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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Lições do fracasso da promoção da democracia na Venezuela

Por Elliott Abrams, Council on Foreign Relations, 5 de novembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de janeiro de 2022.

Por que o esforço dos EUA para promover a democracia na Venezuela falhou? As lições aprendidas devem informar os esforços de promoção da democracia em todo o mundo.

De janeiro de 2019 até o fim do governo Trump, os Estados Unidos impuseram sanções generalizadas à economia venezuelana e conduziram uma vasta campanha diplomática contra o regime de Maduro. Muitos elementos dessa política foram mantidos pelo governo Biden. No entanto, a política não conseguiu desalojar Maduro ou melhorar a situação dos direitos humanos na Venezuela, muito menos devolver o país à democracia.

T-72V do Exército Bolivariano desfilando com uma bandeira de Hugo Chávez.

Por que falhou? As respostas podem esclarecer não apenas a Venezuela, mas também as condições e políticas em outros lugares. Aqui estão dez respostas breves que ajudam a explicar o fracasso da política e que os formuladores de políticas e os defensores dos direitos humanos devem ter em mente ao abordar outros países e regimes.

1) O apoio externo pode permitir que até mesmo um regime fraco ou impopular sobreviva. Os Estados Unidos alcançaram um sucesso considerável ao reforçar os esforços para acabar com o regime militar na América Latina na década de 1980, mas esses regimes tiveram muito pouco apoio externo. O regime de Maduro recebeu assistência de inteligência de Cuba, Rússia, China e Irã, apoio diplomático de outras autocracias, bem como de algumas democracias do Hemisfério Ocidental, e obteve empréstimos maciços da Rússia e da China. Assim, o regime não se sente isolado e o impacto tanto das críticas internacionais quanto das sanções econômicas é enfraquecido.

2) As amplas sanções econômicas que não afetam diretamente as elites dominantes não mudarão sua conduta. Os Estados Unidos impuseram amplas sanções às exportações venezuelanas, mas os governantes venezuelanos ainda podiam circular livremente pela América Latina e Europa – e também movimentar seu dinheiro livremente. Em muitos casos, suas famílias viviam no exterior em esplendor com os ganhos ilícitos. As sanções devem atingir diretamente os oficiais civis e militares que dirigem o regime para ter o máximo impacto.

3) A população em geral deve ver claramente como se beneficiará da mudança política. A oposição venezuelana nunca foi capaz de mostrar aos cidadãos que a remoção do regime levaria a uma maior prosperidade para o país. Pesquisas mostraram que os eleitores culparam o regime muito mais do que as sanções dos EUA pelo colapso econômico do país, mas isso não significa que eles acreditavam que a oposição poderia trazer dias melhores. Aqui os Estados Unidos e outras democracias apoiantes falharam. Os Departamentos de Estado e do Tesouro dos EUA tinham planos econômicos detalhados que dariam dinheiro a todas as famílias venezuelanas e impulsionariam a economia. Os planos nunca foram divulgados – uma oportunidade perdida de reforçar a culpa do regime pela extrema pobreza do país.

4) Os líderes do regime devem encontrar uma saída pela qual possam sobreviver, ou rejeitarão a mudança. Os líderes do regime devem sentir dor agora, por meio de sanções econômicas e proibições de viagens, mas devem encontrar alguma maneira de sobreviver após a mudança de regime. Se eles sentirem que a mudança significa longas penas de prisão e penúria, eles lutarão até a morte para resistir. Na Venezuela, nem os Estados Unidos nem a oposição falaram de maneira suficientemente convincente sobre anistias ou formas de justiça transicional que permitiriam aos funcionários do regime vislumbrar um futuro para si mesmos na Venezuela pós-Maduro.

5) Os líderes militares devem ver um futuro tanto para si mesmos quanto para sua instituição. Apesar de alguns esforços tanto dos Estados Unidos quanto da oposição venezuelana, os militares nunca foram persuadidos de que em um período pós-Maduro teriam um papel importante, protegido e honrado. Por terem as armas, os líderes militares podem prolongar ou encurtar o período de um regime no poder e podem pressionar por linhas duras ou compromissos em qualquer negociação. Na Venezuela, como em muitos outros casos, a nação precisa de militares capazes quando retornar à democracia, e os planos para manter o papel nacional da instituição devem ser muito claros.

Soldados venezuelanos com fuzis russos AK-103.

6) As nações democráticas devem estar unidas em sua abordagem, ou o regime usará as divisões para enfraquecer a oposição. Embora tenha havido uma cooperação considerável entre as democracias que apoiam a oposição venezuelana, em momentos-chave a falta de coesão ajudou o regime. O Alto Representante da UE trabalhou, por vezes, com objetivos opostos aos Estados Unidos, seguindo um caminho diferente e trabalhando com líderes da oposição que não faziam parte do principal grupo da oposição. Todas essas diferenças são uma benção para o regime, permitindo que ele divida ainda mais a oposição e crie confusão.

7) Os Estados Unidos e outras democracias foram incapazes de protegerem os líderes democráticos na Venezuela. Os líderes da oposição enfrentaram espancamentos, exílio e prisão. As nações que apoiam o retorno à democracia não fizeram o suficiente para protegê-los e suas famílias. Em alguns casos, as famílias dos presos políticos precisavam de apoio financeiro enquanto eles estavam presos, e os presos precisavam de uma pressão internacional muito mais concentrada para garantir sua libertação. Em outros casos, ativistas da oposição precisavam de vistos para escapar da prisão e da Venezuela. Esses homens e mulheres estavam na linha de frente, e nenhum movimento democrático pode ter sucesso se eles não conseguirem manter a luta. Muito mais deve ser feito, em dezenas de países autoritários, para ajudá-los.

8) Os Estados Unidos e outras democracias devem apoiar as negociações com o regime se a oposição democrática as desejar. Na Venezuela, em 2019, diferenças internas no governo Trump significaram que ficamos de lado (e criticamos intermitentemente) as negociações lideradas pela Noruega. Isso enfraqueceu a oportunidade da oposição de usar as negociações para seus próprios objetivos, incluindo acordos parciais que poderiam ter libertado presos políticos ou permitido o retorno de alguns exilados. Quando suspender as sanções econômicas dos EUA é um objetivo do regime, uma falha americana em participar ou de alguma forma apoiar as negociações prejudica a oposição – porque reduz o incentivo do regime para negociar compromissos reais.

9) O apoio sério à oposição deve incluir apoio financeiro, mas a oposição fica enfraquecida em caso de se tornar uma burocracia e for menos dependente de obter apoio público. Em um caso como o da Venezuela, o regime domina a economia e a esfera pública, e privar os partidos da oposição, ONGs e grupos da sociedade civil de dinheiro é um objetivo fundamental do regime. Os Estados Unidos e outras democracias devem ajudá-los a sobreviver, por meio de programas de apoio à democracia que muitos países agora mantêm. Mas há o perigo de que se tornem dependentes de apoio externo em vez de construir um maior apoio interno, e o perigo de que as organizações de oposição se burocratizem quando deveriam ser forças políticas ágeis dedicadas a conquistar o apoio do público. Os defensores externos da democracia devem trabalhar duro para manter um equilíbrio adequado.

10) Ameaças de ação militar podem desestabilizar os partidários do regime, mas também podem enfraquecer a oposição. Os Estados Unidos disseram repetidamente que “todas as opções estão na mesa” com relação à ação militar contra o regime de Maduro, e em princípio estavam. A repetição da ameaça pretendia desestabilizar os partidários do regime e fazê-los pensar duas vezes se o regime sobreviveria. As referências às intervenções dos EUA no Panamá e em Granada pretendiam mostrar que a democracia prevaleceria e o regime seria, no final, derrubado de uma forma ou de outra. Mas tais declarações também podem dar falsas esperanças aos cidadãos de que eles não precisam lutar contra o regime porque um final deus ex machina resolverá os problemas do país. Se não houver intenção de usar a força militar, as ameaças nunca devem ser feitas.

