estratégia e planejamento, desenvolvimento de liderança e líderes e, ocasionalmente, ficção. Um ex-aluno da Escola de Estudos Militares Avançados, ele liderou a equipe interinstitucional que criou a primeira doutrina de operações de estabilidade do Exército dos EUA, liderou a reintrodução da arte operacional na doutrina principal e escreveu os princípios orientadores da Metodologia de Design do Exército. Ele é autor de quatro livros, numerosos artigos profissionais, inúmeras publicações em blogs e é um cartunista militar prolífico. Siga sua escrita em seu blog pessoal, The Pendulum, e no Twitter em @Doctrine_Man.

Fuzis de treinamento FAL do Brasil

O autor, Ronaldo Olive.

Por Ronaldo Olive, The Firearm Blog, 28 de março de 2017.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 30 de dezembro de 2019.

A idéia está longe de ser nova: ter uma pistola de menor calibre para substituir a pistola real para treinamento inicial, de modo que você possa obter reduções substanciais de custos no processo. Simples assim. A fórmula alcançou graus variados de sucesso (ou falta dele) em diferentes países ao longo dos anos e também foi experimentada - ainda que brevemente - no Brasil há trinta anos ou mais.

O Rossi EB-79/FAC

O fuzil de ar comprimido Rossi EB-79/FAC de calibre 4,5mm (.177) foi projetado para se parecer com e manusear como um FAL 7,62x51mm.

O uso de um fuzil de ar comprimido para o treinamento inicial de recrutas parecia atraente o suficiente para um país com orçamentos de defesa muito limitados, pois permitiria o uso de estandes de tiro interno com total segurança e evitaria viagens de tropas que consumiam tempo e combustível para estandes distantes. No Brasil, algumas unidades do Exército já estavam experimentando, no início dos anos 70 - puramente em uma base individual - com fuzis de ar comprimido comerciais padrão para ensinar aos novos recrutas procedimentos básicos de mira e tiro. A idéia então se tornou um interesse oficial, e o DMB - Departamento de Material Bélico - emitiu especificações em 1979 para uma arma de uso padrão desse tipo.

O resultado foi o EB-79/FAC (Fuzil de Ar Comprimido), que foi exaustivamente testado em 1981, entrou em serviço no ano seguinte e foi produzido por algum tempo pela Amadeo Rossi S/A Metalúrgica e Munições em São Leopoldo, RS. Calibrada para pelotas de 4,5mm (.177) e usando uma armação de polímero, foi feito para se parecer com e manusear como um FAL 7,62x51mm, o fuzil padrão do Exército Brasileiro. Ele ainda possuía um carregador fixo, alça de transporte e quebra-chama falso similar. O comprimento total (1100mm) e o peso (4,6kg) eram praticamente os mesmos do fuzil real. Eles estavam em uso limitado por alguns anos, principalmente com os chamados "Tiros de Guerra", unidades de treinamento de recrutamento de meio período em cidades menores, sem unidades maiores do Exército disponíveis. 

Curiosamente (mas esperado em um local com tantas restrições de armas de fogo como o Brasil), as vendas deste fuzil de ar no mercado comercial foram proibidas, pois foram classificadas como “ítens de uso militar”!

O IMBEL “Falbina”

Sendo uma fabricante de fuzis FAL estabelecida há muito tempo, a Fábrica de Itajubá da IMBEL não encontrou problemas em lançar uma versão de treinamento dedicada, no calibre .22LR.

Como fabricante licenciada de fuzis FAL de longa data, a IMBEL - Indústria de Material Bélico do Brasil - decidiu fazer uma versão de treinamento .22LR dessa arma no início dos anos 80, sendo o trabalho de responsabilidade de sua Fábrica de Itajubá, no estado de Minas Gerais. Em vez de oferecer um kit de conversão para o fuzil M964 padrão, a designação local do FAL, a empresa optou por fabricar o fuzil no calibre menor. Operando, é claro, por ação convencional de recuo por gases, um carregador de 20 tiros que se encaixa para cima em um falso carregador de FAL não-removível. As alças de manejo eram tanto do tipo maçaneta (lado direito, atrás da janela de ejeção) ou da variante dobrável (lado esquerdo). Também foram encontradas variações no registro de segurança, na frente do guarda-mato (estilo Garand, bloqueando o gatilho quando puxado para trás) ou duplicada daquela da arma original, ou seja, no lado esquerdo, logo acima do gatilho.

