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segunda-feira, 5 de julho de 2021

Duas Derrotas: o Vietnã e o Afeganistão


Pelo Capitão-de-Fragata Pierre Ortiz, ENDERI, 31 de maio de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de junho de 2021.

O comandante Pierre Ortiz lembra os motivos pelos quais, após 10 anos de guerra, os americanos fracassaram no Vietnã há 50 anos. Numa altura em que estes parecem querer retirar do Afeganistão as suas forças que ali estão desdobradas há quase 19 anos, ele explica porque é que esta retirada deve ser vista como mais um fracasso para os Estados Unidos.

Afeganistão, uma guerra americana e ocidental

Soldados afegãos e um soldado americano da ISAF, 2012.

Em outubro de 2001, os Estados Unidos, apoiados por seus aliados, travaram a guerra mais longa de sua história (19 anos). Os objetivos da guerra são bem conhecidos: primeiro, derrubar os talibãs - cúmplices e protetores de Bin Laden - que reinavam em Cabul e que se recusavam a entregar seu constrangedor convidado.

A primeira fase é conhecida: em poucos dias de ataques relâmpagos, os talibãs fogem e se juntam a seus maquis montanhosos e suas áreas tribais na fronteira com o Paquistão. Cabul está sob controle, objetivo alcançado. O próximo passo é impedir o retorno dos talibãs e estabelecer um regime de "boa governança" pró-Ocidente; isto será um fracasso.

Um menino afegão segura sua arma de brinquedo com soldados belgas da patrulha ISAF durante uma missão conjunta com soldados alemães em Taloqan, a oeste de Kunduz, no Afeganistão, em 30 de setembro de 2008.

Como no Vietnã, os Estados Unidos estão muito longe de suas bases; os meios e os recursos empregados serão colossais, de 800 a 1000 bilhões de dólares. Com o dólar menos no controle do mundo financeiro do que em 1965, a guerra será, portanto, mais longa e custará mais em comparação.

Ao contrário do Vietnã, os adversários enfrentados serão principalmente guerrilheiros pashtuns, que nunca se arriscarão a enfrentar a coalizão de frente. Poucas perdas materiais, controle aéreo total, uso máximo de armas aéreas: aviões, helicópteros e drones, sendo estes últimos de uso pesado; a guerra da "alta tecnologia"...

Poucas pessoas no terreno. Perdas de pessoal relativamente baixas: 2.400 mortos em 19 anos. Uma guerra engajados profissionais pouco questionada no país. Com mídia muito mais controlada do que no Vietnã, a lição foi aprendida.

Outro ponto em comum com o conflito vietnamita são os aliados locais, que são muito exigentes, pouco confiáveis, ineficientes, corruptos e, além disso, perigosos; há inúmeros casos de soldados do Exército Nacional Afegão voltando suas armas contra aliados ocidentais.

A guerra dos insurgentes

Um combatente mujahideen afegão carrega um míssil FIM-92 Stinger americano colina acima perto de Jaji, leste do Afeganistão, fevereiro de 1988.
(Robert Nickelsberg / Time Magazine)

O que impressiona talvez sobretudo neste confronto de 19 anos e mesmo de 41 anos, se começarmos a contar desde a chegada dos soviéticos no final de 1979, é a certeza e a determinação de superação por parte dos insurgentes qualquer que seja o custo e qualquer que seja a duração diante das forças que os dominam mil vezes por seus meios.

Uma certeza alimentada por uma cultura de guerras tribais mesclando naturalmente o estado de guerra com o da vida, uma fé religiosa beirando o fanatismo que defende a aceitação da onipresença da morte que não devemos temer, ou mesmo que devemos chamar como bênção.

Como para o Vietnã, um ódio ao estrangeiro ateu e a outra raça, a um invasor instalando um regime corrupto e rejeitado pela população pashtun, a um invasor que multiplica as vítimas entre a população civil.

Fuzileiros navais americanos explodindo casamatas e túneis usados pelo Viet Cong em uma vila, 1966.

A questão surgiu já durante a presença soviética: aliás, quem estava lutando contra os insurgentes? Os soviéticos ou, em primeiro lugar, os não-muçulmanos que não têm lugar numa sociedade monocultural e que fará de tudo para permanecer assim? Os insurgentes talibãs, pelo menos nas áreas de maioria pashtun, são "como peixes na água"; basta olhar para os rostos consternados dos legisladores afegãos com a notícia da morte de Bin Laden.

Como os insurgentes vietnamitas, os talibãs não estão sozinhos; eles recebem o apoio de "brigadas internacionais" de muitos países muçulmanos e não-muçulmanos para travar a jihad.

Soldados do Exército Soviético na torre de um tanque em um posto avançado durante o pôr do sol no Afeganistão, setembro de 1984.
(Alexander Zemlianichenko / AP)

Eles são apoiados por um grande número de órgãos oficiais do Paquistão que consideram o Afeganistão como seu quintal. O papel desempenhado pelos paquistaneses é um andaime muito elaborado de astúcia; eles desempenharão admiravelmente a figura de aliados objetivos e prestativos dos americanos, enquanto secretamente apóiam os insurgentes, fato o qual os Estados Unidos estavam bem cientes. Quem poderia imaginar por um segundo que o governo de Karachi não sabia da presença de Bin Laden em seu território? Além disso, existem poucas fronteiras tão porosas como aquela que pretende separar o Afeganistão do Paquistão.

Finalmente, outro elemento fundamental, o custo da guerra; para combater os efeitos dos artefatos explosivos caseiros, fabricados com algumas dezenas de dólares, são usados materiais cujo custo gira em torno de dezenas de milhares de dólares.

Concluir ou observar?

Um soldado alemão do Bundeswehr com a ISAF monitora a área em uma montanha durante uma missão de varredura com uma equipe de Descarte de Material Explosivo (Explosive Ordnance Disposal, EOD) nos arredores de Fayzabad, ao norte de Cabul, Afeganistão, em 20 de setembro de 2008.

Observar primeiro que no Afeganistão, talvez mais do que no Vietnã, é uma questão de fracasso na ausência de uma derrota e, no caso do Afeganistão, de uma derrota do Ocidente diante de outra civilização completamente diferente.