Mesmo que os Estados Unidos tivessem se saído melhor em todos esses aspectos, o regime de Maduro poderia ter se agarrado ao poder com sucesso. Em sua essência, o regime não é uma ditadura militar, mas um empreendimento criminoso, cujas elites estão intimamente ligadas ao tráfico de drogas e outras atividades ilícitas. Esses líderes do regime temem que qualquer mudança política signifique que eles terão que pagar por seus crimes e resistirão. Mas as chances de sucesso na restauração da democracia certamente serão maiores em qualquer lugar se essas lições forem mantidas em mente.

Esta publicação faz parte do Projeto Diamonstein-Spielvogel sobre o futuro da democracia.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

As armas do Ocidente não farão diferença para a Ucrânia


Por Samuel Charap, cientista político sênior da Rand Corporation, e Scott Boston, analista sênior de defesa da Rand Corporation, 21 de janeiro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 21 de janeiro de 2022.

Com as forças russas concentradas nas fronteiras da Ucrânia, a discussão política em Washington tem se concentrado cada vez mais no que os Estados Unidos podem fazer para ajudar seus parceiros ucranianos a defender seu país. Apenas nesta semana, o governo Biden aprovou as entregas de mísseis antiaéreos Stinger lançados pelo ombro, fabricados nos EUA, para Kiev, além de aumentar o fornecimento de outros equipamentos militares. Aliados, incluindo o Reino Unido, também estão fornecendo sua própria assistência.

Militares ucranianos que participam do conflito armado com separatistas apoiados pela Rússia na região de Donetsk do país participam da cerimônia de entrega de armas e equipamentos militares pesados em Kiev, em 15 de novembro de 2018.
(SERGEI SUPINSKY/AFP VIA GETTY IMAGES)

A justificação para o auxílio tem variado. Alguns argumentaram que a assistência militar dos EUA à Ucrânia pode mudar o cálculo da Rússia agora, possivelmente impedindo Moscou de lançar um ataque. Outros afirmam que a ajuda aos militares ucranianos pode ter um impacto real em uma possível luta com os russos, tornando significativamente mais desafiador para o Kremlin alcançar a vitória e descartando certas opções militares que a Rússia possa estar considerando. E também há vozes que clamam por capacidades adicionais meramente para aumentar os custos para Moscou – isto é, para matar mais soldados russos – de modo a criar problemas políticos para o presidente Vladimir Putin em casa, embora sem muita expectativa de que a Ucrânia prevaleça.

Nenhum desses argumentos é convincente. Isso não significa que a cooperação de segurança com Kiev deve cessar. Isso significa que a assistência militar não é uma alavanca eficaz para resolver esta crise.


Desde 2014, os Estados Unidos forneceram mais de US$ 2,5 bilhões em ajuda militar à Ucrânia, após a anexação russa da Crimeia e a invasão do Donbass. A assistência dos EUA à Ucrânia incluiu o fornecimento de treinadores, sistemas defensivos selecionados (como radares de contra-morteiro) e, mais recentemente, mísseis antitanque Javelin. Esta assistência visa principalmente melhorar a eficácia ucraniana no conflito relativamente estático contra as forças separatistas apoiadas pela Rússia no Donbass, que estão principalmente armadas com armas portáteis e leves, juntamente com alguma artilharia e blindagem da era soviética.

Crucialmente, no entanto, a Ucrânia não tem lutado principalmente contra as forças armadas da Rússia no Donbass. Sim, a Rússia armou, treinou e liderou as forças separatistas. Mas mesmo pelas próprias estimativas de Kiev, a grande maioria das forças rebeldes consiste de moradores locais – não soldados do exército russo regular. De fato, as forças armadas russas se envolveram diretamente nos combates apenas duas vezes – em agosto-setembro de 2014 e janeiro-fevereiro de 2015 – e com capacidades limitadas, embora ambos os episódios tenham terminado em esmagadoras derrotas ucranianas.

Moscou procurou manter algum véu de negação sobre seu envolvimento no conflito, o que significava que os militares russos nunca usaram mais do que uma pequena fração de suas capacidades contra os ucranianos. Aplicou apenas força suficiente para fazer o trabalho, evitando intervenções prolongadas e evidentes. Uma grande variedade de capacidades russas exclusivas – incluindo sua força aérea e mísseis balísticos e de cruzeiro – não esteve envolvida nos combates, mesmo que tenham sido repetidamente demonstradas em operações de combate na Síria.


A natureza do acúmulo russo relatado sugere que a guerra expandida, se acontecer, será fundamentalmente diferente dos últimos sete anos de impasse latente. A Rússia tem a capacidade de realizar uma operação ofensiva conjunta em larga escala envolvendo dezenas de milhares de pessoas, milhares de veículos blindados e centenas de aeronaves de combate. Provavelmente começaria com ataques aéreos e de mísseis devastadores de forças terrestres, aéreas e navais, atingindo profundamente a Ucrânia para atacar quartéis-generais, aeródromos e pontos de logística. As forças ucranianas começariam o conflito quase cercadas desde o início, com forças russas dispostas ao longo da fronteira leste, forças navais e anfíbias ameaçando do Mar Negro no sul, e o potencial (cada vez mais real) de forças russas adicionais se desdobrando na Bielorrússia e ameaçando pelo norte, onde a fronteira fica a menos de 65 milhas (104,6km) da própria Kiev.

Em suma, esta guerra não se parecerá em nada com o status quo ante do conflito na Ucrânia, e isso mina a primeira justificativa para a ajuda dos EUA: dissuadir a Rússia. As forças armadas ucranianas foram moldadas para combater o conflito no Donbass e, portanto, representam pouca ameaça de dissuasão para a Rússia; o fornecimento de armas americanas não pode fazer nada para mudar isso. Se Moscou está disposta a lançar uma grande guerra, invadindo o segundo maior país da Europa com uma população de mais de 40 milhões, enquanto absorve uma tremenda punição econômica do Ocidente, então é improvável que seja dissuadida por qualquer assistência militar americana que possa ser entregue nas próximas semanas. Os únicos sistemas de armas que poderiam impor custos plausivelmente que poderiam mudar o cálculo da Rússia, como mísseis terra-ar e aeronaves de combate, são aqueles que os Estados Unidos dificilmente forneceriam aos ucranianos. E, independentemente disso, eles não poderiam ser adquiridos, entregues e colocados em operação – para não falar de treinar os operadores ucranianos para usá-los – a tempo de ter um impacto nessa crise. Sistemas grandes e modernos exigem treinamento extensivo e apoio material.



Assim que a dissuasão falhar e uma guerra começar, as forças armadas ucranianas se encontrarão em circunstâncias desesperadoras quase que imediatamente. A Ucrânia não tem forças suficientes para se defender com credibilidade contra todas as possíveis vias de ataque, o que significa que teria que escolher entre defender um conjunto selecionado de pontos fortes fixos – cedendo o controle de outras áreas – ou manobrar para engajar forças russas que os superam em número. A linha de conflito no Donbass será apenas uma das muitas frentes. As fortificações ucranianas ali podem muito bem parecer uma Linha Maginot moderna: preparada para um ataque frontal que pode nunca acontecer e contornada pelas forças móveis de um adversário com aeronaves mais avançadas e forças terrestres mais móveis.

