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terça-feira, 7 de setembro de 2021

A Liderança Nociva

Coronel George E. Reed, Exército dos EUA.

Military Review, março-abril de 2005.

Em 2003, o Secretário de Exército, Thomas E. White, determinou à Escola de Guerra do Exército dos EUA (US Army War College, AWCque fizesse um estudo sobre "como o Exército poderia eficazmente analisar os comandantes para detectar aqueles que poderiam ter um 'estilo de liderança destrutiva'".[1] O primeiro e mais importante passo na detecção e tratamento de liderança nociva é reconhecer os sintomas.

Os termos líder nocivo, gerente nocivo, cultura nociva e organização nociva aparecem, cada vez mais, nos livros de negócios, liderança e administração. O analista Gillian Flynn oferece uma definição bem descritiva de um gerente nocivo:

"É aquele tipo que intimida, ameaça e grita. Aquele cujo estado de espírito determina, no dia-a-dia, o clima no ambiente de trabalho. Aquele que força os empregados a cochicharem em solidariedade nos seus cubículos de trabalho ou nos corredores. Aquele chefe dos infernos que menospreza e calunia. Chame-o como quiser - de péssimas maneiras interpessoais, de maneiras desagradáveis no trabalho - mas algumas pessoas, simplesmente devido à sua intolerável personalidade, tornam o convívio diário um inferno." [2]

Na revista eletrônica de Kathy Simmon, Executive Update Online, Rob Rosner descreve seu conceito de atmosfera nociva: "É tudo uma questão de objetivo final, sem importar os meios para atingi-lo. É quando os chefes somente sabem exigir sem dar nada em troca. E, finalmente, é a dor retratada na face de todos os que trabalham naquele lugar."[3] A escritora Márcia Whicker descreve o comandante nocivo como sendo "desajustado, descontente, com freqüência de má índole e até mesmo malicioso. O seu sucesso é baseado na derrota dos seus subordinados. Comprazem-se protegendo seus territórios, lutando e controlando em vez de auxiliar os seus subordinados."[4]

Em 2003, vinte alunos da Escola de Guerra do Exército fizeram um trabalho sobre este tema - o papel do comandante no ambiente em que comanda. Os alunos produziram uma bem ponderada descrição do comandante nocivo:

"Os comandantes nocivos concentram-se apenas nas missões visíveis e a curto prazo. Fazem excelentes e bem articuladas apresentações para os comandantes superiores e respondem entusiasticamente às tarefas. Contudo, não se preocupam ou se esquecem dos seus subordinados, do moral da tropa ou do clima no ambiente de trabalho. São considerados pela maioria dos seus subordinados como arrogantes, egoístas, inflexíveis e mesquinhos." [5]

Um comandante decisivo, exigente, que fala em voz muito alta não é necessariamente nocivo. Um comandante com fala mansa e fisionomia sincera também pode ser nocivo. Afinal de contas, não é apenas um comportamento específico que o caracteriza, ou não, como um comandante nocivo; será, com o passar do tempo, que o efeito cumulativo do seu comportamento desestimulador no moral da unidade e no ambiente profissional o qualificará. Em uma visão distorcida, os comandantes nocivos podem ser elementos altamente competentes e eficazes, porém contribuem para um péssimo ambiente de trabalho com conseqüências muito além do seu período de permanência no cargo. Os três elementos-chave da síndrome do líder nocivo são:

  • uma evidente despreocupação pelo bem-estar dos subordinados;
  • uma personalidade ou técnica interpessoal que afeta negativamente o ambiente organizacional;
  • os subordinados estarem convictos de que a principal motivação do comandante é o auto-interesse.

Capitão Herbet M. Sobel.
Interpretado por David Schwimmer na mini-série Band of Brothers.

Stephen E. Ambrose, no seu best-seller, Band of Brothers, oferece um exemplo de um comandante nocivo - o detestado comandante da Easy Company [Capitão Herbert Maxwell Sobel], 506º Regimento de Infantaria Pára-Quedista.[6] Ambrose diz: "Qualquer um que já esteve no Exército conhece esse tipo. Era o clássico criador de caso. Conseguia gerar o máximo de ansiedade por um problema de mínima significância". Não tinha bom senso, e seu estilo criava um ressentimento geral. Ele "não via a agitação e o desprezo que proliferavam na tropa. Pode-se liderar pelo medo ou pelo exemplo. Nós éramos liderados pelo medo".[7] Nenhum dos oficiais dos escalões superiores tomou uma decisão e, como sempre, ninguém reclamou oficialmente, mas os soldados já estavam considerando resolver o problema por eles mesmos e já haviam falado em "matá-lo" quando a companhia entrasse em combate.[8] A situação não chegou a esse ponto, porque o comandante deixou a unidade Easy Company antes dela se engajar nas operações.

Infelizmente, líderes nocivos ainda nas Forças Armadas. Praticamente todos os alunos da Escola Superior de Guerra do Exército que participaram do projeto poderiam dizer alguma coisa sobre o que significa servir sob o comando desse tipo de líder. Esses relatos são, com freqüência, acompanhados de um sentimento de incredulidade, quando comandantes nocivos são promovidos a posições com responsabilidade ainda maior. O comentário de um oficial foi: "Temos o imperativo moral de fazer algo para identificar esses oficiais e impedi-los de avançarem na carreira. Quanto mais alto chegam profissionalmente, mais danos causam."[9] Um participante desse mesmo estudo explicou a reação de outros companheiros quando o nome de um líder nocivo apareceu na muito esperada lista de promoção: "Todos sabemos os 'comentários' feitos quando da publicação da lista. 'Deus! Como puderam fazer isso com o meu Exército? O que está acontecendo com essa gente? O que estão pensando?'"[10]

Para os subordinados, os líderes nocivos representam um desafio diário, provocando um estresse desnecessário, valores negativos e um sentimento de desesperação. Comandantes nocivos são uma maldição para a saúde das unidades. Podem ser muito responsáveis com o cumprimento das missões recebidas do comando superior e atentos com seus colegas e, especialmente, com seus superiores, mas suas deficiências são evidentes no trato com os subordinados. Comandantes nocivos alcançam a sua posição na carreira, pisando nas cabeças daqueles que trabalham para eles. Desgastam suas unidades e deixam um óbvio rastro de destruição para os seus sucessores. Soldados que servem sob o comando de líderes nocivos podem ficar desiludidos com o Exército ou, pior ainda, podem resolver imitar o comportamento do comandante nocivo bem-sucedido.