Vistas mais próximas de um dos protótipos “Falbina”, com a placa inferior do pequeno carregador de 20 tiros projetando-se levemente do falso carregador de FAL não-removível, e o retém de segurança tipo Garand dentro do guarda-mato. A figura abaixo também mostra o pequeno seletor de tiro destinado ao uso dos instrutores.

Uma característica particularmente incomum era um registro de segurança adicional no lado esquerdo da culatra, destinado a ser usado pelo instrutor: uma das posições travava o mecanismo de disparo após cada tiro, o fuzil disparava novamente somente depois que o instrutor ajustasse a alavanca de acordo, enquanto uma posição alternativa permitia o fogo semi-automático normal. Nenhum modo totalmente automático, presente nos FALs do Exército Brasileiro, estava disponível.

O fuzil de treinamento IMBEL desmontado em primeiro escalão. Observe o ferrolho pequeno e a mola recuperadora para sua operação de recuo por gases, bem como o compartimento do carregador .22LR vindo da culatra.

Alguns protótipos com pequenas variações (formato da alavanca de manejo, segurança aplicada) foram concluídos e avaliados por unidades do Exército para possível adoção, mas o programa não avançou muito. Felizmente, o autor teve a sorte de ter tido chances de disparar o não-oficialmente chamado “Falbina” (uma mistura de FAL e Carabina) na fábrica em 1982 e 1983.

 O carregador de 20 tiros em .22LR sendo inserido no falso carregador de FAL fixo. Um exame mais detalhado da foto mostrará que este exemplo do fuzil de treinamento IMBEL, como aquele da imagem anterior, não está equipado com o retém de segurança do gatilho no estilo Garand, e que a alavanca de manejo no lado esquerdo da culatra (lado direito, no fuzil original) é do tipo dobrável.

Autor se divertindo com um “Falbina” na Fábrica de Itajubá no início dos anos 80.

O kit de conversão de percussão lateral da Brasarms

Componentes do kit (de cima para baixo): cano, esqueleto do conjunto do ferrolho, retém de segurança do gatilho e dois carregadores.

A mesma idéia de usar uma arma calibrada em .22LR, para dar aos recrutas instruções iniciais sobre os procedimentos de manuseio e disparo do FAL, surgiu novamente no Brasil em 1985-86, quando uma empresa do Rio de Janeiro, Brasarms Indústria e Comércio Ltda, criou um kit de conversão inteligente para fazer isso. A engenhoca foi criada por Olympio Vieira de Mello Filho, pai da submetralhadora Uru de 9x19mm (pretendo postar um artigo sobre essa controversa SMG em um futuro próximo). Após sua submissão aos testes oficiais de certificação do Exército Brasileiro no Campo de Provas da Marambaia, que incluiu um bem-sucedido programa de testes de precisão, confiabilidade e resistência de 5.000 cartuchos, eu também pude colocar minhas mãos nela para um teste pessoal avaliação.


A vista superior da estrutura leve do ferrolho mostra o percussor com sua mola, bem como a estrutura de suporte da mola recuperadora/haste guia na retaguarda. O mecanismo de segurança do retém do gatilho foi liberado por um golpe do seccionador (embaixo) preso ao ferrolho enquanto se movia para a frente, liberando o cão para disparar. Imagem inferior: a face do ferrolho.

O kit Brasarms consistia em um cano (540 mm de comprimento, 6 raias, torção de RH), conjunto do ferrolho e dois carregadores. A montagem era notavelmente direta, não demorando a alguém (inclusive eu) muito mais que um minuto, depois de algumas tentativas orientadas. Abra o FAL girando a alavanca de desmonte no sentido anti-horário e girando a coronha para baixo. Remova a tampa da culatra, retirando subsequentemente todo o conjunto do ferrolho e de operação de gás (ferrolho, conjunto do ferrolho, mola recuperadora e sua haste guia). Insira o cano reduzido no fuzil até o final, o qual foi recomendado ter sido levemente lubrificado antes. Conecte o seccionador de segurança à unidade do ferrolho e deslize esse conjunto na caixa da culatra. Coloque a tampa da culatra de volta na arma e feche o fuzil novamente.

