Insígnias: parte do imaginário coletivo
Quando as tropas alpinas foram criadas na Europa entre 1870 e 1890, a mula foi naturalmente necessária para armar o trem regimental dos recém-formados batalhões de caçadores alpinos. Os caçadores tiveram a oportunidade de se familiarizar com o animal durante a conquista do Norte da África. Cada companhia, portanto, tinha uma dotação de 7 mulas. Surpreendentemente, no entanto, o animal deixou algumas marcas nas insígnias dos caçadores alpinos. De fato, o 86º Batalhão é o único a usar a mula como figura simbólica de sua insígnia, que existe em duas versões: esmaltada e não-esmaltada. Observe que a mula está aqui equipada com seu pacote de carga.
No âmbito do desenvolvimento das tropas de montanha, as peças de artilharia são especialmente desenvolvidas e concebidas para serem transportadas no dorso de mulas em cargas diversas ou, para as mais pesadas, rebocadas por mulas. O canhão 65 é frequentemente apresentado com o tubo na posição de transporte nas costas de uma mula. As unidades de artilharia de montanha ou do Exército da África dotados dum grupo de montanha são mais "gratos" ao animal por dar-lhes uma parte importante no seu simbolismo regimental.
Essas insígnias de artilharia também costumam ser muito bem-sucedidas tanto visualmente quanto do ponto de vista de realização, por exemplo aquelas dos 56º, 93º, II/96º, 385º regimentos de artilharia e do 2º Grupo do Regimento de Artilharia Colonial do Levante que combinava a mula, o canhão e uma paisagem montanhosa. Hoje, a 3ª Bateria do 93º Regimento de Artilharia perpetua hoje a memória das mulas através da sua insígnia fortemente inspirada na antiga insígnia regimental.
Já na Primeira Guerra Mundial, o trem montou companhias independentes de mulas responsáveis pelo abastecimento nos Vosges e na Frente Oriental. O trem também trará pequenos burros do Norte da África para a França continental, para que possam se mover pelas trincheiras a salvo de tiros. Encontramos a insígnia de uma dessas companhias de carregadores de burros através de um artigo do boletim dos exércitos da República.
As companhias de mulas criadas posteriormente, por sua vez, adquirem emblemas que, dada a sua especialidade, utilizam a mula no trabalho equipada com a sua mochila. Estas companhias também optam por divisas alinhadas com a sua ocupação central, tais como: "bien faire laisser braire" ("deixe que zurrem"), "o 157º passa por tudo", "menos que um cavalo, mais que um burro", ou ainda usando o lema de Nicolas Fouquet "Quo non ascendam".
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142e Compagnie de Muletières Alpines, "Quo non ascendam". |
Algumas unidades do serviço de saúde destinadas a divisões alpinas ou companhias de mulas de coleta sanitária também foram abastecidas com esses animais. Estes são então usados para o transporte de equipamentos sanitários ou para a evacuação de feridos usando macas dobráveis ou cacolets (assentos de metal) fixados à estrutura da cangalha do animal.
Com fama de difícil por natureza (leva vários meses para educar uma mula contra algumas semanas para um cavalo), o simbolismo militar não deixou de sublinhar essa característica da mula e as expressões da língua francesa que dela decorrem. Assim, o emblema do Grupo Sanitário Divisionário 86 (1940) ou da 30ª Divisão de Infantaria (1956) ilustra o coice da mula. Enquanto a 15ª Companhia de Mulas obviamente escolheu ilustrar a expressão "tourner en bourrique" ("sair correndo por aí como um burrico") com a insígnia mostrando o muleteiro envergonhado e a sua mula dando risada.
O grupo veterinário 541 de Tarbes será a última unidade não só a ser equipada com mulas operacionais, mas também a tê-las figurando em sua insígnia. Esta lembra as campanhas de libertação e o sofrimento compartilhado dos homens e seus fiéis animais de carga. No entanto, até 2014, o exército francês contava apenas com uma única mula em suas fileiras. Na verdade, "Bistouille", uma mula aposentada das tropas de montanha alemãs, era o mascote do 110º Regimento de Infantaria - agora dissolvido.
Uso operacional: do deserto à montanha
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Atiradores argelinos (tirailleurs algériens) do Corpo Expedicionário Francês conduzindo duas mulas no terreno montanhoso da Itália, em 1944.
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As primeiras unidades montadas em mulas do exército francês foram provavelmente os dois batalhões de infantaria de tirailleurs algériens do Coronel Yusuf em julho de 1843, quando a smala (bando armado vivendo em tendas) do famoso rebelde muçulmano Abd El-Kader foi capturada, encerrando a primeira fase de resistência anti-colonial indígena contra os franceses no que se tornaria a Argélia. Mas isso não teve consequências e as unidades foram vistas apenas como uma improvisação temporária, sendo dissolvidas.