No Vietnã, como no Afeganistão e na Somália, é a derrota de um Golias longe das suas bases perante uma população cada vez mais hostil que, apesar de todas as suas tentativas, nunca poderá seduzir, primeiro porque ela o vê como um estrangeiro". Tampouco será possível instituir um regime de "boa governança" capaz de conquistar o apoio da população; eles sempre serão regimes corruptos e ineficientes odiados pelo povo.

Nessas duas guerras, uma grande parte do país, essencialmente rural, sempre terá que ser deixada para os "insurgentes" que, como a FLN na Argélia, estão fazendo reinar o terror implacável entre a população civil.

Trailer do filme A Batalha de Argel


Quem poderia negar que este é um exemplo convincente do choque de civilizações segundo a visão de Samuel Huntington? Seja o comunismo ateísta dos "prussianos asiáticos" do Vietnã do Norte ou o islamismo fanático do talibãs afegãos, o inimigo do Ocidente nunca duvidará da vitória, não importa quão duros sejam os golpes; ele até mesmo rapidamente convencerá o vencedor no campo da inevitabilidade de sua derrota e, assim, infligirá uma ferida em seu moral da qual ele não se curará, mesmo depois que as hostilidades tiverem passado.

Um choque de civilizações é, claro, e antes de tudo, um choque de valores incompatíveis, uma visão do preço da vida, a sensação do tempo. André Malraux, visitando Mao Tsé-tung em 1965, perguntou-lhe se ele achava que o comunismo duraria na China; ouviu-se responder pelo seu interlocutor: "Oh não! Talvez 1.000 anos, não mais”.

A guerra é uma disciplina e uma arte em que a relação com a morte e o tempo é tão importante quanto o poder das armas e o valor puramente militar dos exércitos. Nem os americanos nem seus aliados no Vietnã ou no Afeganistão estavam preparados para lutar tanto quanto os "insurgentes"; tratava-se de bater forte e entrar rápido. Como disseram os presidentes Nixon e Trump, "bring the boys back home" ("traga os rapazes de volta para casa") especialmente porque as opiniões civis desses países não estavam prontas para pagar o pesado tributo do derramamento de sangue, como Charles de Gaulle em La France et son Armée (A França e seu Exército) falando de guerras distantes "Todos queriam voltar ao país para encontrar seu país".

Guerra bunkerizada: Um engenheiro de combate fuzileiro naval servindo na Companhia Bravo, 1º Batalhão de Engenharia de Combate, preenche uma barreira Hesco com terra que apoiará um portão de entrada para o Exército Nacional Afegão na Base Operacional Avançada Shir Ghazay, 19 de novembro de 2013.

Ainda são guerras que custaram somas colossais de dinheiro, bilhões de dólares para o Ocidente e primeiro para os Estados Unidos, menos para o inimigo. Os ocidentais colocaram toda a sua fé na deusa da alta tecnologia e no deus tecnicismo; eram guerras "bunkerizadas" com poucas pessoas no solo e muitas no ar, o oposto dos "insurgentes".

Nenhuma batalha clássica foi perdida no terreno, mas os custos continuaram a subir à medida que a perspectiva de vitória se tornava cada vez mais evasiva, apesar da perda desproporcional entre aliados e insurgentes.

Blindado norte-vietnamita, com a bandeira da FLN/Viet Cong, entrando pelo portão arrebentado do palácio presidencial de Saigon, 30 de abril de 1975.

Quando a guerra começa? Quando a guerra termina? Talvez, no final, uma guerra não precise começar para não parar, talvez também os ocidentais devam refletir sobre esse pensamento de um tenente-coronel do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, depois do que seus compatriotas consideraram uma vitória, uma vez que Saddam Hussein foi derrubado, "War starts when it ends": a guerra começa quando acaba!

Pierre ORTIZ
  Capitã-de-Fragata (h)
  Correspondente da ASAF na Bélgica

Bibliografia recomendada:

O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial.
Samuel P. Huntington.

Leitura recomendada:





A Arte da Guerra em Duna, 17 de setembro de 2020.






Armas vietnamitas para a Argélia14 de dezembro de 2020.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Confissões de um estrategista fracassado - Parte 2: Resolva problemas através de problemas


Pelo Coronel Jobie Turner, War Room, 5 de fevereiro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 30 de junho de 2021.

"Devemos antecipar a implicação de novas tecnologias no campo de batalha, definir rigorosamente os problemas militares previstos em conflitos futuros e promover uma cultura de experimentação e de riscos calculados."
- Resumo da Estratégia de Defesa Nacional 2018.

A primeira parte desta série (no link) descreveu lições tiradas de uma tentativa mal-sucedida de escrever uma estratégia de serviço, terminando com a sugestão deprimente de que o processo de produção de documentos estratégicos pode ser inerentemente autodestrutivo. Mesmo dentro de um único serviço, existem muitos pontos de vista e interesses diversos a serem superados. Assim, ficamos com a escolha desagradável entre um mínimo denominador comum sem valor ou uma substância condenada à resistência imediata e reflexiva de algum segmento da instituição.

Em vez de sucumbir à inércia burocrática, ou pior, ao que no livro Comando Supremo, Eliot Cohen chamou de “niilismo estratégico”, as Forças Armadas deveriam se concentrar menos na estratégia e mais nos problemas. Merriam-Webster define um problema como “uma fonte de perplexidade, angústia ou irritação” ou “uma intrincada questão não resolvida”. Embora o Departamento de Defesa não tenha uma definição oficial de problema, ou o termo mais preciso - problema militar -, uma definição genérica adaptada ao contexto de um serviço militar será suficiente: “Uma intrincada questão não resolvida que trata do nível operacional ou tático da guerra".

Supreme Command: Soldiers, statesmen, and leadership in wartime.
Eliot A. Cohen.

Por que os problemas funcionam?

Uma lição do projeto de estratégia de serviço fracassado foi o poder e a atração de analogias históricas. Exemplos de sucessos anteriores repercutiram em quase todos os públicos: parceiros conjuntos, colegas da equipe e líderes seniores. Essas analogias eram atraentes porque forneciam exemplos claros de como o serviço já superou problemas significativos, como competição de grande poder, polarização política e orçamentos incertos.