O grande tamanho da Ucrânia significa que as forças terrestres que operam lá serão obrigadas a se deslocarem para cobrir grandes áreas de terreno rural. Os engajamentos móveis beneficiariam as forças russas, que são muito mais bem treinadas e equipadas para conduzir guerras de manobras aéreas e terrestres coordenadas do que seus oponentes ucranianos. Os militares russos praticaram repetidamente o uso de ataques de longo alcance e tiros táticos acionados por drones, bem como outros meios de reconhecimento, tanto em treinamento quanto em operações de combate na Síria. As aeronaves de combate e as defesas aéreas estratégicas da Rússia dão a Moscou muito mais opções para controlar o ar e atacar as forças ucranianas, e a maioria dos pilotos russos tem experiência real recente na Síria. Os militares ucranianos também operam em grande parte armas soviéticas herdadas; as forças russas têm uma profunda familiaridade com as limitações desses sistemas e sabem quais táticas empregar para reduzir ainda mais sua eficácia.


Em suma, o equilíbrio militar entre a Rússia e a Ucrânia está tão desequilibrado a favor de Moscou que qualquer assistência que Washington possa fornecer nas próximas semanas seria amplamente irrelevante para determinar o resultado de um conflito, caso ele comece. As vantagens da Rússia em capacidade e geografia se combinam para representar desafios intransponíveis para as forças ucranianas encarregadas de defender seu país. O segundo argumento a favor da ajuda — mudar o curso da guerra — não se sustenta.

O terceiro argumento para a ajuda é fornecer assistência para permitir que uma insurgência ucraniana imponha custos a uma força de ocupação russa. Muitos têm em mente a analogia histórica aqui da ajuda dos EUA aos mujahideen no Afeganistão após a invasão soviética em 1979. De fato, alguns estão até recomendando fornecer os mesmos mísseis antiaéreos Stinger lançados pelo ombro que atormentavam a força aérea soviética na época.

Se a Rússia tentar uma ocupação de longo prazo de áreas com muitos ucranianos hostis, essas formas de apoio podem, nas margens, complicar as coisas para Moscou. Mas o apoio dos EUA a uma insurgência ucraniana deve ser uma questão de último recurso durante um conflito prolongado, não uma peça central da política antes mesmo de começar. A perspectiva de uma ocupação marginalmente mais cara provavelmente não fará diferença para Moscou se chegar a esse estágio; pois já terá absorvido custos muito mais significativos. Os planejadores russos estão cientes de que muita coisa pode dar errado em uma operação de grande escala, especialmente uma ocupação. Se Putin tomar a decisão de ocupar grandes partes da Ucrânia, não será porque acredita que será fácil ou barato para a Rússia.

Devemos também ter em mente que os custos de uma guerra que dura até o ponto de uma campanha de insurgência na Ucrânia serão arcados desproporcionalmente pelos ucranianos. Nesse estágio do conflito, milhares — ou, mais provavelmente, dezenas de milhares — de ucranianos terão morrido. Por quaisquer sucessos que conseguirem contra os ocupantes russos, os insurgentes ucranianos terão de pagar caro; a experiência da oposição síria ou dos insurgentes chechenos não é algo que os americanos devam desejar a um parceiro próximo como a Ucrânia.

Em tempos normais, há muitas boas razões para os Estados Unidos fornecerem apoio militar à Ucrânia. Mas estes não são tempos normais. A assistência militar agora será, na melhor das hipóteses, marginal para afetar o resultado da crise. Pode ser moralmente justificado ajudar um parceiro dos EUA em risco de agressão. Mas, dada a escala da ameaça potencial à Ucrânia e suas forças, a maneira mais eficaz de Washington ajudar é trabalhar para encontrar uma solução diplomática.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Entre a autonomia estratégica e o poder limitado: o paradoxo francês


Por Lorris Beverelli, The Strategy Bridge, 25 de junho de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 15 de janeiro de 2022.

O governo francês muitas vezes gosta de enfatizar um conceito chamado “autonomia estratégica”. De fato, por mais de duas décadas, a França procurou e reivindicou ser uma potência internacional autônoma no mundo pós-Guerra Fria.[1] A grande dependência da energia nuclear como principal fonte de energia é uma ilustração dessa política: a França busca ser autossuficiente e não depender de recursos estrangeiros para abastecer o país. Essa afirmação de autonomia também é vista no âmbito militar. Dois dos principais documentos de política de defesa do governo francês, a Revisão Estratégica de Defesa e Segurança Nacional de 2017 e a atual Lei de Planejamento Militar (abrangendo o período 2019-2025), enfatizam a importância da autonomia estratégica.[2] No entanto, há um grande problema: o instrumento militar francês já não permite que o Estado seja completamente autônomo. Este artigo irá expor as principais deficiências da política de defesa francesa e seu instrumento militar de poder antes de oferecer algumas recomendações.

TRÊS QUESTÕES PRINCIPAIS


Orçamento de Defesa

O fim da Guerra Fria é o principal impulsionador dessa mudança no foco militar francês. Em 1997, o governo francês mudou o modelo de suas forças armadas do recrutamento obrigatório para um tipo exclusivamente voluntário, expedicionário.[3] Antes desta data, as Forças Armadas francesas tinham um componente maior encarregado da defesa da França continental, enquanto um componente menor, do tipo expedicionário, estava encarregado de realizar missões no exterior.[4] Após esta data, a França decidiu desenvolver uma força mais compacta porém melhor equipada, em que todas as unidades tenham capacidade para intervir no exterior.[5] A lógica era compensar a mudança de quantidade com qualidade, tanto no treinamento quanto no equipamento.[6] No entanto, na ausência de uma ameaça direta, e mesmo antes do fim da Guerra Fria, o governo reduziu gradualmente seu orçamento de defesa: entre 1982 e 2015, ele foi cortado quase pela metade.[7] Recentemente, o governo francês aumentou o orçamento de defesa para lidar melhor com as novas (e renovadas) ameaças regionais e globais. Com a implementação da última Lei de Planejamento Militar, os gastos com defesa devem atingir 2% do produto interno bruto (PIB) francês até 2025.[8]

Um soldado caminha entre veículos blindados franceses no Campo Militar de Mourmelon, no nordeste da França. (AFP)

Por causa dos repetidos cortes orçamentários, as forças restantes não receberam mais dinheiro e meios para realizar suas tarefas. Essa falta de recursos é problemática, pois os cortes orçamentários podem se traduzir em riscos estratégicos, operacionais e táticos. Por exemplo, a falta de recursos pode afetar a manutenção de equipamentos, e apenas cerca de metade dos sistemas de armas franceses não-desdobrados em operações estavam funcionais em 2015. Consequentemente, a qualidade do treinamento experimentado pelos militares franceses é necessariamente reduzida, o que pode afetar sua eficiência, segurança e moral.[9] Além disso, quando uma operação é planejada, os planejadores franceses devem restringir os meios que desejam usar com base em uma lógica orçamentária estrita.[10] Como resultado, os oficiais destacados são deixados para operar com recursos limitados.[11] Outra consequência é que os soldados franceses tendem a confiar mais no combate corpo-a-corpo para destruir o inimigo, em parte porque essas táticas são mais baratas do que confiar no poder de fogo.[12] As opções táticas são, portanto, raramente baseadas nas necessidades no terreno; em vez disso, elas são derivadas de restrições materiais.[13]

Números de tropas


As Forças Armadas francesas agora têm relativamente poucas tropas. Por exemplo, o exército francês passou de cerca de 350.000 soldados em 1984 para 200.000 em 1998.[14] Em 2017, tinha cerca de 114.500 soldados, embora tenha havido um ligeiro aumento de 2.000 soldados em relação a 2016.[15] Especificamente, a força de combate operacional do Exército é composta por apenas 77.000 soldados e, como outro exemplo, deve possuir apenas 225 tanques pesados até 2025.[16]

Esse número relativamente baixo de tropas e material constitui uma deficiência óbvia para um Estado com ambições globais, território e interesses para proteger na Europa, África, Oriente Médio e Ásia-Oceania.[17] Números baixos, combinados com cortes orçamentários duradouros, resultaram nas Forças Armadas francesas tornando-se uma força projetada para vencer guerras curtas e obter sucesso tático.[18] A França não tem o pessoal necessário para ser um ator decisivo em um grande conflito convencional, uma contradição direta com o sacrossanto princípio francês de autonomia estratégica. Em uma coalizão, a França provavelmente teria apenas efeito e influência estratégica limitados.[19] A França confia demais na dissuasão nuclear para garantir sua segurança e proteger seus interesses para enfrentar ameaças convencionais. Embora o poder nuclear seja absolutamente um elemento-chave de qualquer política de defesa para os Estados que podem pagar por ele, os conflitos ainda são muito mais propensos a envolver o envio de forças regulares do que depender exclusivamente de armas nucleares, se é que o fazem.