Os líderes nocivos não acrescentam valor para as organizações que comandam, até mesmo quando a unidade é bem-sucedida. Não produzem um alto nível de confiança que leva à coesão da unidade e ao espírito de corpo.

Por que, nos perguntamos, uma organização cujo trabalho é obviamente norteado para as pessoas e que dá tanta ênfase à liderança, tolera essas essas pessoas? O Manual de Campanha dos EUA, o FM 3-0: Operations (Operações), apresenta um exemplo da ênfase doutrinária do Exército sobre a liderança:

"O papel do líder é fundamental para todas as operações do Exército e a confiança é o atributo principal na dimensão humana da liderança em combate. Os soldados devem confiar e se sentir seguros com seus comandantes. Uma vez perdida a confiança, um líder passa a ser ineficaz." [11]

Talvez exista alguma coisa a respeito da cultura militar combinada com várias políticas de pessoal que contribuem para agüentar em silêncio esse tipo de comandantes. Acima de tudo, os soldados querem ter orgulho de suas unidades, e o sentimento de lealdade existente no Exército dificulte a exposição de problemas. Os subordinados talvez não denunciem um líder nocivo, porque ninguém gosta de pessoas que se queixam. Espera-se dos profissionais o melhor comportamento possível, apesar do estilo de liderança do chefe. O Exército desenvolve uma atitude de respeito pelo grau hierárquico, mesmo que a pessoa que o ocupe não o mereça. A cultura militar aprecia a competência técnica e esse fator poderá levar certos superiores a fazerem vistas grossas aos defeitos do comandante nocivo.

As atuais políticas de pessoal transferem, com freqüência, os oficiais, fato que pode também incentivar alguns a esperar que o comandante nocivo seja designado para outro unidade ou função. Em um sistema de substituições individuais, comandantes e soldados trocam de funções tão freqüentemente que sempre há luz no final do túnel. É somente uma questão de tempo até que o soldado insatisfeito ou o comandante nocivo seja transferido. Entretanto, livrar-se do comandante nocivo da forma tempo. O Exército dos EUA está estudando planos para o rodízio de unidades, o que não proporcionaria o meio de escapar oferecido pela substituição individual.

Desmascarando Comandantes Nocivos

A maioria dos participantes desse estudo aceitou o fato de que os avaliadores podem ser enganados por comandantes nocivos. Um dos participantes comentou: "O supervisor é o centro do nosso sistema em termos de incentivos, recompensas e punições. A única opinião que conta é a da pessoa que escreve a avaliação do oficial (Officer Evaluation ReportOER/Relatório de Avaliação do Oficial)".[12] Outro disse: "O que não sabemos é o que os subordinados e os colegas pensam. Posso dizer, e a maioria concordaria, que o fato de algumas pessoas para quem trabalhamos serem comandantes nocivos é conhecido dos subordinados e não dos superiores. O desafio é receber esta informação".[13] Uma forte mensagem apresentada pelo grupo de estudo foi a de se estabelecer, sem perda de tempo, um processo de avaliação mais amplo, que considere a opinião dos colegas e subordinados bem como a dos superiores.

O General Walter F. Ulmer Jr., antigo diretor executivo do Centro de Liderança Criativa, faz uma importante distinção entre a avaliação dos supervisores e o processo pelo qual os subordinados são solicitados a descreverem seu chefe.[14] Nem todos os subordinados são competentes para avaliar o chefe, mas podem relatar se têm sido atormentados por comandantes inflexíveis, desrespeitosos, que procuram benefícios pessoais acima dos compartilhados pela unidade, agem de forma antiética ou empregam medo e intimidação. Subordinados talvez não tenham a perspectiva necessária para avaliar a pessoa como um todo, mas certamente têm condições de comentar sobre certos comportamentos de liderança importantes e se confiam e respeitam os seus respectivos comandantes.

Muitos dos participantes do grupo de estudo estavam preocupados sobre como um multi-avaliador ou um esquema de avaliação de 360º seria implementado.[15] Alguns estavam preocupados com comandantes que fazem certas concessões para seus subordinados ou não são enérgicos nem exigentes para fazê-los cumprir suas obrigações. Outros achavam que os soldados eram totalmente capazes de distingüirem entre o comandante que determina e impõe altos padrões daquele que abusa da autoridade e é nocivo:

"Os soldados querem comandantes competentes. Alguém que assuma o comando e execute o trabalho, mesmo sendo, às vezes, bastante exigente. A preferência será por esse líder no lugar de outro que te pegue pela mão e te dê tapinhas nas costas o tempo todo. Os comandados sabem a diferença." [16]

Os participantes do estudo concordaram que qualquer mudança deveria ser implementada de cima para baixo, porque os oficiais de maior hierarquia são um forte exemplo e também porque mudar o sistema de avaliação é dispendioso. As avaliações feitas por multi-avaliadores deveriam começar pelos oficiais-generais e prosseguir até o escalão companhia. Um dos representantes comentou que "os oficiais de mais alto escalão não podem experimentar esse método imediatamente nos escalões mais baixos para ver se funciona; deve ser experimentado de cima para baixo. se os oficiais-generais perceberem como o processo funciona, procurarão adaptar e acomodar os pequenos pontos de desacordo - e a avaliação será então instituída".[17] Aceitar o conceito como uma ferramenta de avaliação do multi-avaliador é uma expressiva mudança cultural, por isso recomenda-se seu uso como uma ferramenta experimental, durante alguns anos, antes de empregá-la no processo de avaliação do desempenho.