Os exemplos mais óbvios e bem documentados relativos ao trabalho da equipe de redação de estratégia vieram do período Entre-Guerras, no qual as grandes potências tentaram resolver os problemas da guerra de trincheiras que dominou a Primeira Guerra Mundial - seja projetando uma força aérea construída em torno do bombardeio estratégico , desenvolvendo os conceitos de guerra de tanques ou reformando sistemas de pessoal. No centro da discussão estava a inovação, uma palavra da moda no léxico atual do Departamento de Defesa.

Por muitos anos, as fontes de inovação militar foram enquadradas pelas teorias conflitantes de Barry Posen e Stephen Rosen. O primeiro argumenta que a inovação militar deve ser forçada de fora, enquanto o último sustenta que a motivação interna e a competição são fundamentais. Adições importantes ao debate Posen-Rosen são os trabalhos de David Johnson, que forneceu uma mistura de exemplos positivos e negativos retirados do Exército dos EUA, e Williamson Murray, que usou a Luftwaffe alemã para demonstrar como não construir e usar uma força aérea.

Estratégia para a Derrota: A Luftwaffe 1933-1945.
Williamson Murray (PDF no link).

Outros trabalhos enfocando os anos entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais fornecem outros grandes exemplos de como a organização resolveu ou sucumbiu a problemas militares. Oficiais mais jovens, especialmente os graduados de educação militar profissional avançada, são bem versados nessa extensa literatura. Os oficiais superiores, naturalmente, acham atraentes quaisquer sugestões de como construir as bases para forças armadas fortes sem grandes orçamentos. A equipe de redação da estratégia freqüentemente ouvia a citação (provavelmente apócrifa, mas ainda assim útil) de Winston Churchill: “Cavalheiros, ficamos sem dinheiro. Agora temos que pensar.” Independentemente da audiência, havia uma sensação definitiva de que, durante o período Entre-Guerras, o foco na solução de problemas militares havia sido um componente crítico de qualquer sucesso alcançado.

Enquanto a Primeira Guerra Mundial e o período Entre-Guerras forneceram casos interessantes para falar sobre inovação, o caso da Batalha Aeroterrestre (AirLand Battle) da era pós-Vietnã gerou mais discussão. Como a Batalha Aeroterrestre foi desenvolvida e executada em memória mais recente, ela forneceu um exemplo imediato de como orientar a Força Aérea para conflitos futuros. No cerne da Batalha AirLand estava o problema de enfrentar a força superior de outra grande potência: a ameaça avassaladora das formações blindadas soviéticas na Europa. A Batalha Aeroterrestre resolveu o problema oferecendo uma solução conjunta envolvendo a Força Aérea e o Exército.

Blindados americanos no deserto ocidental iraquiano, 1991.

Embora a força combinada resultante não tenha lutado na Europa, ela derrotou o Iraque de forma esmagadora na Primeira Guerra do Golfo. Embora exagerados na imprensa, os efeitos combinados de armas de precisão, tecnologias de posicionamento global e instalações avançadas de comando e controle sobrecarregaram as forças militares iraquianas. Esse trabalho também foi fruto de esforços de inovação no Pentágono, resumidos pelo Coronel John Boyd. Assim, por meio da atenção concentrada na solução de problemas, a Força Aérea e o Exército forneceram capacidades operacionais e de dissuasão que permitiram à força combinada ter sucesso na batalha. Como a Estratégia de Defesa Nacional de 2018 busca reorientar as Forças para os desafios da competição de grandes potências, a Batalha Aeroterrestre oferece um exemplo do mesmo.

Tudo sobre o problema

Coluna blindada soviética durante o exercício Zapad 81, 1981.

Em retrospecto, a chave para o desenvolvimento da Batalha Aeroterrestre foi o foco fornecido por um problema militar. O que é particularmente saliente para as discussões atuais é a maneira que a Batalha Aeroterrestre seguiu os fracassos de esforços anteriores no final dos anos 1970 para equiparar a vantagem soviética com uma resposta simétrica de adicionar mais unidades blindadas aliadas. Essas soluções anteriores não conseguiram superar as vantagens numéricas e geográficas dos soviéticos. Em vez disso, o Exército teve que reconhecer que precisava dos fogos de longo alcance da Força Aérea e a Força Aérea teve que reconhecer que suas redes de comando e controle deveriam ser mais ágeis e combinadas.

O trabalho da Força Aérea para resolver esse problema dentro da estrutura da Batalha Aeroterrestre - os estudos das “31 Iniciativas” - construiu uma base de entendimento para ambas as forças. Ao destilar o problema às partes componentes de como combater a massa blindada soviética na Europa Ocidental, as 31 Iniciativas prepararam o cenário para anos de debate, trabalho e construção da força que poderia resolver esse problema. Para a Força Aérea, essas soluções doutrinárias, procedimentais e técnicas aproveitaram o potencial dos aviões F-16, F-15 e A-10, bem como os sistemas de informação de apoio, o sistema de posicionamento global e as comunicações por satélite. O resultado foi a formidável força aérea que sustentou as operações militares americanas no Iraque, Afeganistão, Kosovo e Líbia.

Tentar remodelar ou refazer um serviço de uma forma que perturbe ou contorne a política nacional levará a grandes dificuldades políticas.

As vantagens dos problemas militares

Uma abordagem de estratégia baseada em problemas oferece várias vantagens. Em primeiro lugar, os problemas militares devidamente definidos forçam uma organização a decidir o que é importante no futuro ambiente de combate. Na ausência de um problema claro para resolver, o ambiente futuro pode se tornar difícil de manejar. Por sua vez, isso pode levar a decisões confusas sobre orçamentos e sistemas de armas. Por exemplo, o atual Ambiente de Operação Conjunta 2035, publicado pelo Estado-Maior Conjunto, contém 24 “Missões de Forças Conjuntas em Evolução” separadas.

Mesmo a Estratégia de Defesa Nacional extraordinariamente clara e concisa identifica oito áreas de capacidade-chave que requerem atenção das Forças. Com dezenas desses imperativos para escolher, tentar priorizar um orçamento de serviço com base nessas prioridades amplas e às vezes conflitantes torna-se um campo minado. Ou, para os cínicos, a profusão de prioridades permite que o processo de desenvolvimento de um orçamento se transforme em uma justificativa de "buzzword bingo" ("bingo dos clichês") das capacidades desejadas de inteligência artificial a hipersônica, tudo encaixado em qualquer categoria conveniente como "consertos".

