Por Lluís Pérez Expósito, Conflict Freelancers, 14 de junho de 2020.
Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de fevereiro de 2021.
O interesse da Venezuela em adquirir um novo fuzil de serviço surgiu após o aumento das tensões entre o governo Hugo Chávez e os EUA. Antes da chegada de Chávez ao poder, a Venezuela estava firmemente estabelecida como parceira dos Estados Unidos na região, e isso se estendia às questões de defesa. O exército da Venezuela foi configurado para ser compatível com a OTAN e, embora o fuzil de serviço padrão ainda fosse o FN FAL 7,62x51mm produzido localmente, foram feitas tentativas de transição para o FN FNC. Embora uma licença aparentemente nunca tenha sido adquirida, um número significativo foi adquirido da FN, e ainda é usado até hoje.
Depois que Hugo Chávez assumiu o poder em 1999, as políticas e a diplomacia da Venezuela se aproximaram cada vez mais daquelas de Cuba, China e Rússia. Com o aumento da necessidade de um fuzil de assalto de cartucho intermediário para emissão em massa e também com a mudança de alianças diplomáticas, o governo Chávez finalmente decidiu pelo fuzil AK-103 e assinou um contrato com a Rosoboronexport em maio de 2005. O pedido incluiu a compra de 100.000 fuzis totalmente montados, seus respectivos acessórios, 74 milhões de cartuchos de munição 7,62x39mm, 2.000 conjuntos de peças de reposição, 50 conjuntos de gabaritos, 2.000 manuais de instrução, 5 simuladores de treinamento e a licença completa, pacote de dados e assistência técnica para estabelecer uma unidade de produção dentro da “Gerencia Metalmecánica”, principal centro de produção do conglomerado estatal da indústria de defesa CAVIM, ou Compañía Anónima Venezolana de Industrias Militares em Maracay, estado de Aragua.
Comandos da Guardia Nacional Bolivariana de Venezuela (GNB) armados com o fuzil FN FNC, 2014. |
Hugo Chávez inspeciona um dos primeiros AK-103 entregues à Venezuela. Ao lado dele está o então ministro da Defesa, Ramón Orlando Maniglia. Fuerte Tiuna. Caracas, 14 de junho de 2006. |
A razão para escolher o 7,62x39mm como cartucho padrão, ao contrário de algumas outras ofertas mais modernas nas esferas de influência russa e chinesa, como o 5,45x39mm, só pode ser especulada. Ostensivamente, a compatibilidade de defesa com Cuba (que nunca fez a transição para 5,45x39 e ainda usa fuzis AKM 7,62x39mm como fuzis padrão) teria sido um grande fator, no entanto, um caso forte pode ser feito, considerando o terreno venezuelano, com selvas densas e extensas áreas metropolitanas, e combates geralmente ocorrendo em curtas distâncias com cobertura abundante, as habilidades de penetração mais altas da bala de 7,62x39mm a tornariam uma escolha mais sensata.
O lote piloto russo, produzido em Izhmash, foi entregue em três etapas com as primeiras 30.000 unidades chegando à Venezuela em junho de 2006, o segundo lote de 32.000 em agosto e os 38.000 restantes em novembro. Esse lote inicial de fuzis aparentemente durou muito tempo, com unidades produzidas na Rússia tendo sido avistadas em abundância até a data de redação deste artigo (18/05/2020). A produção na Venezuela demorou a aumentar, com as primeiras 3.000 unidades montadas na Venezuela (embora com algumas ou todas as peças russas) sendo entregues apenas em junho de 2013.