Os participantes do estudo também notaram que ferramentas para avaliar o ambiente da unidade, como as pesquisas de opinião conduzidas pelo Instituto de Defesa de Gerenciamento de Igualdade de Oportunidades (Defense Equal Opportunity Management Institute, DEOMI), são úteis e poderiam ser de grande auxílio na identificação dos líderes nocivos. No artigo "The Hidden Driver of Great Performance", publicado no Harvard Business Review, Daniel Goleman, Richard Boyatzis e Annie McKee concordam que:

"Um número alarmante de comandantes não sabe realmente se o que dizem causa algum impacto nas suas organizações. Ainda mais, eles sofrem da doença do chefe executivo, cujo sintoma indesejável é a total ignorância de como a organização reage aos seus sentimentos, apelos e ações. Não estamos querendo dizer com isso que os comandantes não se importam como são percebidos; a maioria se importa. Mas, incorretamente assumem que podem decifrar essa informação. Pior ainda, pensam que se estiverem causando algum efeito negativo, alguém os notificará. Eles estão errados." [18]

Os participantes do estudo da Escola Superior de Guerra do Exército sugeriram que as pesquisas existentes de avaliação do ambiente poderiam ser melhoradas em termos do conteúdo, administração e interpretação do mesmo. Um participante disse: "Tenho certo cepticismo sobre as muitas pesquisas baseadas em quando, como e quais perguntas foram feitas."[19]

Alguns participantes pediam dados sobre o ambiente, planejados especificamente para identificar um problema de líder nocivo: "As pessoas com que trabalhei não tinham condições de planejar uma pesquisa com as perguntas que eu gostaria de ver respondidas. Eram os representantes da Igualdade de Oportunidades, mas isto vai além do escopo dessa organização. Embora esse seja um aspecto importante, há ainda outros que precisam ser abordados. As perguntas devem ser planejadas com o alvo, isto é, o comandante, em mente. Pode-se discernir entre incompatibilidade de meios versus o tipo 'imbecil' descrito por Myers-Briggs (MBTI - Myers-Briggs Type Indicator é um instrumento de identificação de caraterísticas pessoais desenvolvido por Katharine Cook Briggs e Isabel Briggs)".[20] O participante, astutamente, mostrou que, embora a liderança seja uma variável importante na determinação do ambiente de comado, outras variáveis, como falta de meios para missões designadas, também fazem parte do conjunto.

Pesquisas para a avaliação do ambiente de trabalho são ferramentas empregadas pelos comandantes para avaliar suas próprias unidades. Há um considerável cepticismo de que os líderes nocivos talvez não adotassem as ações disciplinares apropriadas a não ser que os resultados fossem fornecidos aos avaliadores. Um outro exemplo apresentado por um participante foi sobre o fracasso de um líder nocivo de mudar seu comportamento em resposta a uma pesquisa de opinião:

"Esse homem era louco. Todas essas formas foram empregadas ao máximo. Todos os esquadrões tinham provas e mais provas sobre o compartimento desse comandante e absolutamente nada foi feito a respeito. Essas pesquisas não são devolvidas ao Exército, mas sim ao comandante. O sistema deve ser mudado." [21]

Os participantes desse estudo duvidam que o Exército queira identificar e tratar do problema do líder nocivo se eles forem eficazes, pelo menos a curto prazo. Outro participante afirmou que "essas pessoas permanecem no cargo, não porque são líderes nocivos, mas porque obtêm resultados".[22] Outro falou: "A liderança do Exército tem visto alguns comandantes nocivos - e o que fizeram à respeito? Eu ficaria muito surpreso se alguma coisa fosse feita."[23] Um comentário feito abordou diretamente o assunto: "Algumas organizações fazem alguma coisa quando se deparam com um comandante nocivo, outras não. Tipicamente, os que nada fazem é porque gostam dos resultados."[24] Os comentários feitos, em geral, expressavam um sentido de remorso e resignação.

Imaginar o nefasto e possivelmente intangível efeito de líderes nocivos não é difícil. Num sentido quantitativo, não se conhece o efeito preciso nas Forças Armadas. Em seu estudo sobre um comando e ambiente de trabalho fracassados que resultou na queda fatal de um B-52 na Base Aérea Fairchild, em Washington em 1994, o Major Anthony Kem prudentemente afirmou: "Quando a liderança falha e o ambiente de trabalho colapsa, podem acontecer coisas trágicas".[25]

Os recentes relatórios recebidos do Iraque e do Afeganistão comprovam que não há falta de grandes líderes nas Forças Armadas. A doutrina de liderança do Exército é judiciosa e, se obedecida, ajudará a eliminar líderes nocivos. Homens e mulheres conscienciosos são promovidos pelo mesmo sistema que permite aos líderes nocivos continuarem suas carreiras sem serem apanhados. O que devemos perguntar é até que ponto as variáveis, como sistemas de promoção e seleção para comando, educação militar, valorização do mérito, tipo de personalidade e cultura organizacional, permitem a existência de líderes nocivos que parecem prosperar e o que nos dispomos a fazer para solucionar o problema?

Hipoteticamente, pode-se dizer que existe uma relação entre a liderança nociva e um desinteresse na prorrogação do tempo de serviço militar. Entrevistas realizadas com soldados que estão saindo do Exército talvez ajudem a responder algumas perguntas como: Você já pensou em deixar o Exército por causa do estilo de liderança do seu supervisor?

Talvez o efeito de liderança nociva seja insignificante e uma resposta institucional em grande escala não seja apropriada. Talvez o processo de simplesmente identificar o fenômeno com um nome e sugerir que ele é indesejável seja suficiente para reduzir essa prática. Por outro lado, a liderança nociva talvez seja um problema grande o bastante e as mudanças no sistema de pessoal, especificamente planejadas para identificar e eliminar comandantes nocivos, poderão trazer uma grande vantagem aos esforços de estimular as prorrogações de tempo de serviço militar e manter a eficácia da unidade. Redefinir uma liderança bem-sucedida no planejamento, avaliação e processo de seleção seria conveniente. Nunca saberemos a verdade a não ser que façamos as perguntas e pesquisemos as respostas. Tal agenda de pesquisa poderia ser facilmente justificada numa força totalmente recrutada com planos de mudar para um sistema de rodízio baseado na unidade.