Um problema militar bem pensado restringe essa divagação intelectual, mantendo a Força concentrada no que é importante. Com um problema claro, é mais fácil decidir como o serviço se orienta: qual o tamanho do serviço a ser recrutado? Que armas comprar? Qual pesquisa tecnológica seguir? Em suma, os problemas militares mantêm a organização alicerçada na realidade, evitando que a inércia burocrática sobrecarregue uma Força.

Em segundo lugar, embora as aspirações sejam importantes, elas devem ser apoiadas por objetivos mais concretos e específicos para ganhar o apoio público e do Congresso na forma de orçamentos. A Batalha Aeroterrestre facilitou a articulação do problema e garantiu aos legisladores que o Exército e a Força Aérea tivessem uma solução coerente.

Disparo de um míssil de cruzeiro Tomahawk.

Terceiro, os problemas militares forçam as soluções tecnológicas a desempenhar um papel de apoio. Está bem documentado que os militares americanos têm um caso de amor com a tecnologia e, como Colin Gray observa em Weapons Don't Make War (Armas não fazem guerra), “Armamento não é igual a estratégia”. As tecnologias da moda governarão o dia se puderem dominar a discussão. Quando o problema vem primeiro, entretanto, a tecnologia pode vir em segundo lugar. Com o tempo, mesmo uma solução tecnológica que inicialmente resolva o problema pode se tornar obsoleta ou ser combatida pelo adversário. Em tais casos, um problema militar serve como uma rubrica útil para avaliar o progresso ou retrocessos.

Em quarto lugar, a solução de problemas militares aproveita o talento que já está no estado-maior e sua recente experiência operacional. Ao focar em um problema, os oficiais que serviram no nível tático podem trazer suas experiências e perspectivas recentes para o planejamento e programação do orçamento. Por exemplo, no Estado-Maior da Aeronáutica há centenas de coronéis com experiência operacional recente nos níveis de força-tarefa combinada, grupo, ala e esquadrão. Com um problema claramente definido, as adições provenientes de guerras recentes são muito mais fáceis de capturar ou, quando necessário, descartar. Pedir a uma equipe que resolva um problema é a melhor maneira de obter informações recentes e emergentes.

Uma palavra de cautela

Paraquedistas da 82ª Divisão Aerotransportada embarcando para o Iraque em resposta à crise na embaixada dos EUA em Bagdá, 1º de janeiro de 2020.

Para todos os benefícios de usar uma abordagem baseada em problemas para a elaboração de uma estratégia de Força, algum cuidado é necessário. Enquanto o processo envolvido no Processo de Planejamento Conjunto define problemas operacionais para solução imediata, o problema militar no nível da força militar não é um plano a ser combatido. Linhas de esforços, fases e outras ferramentas para planejar uma batalha ou operação podem não ser necessariamente a melhor maneira de abordar a estratégia institucional. Uma força organiza, treina e equipa uma futura força para a luta, mas não luta a si mesma. Como tal, o problema militar terá de ser suficientemente específico, ao mesmo tempo que também amplo o suficiente para permitir a flexibilidade do estado-maior para buscar soluções diferentes, desde o treinamento de pessoal até a aquisição de plataformas.

Em termos leigos, o problema militar deve estar em algum lugar entre o tático "tome aquela colina" e o estratégico "defenda os Estados Unidos da América". No contexto de uma estratégia de força, esse nível de guerra é importante. Conforme mencionado no primeiro artigo desta série, as estratégias de nível superior estabelecidas pelo sistema político já definem muito do que uma força deve fazer. Tentar remodelar ou refazer um serviço de uma forma que perturbe ou contorne a política nacional levará a grandes dificuldades políticas. Uma Força deve se concentrar nos problemas que suas forças podem enfrentar no futuro campo de batalha.

O que é difícil em identificar esses tipos de problemas é sua finalidade. Definir um problema militar é escolher uma direção e direcionar o serviço para esse fim. Assim, certos conceitos, capacidades e sistemas de armas resolverão melhor o problema, enquanto outros sairão perdendo. Paradoxalmente, esse é o poder de resolver problemas. Os problemas forçam um caminho, uma escolha e uma concentração de recursos para um objetivo. É muito mais difícil para o comportamento burocrático ou mesmo limitações políticas enfrentar um problema crítico. Podemos falar de estratégia na profissão de armas: são os problemas que exigem ação.

Sobre o autor:

Coronel Jobie Turner, Ph.D., é um colaborador do WAR ROOM e comandante do 314º Grupo de Operações (314th Operations Group).

314º Grupo de Operações.

Bibliografia recomendada:

Introdução à Estratégia.
André Beaufre.

Leitura recomendada:





segunda-feira, 28 de junho de 2021

Uma millennial considera o novo problema alemão após 30 anos de paz


Por Ulrike Franke, War on the Rocks, 19 de maio de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 24 de junho de 2021.

“Para entender o homem, você precisa saber o que estava acontecendo no mundo quando ele tinha vinte anos.”
- Napoleão Bonaparte.

Enquanto crescia, gostava de ouvir Freundeskreis, uma banda alemã de hip-hop reggae. Uma de suas canções afirma que “a história é algo que foi há muito tempo ou sempre acontece sem você”. Foi no final da década de 1990, eu estava sentada em meu quarto no subúrbio da Alemanha Ocidental - e me lembro claramente de ter pensado em como sentia que isso parecia exatamente certo. Aqui estávamos, todas as batalhas ideológicas históricas travadas, e nada estava acontecendo. Calmo e aconchegante. Um pouco tedioso, na verdade.

É fácil olhar para trás e rir da minha angústia adolescente de perder as coisas. A história certamente não acabou, e eu gostaria de dizer ao meu eu mais jovem que toda a coisa de "viver em tempos interessantes" não é o que parece ser. Mas agora que minha geração está alcançando posições de poder na política externa alemã, vale a pena refletir sobre como nossa educação moldou nosso pensamento.