Fuzil AK-103 venezuelano desmontado em primeiro escalão. |
A produção total é um tópico altamente contestado. O governo afirmou pela última vez que a fábrica estaria totalmente operacional no final de 2019, acrescentando que seria capaz de cumprir uma cota de 25.000 unidades produzidas por ano. Esses comentários não foram confirmados nem retirados em maio de 2020. Vale a pena mencionar que esses comentários não foram os primeiros do tipo, todos se provando falsos no passado. No entanto, um vídeo divulgado pela mídia oficial em abril de 2020 mostra caixotes de AK-103, marcados em espanhol, como fuzis produzidos pela CAVIM, sendo entregues a academias militares, o que indicaria plena produção venezuelana. Tem havido ceticismo quanto à validade potencial dessas marcações nas caixas, e as marcações do dos fuzis não foram observáveis neste caso.
O que exatamente é o AK-103?
O AK-103 é um fuzil de assalto operado a gás com um pistão de longo curso e um ferrolho giratório de 2 reténs. Ele tem uma configuração externa idêntica ao fuzil de serviço russo atual, o AK-74M, mas calibrado em 7,62x39. Isso significa que o fuzil tem uma coronha de polímero preto dobrável, porém de perfil completo, com um compartimento de kit de limpeza padrão e um botão de liberação de coronha projetado propositalmente na placa de controle sob o compartimento do kit de limpeza, que colide com o gancho retentor de posição da coronha dobrável. Ele também vem com um trilho óptico em cauda de andorinha no lado esquerdo do receptor. O cano é padrão de 16,3 pol. (415mm) de comprimento e integra um freio de boca de estilo AK-74 e alça de baioneta.
Uma modificação que não está presente em todos os fuzis AK-103, mas parece estar presente em todos os AK-103 venezuelanos, é a adição de um pequeno êmbolo com mola colocado perpendicularmente no retém da tampa da culatra. Esse recurso tem o objetivo de evitar a auto-ejeção da tampa e/ou da mola recuperadora sob o recuo aumentado das granadas de fuzil e calibragens de grande porte, como calibre 12 (no caso da família Saiga 12 de escopetas automáticas). Esta modificação está mal documentada, mas parece que se destina a ser um novo padrão da indústria para a família AK de exportação.
Exemplar do retém de duas etapas da tampa. |
O AK-103 de fabricação russa foi enviado com baionetas de dois gumes padrão AK-74 (6x5), porta-carregadores de lona de 4 bolsos, uma bandoleira de lona padrão, kit de limpeza armazenado na soleira da coronha, frasco de graxa de polímero e carregadores de polímero preto 7,62x39mm. Ainda não está claro se os porta-carregadores permaneceram em produção na Venezuela. Os porta-carregadores de lona têm sido usados cerimonialmente e esporadicamente também no campo, principalmente como uma expansão do equipamento de tralha, sem dúvida, com baixa capacidade de carregadores.
O vídeo de abril de 2020 mostra os fuzis sendo entregues em caixotes de 6, cada um com sua própria baioneta e 5 carregadores, embora infelizmente não seja possível verificar se esse sempre foi o caso a essa altura.
Cenas do vídeo de abril de 2020 mostrando os AK-103 da CAVIM sendo entregues a uma academia militar. |
Bandoleiras AK russas padrão em uso por conscritos venezuelanos. |
Bandoleira feita localmente, nylon preto. |
Um dos principais atrativos da plataforma AK-103 no mercado internacional é a capacidade de usar as mesmas munições e cartuchos de 7,62x39mm que muitos países usam há décadas, dos quais muitos clientes em potencial já podem ter estoques significativos. Isso não foi, no entanto, um fator no caso da Venezuela, que nunca havia usado variantes AK antes da compra do 103. Para esse efeito, os fuzis de serviço venezuelanos foram identificados em uso quase que exclusivamente com carregadores de polímero preto, segunda geração (sem costela) de 30 tiros, também licenciados pela CAVIM, estes sendo marcados “7,62x39” no lado esquerdo.