Se determinarmos que a liderança nociva existe em um nível mais alto do que estamos dispostos a tolerar e que tais líderes podem ser identificados por meio de ferramentas como o emprego de multi-avaliadores ou a avaliação do ambiente de trabalho, a próxima pergunta seria: O que podemos fazer para melhorar esta situação? Simmons sugere que a solução comece por cima, com uma equipe executiva orientada para uma cultura saudável, pronta para agir e conseguir resultados.[26] Quando explicando por que tal ação não acontece com mais freqüência, Lynne F. McClure, autora do livro Risky Business: Managing Violence in the Workplace, diz: "A única e maior razão é porque o compartamento é tolerado".[27] McClure, uma perita no gerenciamento de comportamentos de grande risco, acredita que, se a companhia tem gerentes nocivos, é porque a cultura permite - voluntariamente ou não - por nada fazer a respeito.

Respeito

Um dos valores do Exército é o respeito. Por definição, o comandante nocivo demonstra uma falta de respeito para com os subordinados. Uma fraca avaliação na liderança nociva pode surgir como uma forte afirmação cultural distorcida. A ampla faixa de tolerância histórica para os estilos de lideranças deveria ser reduzida para excluir os comandantes nocivos. Isso exigiria a expansão da definição de sucesso além da avaliação imediata para incluir o bem das organizações e o entendimento de que o ambiente da unidade é importante porque os soldados e os civis são mais do que meios para se chegar a um fim. Neste tipo de cultura, os que não cultivam um ambiente de trabalho positivo não serão bem-sucedidos.

Identificar e afastar comandantes nocivos é apenas parte da solução. Todos os supervisores deveriam estar alertas para detectar qualquer comportamento nocivo em seus subordinados e treiná-los e orientá-los, para evitar a perpetuação do problemas:

"A única coisa que um tirano respeita é a autoridade superior. E a única maneira de conseguir ajuda para tratar com um administrador difícil é apelar para que alguém, numa posição superior, intervenha." [28]

Comandantes nocivos irão racionalizar o seu comportamento como sendo necessário para a execução da tarefa, ou como parte da glorificada técnica de comando de chegar na unidade com uma atitude severa, por ser mais fácil afrouxar as rédeas do que apertar mais tarde. Flynn recomenda que os supervisores empreguem a confrontação: "Seja tão específico quanto possível. Não expresse o assunto em termos vagos, como dizendo que o administrador tem 'problemas interpessoais'. Se o administrador é percebido como um tirano, diga bem claro. Se ele tende a explodir com os empregados, diga isso a ele. Após, explique que este comportamento tem que ser mudado e por quê'".[29] Se o comportamento não mudar, existem muitos remédios administrativos disponíveis.

Liderança nociva, assim como liderança em geral, é mais fácil de ser descrita do que definida, mas termos como auto-exaltação, mesquinhez, abuso de autoridade, indiferença ao ambiente da unidade e maldade nas relações interpessoais parecem definir o conceito. Um comandante nocivo é um veneno para a unidade - um veneno insidioso, de reação lenta, que complica o diagnóstico e a aplicação do antídoto. Grandes e complexas organizações como as Forças Armadas devem procurar pelo fenômeno, uma vez que políticas culturais e organizacionais podem inadvertidamente combinar e perpetuar esse problema.

Comandantes superiores, em particular, se encontram em importantes posições de autoridade para lidar e contra-atacar o comportamento nocivo. Contudo, eles podem ser os últimos a observarem o comportamento se não forem alertados. Subordinados, em geral, não se encontram em posição para abordar o problema, já que uma das características dos comandantes nocivos é não se preocupar com os subordinados. Mesmo assim, não há necessidade de se tolerar comandantes nocivos. As Forças Armadas contam com suficientes líderes trabalhadores, realizadores, comprometidos com a Instituição e compassivos, que entendem a importância de um bom ambiente de trabalho para desmistificar a crença de que é necessário administrar por meio da força e da intimidação.

Sobre o autor:

O Coronel George E. Reed, do Exército dos EUA, foi o Diretor de Estudos de Comando e Liderança do U.S. Army War College (AWC). Ele recebeu um B.S. da Central Missouri State University, um M.S. da George Washington University, um Ph.D. da Saint Louis University, e ele é formado pelo Comando do Exército dos EUA e Escola de Estado-Maior e AWC. Ele completou bolsas no Instituto de Patologia das Forças Armadas e no Centro de Educação e Liderança.

Mentindo para nós mesmos: a desonestidade na profissão militar

Notas

  1. Craig Bullis e George Reed, “Assessing Leaders to Establish and Maintain Positive Command Climate”, Relatório apresentado ao Secretário do Exército (Fevereiro de 2003): 1.
  2. Gillian Flynn, “Stop Toxic Managers Before They Stop You”, Publicado na revista Workforce  de agosto de 1999: 44-46. Acessado em 26 de dezembro de 2003.
  3. Rob Rosner em Kathy Simmons, “Sticks and Stones”, Executive Update Online, acessado em 4 de dezembro de 2003.
  4. Marcia Lynn Whicker, Toxic Leaders: When Organizations Go Bad (New York: Doubleday, 1996), 11.
  5. Bullis e Reed, 2.
  6. Stephen E. Ambrose, Band of Brothers: E Company 506th Regiment, 101st Airborne from Normandy to Hitler’s Eagle Nest (New York: Simon & Schuster, 1992), 15.
  7. Dick Winters em Ambrose, 17.
  8. Ambrose, 33.
  9. Bullis e Reed, 33.
  10. Ibid.
  11. Manual de Campanha do Exército dos EUA (U.S. Army Field Manual) FM 3-0: Operations (Washington, DC: U.S. Government Printing Office, 2001), 1-18, 4-8.
  12. Bullis e Reed, 12.
  13. Ibid., 11.
  14. Tenente-General Walter F. Ulmer, Jr., Mensagem de e-mail ao autor, 27 de dezembro de 2003.
  15. Esquemas que aceitam observações dos  superiores, colegas e subordinados são conhecidos como avaliações de 360º.
  16. Bullis e Reed, 18.
  17. Ibid., 16, 17.
  18. Daniel Goleman, Richard Boyatis e Annie McKee, “Primal Leadership: The Hidden Driver of Great Performance”, Harvard Business Review (Dezembro de 2001): 47.
  19. Bullis and Reed, 13.
  20. Ibid., 14.
  21. Ibid., 46.
  22. Ibid., 21.
  23. Ibid.
  24. Ibid., 22.
  25. Major Anthony Kern “Darker Shades of Blue: A Case Study of Failed Leadership”, 1995, acessado em 26 de dezembro de 2003.
  26. Simmons.
  27. Lynne McClure, Risky Business: Managing Violence in the Workplace (Binghamton, NY: Haworth Press, 1996).
  28. Krista Henly, “Detoxifying a Toxic Leader”, Revista Innovative Leader de junho de 2003: 6.
  29. Flynn.

