sexta-feira, 1 de maio de 2020

COMENTÁRIO: Confissões de um estrategista fracassado - Parte 1


Pelo Coronel Jobie Turner, War Room, 5 de novembro de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 1º de maio de 2020.

Esta é uma estratégia para a elaboração de um orçamento? Por lutar em um ambiente futuro? Ou foi projetada para fornecer diretrizes e políticas internas?

No Pentágono, todos se imaginam estrategistas. Todo graduado em educação militar profissional, todo contratado com um novo sistema de armas, todo think tank* ou especialista de consultoria: todos acham que, se tivessem a chance, poderiam impor a ordem com a "grande idéia" certa. Enquanto isso, na esquina da praça de alimentação, os "programadores” sorriem, contentes em sua opinião de que os orçamentos que constróem são a verdadeira estratégia. A suposição compartilhada comum a todos é que as estratégias escritas têm o potencial de manter, alterar ou até revolucionar uma força ou as forças armadas como um todo.

*Nota do Tradutor: Um "think tank" é um corpo de especialistas suprindo conselhos e idéias sobre problemas específicos, como política ou economia, assim como estratégia.


De 2016 a 2018, trabalhei na divisão de estratégia de longo prazo no estado-maior do Quartel-General da Força Aérea. Assim, tive a oportunidade de testar minhas próprias pretensões estratégicas como parte da equipe que tentava elaborar um documento estratégico de longo alcance para conduzir as decisões orçamentárias da força.

A estratégia que produzimos nunca chegou à publicação oficial. Apesar de um consenso geral entre oficiais, funcionários públicos e contratados do Estado-Maior Aéreo, seria valioso ter uma estratégia para organizar, treinar e equipar a Força Aérea do futuro. Além disso, havia um excelente pensamento estratégico incluído no documento e apoio de toda a cadeia de comando.

Na orgulhosa tradição do relatório de vôo, este é o primeiro de uma série de quatro artigos tentando tirar as lições aprendidas dessa experiência e passá-las para a profissão mais ampla das armas. Enquanto minha experiência foi no Estado-Maior Aéreo, essas idéias se aplicam amplamente a qualquer força ou tentativa conjunta de produzir um documento estratégico sancionado pela liderança e projetado para liderar a organização, o treinamento e o equipamento da força.

Um problema de definição e interesses

Como afirma Steven Wright, "o estrategista deve pensar no contexto e na definição de problemas". Em outras palavras, o estrategista precisa responder: "Por quê?" Para uma estratégia da força, isso exige que a equipe de redação se depare com duas questões fundamentais: qual das muitas definições possíveis de estratégia estava no centro do projeto e qual é o objetivo do documento estratégico? A estratégia é a “série de conveniências” do marechal de campo prussiano Helmuth von Moltke, a “vantagem contínua" do estrategista moderno do Everett Dolman, “o uso do engajamento para os propósitos da guerra” do teórico Carl von Clausewitzou, ou o catecismo mais banal da educação militar profissional “alinhar fins, caminhos e meios”? E em relação ao que a estratégia pretende fazer. Esta é uma estratégia para a elaboração de um orçamento? Por lutar em um ambiente futuro? Ou foi projetado para fornecer diretrizes e políticas internas? 

Para complicar o processo de definição, existem muitos interesses dentro da grande organização de um serviço militar. Com o potencial de uma estratégia para manter, alterar ou revolucionar o curso, haverá intenso debate, discussão e desacordo sobre sua criação. Perguntas sobre quem, onde, o que, quando e por que (who, what, where, when, and why, 5Ws) do documento estratégico virão de todos os cantos para incluir outras forças e tribos internas (por exemplo, forças aéreas de combate; forças aéreas de mobilidade; inteligência, vigilância e reconhecimento). Com a competição de alto risco, o processo de desenvolvimento estratégico pode se transformar em uma metáfora para o que, em Essence of Decision (A Essência da Decisão, 1999), Graham Allison e Philip Zelikow chamam de comportamento do Modelo III; ou, em termos simplistas, "onde você está depende de onde você está sentado". Nesse tipo de comportamento, as organizações baseiam suas escolhas em interesses internos, e não em objetivos estratégicos.

A Essência da Decisão: Explicando a Crise dos Mísseis Cubanos, 1999.

Tomados em conjunto, esses problemas de definição e interesses internos do Estado-Maior Aéreo dificultaram a criação da estratégia. No nosso caso, o documento estratégico tornou-se uma imagem espelhada das opiniões daqueles a quem informamos. Por exemplo, oficiais e civis que lidam com o orçamento sempre circulavam em torno de uma discussão sobre como o documento poderia moldar futuras despesas de dinheiro. Esse processo se repetiu com cada organização e resultou em um grande tempo e comprometimento intelectual gasto em definição e educação, em vez de idéias e conceitos. Além disso, cada organização tinha sua própria visão do que deveria estar no documento e como deveria ser estruturado, o que às vezes fazia com que parecesse um prato preparado por cozinheiros demais.