Foto aérea do Forte Madama, no Níger, em novembro de 2014.
(Thomas Goisque/Wikimedia)

A experiência recente deveria ter ensinado melhor a França: ela tem um alto nível de engajamento militar, com três grandes operações em andamento (Sentinelle em solo francês, Barkhane no Sahel e Chammal no Iraque e na Síria). 
Em 2016, esse envolvimento intenso e contínuo provou ser problemático, pois a França encerrou sua operação não-prioritária Sangaris na República Centro-Africana, porque a pressão sobre as Forças Armadas francesas era muito desgastante para sustentar.[20] Além disso, especialistas militares franceses apontaram regularmente que o nível de engajamento da França constitui uma enorme pressão sobre a força. Consequentemente, a falta de recursos e pessoal por parte dos franceses resultou em um impacto direto e estratégico em sua postura operacional recente.

Limitações estruturais do modelo militar francês


Outro problema, este de natureza estrutural, é o próprio modelo militar francês. O modelo atual – uma pequena força expedicionária profissional que pode ter que depender pelo menos parcialmente de parcerias com outros Estados – pode ser relevante para operações de ponte nas quais forças militares são usadas para estabilizar uma situação até que outras forças, tipicamente de uma organização internacional como as Nações Unidas, sejam capazes de assumir.[21] A própria Resenha Estratégica enfatiza a importância da cooperação e das parcerias.[22] Este modelo tem três limitações principais. Primeiro, é sempre difícil transformar o sucesso tático em efeito estratégico. Em segundo lugar, as forças internacionais não são necessariamente eficientes.[23] Terceiro, e mais importante, tal modelo não apóia o conceito francês de autonomia estratégica.

De fato, o modelo atual é excessivamente dependente de parcerias e fatores políticos não necessariamente nas mãos do governo francês. Tal conceito pode ser adequado para operações policiais onde os objetivos políticos são meramente deter um grupo armado não-estatal – como foi o caso da Serval – ou executar operações de baixa intensidade. No entanto, é improvável que este modelo consiga uma vitória decisiva contra uma força convencional. Por exemplo, a França confiou em uma organização regional africana, o G5 Sahel, para assumir o controle da área. No entanto, o G5 Sahel tem sido incapaz de realizar operações no terreno sozinho, e levou três anos para que uma força conjunta africana fosse criada.[24] Consequentemente, a França está presa no Sahel há quase cinco anos. A Operação Barkhane ainda pode mostrar algum sucesso, mas mesmo que alcance sucesso total, é inerentemente projetada para durar muito tempo e não tem uma estratégia de saída clara e direta além de delegar a missão a uma organização regional. Consequentemente, a estratégia de saída francesa depende de fatores políticos e materiais que a França não controla.

Além disso, tal estratégia pode ser impedida por outras questões, como a eficácia militar da força que está assumindo, ou os meios materiais, notadamente o financiamento, que essa organização possui. Tal estratégia de saída pode, no final, acabar sendo apenas uma estratégia e apenas um adiamento para encontrar uma solução real e duradoura para a situação.

Soldados franceses e malianos em 2016.
(Wikimedia)

RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICA

Se o governo francês pretende tornar-se estrategicamente autônomo novamente, deve implementar um conjunto de medidas relativamente simples, mas necessárias.

Números

Primeiro, o governo francês deve aumentar o número de militares, principalmente em seu exército. Esse aumento é essencial para atingir o objetivo acalentado de autonomia estratégica, aliviar a pressão atual sobre as forças armadas, preparar-se para enfrentar ameaças convencionais e reforçar a dissuasão convencional.[25] É ainda mais importante porque as forças adversárias potenciais não só têm uma vantagem em quantidade, mas também cada vez mais uma vantagem qualitativa.[26] Consequentemente, a França não pode contar com treinamento e equipamentos superiores, e com a flexibilidade e criatividade de seus líderes militares, para compensar a falta de números.[27] Conflitos recentes demonstraram que os números e o poder de fogo ainda são relevantes.[28] Além disso, compensar números baixos pela tecnologia tem limitações.

De fato, trocar números por tecnologia é um conceito errôneo, que pode ser relevante no nível tático, mas não necessariamente nas esferas operacional e estratégica. A massa crítica continua importante. A enorme expansão dos espaços de combate modernos, que podem se estender por todo o planeta, conferem uma importância particular aos números. De fato, para cobrir eficientemente todos os espaços de engajamento e fazê-lo em tempo hábil, é essencial ter um número suficiente de soldados e material disponível.[29] Para um Estado como a França, com ambições globais e uma exigência teórica potencial de desdobrar forças simultaneamente em diferentes continentes, os números não devem ser um luxo. Os números devem ser um requisito.

Reserva

Reservistas do 3e RMAT em exercício de combate urbano.

Atualmente, as forças de reserva francesas não podem reforçar decisivamente o núcleo do Exército. De fato, conforme projetado atualmente, eles são construídos para reforçar unidades permanentes com indivíduos ou pequenos grupos. As reservas não podem ser usadas para formar brigadas inteiras ou mesmo batalhões equipados com material pesado, sendo os estoques atuais insuficientes para equipar totalmente todas as unidades ativas.[30] Reviver a reserva e devolver-lhe as verdadeiras capacidades deve ser uma das principais prioridades da liderança de defesa francesa. Essas medidas aliviariam a pressão sobre as forças armadas e constituiriam um verdadeiro mecanismo de reforço para apoiar as tropas desdobradas no exterior ou em território nacional. A França precisa agir de forma decisiva em relação à sua reserva para reforçar efetivamente suas capacidades de defesa, enfrentar ameaças estratégicas e responder a surpresas estratégicas.

Repensando o modelo militar francês

O atual modelo militar francês simplesmente não corresponde ao objetivo de autonomia estratégica ou ao alto nível de engajamento, tanto na teoria quanto na prática, das Forças Armadas francesas. Para garantir autonomia, maximizar a defesa do território francês e sua vizinhança e cumprir um alto nível de engajamento, a França poderia retornar ao seu modelo tradicional. Uma única força maior poderia ser dedicada à defesa do território francês e seus arredores imediatos contra ameaças convencionais, principalmente na Europa, com uma segunda força expedicionária, muito menor, especializada na defesa dos interesses e territórios franceses no exterior por meio de operações limitadas. Tal modelo desapareceu em grande parte por causa do fim da Guerra Fria. No entanto, um desafio real seria reproduzir tal modelo sem re-decretar o alistamento obrigatório, o que é muito provavelmente irreal tanto do ponto de vista político quanto fiscal. De qualquer forma, com o ressurgimento das ameaças convencionais, o restabelecimento do modelo militar tradicional francês, com soluções adaptadas para evitar o alistamento de conscrição, deve ser, no mínimo, considerado pela liderança política e pela nação francesa como um todo.