Durante a fase final da Intervenção no México, o Regimento Estrangeiro organizou-se em uma força de armas combinadas para apoiar a retirada progressiva em direção ao porto de Veracruz. Uma companhia montada de infantaria com mulas foi formada no início de 1866 e serviu como unidade móvel contra-guerrilha até ser dissolvida quando da evacuação final em 27 de fevereiro de 1867.
La Montée
A utilização moderna e consistente de mulas pelos franceses se inicia quando o Coronel Oscar de Négrier assume o comando da Legião Estrangeira em julho 1881. Este duro e energético oficial comandou por apenas dois anos mas revigorou a Legião de diversas formas, sendo responsável por muito do mito e tradições que permanecem até hoje. Em outubro e novembro de 1881, de Négrier liderou os 1º e 2º batalhões estrangeiros contra os Ahmours - uma tribo marroquina que cruzou a fronteira na Argélia - e os Ouled Selim. Combates violentos foram travados nas montanhas de Beni-Smir e Mir-Djébel. Em dezembro outra coluna foi formada com zuavos, tirailleurs e os 3º e 4º batalhões da Legião. Esta coluna incorporou pela primeira vez um novo tipo de unidade que não apenas tornar-se-ia intimamente ligada com a identidade da Legião, mas que também daria maior poder de fogo e mobilidade às expedições francesas na África. Em cada um dos três regimentos da coluna foi colocada uma companhia suprida de mulas, chamada de "compagnie montée" (companhia montada).
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O General de Négrier, pioneiro do uso moderno de mulas no campo militar.
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De Négrier revisara a ordem de marcha das suas tropas visando a problemática de forçar os ágeis cavaleiros árabes a combaterem os franceses. O sistema de guerra árabe na região consistia em incursões rápidas contra alvos isolados ou frágeis, como postos de fronteira ou tribos aliadas aos franceses, causar destruição, saquear os espólios e retroceder antes que o adversário pudesse reagir. A infantaria e artilharia francesas eram modernas e possuíam poder de fogo considerável, mas eram muito lentas para alcançar os cavaleiros levemente equipados. A cavalaria francesa colonial era rápida o suficiente mas carecia da resistência e poder de fogo para lutar isolada do apoio dos fuzis emassados da infantaria. As companhias montadas forneciam uma força de ação rápida capaz de navegar longas distâncias com material pesado o suficiente para fazer frente aos guerrilheiros árabes e fixá-los no lugar até a chegada da infantaria. Já em 14 de dezembro de 1881, 50 legionários montados em mulas cobriram quase 160km em 48 horas e atacando de surpresa o campo do chefe rebelde Si Sliman, um dos principais aliados do líder Abu Amama, capturaram todo o seu rebanho.
Apesar da vitória, foi uma péssima ideia dar a cada homem uma mula. Durante uma ação de retaguarda contra cavaleiros árabes, uma unidade de legionários tentou enfrentá-los montados em suas mulas como se fossem cavalos - foi um desastre. Os 50 homens foram mortos e mutilados pelos incursores árabes. Isto levou de Négrier a seguir o exemplo do Major Marmet, comandante do 2e RTA (2e Régiment de Tirailleurs Algériens), e reduziu o número de mulas pela metade, com os soldados se alternando na sela à cada hora. Isso martelava incessantemente na cabeça dos soldados que eles eram infantaria e deveriam lutar como tal. Além disso, uma vantagem acidental foi que apenas 1 homem em 8 era imobilizado como segurador de mula durante o combate.
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Binômio da companhia montada. Os dois soldados iam trocando de lugar a cada uma hora. (Museu da Legião Estrangeira)
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As tropas coloniais usavam mulas, cavalos e camelos de forma complementar, mas as companhias montadas acabaram se tornando companhias de elite, sendo a unidade de intervenção por excelência. A mula viaja a uma velocidade próxima àquela de um homem, ou seja, a uma velocidade média entre 5-6km/h. A mula também é forte o bastante para carregar a bagagem de dois homens e bem adequada para a “terra de sede” do bléd saariano. Além disso, a mula se alimenta de 3kg de cevada por dia, contra os 5kg necessários para o cavalo. O camelo também é muito forte e adequado para regiões quentes e arenosas, mas em comparação com a mula, não é utilizável nas cordilheiros dos djébels norte-africanos. A companhia montada geralmente podia marchar de 10 a 15 horas por dia, cobrindo 40-50km. Em caso de emergência, os homens com suas mulas podiam manter uma marcha diária de 70 a 80km por vários dias.