Bibliografia recomendada:

Como se tornar um Líder Servidor:
Os princípios de liderança de
O Monge e o Executivo.
James C. Hunter.

Este Barco Também É Seu:
CMG D. Michael Abrashoff.

Leitura recomendada:





COMENTÁRIO: O Culto à Mediocridade, 20 de dezembro de 2020.


PERFIL: O filho do general, 27 de julho de 2021.

domingo, 5 de setembro de 2021

França/Alemanha e Hobbes/Kant, ou o que a decisão do tribunal da UE nos diz sobre o desafio de forjar uma defesa europeia

Brigada Franco-Alemã com fuzis FAMAS, 2018.

Por Michael Shurkin, Linkedin, 28 de julho de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

A decisão deste mês do Tribunal de Justiça Europeu de que uma lei trabalhista da UE que limita o horário de trabalho dos soldados aponta para um desafio fundamental para o projeto de construção de uma verdadeira política e capacidade de defesa europeias. A maioria, senão todos os membros da UE, aderem ostensivamente à visão de construir uma defesa europeia, mas entre eles existem profundas diferenças no que diz respeito à cultura e à cultura estratégica. Ou seja, eles têm visões significativamente diferentes de como os militares devem trabalhar e como e em que condições devem ser usados.

De um lado está a França, a qual, e isso pode surpreender os americanos ao lerem, é provavelmente o mais marcial dos Estados-membros da UE. A França teria prazer em construir uma força europeia e uma política de defesa europeia à sua própria imagem, o que significa não apenas construir uma força funcional, mas usá-la. A França também colocaria avidamente a Europa no negócio da guerra expedicionária. Diante disso, a Operação Takuba é mais do que apenas uma estratégia de saída para a França: é uma forma de moldar a cultura e a política militares europeias, arrastando uma coalizão europeia de voluntários para uma guerra expedicionária que a França julga necessária e, também, empregando-a na uma forma consistente com a cultura estratégica francesa.


Embora seja difícil dizer qual país ocupa a outra extremidade do espectro, o país que mais importa é a Alemanha, que, segundo todos os relatos, erradicou seu espírito marcial. Fascinantemente, os oficiais franceses descrevem com desdém o Bundeswehr como "sindicalista". De fato, o Bundeswehr tem um sindicato que, por exemplo, reclamou em 2016 sobre as condições de vida no Mali.

O tipo de história que ouvi de vários oficiais franceses que serviram com alemães é mais ou menos assim: “Nós aparecemos e começamos a trabalhar imediatamente, apesar da falta de chuveiros e de nossas barracas rústicas. Os alemães se recusaram a ceder até que tivessem instalações adequadas com ar-condicionado”. Isso é justo? Não sei, mas os comentários apontam para uma divisão cultural, que a decisão do Tribunal da UE amplifica. Afinal, o próprio projeto da UE visa perpetuar a paz ao longo das linhas kantianas, um esforço que a Alemanha do pós-guerra levou a sério. Outros estados europeus, sem dúvida, estão em algum ponto entre a a Alemanha e a abordagem relativamente hobbesiana da França do hard power (poder duro). A questão então é saber se é possível construir uma verdadeira defesa europeia na ausência de consenso.

Immanuel Kant (esquerda) e Thomas Hobbes.

Bibliografia recomendada:

Introdução à Estratégia.
André Beaufre.

L'emergence d'une Europe de la défense:
Difficultés et perspectives.
Dejana Vukcevic.

Leitura recomendada:

General Burkhard: "Nossos líderes devem lembrar que não se ganha guerras difíceis contando seu tempo", 10 de maio de 2021.



terça-feira, 17 de agosto de 2021

COMENTÁRIO: Ensinamentos de 20 anos de guerra necessários para as forças americanas


Pelo Almirante James Stavridis, TIME Magazine, 16 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de agosto de 2021.

Estive profundamente envolvido na guerra no Afeganistão por mais de uma década. Aqui está o que devemos aprender.

O final seria doloroso. Durante o curso de várias administrações, o público americano se cansou da guerra no Afeganistão e simplesmente queria que ela acabasse. O governo Biden decidiu arrancar a bandagem, mas, infelizmente, parece que eles arrancaram um torniquete e estamos assistindo à hemorragia da honra americana e à morte das esperanças e sonhos de muitos afegãos - especialmente para muitas meninas e mulheres.

Como chegamos a esse ponto? Deixe-me compartilhar minha jornada.

Leanne McCain, à direita, e seus filhos se abraçam sobre o túmulo de seu marido morto no Cemitério Nacional de Arlington em 28 de maio de 2012. Seu marido, pai de quatro filhos do Exército SFC Johnathan McCain, foi morto por uma bomba à beira de uma estrada no Afeganistão em novembro de 2011.
(John Moore - Getty Images)

A guerra no Afeganistão começou em 11 de setembro de 2001. Eu era um almirante de uma estrela recém-selecionado, o galão dourado novinho em folha nas mangas do meu uniforme azul de serviço. Meu escritório ficava no “E-ring” externo do Pentágono e, através das janelas do corredor, avistei um Boeing 757 pouco antes dele atingir o prédio. O nariz do vôo 77 da American Airlines atingiu o segundo andar do Pentágono. Eu estava a cerca de 50 metros de distância, no quarto andar, e fui poupado.

Enquanto as chamas e a fumaça engolfavam a seção do Pentágono com meu escritório, desci vários lances de escada até o campo gramado abaixo e tentei fazer o que pude pelos sobreviventes e feridos até que os primeiros respondentes chegaram. Tudo o que conseguia pensar era na ironia do dia para mim: depois de décadas nas forças armadas, eu tinha visto minha cota de combate - mas quase fui morto no que todos acreditávamos ser um dos edifícios mais seguros do mundo. O Pentágono é guardado pelas forças militares mais fortes do planeta na capital do país mais rico e poderoso do planeta. No entanto, foi aí que cheguei mais perto de ser morto ao longo de minha carreira de 37 anos.