Alternativamente, um novo modelo poderia ser estabelecido. Por exemplo, a França poderia manter seu pequeno núcleo de tropas profissionais para realizar as principais tarefas de combate e constituir a ponta de lança da força em caso de conflito convencional e intervenções no exterior, enquanto uma reserva maior poderia realizar tarefas secundárias e ocupar terreno. Outra solução potencial poderia ser a adição gradual, mas frequente, de mais pessoal às forças armadas por meio de campanhas agressivas de recrutamento. Até o final de 2016, a França havia adicionado 11.000 soldados à força de combate operacional do Exército.[31] O governo francês poderia tentar aumentar o número das forças armadas com acréscimos semelhantes e mais frequentes. Também poderia permitir que as Forças Armadas francesas ganhassem mais poder de combate sem sobrecarregar excessivamente a infraestrutura militar atual e permitir que os militares absorvessem gradualmente os novos recrutas.

Orçamento de Defesa

Legionários da 2ª companhia do 3e REI (3º Regimento Estrangeiro de Infantaria) com o míssil AAe Mistral durante o lançamento do foguete Ariane 5 em Kourou, na Guiana Francesa, em 17 de novembro de 2016.

Embora a França tenha feito um esforço recente para interromper os cortes orçamentários e aumentar seus gastos com defesa, deve continuar aumentando o orçamento de defesa no futuro e garantir que atinja e mantenha pelo menos 2% do PIB. Além disso, se a OTAN considera que os Estados membros não fortemente envolvidos no exterior e que não possuem armas nucleares devem gastar 2% de seu PIB em defesa, parece razoável que a França precise gastar mais, considerando suas ambições globais e seu arsenal.[32]

CONCLUSÃO


Se a França realmente deseja permanecer um ator global, uma potência militar credível e estrategicamente autônoma, ela precisa empreender esforços consideráveis para melhorar a condição atual de suas forças armadas. A França fez progressos nesse sentido, mas ainda precisa fazer mais. Aumentar a massa das forças armadas e do orçamento de defesa, e repensar o papel da reserva e o modelo militar atual, são os elementos em que o governo francês deve se concentrar. Naturalmente, o Estado francês também pode ter que se concentrar em elementos econômicos e industriais ao mesmo tempo, pois o poder militar viável e sustentável necessariamente vem com uma economia e indústria fortes.

Se, por outro lado, a França finalmente chegar a um acordo com seu status de potência internacional média, melhorias limitadas podem ser suficientes. No entanto, nesse caso, a França teria que aceitar o fato de que, no caso de um grande conflito convencional, ela provavelmente teria um impacto estratégico limitado, que ela tem autonomia estratégica limitada e que ela não é mais uma potência internacional forte.

Sobre o autor:

Lorris Beverelli é um cidadão francês que possui um Master of Arts em Estudos de Segurança com uma concentração em Operações Militares pela Universidade de Georgetown. As opiniões expressas neste artigo são exclusivas do autor e não representam a política ou posições do governo francês ou das forças armadas.

Notas:
  1. Frédéric Mauro, “Strategic Autonomy under the Spotlight: The New Holy Grail of European Defence”, 2018/1, 4, PDF.
  2. República Francesa, “Defence and National Security Strategic Review”, 2017, §1.2., PDF; “LOI n° 2018-607 du 13 juillet 2018 relative à la programmation militaire pour les années 2019 à 2025 et portant diverses dispositions intéressant la défense (1)", Legifrance, acessado em 10 de junho de 2019, Artigo 65, §1.2.1., https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000037192797&dateTexte=20190610.
  3. Rémy Hémez, “The French Army at a Crossroads”, Parâmetros 47, nº 1 (Primavera de 2017): 103.
  4. Michael Shurkin, “France’s War in Mali: Lessons for an Expeditionary Army”, RAND Corporation, 2014, 40, PDF.
  5. Ibid.
  6. Joseph Henrotin, “La défense française durant le prochain quinquennat: Quels défis?”, DSI, nº 128 (março-abril de 2017), 31.
  7. General Vincent Desportes, La dernière bataille de France: Lettre aux Français qui croient encore être défendus (Paris: Editions Gallimard, 2015), 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français – La baisse inexorable des moyens financiers, Kobo.
  8. “LOI n° 2018-607”, Artigo 2.
  9. Desportes, La dernière bataille, 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français – Des paradoxes qui mettent en danger nos soldats.
  10. Ibid.
  11. Shurkin, “France’s War”, 42.
  12. Ibid.
  13. Desportes, La dernière bataille, 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français – Des paradoxes qui mettent en danger nos soldats.
  14. Ibid., 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français.
  15. Ministério da Defesa francês, “Números-chave da Defesa de 2018”, 2018, 16, PDF.
  16. CES Lionel Guy, CDT Alexandre Montagna, “Un nouveau modèle pour l’Armée de Terre”, TIM, nº 276 (julho-agosto de 2016), 3.
  17. República Francesa, “Strategic Review”, §§166, 167, 168.
  18. Desportes, La dernière bataille, 1. Les lois de déprogrammation militaire ou le mensonge français – Des paradoxes qui mettent en danger nos soldats.
  19. Ibid., 9. A un pas du gouffre : plus de guerres, moins de moyens ? – Quelles conséquences stratégiques?
  20. Hémez, “The French Army”, 110.
  21. Ibid.
  22. República Francesa, “Strategic Review”, §5.2.
  23. Hémez, “The French Army”, 110.
  24. Centro Africano para Estudos Estratégicos, “A Review of Major Regional Security Efforts in the Sahel”, 4 de março de 2019, https://africacenter.org/spotlight/review-regional-security-efforts-sahel/.
  25. Hémez, “The French Army", 111.
  26. Henrotin, “La défense française”, 31.
  27. Rémy Hémez, Aline Leboeuf, “Retours sur Sangaris: Entre stabilisation et protection des civils”, Focus stratégique, nº 67 (abril de 2016), 30, PDF.
  28. Henrotin, “La défense française”, 34.
  29. Benoist Bihan, “Masse critique”, La plume et le sabre, 31 de março de 2013, http://www.laplumelesabre.com/2013/03/31/masse-critique/.
  30. Michel Goya, “La «descente en masse»”, DSI, nº 131 (setembro-outubro de 2017), 62.
  31. Hémez, “The French Army", 104.
  32. General Vincent Desportes, “Un désastre militaire”, Conflits, nº 13 (abril-maio-junho de 2017), 49.

      terça-feira, 11 de janeiro de 2022

      COMENTÁRIO: Sobre o sentimento anti-francês no Sahel


      Por Rahmane Idrissa, La Gazette Perpendiculaire, 22 de novembro de 2021.

      Tradução Filipe do A. Monteiro, 11 de janeiro de 2022.

      Chego a Niamey em uma atmosfera de fúria anti-francesa pan-saheliana que inundou as redes sociais graças aos bloqueios impostos ao avanço de um comboio militar francês pelas massas burquinenses animadas por encontrar um alvo odiado, mas inofensivo à sua indignação contra a situação de opressão violenta (por parte de grupos armados jihadistas) a que está sujeita grande parte do seu país. Há uma opinião generalizada entre a população de que os militares franceses só chegam às zonas de guerra para distribuir armas aos jihadistas.