Carregadores do AK-103 de primeira geração (esquerda) e segunda geração (direita), apenas a segunda geração é usada e produzida pela Venezuela. (TheFirearmBlog) |
Unidad de Operaciones Tácticas Especiales (UOTE) da PNB. Observe o segundo operador da esquerda, usando um carregador de “baquelite” de fibra de vidro vermelha cubana. |
FAES da PNB com carregadores de aço estampados. |
UOTE da PNB usando um carregador Magpul PMAG. |
Lançadores de granadas encurtados do estilo do M203 sob o cano foram observados afixados sob os fuzis com armações próprias. Existem dois tipos de tais montagens. Um, que substitui o guarda-mão inferior, envolve um invólucro feito de folha de metal, semelhante em conceito ao usado no M16A1 e A2. Uma versão mais recente envolve um sistema de suporte de liberação rápida que se conecta diretamente ao cano em dois pontos diferentes, mantendo o conjunto do guarda-mão original intacto.
O lança-granadas de estilo M203 com a fixação inicial; substituição do guarda-mão inferior. |
Tipo de montagem moderna do estilo do M203; suportes no cano. |
GRLA-40 PB em uso. |
No entanto, granadas de fuzil de qualquer tipo não são frequentemente observadas em uso com tropas venezuelanas, com a FANB (Fuerza Armada Nacional Bolivariana) optando pelo lança-granadas giratório Milkor MGL 40mm nos últimos anos para funções de granadeiro.
Também é interessante notar que a literatura oficial da CAVIM faz questão de descrever e mostrar como o AK-103 pode ser equipado com um lança-granadas GP-25, apesar de nunca terem sido adquiridos pela Venezuela, até onde nós sabemos. Pode ser o caso de uma compra potencial ter sido discutida e, eventualmente, falhar.
Miras ópticas
PK-A venezuelana. |
As FANB emitem dois tipos diferentes de mira óptica para o AK-103; o PK-AV sem ampliação, feito sob encomenda pela BelOMO (Belorusskoe Optiko-Mechanichesckoye Obyedinenie) da Bielo-Rússia, e a PO 3,5x21P de magnificação de 3,5x, desta vez uma oferta padrão, também da BelOMO.
PK-A V. |
PO 3,5x21P. |
Ópticas alternativas são conectadas por meio de uma cauda de andorinha a uma montagem picatinny em forma de L projetada e produzida localmente pela CAVIM, e designada “Adaptador Caribe”.
Adaptador Caribe. |
VILMA em uso cubano, observe o acessório substituindo a massa de mira de ferro. |
Fuzileiro naval venezuelano com a VILMA. |
Fuzileiros com a VILMA. |
Fuzileiros com a VILMA durante uma demonstração. |
Fuzileiros com a VILMA em serviço de rua. |
Marcações
Infelizmente, há muito pouca informação explícita ou evidência fotográfica disponível para comparar e contrastar. No entanto, graças às fotos dos manuais de instrução oficiais e fotos incidentais que incluem fotos em close-up de fuzis, pudemos determinar como são as marcações originais dos fuzis do contrato russo.
No lado esquerdo do receptor, as marcações dizem "AK-103" e "7,62x39mm". Mais atrás, sobre o trilho da mira óptica, lê-se “Fuerza Armada Venezolana”. No munhão, a marca de prova da Izhevsk pode ser vista, seguida por “F.A.N.” (presumivelmente, Fuerza Armada Nacional) e o número de série.
No lado direito do receptor, no canto frontal inferior ao lado do guarda-mão, está o brasão da Venezuela. O seletor de tiro está marcado com S para “Seguro” (Seguro, travada), R para “Repetición” (Automático) e T para “Tiro a tiro” (Semi-automático).
Fuzil deixado para trás depois que o soldado que o carregava foi assassinado. Observe a marca de prova da Izhevsk no munhão. |
Sergey Popelnyukhov. |
Rajadas da História: O fuzil AK-47 da Rússia de Stálin até hoje. Mikhail Kalachnikov e Elena Joly. |
The AK-47: Kalashnikov-series assault rifles. Gordon L. Rottman. |
Sensacional o artigo! Quase tudo que eu queria saber sobre esses 103 Venezuelanos está aqui! Muito bom mesmo!
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