Thomas Bagger, diplomata alemão e conselheiro do presidente federal, observou certa vez: “O fim da história foi uma ideia americana, mas foi uma realidade alemã”. [Ed. nota: Bagger afirma que foi o autor búlgaro Ivan Krastev quem criou esta frase, embora Krastev credite Bagger.] Ao que eu acrescentaria: “… e um problema millennial”. Porque Bagger está certo: o "fim da história" era, até recentemente, a realidade alemã - tanto no sentido ideológico em que o pai do conceito, o cientista político americano Francis Fukuyama, o quis dizer e no sentido simplificado de que "muito pouco acontece". Isso cria um desafio especial para os millennials alemães - aqueles de nós que cresceram nessa época. Ou seja, acredito que a geração do milênio alemã tem dificuldade em se ajustar ao mundo em que vivemos agora. Lutamos para pensar em termos de interesses, lutamos com o conceito de poder geopolítico e lutamos com o poder militar sendo um elemento do poder geopolítico. Isso é preocupante, visto que muito está dependendo da Alemanha como um ator no sistema internacional.

Um Desafio Alemão

Portão Brandemburgo em Berlim.

Estamos entrando em um período de competição e instabilidade geopolítica. Nesse contexto, muitos olham para a Alemanha. Supõe-se que Berlim ajude a defender a ordem mundial liberal. Deve manter a União Europeia unida e ajudá-la a navegar entre a China em ascensão e os Estados Unidos em declínio. O maior e mais forte país europeu economicamente, cujo bem-estar econômico e social depende do comércio internacional e da estabilidade, está em dificuldades.

Estes são tempos desafiadores, mas não é a primeira vez que um país tem que navegar por um cenário internacional em constante mudança. Na verdade, existe um método para lidar com esses desafios: defina seus interesses e priorize-os, avalie suas habilidades e descubra como garantir que os recursos sejam suficientes para atingir as metas. Encontre maneiras de melhorar as capacidades por meio de alianças, mudanças nas prioridades de financiamento e muito mais. Formule uma estratégia para atingir seus objetivos com esses recursos. Ao fazer isso, adote o mesmo processo para avaliar os oponentes. Quais são seus interesses? O que eles querem fazer? O que eles são capazes de fazer? O que eles podem alcançar?

Não é bem matemática - existem incertezas, informações imperfeitas e o elemento humano. E, certamente, nem todas as decisões políticas de Westbindung (auto-vinculação da Alemanha pós-1949 ao Ocidente) à "Guerra Global ao Terror" foram tomadas exclusivamente com base neste método. Mas deve ser o ponto de partida de todas as decisões de política externa. Esse pensamento estratégico ajuda a orientar o processo de pensamento da política externa.

Infelizmente, o pensamento estratégico não é algo natural para os formuladores de política externa alemães mais jovens. Na verdade, é completamente estranho para nós. Por três décadas, estivemos isolados do mundo cruel da política de poder. O mundo excepcional em que crescemos era o nosso normal. As ideias que se desenvolveram a partir de 1989 foram nossas convicções. Agora que a geopolítica, e especificamente a política de poder geopolítico, está de volta, estamos perdidos.

Soldados alemães ao lado de um francês como guarda de honra da Brigada Franco-Alemã. Os três portam o fuzil FAMAS F1 francês.

Já experimentei isso muitas vezes, mas demorei um pouco para perceber que a geração do milênio alemã, os mais velhos da qual nasceram no início dos anos 1980, pensa sobre política externa de uma maneira peculiar. Quanto mais eu vivia fora da Alemanha, e especificamente em países onde o pensamento geopolítico e estratégico é mais comum, mais eu ficava perplexa com algumas das discussões que meus colegas na Alemanha tinham. Isso foi perfeitamente resumido por um colega milênico alemão: “Geopolítica parece muito com movimento de tropas!” ele declarou. Isso resume em uma declaração várias crenças e convicções que encontro com frequência entre meus colegas alemães: um ceticismo da geopolítica, uma incapacidade de pensar em termos de poder e interesse e uma rejeição das forças militares como instrumento da política. A geração do milênio alemã pensa na política internacional em termos de valores e emoções, e não de interesses. Claro, valores e interesses não são mutuamente exclusivos e muitas vezes estão ligados de uma forma que os torna difíceis de separar. Mas, como alemães, aprendemos a rejeitar completamente a parte dos interesses da equação. Minha geração desenvolveu uma ideia quase romântica de relações internacionais. Vemos as alianças como amizades e desacordos em termos de diferenças de valores. E a geração do milênio alemã luta com os militares - especificamente com a ideia de que as forças armadas são um elemento do poder geopolítico. Esse é um fenômeno já prevalente entre a população alemã (e forte entre o Partido Verde, que pode chegar ao poder na Alemanha após as eleições de setembro). Mas é ainda mais pronunciado entre os milênicos, como mostra uma pesquisa recente: um número maior de milênicos apóia a redução do orçamento de defesa alemão do que qualquer outra faixa etária, enquanto o apoio para um aumento orçamentário é menor entre os milênicos do que entre todos os outros grupos.

Nós estamos intelectualmente - e praticamente - desarmados. Como nunca tivemos que treinar nosso músculo estratégico, ele atrofiou. A política de poder está em conflito com nossa compreensão de como o mundo funciona. Não temos nossos cérebros ligados dessa forma, não falamos a língua - e estamos, portanto, totalmente despreparados para enfrentar oponentes com interesses diferentes que estão cada vez mais vocais ao questionar o que pensávamos ser, em última análise, o único sistema. Como isso aconteceu?

Verifique seu histórico

Manifestantes alemães exigindo a queda do Muro de Berlim em frente ao Portão Brandemburgo.

Todos nós somos moldados pelo mundo em que crescemos. Mas, embora isso seja bem compreendido do ponto de vista socioeconômico, poucos de nós pensamos sobre o que isso significa (geo)politicamente. Somos ensinados a verificar nosso privilégio, mas quantas pessoas verificam sua história?

As gerações são frequentemente definidas por eventos importantes - viver os mesmos momentos e vivenciar a mesma convulsão na mesma idade une uma geração, dá a ela um tema e cria pontos de referência. É claro que eventos importantes nunca são vividos por apenas uma geração, pois em qualquer momento, pessoas pertencentes a algo entre três a cinco gerações estão vivas. Mas os pontos de referência para a aparência da normalidade são estabelecidos nas primeiras décadas de vida.