      Essa ideia é convincente porque não se baseia em fatos, mas em sentimentos, e os sentimentos, infelizmente, não são contrariados por evidências factuais. Trata-se, neste caso, de uma mitificação da maldade diabólica da França que trabalha a imaginação saheliana em todos os níveis, desde os intelectuais e outros personagens cultos até o camponês sentado em sua cabana, mas que, graças ao seu smartphone, recebe diariamente discursos alucinados sobre esse tema, propagado em um loop por indivíduos que encontraram uma vocação fácil no French bashing.

      Como o jornalista Antoine Glaser me disse em uma entrevista recente em Paris, os jihadistas já venceram. Referia-se ao fato de que a insegurança, ainda maior para o Ocidente do que para os locais, levou à sua saída da região, nomeadamente ao nível dos laços humanos tecidos, à margem do grande Estado e das máquinas multilaterais, por pequenas ONGs, por pessoas generosas ou pessoas apaixonadas pela África, destinos aparentemente excêntricos dedicados a trabalhar obscuramente em uma campanha esquecido.


      Mas a outra vitória dos jihadistas é certamente o fortalecimento e a histerização do sentimento anti-francês, um fenômeno antigo que não é sem justificativa, é claro, mas que, ao lado de aspectos de reação saudável, também revela patologias morais e intelectuais que, a longo prazo, são perigosos para o próprio Sahel.

      Há alguns pontos importantes para entender aqui.

      Sempre houve um forte sentimento anti-francês no Sahel e na África francófona em geral, decorrente naturalmente da dominação colonial. Nas últimas décadas, esse sentimento elevou-se para o ódio entre alguns, mas foi, na maioria, contrabalançado por uma espécie de francofilia morna advinda da influência cultural francesa impregnada pela escolarização ou simplesmente pelos "elos históricos" forjados pela colonização. Todos os nascidos antes de 1990 nos países do Sahel já ouviram falar, ou puderam evocar, a França com esta frase que sempre me surpreendeu um pouco: A pátria mãe.

      O sentimento anti-francês da época não se explica apenas pelo passado colonial, mas pelo fato da França, ao contrário da Grã-Bretanha, ter estabelecido em 1958, sob a égide do General de Gaulle, uma política neocolonial na África subsaariana, uma política que é um subproduto da política de grandeza preconizada pelo general e praticamente inscrita no DNA da 5ª República.


      Essa política neocolonial tinha muitas facetas, nem todas tão terríveis quanto imaginavam seus críticos - especialmente os africanos. No entanto, ela estava sufocando, seja pelo bem que queria fazer (por exemplo, financiar a vida cultural, apoiar a educação por meio de assistência técnica e bolsas de cooperação e outras obrigações benevolentes) ou pela defesa egoísta de certos interesses estratégicos ou táticos.

      Acima de tudo, pressionou a França a rotinizar as intervenções militares em seu “quintal” africano. Desde 1964, quando a França restabeleceu à força Léon Mba em Libreville até a Operação Barkhane, calcula-se que a França interveio na África uma vez a cada quinze meses, sem contar as intervenções clandestinas e outros golpes de trabalho implementados com a ajuda de mercenários ou em conluio com regimes deploráveis ​​(o famoso eixo Rabat-Abidjan-Pretória).

      Essas operações faziam parte do quadro neocolonial conhecido como Françafrique, pois visavam proteger os interesses estratégicos (incluindo o prestígio) da França, muitas vezes contra projetos políticos que mereciam apoio e não oposição. Isso, de qualquer forma, construiu uma imagem de uma hiperpotência diabólica da França que alimenta dois instintos entre os africanos: ou uma espécie de submissão sem energia a que se pensa não poder resistir (que, consequentemente, alimenta o desprezo divertido e a condescendência colonial do lado francês), ou uma hostilidade odiosa que vai para o outro extremo.

      Mas a política de grandeza da França, bem como o neocolonialismo ligado a ela, há muito deixaram de ser viáveis ​​- e a Operação Barkhane é o primeiro ato de sua morte, embora os africanos e, em todo caso, a opinião pública saheliana, absolutamente não percebam isso.

      A política de grandeza da França na África obedeceu a dois imperativos aparentemente contraditórios: participar do esforço americano da Guerra Fria e da contenção do comunismo (o que ficou especialmente evidente durante os anos 1960-70), e garantir a autonomia da França vis-à-vis os Estados Unidos, por exemplo, controlando o voto africano francófono nas Nações Unidas e, de forma mais geral, preservando uma capacidade de ação independente da supervisão americana sobre "o mundo livre". Estes são os princípios do Gaullismo, que estão na origem da 5ª República.

      Mas tudo isso entrou em crise nas décadas de 1980 e 1990. Durante a década de 1980, os problemas econômicos da França levaram-na gradualmente a reduzir o alcance da sua política externa e, em particular, sua política africana. Por exemplo, a cooperação bilateral, aliás conduzida sem entusiasmo precisamente onde a necessidade era maior - os países do Sahel, para os quais os franceses nutriram um profundo pessimismo econômico desde os tempos coloniais - deu lugar ao "multilateral", isto é, a supervisão das instituições financeiras internacionais quando a crise da dívida atingiu os países francófonos na década de 1980, a França se viu incapaz de fornecer a assistência esperada nos termos implícitos do pacto neocolonial.


      No início dos anos 1990, o fim da Guerra Fria também pôs fim a uma das funções do poder francês na África, a de policial do mundo livre. Os Estados Unidos foram capazes de pressionar pela democratização e pela promoção dos direitos humanos, e a França teve que seguir o exemplo, como mostra o famoso discurso de La Baule. Mas na África francófona, como em outros lugares, a conjunção entre a democratização no nível político e o ajuste estrutural político no nível econômico foi explosiva para dizer o mínimo. Com efeito, isso significava que as demandas e pressões populares sobre o Estado se multiplicavam com o surgimento de uma sociedade civil multifacetada ao mesmo tempo em que o campo de ação do Estado se estreitava drasticamente. Economicamente, nem a França nem outros países ocidentais apoiaram a democratização, por exemplo, por meio de planos de investimento em desenvolvimento ou cancelamento da dívida.

      Pelo contrário: a recessão devido à crise fiscal que levou a uma sobrevalorização do franco CFA, a França cedeu em 1993 à pressão do FMI para uma desvalorização draconiana da moeda CFA, apesar do impacto social e psicopolítico duma tal decisão. A desvalorização ocorreu em 1994, ano que acabou sendo o annus horribilis do poder francês na África. De fato, foi também durante este ano que Ruanda explodiu nas mãos de uma França que se fazia de aprendiz de feiticeiro com sentimentos de ódio sócio-étnico de extrema revolta. O relatório sobre a política de François Mitterrand encomendado por Macron fala sobre este tema de uma "derrota do pensamento" e de um "colapso intelectual", sublinhando até que ponto um Estado - ou em todo o caso o seu componente central, o Palácio do Eliseu - que acreditava ele sabia tão bem que o continente negro havia se desviado para o erro fatal e a falta trágica.

      Essa derrota foi a da política neocolonial e, subjacente a ela, da política de grandeza. François Mitterrand foi um político que serviu como ministro numa época em que a França ainda tinha colônias na África, e sua intervenção em Ruanda, que começou como uma promoção da democracia - seguindo o slogan americano - adotou uma linha mais sombria depois que ele se convenceu de que as potências anglo-saxônicas estavam tentando infligir um golpe de Fashoda na França em Ruanda. Enquanto o fim da Guerra Fria havia tornado impertinente para o lado anticomunista da política neocolonial, Ruanda pôs fim ao outro lado, a defesa da autonomia face os americanos.


      Depois de 1994, a política neocolonial na África não se justificava, exceto pelo fato de que o que foi posto em prática perdurará pelo simples fato do conatus (da vontade de perseverar no próprio ser) até que tenha sido deliberadamente desmontado.

