domingo, 19 de julho de 2020

Mais do que uma década após a reforma militar, o trote ainda atormenta o exército russo

O trote faz parte da vida dos recrutas do exército russo desde o final do século XVII. (Kirill Kukhmar/ TASS)

Por Alexey Zhabin, The Moscow Times, 18 de fevereiro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 19 de julho de 2020.

Ter a palavra russa para "pinto" esculpida na testa com uma lâmina de barbear como punição por fumar um cigarro ilícito no banheiro do quartel foi a última gota para o soldado Artyom Pakhotin.

Duas semanas depois, em 19 de abril de 2018, ele se matou com um AK-74 durante a sessão de treinamento do seu pelotão na região de Uvers, em Sverdlovsk.

"Mãe, não acredite no que dizem. Eles estão me intimidando aqui, me exaurindo psicologicamente e extorquindo dinheiro... não vejo como posso continuar. Eu já estou muito cansado. Lamento que tudo tenha acabado assim”, disse sua última mensagem de texto para sua mãe, exibida no canal de televisão local da TVK.

O caso de Pakhotin não é único. A Dedovshchina, russo para trote, faz parte da vida de recrutas do exército russo desde o final do século XVII, quando o imperador russo Pedro, o Grande, introduziu o serviço militar obrigatório pela primeira vez.

Em 2008, as autoridades introduziram reformas que incluíam a redução do serviço obrigatório de dois anos para um e a alteração da estrutura de gestão e sistema educacional das forças armadas. O trote extremo persistiu até 2012, quando os efeitos das reformas se tornaram evidentes. Hoje, porém, recrutas chegando ao final de seu período de um ano ainda intimidam os recém-chegados através de estupros, espancamentos e humilhações, às vezes com consequências trágicas.

Em novembro de 2019, um recruta de 20 anos matou oito de seus colegas soldados na cidade de Gorny, no Extremo Oriente, dizendo que agiu em retaliação ao bullying e a uma ameaça de estupro.

"Lamento não ter conseguido me conter e ter recorrido a esse passo extremo, mas não tinha outra saída. Não aguentava mais maus-tratos", escreveu Shamsutdinov em uma carta aberta divulgada por seu advogado nas mídias sociais.


Conscritos servem por um ano.
(Zamir Usmanov/ TASS)

Não há estatísticas oficiais sobre o número de casos de trotes no exército, mas um relatório do site de notícias da RBC disse que em 2018 mais de 1.100 militares foram condenados por abuso de poder e 372 por violência.

O advogado e ex-soldado Alexander Latynin, membro do conselho de supervisão da ONG União das Mães dos Soldados da Rússia, estimou que o número relatado de condenações é apenas a ponta do iceberg.

"Recebemos cerca de 300 telefonemas por dia - 10% deles relatando incidentes de trote - juntamente com 20 e-mails por dia, um ou dois deles sobre trote", disse Latynin ao The Moscow Times, acrescentando que as outras queixas são sobre abusos verbais de oficiais, tratamento médico inadequado e falha das autoridades em suprir uniformes.

Todos os homens russos saudáveis são obrigados a completar um ano de serviço militar obrigatório antes de completarem 27 anos, embora milhares consigam evitá-lo, subornando funcionários e médicos de recrutamento. Segundo as estatísticas oficiais, existem 1,9 milhão de militares no exército russo, dos quais cerca de 80% são conscritos.

Outra ONG militar - Direito da Mãe - estima com base nos pedidos de ajuda que recebeu que apenas 4% das mortes de recrutas militares acontecem no cumprimento do dever, enquanto 44% são suicídios.

"Os recrutas enfrentam extorsão, espancamentos, intimidação, indução ao suicídio e outros crimes", disse a porta-voz Anna Kashirtseva.

Reformas foram introduzidas em 2008.
(Sergei Vedyashkin/ Moskva News Agency)

A RBC estimou que as condenações por abuso de poder no exército russo caíram pela metade nos últimos 10 anos, enquanto o número de condenações por violência caiu cinco vezes desde 2008.

O Ministério da Defesa não respondeu aos pedidos de comentários sobre a escala de trotes nas forças armadas.

Arseny Levinson, advogado do grupo de direitos humanos Cidadão e Exército, disse que o nível dos trotes caiu desde as reformas de 2008.

"As escalas de violência baseadas na hierarquia informal, a qual era baseada no período de serviço, diminuíram à medida que o tempo de serviço foi reduzido", disse Levinson.

Ele acrescentou que a tecnologia também ajudou, já que os smartphones e a Internet tornam mais difícil encobrir o trote.

No entanto, no ano passado, entrou em vigor uma lei que proíbe o uso de telefones e dispositivos com acesso à Internet para militares em serviço.

Timur Ilyasov, um recruta que serviu no noroeste da Rússia de 2018 a 2019, disse que a experiência de qualquer pessoa com trotes e bullying depende de suas características pessoais e que ele acredita que algum nível de atrito é normal em uma equipe militar.

"Se você se deixa intimidar, eles o intimidam e fazem você fazer o que querem... É apenas um ambiente masculino, a interação de 100 homens em um espaço fechado".

Ele disse que houve confrontos frequentes em seu pelotão, embora oficiais superiores monitorem os procedimentos de perto.

"Todas as noites eles examinam seu corpo e, se você tiver hematomas, você e seus supervisores serão penalizados", disse ele, acrescentando que isso faz com que os agressores sejam especialistas em administrar espancamentos com as palmas das mãos, para não deixar marcas.

Extorsão de dinheiro

Os comentaristas disseram que a natureza da dedovshchina também está mudando, com a extorsão de dinheiro desempenhando um papel mais central nos dias de hoje.

Latynin disse que o trote representa uma crise na sociedade russa e apontou que soldados instruídos e bem-disciplinados nunca zombam de outros.

A natureza fechada do sistema militar, a ausência de tempo de lazer normal para recrutas e o treinamento inadequado dos oficiais também contribuem para criar as condições para o trote, disse Levinson.

"Os soldados quase não têm licença, estão presos e isolados de parentes e do controle público", disse ele.

Latynin acredita que até 30% dos conscritos são impróprios para o serviço militar e estimou que eles levam de seis meses a um ano para se adaptarem à vida no exército.

Kashirtseva acredita que a dedovshchina ainda existe porque, na maioria dos casos, ninguém é responsabilizado por isso devido à falta de uma cultura legal no país.

"Os russos pensam que espancamentos, intimidação e extorsão no exército são uma escola da vida para os conscritos, da qual todo garoto precisa se formar para se tornar um homem de verdade", disse ela.

Bibliografia recomendada:

O Exército Soviético por dentro, de Viktor Suvorov.
O primeiro livro a falar sobre a dedovshchina.

Leitura recomendada:

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