Diz-se que a “geração do milênio” nasceu entre o início da década de 1980 e o final da década de 1990. Devemos o nosso nome à virada do milênio, que testemunhamos em uma idade jovem. Mas, embora a véspera de Ano Novo de 1999/2000 tenha sido um momento divertido, não foi fundamental. Na verdade, eu diria que minha geração alemã não experimentou um evento fundamental e unificador que nos une.

Em vez disso - e estranhamente - o momento mais importante para minha geração em termos de impacto é um evento que poucos de nós podemos lembrar, porque ainda não nascêramos ou não tínhamos idade suficiente para entender o que estava acontecendo: 1989, a queda do Muro de Berlim. Isso desencadeou o fim da União Soviética e levou ao colapso de todo o cenário geopolítico, abrindo caminho para a unipolaridade global. Para os alemães, 1989 foi a última vez em que foram expostos diretamente à geopolítica por muito tempo. Agora que minha coorte etária está alcançando posições de poder, é hora de verificarmos nossa história e abordarmos nossos pontos cegos.

Soldados alemães-orientais entrando em contato com civis alemães-ocidentais em cima do Muro de Berlim.

Aqui, devo reconhecer um ponto cego meu: falo dos milênicos alemães, mas suspeito que a geração do milênio alemã-oriental vê as coisas de maneira diferente. Ao contrário das experiências alemãs-ocidentais que descrevo abaixo - estabilidade e a profunda convicção de que seu sistema era a forma final - os alemães-orientais da minha geração nasceram em um mundo que estava em processo de desintegração. A República Democrática Alemã foi dissolvida em 1990, o que levou a uma reestruturação completa da economia da Alemanha Oriental e à introdução de uma nova moeda. A Alemanha Oriental foi atingida por uma crise econômica, muitas empresas entraram em colapso e o desemprego aumentou. O partido político - e a ideologia - que dominou por décadas desapareceu. Crescer durante esse processo certamente veio com suas próprias lições, das quais eu, entretanto, não posso testemunhar. Conseqüentemente, embora eu acredite que minhas experiências e as lições tiradas delas sejam, até certo ponto, generalizáveis para o mundo ocidental e outros europeus, elas provavelmente descrevem melhor a demografia da classe média educada na Alemanha Ocidental e eurofílica. No entanto, embora isso possa não ser representativo da totalidade da minha geração, para o melhor ou para o pior, descreve muitos milênicos que atualmente estão subindo na hierarquia da liderança política.

Cidadão alemão-ocidental arrebentando um pedaço do Muro à marretadas.

Há duas razões pelas quais a geração do milênio alemã está despreparada para um mundo que valoriza o pensamento estratégico. Primeiro, crescemos em um período de excepcional estabilidade geopolítica. É o que expressa a canção do Freundeskreis: Nunca nos sentimos parte de uma história sempre turbulenta, mas sim, tivemos a impressão de estar fora dela, nascidos após o fato. Tentar entender a política parecia tão importante quanto tentar aprender sobre geografia, geometria ou geologia - todos campos razoavelmente interessantes, mas sem um impacto imediato em nossas vidas.

Em segundo lugar, em nenhum lugar do mundo a ideia do “fim da história” foi internalizada tanto quanto na Alemanha. Os alemães que vivenciaram 1989 abraçaram com entusiasmo a ideia de que a competição ideológica era uma coisa do passado - e a geração do milênio alemã simplesmente internalizou isso como a forma como o mundo funcionava. A solução para a discussão política foi encontrada por aqueles que vieram antes de nós, e o melhor sistema estava em vigor - poderíamos endireitar algumas arestas na frente social, mas, de outra forma, poderíamos passar para outras coisas.

Um normal silencioso

Cerimônia no quartel-general da OTAN em Bruxelas.

Qualquer alemão jovem demais para ter uma lembrança do fim da União Soviética e da reunificação alemã cresceu em um mundo de estabilidade e paz excepcionais. Militarmente, éramos protegidos pelos Estados Unidos e pela OTAN e, portanto, nunca tivemos que pensar nas forças militares. Isso, é claro, foi ótimo para minha geração. Mas teve um impacto importante em como vemos o mundo e no que consideramos normal.

A Alemanha sempre esteve no centro da política europeia e mundial. A história alemã tem sido uma montanha-russa de mudanças de fronteiras e formas políticas de organização, lutas ideológicas, guerras e conflitos. Mas depois de 1989 e da reunificação alemã em 1990, as coisas se acalmaram consideravelmente. Para a Alemanha, até mesmo o entendimento simplificado do famoso conceito de "fim da história" de Francis Fukuyama se aplica: desde 1989, muito pouco aconteceu na Alemanha.

Companhia alemã de reconhecimento em Mazar-e-Sharif, Afeganistão, 25 de abril de 2007.

É claro que o mundo não ficou completamente parado nos últimos 30 anos. Mas de 11 de setembro à Guerra Global contra o Terror e à crise financeira, esses eventos não aconteceram conosco. O Bundeswehr entrou em guerra no Afeganistão, mas isso não afetou a sociedade em casa. A invasão do Iraque em 2003 fez com que alguns milênicos se manifestassem contra o imperialismo americano, mas fora isso, estava muito distante de nossa realidade. Os conflitos do mundo pareciam um testemunho de que outros ainda não haviam entendido que as lutas ideológicas eram fúteis. A crise financeira talvez tenha chegado mais perto de ser um evento definidor para a geração do milênio alemã, mas como a Alemanha conseguiu superá-la tão bem, isso apenas reforçou a sensação de que a Alemanha tinha um sistema melhor do que a maioria.

Além disso, no plano doméstico, a Alemanha experimentou uma continuidade extraordinária nos últimos 30 anos. Tenho 34 anos e, durante minha vida, conheci três chanceleres alemães. Lembro-me até de ficar um tanto perplexa com o fim da chancelaria de Helmut Kohl: ele havia chegado ao poder cinco anos antes de eu nascer e foi sucedido por Gerhard Schröder quando eu tinha 11 anos. Schröder esteve no poder por sete anos. E nos últimos 16 anos, Angela Merkel esteve presente. Para comparar, um americano da mesma idade já passou por sete presidências. Um britânico da minha idade conheceu sete primeiros-ministros e um italiano quase 20. Ainda mais impressionante, durante todos, exceto sete anos de minha vida, a Alemanha foi governada por um governo liderado pelo mesmo partido, a união da União Democrática Cristã da Alemanha e a União Social Cristã na Baviera.