      Tal medida é possível, embora as estruturas da 5ª República, em particular a autonomia do Palácio do Eliseu no campo da política externa, pareçam opor-se a ela. Afinal, olhando mais de perto, essa autonomia eliseana é um costume e não uma regra constitucional. As intervenções francesas na África pós-1994 já não faziam parte de uma estratégia neocolonial coerente e estruturada. Elas vieram do conatus. Este foi particularmente o caso no Chade e especialmente na Costa do Marfim, em todas as ocasiões em que o peso dos atores africanos (Déby, Ouattara) prevaleceu, através de relações pessoais com os principais chefes decisores do aparelho governamental francês, dentro duma visão política ou meios de ação que a França não mais dispunha.

      A Serval e Barkhane são diferentes. Estas duas operações escapam ao conatus neocolonial porque fazem parte das novas prioridades do Estado francês, a construção europeia (em particular o conceito de defesa europeia) e a luta contra o jihadismo que tem perpetrado numerosos assassinatos em massa em solo francês e europeu.

      Ao contrário das intervenções neocoloniais, a Serval e Barkhane não foram projetados para derrotar um oponente da França, ou apoiar um amigo da França, ou mesmo preservar interesses estratégicos ameaçados por potências hostis (como China e Rússia). Trata-se de pôr fim a uma violenta militância salafista enquistada no Sahel-Sahara desde o fim da guerra civil argelina e que foi mobilizada a favor do colapso do regime de Kadafi no norte do Mali, ameaçando desestabilizar todo o território da África Ocidental a longo prazo.

      Essas operações sublinham tanto os novos limites da atuação francesa na África - que agora precisa do apoio das potências anglo-saxônicas, outrora consideradas meio-rivais -, quanto as novidades características da época. Por exemplo, ao contrário do que aconteceu mais uma vez no caso das intervenções de estilo neocolonial, a França hoje precisa de Estados africanos fortes e exércitos africanos que não são assim, foi o que aconteceu principalmente no Sahel, com exércitos de opereta. Isso decorre de uma convergência de interesses sem precedentes, na frente de segurança, entre a Europa e o Sahel, e especialmente entre a França e suas ex-colônias.

      Como resultado, a ascensão do sentimento anti-francês que se transforma em obsessão odiosa na região é uma daquelas tragédias de erros que resultam de uma história terrível e um passado ruim. Como, até 2013, a França nunca interveio militarmente em África, exceto numa perspectiva neocolonial, é lógico considerar que esta enésima intervenção está na mesma linha. Tanto mais que, ao evoluir para uma nova fase de suas relações com a África, a França ainda preserva alguns dos instintos desenvolvidos pelo gaulismo e sua política de grandeza.


      Macron, que certa vez disse à revista Le Point que estava assumindo "a grandeza", mantém o estilo frágil e peremptório que deriva daquela era antiga - e que, além disso, os então chefes de Estado em exercício se abstiveram cuidadosamente de adotar. Seus apelos aos Estados do Sahel para fortalecer seus exércitos e controle territorial, embora estejam na direção certa do bom senso, são feitos em tom de dor de acusação e impaciência e criam um processo de empilhamento sobre todo o tempo desperdiçado pela cooperação multilateral em estados debilitantes (em nome dos princípios neoliberais) e reduzir suas capacidades de governo (substituídas por ONGs), um empreendimento que a França teve o cuidado de não denunciar quando atingiu o poder total na década de 1990. No entanto: enquanto os africanos sofreram com uma espécie de resignação impotente às intervenções neocoloniais francesas do passado, eles finalmente se levantam com a petulância de uma matilha no primeiro momento em que, finalmente, uma intervenção francesa é realmente do seu interesse.

      Este ponto em particular refere-se, a meu ver, a um constante e crescente distanciamento cultural entre a França e a África francófona que me parece bastante positivo, bem como a uma espécie de fome nacionalista do lado africano que me parece ser o menos preocupante.

      Da independência até o final da década de 1980, havia uma forte proximidade cultural entre a França e os francófonos da África, em parte graças à ação cultural do Estado francês, em parte pela simplicidade dos tempos, onde a França era de certa forma o canal obrigatório dos francófonos para uma cultura cosmopolita. Eu conheci bem esse período, cujo período final coincidiu com minha infância e adolescência. Como indicado anteriormente, o sentimento anti-francês já era muito forte naquela época entre aqueles que se definiam como intelectuais engajados, e lembro-me de ter ficado muitas vezes impressionado com seu caráter ideológico, o fato de parecer esgotado na declamação e lamento, sem preocupação realista - isto é, sem considerar a política neocolonial da França como um problema a ser resolvido em nível prático, não como uma espécie de batalha épica e interminável entre o bem e o mal.

      Como resultado, fiquei tão desanimado com o neocolonialismo francês quanto com a galofobia de muitos de meus camaradas e seus tutores intelectuais, embora não soubesse exatamente na época por que isso me incomodava.

      Não entendi então que ela era apenas um sintoma de outra coisa, e que essa outra coisa era, de fato, pouco simpática.

      O mundo começou a mudar na década de 1990. Não só a ação cultural da França, como d'outros países ocidentais, começou a declinar no contexto de entrincheiramentos neoliberais, mas esse novo regime econômico empurrou para a globalização, que começou a oferecer alternativas francófonas à França para acessar uma cultura cosmopolita - e primeiro os Estados Unidos e o Canadá, antes de buscar por outros horizontes. A filha de um amigo meu sonha apenas com Dubai; uma jovem de sua idade em 1995 sonhava com Nova York; em 1980, com Paris.


      Os francófonos de 1980, mesmo anti-franceses, entendiam subjetivamente o que estava acontecendo na França; este não é o caso dos de 2021. Por si só, uma certa distância cultural entre a França e os francófonos, ou melhor, uma ausência de intimidade cultural entre os dois é bastante saudável do meu ponto de vista. Tendo em vista as relações de poder de estilo neocolonial que existiam entre a França e seu antigo império africano, havia algo de incestuoso nessa intimidade cultural - embora, de minha parte, eu apreciasse um certo aspecto da influência cultural francesa, seu conteúdo liberal, a substância racionalista, cética e humanista de sua mensagem geral que tinha, pelo menos para mim, cores muito atraentes contrastando com o tufo conservador e retrógrado das culturas africanas circundantes.

      Mas precisamente, finalmente me ocorreu que o sentimento anti-francês não se limitava ao anti-neocolonialismo. Também tem a ver com nacionalismo ou, como dizem ultimamente, identidade nacional, algo que costumo ver tão facilmente capaz de cair em formas tóxicas de estupidez, como vemos em outros lugares da extrema-direita francesa. Isso é difícil de ver à primeira vista. O anti-colonialismo é, em princípio, uma coisa boa, e há uma tendência a aprovar qualquer coisa que o alimente - e, além disso, o nacionalismo dos fracos não parece muito perigoso, pelo menos do lado de fora.

      Além de alguns franceses afro-amantes (afrófilos), não acho que os franceses estejam tão chocados com as manifestações de ódio e ressentimento que os atingem no Sahel. A maioria a vê de longe ou a aceita como um efeito normal do ressentimento do colonizado. Mas você não pode aceitar o mesmo se for um africano não-nacionalista, como eu. O nacionalismo é um moralismo humanamente perverso que tem, como disse certa vez André Gide, "ódio amplo e amor estreito". Ele surge como um bem absoluto e, portanto, precisa de um mal absoluto para se definir adequadamente. Para Zemmour, o Islã é esse mal absoluto que permite que a França se defina; para os anti-franceses - que parecem ser a maioria no Sahel de hoje - é a França. Uma das primeiras consequências de tal moralismo unificador é a total e definitiva impossibilidade de deliberar e discutir racionalmente, com base factual e pesando os prós e os contras.