Em retrospecto, uma abordagem melhor seria dedicar mais tempo a quem, o que, onde, quando e por quê. Como o documento enfrentou essas mesmas perguntas a partir de seu rascunho inicial, deveria ter sido uma indicação de que não possuía uma base sólida. Em vez de mergulhar imediatamente na redação do documento, definir primeiro os 5Ws abriria mais caminhos para falar sobre as idéias e conceitos e também resultaria em mais adesão do Estado-Maior Aéreo. A redação do documento deveria ter sido seguida posteriormente. Parece simples, mas Simon Sinek está certo: comece com o porquê.


"Portanto, tanto quanto um secretário, chefe ou estado-maior de força gostaria de traçar seu próprio "Por quê", muito do que eles devem fazer foi definido por outros."

Contra a estratégia

Além dos problemas de definição, uma estratégia de força também precisa lidar com as forças externas da política e do orçamento. Os requisitos políticos e orçamentários definem, direcionam e às vezes restringem o que uma força pode fazer.

Embora seja difícil imaginar suas responsabilidades e a amplitude de controle, nos níveis políticos mais altos do governo dos Estados Unidos, os secretários das forças e seus chefes são baixos na hierarquia. O presidente, o secretário, o vice e os subsecretários de defesa, o presidente e (em menor grau) o vice-presidente do Estado-Maior Conjunto (Joint Chiefs of Staff, JCS), e os comandantes combatentes, todos têm maior pedigree e cachê político. A Estratégia de Segurança Nacional do Presidente, a Estratégia de Defesa Nacional do Secretário de Defesa, a Estratégia Militar Nacional do Presidente do Estado-Maior Conjunto, juntamente com inúmeros documentos de orientação e análises do Gabinete do Secretário de Defesa e do Estado-Maior Conjunto, fornecem grande parte das informações gerais descrição do ambiente internacional e do local dos departamentos dentro dele. Com essa orientação abrangente, o "porquê" das forças já está definido.


Adicionado às restrições políticas, qualquer estratégia projetada para impulsionar o orçamento terá que competir com os locais por toda a ação do estado-maior - o Memorando Objetivo do Programa (Program Objective MemorandumPOM). Os atores externos podem ter uma influência ainda maior através dos orçamentos do que no campo da política. O Congresso, o Gabinete de Administração e Orçamento, e o Gabinete do Secretário de Defesa não apenas definem o orçamento geral da “linha de frente” para as forças, mas também fornecem frequentemente detalhes bastante específicos sobre como o dinheiro apropriado deve (ou não) ser gasto. O perigo para qualquer documento estratégico é que ele possa traçar um caminho contrário a essas restrições orçamentárias. Por exemplo, um líder do congresso pode ver a estratégia como um desafio para um determinado sistema de armas que fornece emprego em seu distrito.

Assim, tanto quanto um secretário, chefe ou estado-maior de força gostaria de traçar seu próprio "Por quê", muito do que eles devem fazer foi definido por outros. No nosso caso, a criação da nova Estratégia Nacional de Defesa sob o Secretário Mattis e as implicações para o orçamento futuro do Departamento de Defesa restringiram bastante o processo interno de elaboração de estratégias para a Força Aérea. Como todo o Pentágono teve que lidar com as implicações de conflitos de grandes potências e uma mudança de prioridades, o mesmo aconteceu com a Força Aérea.

Abandonando a Estratégia: Precedente Histórico

Apesar do fascínio por uma força de dar pelo menos peso retórico à sua declaração de princípios organizacionais, chamando-a de estratégia, muitos esforços bem-sucedidos de reforma no Departamento de Defesa nunca usaram o termo. Por exemplo, o Coronel John Boyd, que pensou ampla e profundamente em guerras futuras, superou um processo de projeto e aquisição estrondoso para iniciar o desenvolvimento do ubíquo e econômico avião de caça F-16. Ele nunca escreveu uma estratégia ou mesmo um conjunto formal de regras até depois de seu tempo no Pentágono. Em vez disso, Boyd se baseou na defesa dentro do departamento e em uma abordagem mais teórica da guerra, sintetizada pelo ciclo de observar, orientar, decidir e agir (observe, orient, decide and actOODA). O ciclo OODA permitiu que seus superiores, colegas e aqueles que o seguiam incorporassem conceitos emergentes, novas tecnologias e novas idéias. Um único coronel com pensamentos e influência profundos teve muito mais impacto na futura força conjunta do que qualquer documento poderia ter.

Coronel Jonh Boyd e o Ciclo OODA, ou Ciclo de Boyd.

Até certo ponto, o sucesso de Boyd provou que o indivíduo, formalmente designado como estrategista ou não, é importante e as dificuldades do ambiente político apresentadas aqui podem ser superadas. Olhando para a minha própria experiência no estado-maior, não publicar um documento estratégico foi a melhor decisão para a força. Havia muitos interesses concorrentes de dentro e muitos requisitos de fora, o que sufocava o pensamento e perdia tempo. O que leva à segunda pergunta desta série: se um documento estratégico não funciona, o que funciona?

O Coronel Jobie Turner, Ph.D., é um colaborador do WAR ROOM e comandante do 314º Grupo de Operações (314th Operations Group).

314º Grupo de Operações.

Bibliografia recomendada:

Introdução à Estratégia.
André Beaufre.

Leitura recomendada:






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