E eu não sabia na época, mas os ataques terroristas em Nova York e Washington também estavam relacionados a um ataque anterior que eu havia realizado vários anos antes. Como Comodoro do esquadrão de destroyers, eu havia supervisionado os ataques com mísseis de cruzeiro Tomahawk em agosto de 1998 contra Bin Laden no Afeganistão, conduzidos em retaliação aos bombardeios mortais da al-Qaeda contra duas embaixadas americanas na África Oriental. No que ficou conhecido como Operation Infinite Reach (Operação Alcance Infinito), erramos por pouco em matar Bin Laden quando ele escapou de seu acampamento, provavelmente depois de ser alertado sobre um ataque iminente pelos serviços de inteligência do Paquistão. Meus Tomahawks quase o mataram, e agora seu ataque quase acabou comigo.

Em poucas semanas, fui colocado no comando da célula de inovação “Deep Blue” (Azul Profundo) da Marinha, uma pequena equipe de elite encarregada de apresentar ideias estratégicas e operações táticas para alavancar as capacidades da Marinha no que viria a ser conhecido como a “Guerra Global contra o Terror." Depois de um ano nessa função, fui enviado de volta ao mar como comandante do Carrier Strike Group (Grupo de Ataque de Porta-Aviões embarcado no porta-aviões) nuclear U.S.S Enterprise - conduzindo operações no Chifre da África e no Afeganistão e no Iraque. Mais tarde, eu serviria como Assistente Militar Sênior do Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, e acabaria me tornando Comandante Supremo Aliado da OTAN, com responsabilidade estratégica pela guerra no Afeganistão.

Eu estava, portanto, profundamente engajado no que veio a ser conhecido como "Guerras Eternas", desde seu início em 2001 no Afeganistão, durante a trágica desventura no Iraque, até minha aposentadoria da Marinha como comandante da OTAN em 2013. Todos as forças armadas americanas foram profundamente mudadas pelas experiências no Afeganistão e na guerra no Iraque que se seguiu. Hoje, vejo com grande tristeza a retirada caótica das tropas e diplomatas americanos do Afeganistão e a queda de Cabul.

O que tudo isso significa e quais lições os militares americanos devem tirar desse longo conflito?

Mais de três mil mortos americanos e aliados, dezenas de milhares com ferimentos significativos e alguns trilhões de dólares gastos - para não falar de centenas de milhares de afegãos mortos e feridos também. Valeu a pena?

Americanos em um posto militar avançado dentro de Ghazni em 16 de agosto de 2018, depois que os EUA ajudaram as forças afegãs a retomar a cidade do Talibã.
(Emanuele Satolli para TIME)

De certa forma, toda guerra é uma trágica perda de tempo, tesouro e, o mais importante, sangue. Mas acredito que as tropas que lutaram no Afeganistão podem erguer a cabeça com orgulho de uma maneira crucial: fomos enviados ao Afeganistão para encontrar e levar à justiça os atacantes do 11 de setembro e - mais importante - para evitar outro ataque à pátria dos EUA emanando desse espaço sem governo. Por vinte anos, fizemos isso. Essas tropas estavam em uma parede do outro lado do mundo defendendo nossa nação.

E os ganhos no Afeganistão - parte de nossa estratégia de contra-insurgência - não são insignificantes. Milhões de pessoas agora podem ler e escrever, muitas delas meninas e mulheres. A expectativa de vida aumentou dramaticamente, enquanto a mortalidade infantil diminuiu significativamente. Acesso à informação, start-ups de tecnologia, melhor infraestrutura e tratamento médico são reais, embora muito esteja em risco com a tomada do poder pelo Talibã.

Por outro lado, assinei 2.026 cartas de condolências às famílias dos mortos durante a minha missão na OTAN. Quase um terço das cartas, aliás, foi enviado para famílias europeias e outras famílias da coalizão. Para essas famílias, eu diria que seus entes queridos caíram no serviço de uma missão significativa para suas cinquenta nações diferentes. Mas eu também diria que poderíamos ter feito melhor, perdido menos deles, gasto muito menos tesouro e usado algumas das lições do Vietnã (e das guerras anteriores no Afeganistão) que poderiam ter ajudado. Poderíamos ter feito um trabalho melhor de comunicação com o povo do nosso país e com o povo do país no qual lutávamos por nossos objetivos e aspirações. Também poderíamos ter feito muito melhor em organizar e prestar contas de nossos recursos e nos proteger contra corrupção e desperdício. Poderíamos ter deixado na porta nossa arrogância e otimismo, especialmente depois que os sucessos iniciais pareciam tão fáceis.

Conclusão: os custos financeiros e humanos do envolvimento dos EUA foram imensos e serão sentidos por décadas, tanto economicamente com a dívida americana quanto em termos de cuidados médicos de longo prazo para veteranos feridos.

Meninas viajam em um ônibus escolar após as aulas na escola secundária Zarghoona em Cabul em 25 de julho de 2021. A escola foi reaberta após um intervalo de quase dois meses devido à pandemia do coronavírus.
(Paula Bronstein - Getty Images)

Logo após os ataques de 11 de setembro, todas as forças armadas reconheceram a necessidade de mudar rapidamente. As gigantescas plataformas da Guerra Fria, nas quais continuamos a investir uma grande quantidade de recursos financeiros e operacionais, de repente tornaram-se muito menos relevantes. Os tanques de batalha principais e obuseiros motorizados, caças de quinta geração, porta-aviões com energia nuclear, programas de ataque cibernético ofensivo e baterias de mísseis antiaéreos eram de uso limitado no Afeganistão.

Em vez disso, precisávamos de veículos blindados, mas leves, que pudessem se mover rapidamente nas estradas empoeiradas e sobreviver a um encontro com um dispositivo explosivo improvisado. Não os tínhamos, e Rumsfeld quase foi demitido por dizer (correta e honestamente, mas sem compaixão) que "você vai para a guerra com o exército que tem. Eles não são o exército que você pode querer ou desejar mais tarde.” No início, estávamos desejando aqueles Humvees blindados, ao lado de forças especiais mais ágeis, técnicos de eliminação de munições explosivas, especialistas em contra-insurgência, tradutores e historiadores da Ásia Central. O venerável A-10 “javali”, uma aeronave de apoio de tropas em campo que voava baixo de repente passou a valer mais do que um glamouroso F/A-18 Hornet. Em suma, as Forças tiveram que reinventar, reorientar e repensar todos os aspectos do combate.

E, desde o início, ficou claro que precisaríamos treinar um exército e uma força policial afegãos substanciais se algum dia quiséssemos ter sucesso no Afeganistão. Esse esforço começou cedo, mesmo enquanto aumentávamos gradualmente o número de tropas americanas no país. As forças americanas colocaram um enorme esforço no treinamento, enviando generais importantes como Dave Petraeus e Marty Dempsey (um futuro presidente da Junta de Chefes) como oficiais de três estrelas para comandar esse esforço. Eventualmente, bem mais de um milhão de jovens afegãos passariam pelos programas de treinamento americanos e aliados (que incluíam treinamento de alfabetização). Conseguimos reforçar a proficiência técnica das forças afegãs, mas às vezes fracassamos em nossos esforços para erradicar a corrupção entre alguns setores e não fomos capazes de comunicar adequadamente nossa visão de um futuro pacífico e próspero para o país. A falta de alfabetização, que era um problema profundo em todo o país, era um obstáculo significativo. Subestimamos o grau em que o Talibã foi capaz de se infiltrar nas fileiras, o que acabou levando a ataques “verde contra azul” de afegãos contra seus treinadores. E muitos afegãos seriam treinados por um tempo, receberiam os salários enquanto o faziam e simplesmente desapareceriam de volta para suas aldeias.

Outra parte da curva de aprendizado foi descobrir a melhor forma de lutar com os aliados em campanha. O resto da OTAN, agindo pela primeira e única vez em sua história sob os auspícios de seu Artigo V (“um ataque a um é um ataque a todos”), veio conosco para o Afeganistão. Quando assumi o comando do que ficou conhecido como Operação Liberdade Duradoura (Operation Enduring Freedom, OEF), na primavera de 2009, tínhamos mais de 70.000 soldados americanos e cerca de 35.000 forças da OTAN e da coalizão. As frustrações da guerra de coalizão são imensas, desde a má interconectividade das comunicações até às advertências colocadas sobre as forças (a nação X não conduzirá operações à noite, por exemplo). Apesar de todas as desconexões, no entanto, aprendemos com o tempo que Sir Winston Churchill estava certo quando disse que a única coisa mais frustrante do que lutar ao lado de aliados é lutar sem aliados.

No centro de tudo isso estava a liderança militar americana na luta. Os líderes no terreno no Afeganistão, principalmente do Exército e dos Fuzileiros Navais, foram esmagadoramente corajosos, atenciosos e competentes. Mas, como aprendemos ao longo dos anos, simplesmente os alternamos com muita frequência. Se tivéssemos lutado na Segunda Guerra Mundial limitando o General Eisenhower ou o Almirante Nimitz a um ano de serviço, o resultado teria sido diferente, para dizer o mínimo. Cometemos o mesmo erro no Vietnã, onde todos estavam em uma turnê de um ano, e o resultado foi um desastre. Isso se refletiu em todos os níveis da cadeia de comando, e a falta de continuidade e senso de "Só preciso durar até a data de partida" prejudicou gravemente a coerência estratégica.

The Accidental Admiral:
A Sailor takes Command at NATO.
Alm. James Stravidis, USN (Ret.).

Dois exemplos: Trabalharam para mim como general de quatro estrelas durante meus quatro anos como comandante geral da missão na OTAN, quatro oficiais separados: Stan McChrystal, Dave Petraeus, John Allen e Joe Dunford. Todos se dedicaram à missão e trabalharam 18 horas por dia; mas as mudanças de comando eram simplesmente freqüentes demais à medida que a filosofia de comando e a abordagem tática mudavam. Em outro exemplo, trouxemos um brilhante general de uma estrela, H.R. McMaster (mais tarde conselheiro de segurança nacional de Donald Trump) para combater a corrupção afegã. Assim que ele começou a ganhar força nesse desafio central do país, era hora de fazer uma rotação. Esse padrão de turnês de um ano - compreensível de uma perspectiva humana - prejudicou profundamente o esforço militar. Não é exagero dizer que não travamos uma guerra de vinte anos, mas sim vinte guerras de um ano.

Finalmente, precisamos reconhecer a tenacidade, inovação, resiliência e táticas implacáveis do Talibã. Em qualquer guerra, como diz o ditado, o inimigo tem direito a voto. O Talibã usou todos os atributos de insurgências bem-sucedidas: aterrorizar a população civil, ataques a infraestruturas críticas, minar a economia, fustigação a forças maiores, infiltração de unidades afegãs e simplesmente superar a paciência dos EUA.

Tudo lembrava muito as campanhas de seus ancestrais contra os soviéticos no século XX, os britânicos no século XIX e desde Alexandre, o Grande, nos tempos antigos. “Os americanos têm os relógios, mas nós temos todo o tempo”, era o seu mantra e, no final, o tempo acabou para os americanos. Como no Vietnã, as forças americanas nunca foram derrotadas no campo de batalha - mas como um general norte-vietnamita apontou ao general americano após a guerra “isso é verdade; mas também é irrelevante.” Tudo isso é tão previsível em retrospecto, é claro. Assim, a questão central torna-se simples: por que não aprendemos com essa história?

O otimismo americano é tanto uma de nossas maiores forças e, às vezes, uma de nossas maiores vulnerabilidades. Acreditamos que, porque nossos motivos costumam ser bons e as pessoas e as armas são fortes, podemos superar qualquer obstáculo. E nós podemos. Mas o que muitas vezes deixamos de aceitar é que fazer isso pode levar muito mais tempo do que gostaríamos. Não faz sentido dizer aos habitantes de um país que sofreu conflitos violentos por séculos que consideramos vinte anos uma “guerra eterna”.