      Recentemente dei uma aula em Niamey, para a qual criei um exercício de debate. Dividi a turma em vários grupos e fiz uma lista das causas que são comumente atribuídas aos conflitos no Sahel, incluindo a ideia hoje tão difundida na opinião pública saheliana de que agiria fora de um esquema francês. Cada grupo teve que se reunir por cerca de vinte minutos, desenvolver um argumento e apresentá-lo à classe respondendo às críticas e perguntas de seus colegas. Expliquei enfaticamente aos alunos que eles deveriam evitar respostas consensuais e que o grupo que mais me surpreendesse com um argumento bem elaborado ganharia um bônus. Foi para incentivá-los a "pensar fora da caixa", como se diz em inglês. Este foi geralmente um esforço desperdiçado, mas acima de tudo para o grupo que teve que lidar com a "causa" da maquinação francesa. Seguindo a retórica anti-francesa mais aceita, esse grupo argumentou que a guerra do Sahel havia sido conscientemente provocada pela França para explorar "nossos imensos recursos naturais". Isso não me surpreendeu, é claro, mas o que realmente me surpreendeu foi que os outros alunos criticaram esse grupo não por ter dito todas as coisas ruins que pensavam sobre a França, mas por não terem acusado o suficiente!

      Vi que estava na presença de um dogma, isto é, do não-pensamento que se apresenta sob a forma de um pensamento, uma espécie de castração do reflexo. Fiquei triste com isso pela França, mas especialmente por nós - porque essas pessoas, e todos aqueles que nutrem sua inclinação dogmática, deveriam ser as elites do Sahel, e essas são elites que, obviamente, em uma questão de urgência vital para o seu povo, não pensam. De alguma forma, a culpa é da França: ela é o diabo que corresponde a todos os nossos problemas e, portanto, dispensa pensar e deliberar.

      Outro exemplo: há pouco mais de um ano, eu estava em Ouagadougou com uma professora de direito que eu estava pensando em convidar para uma conferência. Ela me perguntou o que estava acontecendo no Níger. Na época, havia uma espécie de pequeno movimento insurrecional na região de Diffa que denunciou a ditadura do PNDS e atacou especificamente Bazoum Mohamed, então um dos analistas do PNDS, mas sobretudo originário da área. Tentei explicar do que se tratava, mas ela me cortou: “Isso é organizado pela França!" Um pouco pasmo, eu disse a ela, que não, que a França era muito alinhada do regime do PNDS e não tinha motivos para desestabilizá-lo, que na minha opinião tinha a ver com o fato de Bazoum, que era particularmente visado... Ela não me deixou desenrolar minha explicação chata, muito menos excitante para ela do que o diabolismo francês. Eu não podia acreditar: esta senhora não era nigerina, não tinha ouvido falar deste evento antes de eu a informar, mas ela estava convencida, cinco minutos depois de ouvi-lo, que ela o entendia melhor do que eu. A crença é mais forte que o conhecimento.

      Lembro-me que o que me frustrou, nos anos da minha primeira justa com os anti-franceses, há muito tempo, era que eu queria discutir com eles soluções práticas para se opor ao neocolonialismo, e eles queriam partir numa cruzada. Insisti prosaicamente nas realidades, e na importância de conhecer as realidades, incluindo as causas endógenas das nossas fraquezas e incapacidades, por exemplo a corrupção, a falta de sentido e preocupação com o Estado, a ausência de visão estratégica, obsessões étnicas onde obsessões são necessárias. Mas a resposta, sempre, era que enquanto a França não fosse derrotada, não se poderia lidar com essas questões - o que eu perguntei, questão de realidade, como se pretendia derrotar a França com todo o seu poder e todas as nossas fraquezas que, ao que parece, não eram prioridade. Nunca houve uma resposta para isso.

      (Claro que essas questões são abordadas de forma preocupada e responsável por muitos intelectuais do Sahel, mas nunca realmente de forma a ter o impacto no público que a linha de opinião aqui discutida tem. Não há, na região, intelectuais públicos ou de uma arena pública específica onde esses pontos de vista podem ter um significado quase compensatório).

      Ainda hoje, a mesma história. Dada a onda de sentimento anti-francês que agora atinge um vigor popular que não teve, ou que teve antes, todos aqueles que querem existir na praça pública e não querem se envolver com os rigores do pensamento, prova e contraditório, junte-se ao movimento e una-se com unanimidade. Eles uivam com os lobos. O populista não é aquele que lidera o povo, mas aquele que o segue para melhor explorá-lo - e as consequências!


      Os Estados do Sahel, que já são instáveis como​​ padrão, estão em processo de desestabilização diante do desafio de massacres e destruição (principalmente de escolas) pelos jihadistas. Em tal situação, aqueles que rejeitam o caminho seguido pelo poder, por exemplo a aliança com a França, não devem se contentar em denunciar esse caminho e exigir a renúncia dos que estão no poder: Eles têm que explicar o que fariam uma vez no comando, que caminho pretendem seguir e como pretendem resolver o problema quando a França for expulsa de campo. Mas a partir disso, nada é ouvido.

      As bombásticas conferências urbi et orbi proferidas urbi et orbi por políticos da oposição, "ulemás", acadêmicos até então escondidos em suas torres de marfim, e zelosamente transmitidas pelo WhatsApp, todas e sempre se relacionam com a eterna maldade da França, nunca em soluções práticas ou apresentações estratégicas. E por um bom motivo. Nenhum desses declamadores estudou a situação, perguntou a quem o fez ou quis saber mais. É verdade que certas realidades acabam por prevalecer. Em Burkina, onde a população está delirando com sua galofobia galopante, vozes devem ter se levantado contra a verdadeira razão das decepções do país que não é a França, mas o abandono do exército pelo poder do Estado - já no tempo de Blaise Compaoré, centrado nos generais leais e no Regimento de Segurança Presidencial (Régiment de la Sécurité Présidentielle)e agora no tempo de Roch Marc Christian Kaboré, muito assustado com os riscos dum putsch para reformar vigorosamente a máquina militar, como Macron havia dito em uma conversa "on record" com Antoine Glaser e Pascal Airault.

      Falei de nacionalismo - mas trata-se dum nacionalismo negativo, nacionalismo puramente de oposição e simbólico. A oposição à França, símbolo da opressão colonial, presta-se perfeitamente ao que é; em última análise não mais que uma petição de princípios, sem consequências práticas – embora a arma do ódio assim empregada possa sempre levar a consequências violentas. É esta arma que, no Níger, levou aos ataques de igrejas, com mortes, na sequência dos motins anti-Charlie (que foram também motins anti-franceses) de Niamey e Zinder. E ouvimos os declamadores burquinenses alegando ataques de dacarianos contra "interesses franceses", neste caso algumas lojas Auchan e Carrefour, como meio de sua "libertação". Dada a demonização dos cristãos e dos franceses que levaram a esses atos de violência, não posso deixar de pensar no anti-semitismo, na visão dos judeus que os anti-semitas têm como fonte de todas as misérias do mundo, na crença de que eles controlariam tudo e seu oposto em nome de interesses enormes e ocultos, e aos ataques às lojas judaicas e aos pogroms que resultaram.

      É claro que os franceses, ao contrário dos judeus, podem se defender - mas isso não impede que, nesta questão específica (mas que não é a única), os sahelianos estejam flertando com uma catástrofe moral.

      Como a França em Ruanda no passado, os sahelianos estão experimentando uma derrota do pensamento e um colapso intelectual.