Essa continuidade política internacional e doméstica fez com que a política não nos proporcionasse um momento de definição. Não houve protestos de 1968  ao redor do qual pudéssemos nos reunir, nenhum celebração de 1989 em um muro caído, nenhuma guerra que nos deixou traumatizados (graças a Deus!), e nenhuma revolução, revolta política ou mudança geopolítica. O melhor que minha geração pode apresentar como momento decisivo é a Copa do Mundo de 2006, que a Alemanha sediou. A primeira vez que a geopolítica nos visitou em casa foi em 2015 na forma da crise de refugiados. Mas em 2015, mesmo os mais jovens da geração do milênio tinham 20 anos, e a maioria tinha 25 anos ou mais. Isso era tarde demais (e também não impactante o suficiente) para moldar fundamentalmente nossa visão do mundo. O mesmo é verdade para a atual pandemia.

Manifestação contra a política de acolhimento de refugiados de Merkel.

Mais importante, internalizamos a continuidade como norma. Em um nível emocional, nunca entendemos realmente que as coisas podem mudar e muito rapidamente. Em 1989, de repente, o muro se foi e todo um regime, uma forma de vida, simplesmente desapareceu. O terreno geopolítico tremeu. Isso deve ter sido emocionante e desorientador. Quem viveu aprendeu que a estabilidade não é garantida. Minha geração não experimentou tal terremoto político. O solo está estável agora, então deve estar sempre estável - como poderia ser de outra forma? E embora possamos saber em um nível intelectual que a estabilidade não é garantida, não é a mesma coisa. Uma coisa é ser ensinado que existem terremotos e outra é experimentá-lo. Eu me preocupo que não tenhamos a capacidade de imaginar um terremoto, muito menos nos prepararmos para ele.

Claro, o ditado “que você viva em tempos interessantes” é considerado uma maldição, não uma bênção. Tempos cheios de acontecimentos são interessantes apenas em retrospecto, enquanto vivê-los é inquietante, enfraquecedor e freqüentemente perigoso. Portanto: não estou reclamando. Mas viver em tempos de silêncio traz seus próprios desafios - especialmente quando as circunstâncias mudam.

Você simplesmente adotou o fim da história. Nós nascemos nele, fomos moldados por ele


A ideia de "fim da história" de Francis Fukuyama é frequentemente mal interpretada em um sentido simplista de que "não haverá mais eventos importantes". Mas embora até mesmo essa interpretação simplista se tornasse realidade na Alemanha, Fukuyama estava falando sobre ideias, não eventos. Ele escreveu: “O que podemos estar testemunhando não é apenas o fim da Guerra Fria, ou a passagem de um determinado período da história do pós-guerra, mas o fim da história como tal: isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e da universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano.” Ele argumentou que a democracia liberal ocidental havia se tornado o único jogo na cidade. Descobriu-se que os alemães estavam mais do que dispostos a acreditar nele.

Três anos atrás, Thomas Bagger escreveu um excelente ensaio sobre o impacto de 1989 na mentalidade alemã. Ele mostrou que os alemães abraçaram a ideia do fim da história com mais fervor do que qualquer um porque "no final de um século marcado por ter estado do lado errado da história duas vezes, a Alemanha finalmente se viu do lado certo".

Adolf Hitler, o Führer, passa tropas em revista.

O mundo, assim explicado pelos proponentes do fim da história, convergiria para um sistema que desconsiderava o poder (militar) e favorecia os processos judiciais. Os países lidariam com desafios transnacionais em organizações internacionais. O nacionalismo e as ideologias perderiam seu apelo. Após o rompimento das comportas que 1989 representou, esses desenvolvimentos pareciam inevitáveis. Tudo isso atraiu muito os alemães. A primazia da lei sobre o poder era um ótimo conceito para um país que sentia que não podia ser confiado com poder. A ideia liberal se encaixava perfeitamente na Alemanha, incluindo a perda de importância da personalidade na política. O arco da história estava se curvando em direção à democracia liberal, de modo que os indivíduos eram muito menos importantes, necessários não como “Führer” - um termo que, com razão, perdera toda a legitimidade em alemão -, mas como administradores supervisionando um desenvolvimento inevitável. Isso pode explicar por que os políticos alemães tendem a ser tão, bem, tediosos. Uma das notícias mais interessantes sobre Angela Merkel é como ela cozinha sua sopa de batata. Ser um político chato na Alemanha não é um bug, é uma característica.

"It's not a bug, it's a feature".
A frase comumente usada pela produtora de games Ubisoft quando precisa explicar os bugs constantes em seus jogos, algo que se tornou uma marca registrada da empresa, 
afirmava serem características. De tão descarada, a resposta tornou-se um meme.

Bagger conclui que essa experiência tornou difícil para os alemães de sua geração, a qual adotou o fim da história com entusiasmo, se ajustarem à nova situação geopolítica atual. Isso é verdade, mas ele não considera que haja uma geração ainda mais impactada por isso do que aquelas que o vivenciaram: a geração que não viveu o momento, mas para a qual as convicções que se seguiram se tornaram a norma. As pessoas podem zombar da ingenuidade do otimismo pós-1989 hoje. Mas como podemos abandoná-lo se nunca conhecemos outra coisa? Você simplesmente adotou o espírito de 1989. Nós nascemos e fomos moldados por ele.

Por muito tempo, nossas convicções pareciam amparadas pela realidade: estávamos indo bem e cada vez mais pessoas queriam ser como nós. Ao longo da década de 1990 - nossa infância - na Europa Ocidental, havia um sentimento de progresso. A União Europeia cresceu a um ritmo rápido à medida que mais e mais países queriam aderir. A expectativa de uma grande convergência, bem como a ideia de que o mundo inteiro caminharia em direção à democracia e à economia de mercado e que, com o tempo, todos se tornariam como nós - essas ideias passaram a fazer parte do nosso DNA. Todos, acreditávamos, acabariam por seguir o exemplo da Alemanha. É importante ressaltar que, para nós, isso não era uma ideologia - tínhamos mudado de ideologias e ismos e chegamos à maneira como as coisas deveriam ser. As lutas ideológicas eram algo para os livros de história, e olhávamos com leve pena para aqueles que foram pegos em tais lutas no passado. Havíamos mudado para um plano superior de existência.