Instalação do kit em um FAL de coronha fixa:
(1) cano de .22LR pronto para ser inserido no cano de 7,62x51mm;
(2) insira até o fundo do cano do FAL;
(3) o retém de segurança do gatilho (em cima) está preso ao lado esquerdo do esqueleto do ferrolho;
(4) conjunto do ferrolho com o seccionador no lugar;
(5) conjunto do ferrolho sendo inserido na extremidade traseira da culatra;
(6) conjunto do ferrolho no lugar dentro da culatra;
(7) a tampa da culatra deslizada de volta na arma, a qual pode ser fechada novamente.

Em vez de usar um suplemento para o carregador padrão do FAL, o kit brasileiro foi fornecido com duas unidades modificadas de fábrica. Uma réplica exata do carregador original, a unidade de treinamento também duplicou a capacidade de 20 tiros e foi adequadamente equilibrada para dar o mesmo peso carregada com munição .22LR como se tivesse um número igual de munição 7,62x51mm: 750 gramas. O preenchimento manual dos carregadores monofilares ficou um pouco difícil (pelo menos nos exemplos em mãos) após o 15º cartucho mais ou menos. O ejetor era integral ao carregador.

Essa vista do carregador do kit mostra claramente um pequeno cartucho .22LR no lábio de alimentação. A capacidade de vinte tiros duplicou àquela do original de 7.62x51mm.

Com o kit totalmente instalado, o fuzil obviamente foi operado por recuo de gases. Para compensar as diferentes características balísticas das munições, a alça de mira do FAL deve ser ajustada na faixa de 400 a 600 metros no modelo de deslizamento padrão ou a 250 metros na mira de abertura do Para-FAL, onde a precisão pode ser dominada com um grau de precisão excelente. Usando alvos de escala reduzida bullseye (1/5 ou 1/10) ou alvos táticos, engajamentos de longo alcance podem ser efetivamente simulados a distâncias tão curtas quanto, digamos, 10 ou 20 metros, para que instalações de treinamento em ambiente interno pudessem ser fácil e economicamente configuradas.

Como era de se esperar, um fuzil de 5kg disparando minúsculos cartuchos .22LR permaneceu firme durante todo o tempo. Sem coices no ombro e explosão da boca, você pode se concentrar em... apenas atingir alvos. Nós (eu e meu filho/fotógrafo Alexander) atiramos principalmente nos alvos táticos reduzidos de 1/10, o que correspondeu aproximadamente a disparos contra alvos do tamanho de homens a 100-200 metros. A precisão era excelente e, além de um ou outro voador, os acertos na zona de matança eram a regra para disparos do ombro. Com o fuzil levemente apoiado, nós poderíamos até “brincar de sniper” e começar a acertar “apenas cabeças”. Considerando que as miras de ferro de combate do FAL não são boas para disparos de precisão, os resultados foram mais do que satisfatórios.

Os fuzis convertidos também dispararam muito bem em cadências taxas de tiro automáticas cíclicas na faixa de 700 tiros por minuto. Como a falta de recuo e subida da boca não era representativa da realidade do FAL em 7,62x51mm, a prática do rock and roll não deve ser considerada realmente instrutiva, mas nos divertiu muito!


Alexander Olive disparando um Para-FAL convertido em fogo automático da cintura e (foto inferior) o pai fazendo o mesmo, com a coronha dobrada. O fuzil de grande calibre seria totalmente incontrolável neste caso.

E havia uma diferença de funcionamento específica entre os fuzis originais e os modificados: o ferrolho do .22LR permaneceu fechado após o último cartucho ser disparado, enquanto no FAL de 7,62x51mm há um pino (montado na caixa da culatra à direita do ejetor) para segurar o ferrolho na posição à retaguarda quando o carregador estiver vazio. Duplicar os diferentes componentes do carregador responsáveis por isso mostrou-se desnecessariamente complicado, então a empresa Brasarms abandonou o recurso. Infelizmente, o interesse local e estrangeiro em um FAL convertido em percussão lateral não foi tão grande quanto o esperado. Então...

Bibliografia recomendada:

The FN FAL Battle Rifle,
Bob Cashner.

Leitura recomendada:




T48: O FAL Americano, 3 de julho de 2020.

Um breve comentário sobre o FN FAL, 21 de fevereiro de 2020.

Tiro em Cobertura Rodesiano, 15 de abril de 2020.