O perímetro da embaixada dos EUA em Cabul em 15 de agosto de 2021, após a entrada do Taleban na cidade.
(Jim Huylebroek - The New York Times / Redux)

Os debates sobre “quem perdeu o Afeganistão” estão apenas começando. Como foi o caso no Vietnã, há muitos suspeitos de acordo com várias análises, desde generais e almirantes supostamente desajeitados, diplomatas medrosos e chefes do tráfico de drogas, até reportagens desencorajantes da mídia para impotentes políticos afegãos e nefastos agentes da inteligência paquistanesa. A história vai resolver isso.

Mas o que me interessa são as lições que podemos e devemos aprender. Existem principalmente quatro.
  • Primeiro, devemos aprender e compreender a história, cultura e línguas de qualquer país em que procuramos intervir - seja militar ou economicamente. No Afeganistão, falhamos totalmente em fazê-lo, e nossa empáfia e arrogância não nos serviram bem. Lutar contra uma insurgência é, de fato, um jogo longo, e não demos atenção à necessidade histórica de paciência - o oposto da autoconfiança injustificada. E a corrupção endêmica por parte do governo afegão em todos os níveis nos prejudicou gravemente, mas não fizemos o suficiente para erradicá-la.
  • Em segundo lugar, mudar constantemente as forças dói muito. O Exército e os Fuzileiros Navais geralmente faziam turnês de 12 meses no país, a Marinha normalmente seis meses e a Força Aérea geralmente menos do que isso. As forças especiais entravam e saíam do país a cada poucos meses. Tudo isso é compreensível de uma perspectiva humana, mas nos prejudicou muito em termos de continuidade e especialização.
  • Terceiro, não adaptamos nossa tecnologia de maneira rápida e eficiente a essa nova luta com a rapidez necessária. Por exemplo, demoramos muito para encontrar soluções para o desafio do dispositivo explosivo improvisado, melhorar o fornecimento de inteligência de satélite para campos de batalha remotos; adquirir sistemas de aviação mais simples que pudessem ser adaptados aos rigores do Afeganistão e aos relativamente pouco sofisticados mantenedores afegãos; e criar melhores sistemas de comunicação entre as diferentes forças nacionais. Em retrospecto, deveríamos ter treinado uma força de combate afegã que se parecesse mais com o Talibã - leve, ágil, menos dependente de logística pesada, inteligência requintada e poder aéreo.
  • Por último, não criamos as condições em casa que poderiam ter sustentado um esforço verdadeiramente de longo prazo. À medida que as baixas diminuíam enquanto retirávamos a vasta maioria das tropas sob o presidente Obama, a guerra no Afeganistão simplesmente desapareceu da mídia e do radar nacional. Em várias administrações, não comunicamos por que nossa presença no Afeganistão ainda era útil e quais benefícios os EUA e nossos aliados derivavam do gasto de vidas e tesouro. A oportunidade de “trazer todas as tropas para casa” apresentada como um ponto de discussão de campanha por Trump (embora 95% dos 150.000 já tenham retornado) foi uma chamada vazia, mas atraente. Manter uma pegada pequena (abaixo de 2.500 na época em que Biden assumiu o cargo) faria sentido, mas a essa altura a paciência política havia expirado.
E assim chegamos ao fim - do envolvimento militar dos EUA. Como as coisas vão acabar?

É difícil construir um cenário positivo. Com sorte, o futuro sob o Talibã 2.0 será um pouco menos apocalíptico do que a edição anterior, mas não podemos contar com isso. Mas os ganhos para mulheres e meninas estão em sério risco (para dizer o mínimo) e grupos terroristas que uma vez encontraram no Afeganistão um ambiente acolhedor estão provavelmente planejando reuniões de aniversário do 11 de setembro do pior tipo possível. Os jihadis em todo o mundo farão high-fives na simetria de dois "grandes triunfos" com vinte anos de diferença - a queda das Torres do World Trade e a queda de Cabul.

O Alm. James G. Stavridis como comandante EUCOM e SACEUR.

Embora tenha havido progresso no sentido de retirar do país muitos dos tradutores afegãos e suas famílias que trabalharam conosco, isso não parece ter sido bem planejado ou pensado - muito mais deveria ter sido feito antes. Existem milhares de outros afegãos que trabalharam com as comunidades militares, de inteligência e diplomáticas dos EUA que também estão em risco. Além disso, existem aqueles que apoiaram mercenários contratados e organizações de mídia americanos que também serão alvo do Talibã. Devemos ajudá-los a escapar também, mas pode ser tarde demais para muitos deles. A propósito, uma pequena fresta de esperança em tudo isso será como os refugiados do Afeganistão acabarão aqui na América. Prevejo que eles irão florescer - da mesma forma que os sul-vietnamitas que escaparam dos expurgos em meados dos anos 1970 fizeram.

Durante anos, os Estados Unidos estiveram em algum lugar entre excessivamente otimistas e quase delirantes sobre o que era possível alcançar. E, à medida que as coisas pioravam, passamos assobiando pelo cemitério dos impérios. A administração Biden e a administração Trump antes de começarem a sinalizar ruidosamente que os EUA estavam ansiosos para sair do Afeganistão para o bem ou para o mal. Essa mensagem foi recebida tanto pelo Talibã quanto pelo governo afegão, acelerando o colapso. Os novos atores que assumirão seus papéis neste palco mais antigo serão claramente os chineses, iranianos, paquistaneses e - ao lado de seus parceiros, o Talibã. Afinal, é a vizinhança deles.

Infelizmente, a Operação Liberdade Duradoura não foi duradoura nem proporcionou liberdade ao povo afegão. Comprou duas décadas relativamente livres do terror aqui nos Estados Unidos - e por isso podemos agradecer às Forças americanas e aliadas que arriscaram tudo por nós naquele país. Mas é claro que precisamos reaprender as lições da história e aplicá-las em qualquer intervenção futura, ou podemos encontrar novamente o fracasso nos esperando quando chegarmos ao final de nosso próximo grande compromisso no exterior.

Bibliografia recomendada:

The Operators:
The wild and terrifying inside story of America's war in Afghanistan.
Michael Hastings.

Leitura recomendada:





COMENTÁRIO: Por que ler Beaufre hoje?, 12 de fevereiro de 2021.