Em 1884, as companhias montadas tornaram-se uma especialidade da Legião, com as companhias de zuavos e tirailleurs sendo dissolvidas. As companhias montadas eram buscadas por legionários mais audazes, em busca de aventura e glória, da mesma forma que soldados modernos se voluntariam para unidades paraquedistas. O ritmo de operações nas muitas "La Montée" era tão intenso que os homens só podiam servir até 2 anos em uma companhia montada, tamanho o peso sobre a sua saúde.
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Companhia montada em marcha e em combate. Os seguradores de mulas eram escolhidos entre os mais veteranos, se encarregando de 4 bestas cada um. Segurar mulas agitadas com o movimento, barulho e apreensão de perigo era uma tarefa que exigia auto-controle e força física.
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De Négrier chamava sua infantaria muleteira de "groupe légère" (grupo ligeiro) embora fosse o dobro do tamanho de um grupo. A definição do exército francês no período para as subunidades de infantaria era:
- Compagnie (companhia), cerca de 200 homens liderados por um capitão e dois subalternos.
- Peloton (meia-companhia), cerca de 100 homens comandados por um subalterno.
- Section (pelotão), cerca de 50 homens comandados por um ajudante.
- Groupe (grupo), cerca de 25 comandados por um sargento.
- Demi-groupe (meio-grupo), cerca de 12 homens comandados por um cabo.
Os legionários eram escolhidos entre os voluntários mais robustos, com a força sendo aumentada para 215 homens, 120 mulas e 3 cavalos. Os oficiais iam a cavalo; os ajudantes (subtenentes) tinham uma mula individual enquanto o resto da companhia dobrava ao comando de "Changez, montez!". O mais veterano do binômio era responsável pelo cuidado com a mula.
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Até hoje, o 2e REI (2e Régiment Étranger d'Infanterie/ 2º Regimento Estrangeiro de Infantaria) tem uma ferradura no seu distintivo em homenagem às companhias montadas. |
Enquanto isso, na metrópole...
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Antigo cartão postal mostrando dois Chasseurs Alpins, "Équipage Muletier". |
Na Europa, os italianos decidiram criar unidades alpinas em 1872 para o controle de fronteiras com a França e a Áustria-Hungria. Em 1888, os Alpini italianos equiparam cada companhia com 8 mulas, fuzis modernos de repetição Vetterli-Vitali mod. 70/87 e canhões leves de artilharia de montanha. Temendo uma invasão italiana pelos Alpes, os franceses criaram 12 batalhões de chasseurs alpins (caçadores alpinos) e 12 baterias alpinas formando setores de defesa ao longo da fronteira italiana, pela lei de 24 de dezembro de 1888. Os artilheiros operavam os canhões de Bange 80mm modèle 1877.
Em 1º de abril de 1910, as baterias alpinas de Grenoble e Nice formaram respectivamente os 1º e 2º regimentos de artilharia de montanha (Régiment d'Artillerie de Montange, RAM), equipados com os canhões de 65mm Schneider modèle 1906 de dorso. Este canhão de tiro rápido era transportável em quatro fardos, pesando 400kg e com alcance de 5.000m. Os artilheiros de montanhas serviram-se do Schneider 1906 por 40 anos, equipando vários RAM que lutaram nas Primeira Guerra Mundial nos Vosgues, Champanha, Verdun, na Itália (inclusive em função anti-aérea); mas seu valor foi realmente comprovado na frente oriental de Salônica.
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Canhão Scheinder-Ducrest 65mm modèle 1906 em bateria.
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O Armée d'Orient francês usou o Mle 1906 contra as forças das Potências Centrais nas montanhas da Macedônia, com 72 canhões Mle 1906 durante o rompimento aliado da cabeça-de-ponte de Salônica em 15-29 de setembro de 1918. O sucesso inicial desta ofensiva aliada levou a Bulgária a capitular em 9 de outubro de 1918, mais tarde em outubro de 1918 a Sérvia foi libertada e, finalmente, a Áustria-Hungria capitulou em novembro de 1918, quando confrontada simultaneamente com a invasão das forças italianas vindas do Isonzo.
Isto não terminou a carreira do Schneider 65mm, canhão símbolo das tropas de montanha na Grande Guerra, tendo sido usado ainda nas colônias, como na Guerra do Rif (guerra esta retratada no filme "Legionário" de 1998, estrelando Jean-Claude Van Damme) com o 93e RAM e na Batalha da França em 1940. Seus últimos tiros com o exército francês foram feitos durante a libertação da França em 1945. Eles ainda seriam usados por Israel na sua guerra de independência em 1948-49, com o apelido de Napoleonchik.