Tropas alemãs em Cabul.

Se você, lendo isto, é grego ou polonês, é provável que ache esta descrição do pensamento alemão não apenas arrogante, mas também incorreta. A Alemanha, nos últimos anos, não adotou, de fato, políticas que eram de seu interesse e não tão esclarecidas quanto minha descrição afirma? E o Nordstream II? E quanto à política de austeridade? E a Alemanha não se beneficiou mais do que quase ninguém com a integração europeia e o euro? Não é toda essa conversa sobre valores e amizade uma cortina de fumaça para a boa e velha política de interesses?

Pessoalmente, não acho que seja. A União Europeia é boa para a Alemanha, mas não teria chegado onde está agora se a Alemanha não estivesse disposta a fazer sacrifícios que mais países interessados em sua posição não teriam feito, mais notavelmente renunciando ao marco alemão pelo Euro. O Nordstream II, em minha opinião, é mais do que tudo um exemplo de alemães que não pensam estrategicamente, mas acreditam que fomos além da política de poder para um mundo onde a economia é mais importante e o comércio reúne todos. Mas mesmo que você discorde, para a geração do milênio alemã, o que importa é a narrativa. Os milênicos só estão chegando ao poder agora. Crescemos com a narrativa de que a política de poder é ruim. E é na narrativa que nós, alemães, entendemos isso melhor do que ninguém.

Uma superioridade moral perigosa

Soldado russo na invasão da Criméia, 2014.

Se isso soa arrogante para você, você não está sozinho. Há um sentimento de superioridade moral que vem com a rejeição da política de poder, da realpolitik e dos interesses nacionais. Somos tão bons em chegar a um acordo com a história e tão maduros para não sermos tão nacionalistas, para não sermos seduzidos por demagogos. Sim, erramos muito no passado, mas ninguém aprendeu as lições da verdade universal melhor do que nós. Geopolítica, política de interesses e realpolitik, portanto, são coisas deixadas para outros menos esclarecidos.

Esse senso de superioridade moral não apenas é pouco atraente e pode alienar aliados que não gostam de ser tratados como primos não-iluminados, mas também é perigoso porque não é crítico. Acreditamos nos ditados de 1989 sem perceber que eram apenas uma leitura do futuro. Em nossas mentes, a convergência era inevitável - o mittelschicht (classe média) da China pediria por democracia uma vez que tivesse poder suficiente e o nacionalismo da Rússia diminuiria. É em parte por causa dessas crenças que estávamos totalmente despreparados para o mundo mudado que veio à luz mais recentemente. Não apenas não conseguimos entender o que estava acontecendo, mas também tivemos problemas para defender nosso sistema contra ataques externos e internos. Se você simplesmente sabe que uma Europa unida é a resposta, que a cooperação internacional é necessária, que o império da lei é melhor do que a política de poder e que tudo isso está certo, pode ser surpreendentemente difícil explicar isso para alguém que questiona esta premissa.

Uma coluna americana de carros M60A3 se move ao longo de uma rua na Alemanha Ocidental durante o Exercício REFORGER 85, 1985.

A superioridade moral também ignora que, embora possamos ter ido além dessas - em nossa opinião - ideias obsoletas como o poder militar, outro alguém - a OTAN e os Estados Unidos - estava segurando um guarda-chuva militar sobre nós, o que nos permitiu o luxo de descontar o poderio militar.

E o fim da história tirou nosso futuro. Afinal, sabíamos onde o processo terminaria. A política tornou-se tediosa - um ato de administração, em vez de competição ideológica. Isso também pode ajudar a explicar por que todos os partidos alemães inevitavelmente reivindicam o "centro" político. Parece não haver necessidade de pensar estrategicamente sobre o futuro.

Conclusão

Charlize Theron como a agente Lorraine Broughton no filme "Atômica" (Atomic Blonde, 2017), ambientado na Berlim prestes a se reunificar.

Não estou reclamando que minha geração teve uma ótima infância - estável, segura e cheia de convicções de que o futuro seria ainda melhor. Mas crescemos em um mundo excepcional que considerávamos normal. Agora que a política internacional está mudando, estamos perdidos.

Eu poderia, é claro, estar errada. Uma vez, alguém me chamou de "o jovem mais velho" que conheciam, o que considerei um elogio, embora provavelmente não fosse esta a intenção. Então, talvez seja eu que não estou vendo a luz e não entendendo que o mundo realmente mudou. Mas me preocupa quando, em jogos de guerra (que na Alemanha são chamados de simulações) com outros milênicos, ninguém tem a abordagem intuitiva de avaliar uma situação olhando para os próprios interesses e capacidades dos outros e formular uma estratégia que corresponda a ambos. Me preocupa que parecemos tão ineptos no pensamento estratégico em um momento em que o sistema internacional é frágil e alternativas estão sendo levantadas por atores que não têm nossos melhores interesses no coração. Tenho dúvidas de que possamos contar com a próxima geração de pensadores e formuladores de política externa alemães. Temos uma geração de alemães que consideram as coisas como certas e têm dificuldade para responder aos desafios. Secretamente, minha geração espera que tudo volte ao normal em breve e que possamos seguir em frente com essa política de poder não esclarecida para enfrentar desafios reais como a mudança climática. Mas é improvável que o mundo nos faça esse favor. Para enfrentar esse desafio, minha geração precisará treinar seu músculo estratégico - e rápido.

Sobre a autora:

Ulrike Franke, Ph.D., é pesquisadora sênior de política do Conselho Europeu de Relações Exteriores e milênica alemã. Ela trabalha com política externa e de defesa alemã e europeia, especialmente o impacto das novas tecnologias na guerra. Ela hospeda o podcast Sicherheitshalber, um podcast em alemão sobre política de segurança e defesa.

Bibliografia recomendada:


A Responsabilidade de Defender:
Repensando a cultura estratégia da Alemanha.

Leitura recomendada:


GALERIA: Panzergrenadiers modernos26 de junho de 2021.