Muares ao lado de blindados
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Em um campo de tiro ao redor de Tananarive (hoje Antananarivo), tirailleurs do 1e RTM (1er Régiment de Tirailleurs Malgaches/ 1º Regimento de Tirailleurs Malgaxes) descarregam as mulas carregando os canhões e munições da 3ª bateria do 7e RAC (7e Régiment d’Artillerie Coloniale), Madagascar, 1907-09. |
As operações do Entre-Guerras são majoritariamente operações coloniais no Levante (Síria e Líbano), Marrocos, Argélia e Soud-Oranais. O fraco calibre dos obuses de 65mm leva à adoção do Schneider modèle 1919, fabricado em dois calibres: 75mm desmontável em sete fardos, e em 105mm desmontável em oito fardos. A adição de um escudo em frente ao canhão permite proteger os artilheiros dos tiros diretos da infantaria e dos projéteis do campo de batalha.
O fogo de obuses de alto explosivo, combinado com a possibilidade de adaptação das cargas contidas nos invólucros e cartuchos, responde ao desafio de fogo de barragem com precisão em terrenos íngremes, fortemente escarpados. Por outro lado, o peso da arma (660 a 750kg) e da munição a ser transportada, limitam a produção e o uso dessas armas, especialmente o 105. Essas duas armas, modernizadas em 1928, tiveram uma curta carreira operacional. Elas são notavelmente empregadas na frente dos Alpes, enfrentando a Itália em junho de 1940 e enfrentando os alemães durante a Batalha de Voreppe, onde dois canhões de 75 da section do Tenente Régnier do Centro de Organização da Artilharia de Montanha e de Posição (Centre d'Organisation de l'Artillerie de Montagne et de Position, COAMP) de Grenoble, contribuíram para repelir as tentativas alemãs de penetrar na vila.
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Embarque de uma mula do CEFS (Corps expéditionnaire français en Scandinavie/ Corpo Expedicionário Francês na Escandinávia) no porto de Brest, com destino à Noruega, 28 de abril de 1940. |
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Em 1923, o Exército Brasileiro encomendou vários canhões Schneider mle 1919 75mm de montanha, que foram entregues em 1925. Pelo menos 3 deles estão agora em exibição no Museu do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro, Brasil. |
No período confuso pós-armistício, a França se viu com duas forças combatentes: as de Vichy, do governo colaboracionista reconhecido internacionalmente, e as Forças Francesas Livres do general rebelde Charles de Gaulle, que não tinham reconhecimento internacional e basicamente tiveram que se erguer do zero. Tragicamente, estas duas forças cruzariam espadas em uma luta fratricida no mandato do Levante (Síria e Líbano) em 1941, enfrentando o terreno montanhoso e desértico durante a invasão britânica partindo do Mandato da Palestina e do reino do Iraque. O famoso "Canhão de Kufra", o único canhão disponível para tomar a formidável fortaleza italiana de Kufra, na Líbia, foi um 75mm de montanha.
Os canhões de montanha foram importantes no terreno escarpado da Tunísia, com a precisão da artilharia francesa sendo notada por aliados e inimigos, apesar da idade das peças. O Exército Francês Livre conseguiu acesso a material militar americano, o que incluiu uma motorização impressionante com jipes, caminhões e blindados - incluindo obuseiros auto-propulsados. Mas mesmo assim, a necessidade de transpor terrenos acidentados ditou a manutenção de ativos arcaicos: os muares.
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Artilheiros do 67e RA (regimento de artilharia) lidando com uma mula brava carregando um canhão de dorso 65mm modelo 1906. O 67e estava combatendo na batalha do maciço de Ousseltia, na Tunísia, em abril de 1943. |
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Um grupo de tirailleurs conduz um grupo de mulas para a linha de frente no setor de Maktar, na Tunísia, em março de 1943.
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O primeiro passo na libertação da Europa Ocidental foi a invasão da Itália, com terreno de montanha abundante, onde os muares, canhões e tropas de montanha mostraram o seu verdadeiro potência: a habilidade das tropas de montanha francesas foi essencial para romper o dispositivo inimigo e abrir o caminho para Roma.
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O terreno italiano era freqüentemente escarpado.
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Coluna automotiva francesa "Made in USA" negociando uma estrada italiana.
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Tirailleurs argelinos passam por uma coluna mecanizada alemã capturada. O blindado à frente é uma peça de assalto italiana Semovente da 75/18, designada StuG M42 mit 7,5 KwK L 18(850)(i) em serviço alemão. |
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Muares sendo usados como trem logístico foi algo essencial para o abastecimento de ambos os lados na campanha da Itália.
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Sobre a manobra de montanha francesa desbordando o bastião do Eixo no Monte Cassino, escreveu o General Mark Clark, comandante do 5º Exército Americano: