terça-feira, 29 de março de 2022

FOTO: Mulheres cubanas em Angola

Tenente Milagros Katrina Soto (centro) e outras integrantes do Regimento Feminino de Artilharia Anti-Aérea do exército cubano em Angola.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 29 de março de 2022.

As Forças Armadas Revolucionárias cubanas (Fuerzas Armadas Revolucionarias, FAR) foram moldadas seguindo o sistema soviético, com a criação de formações em estilo soviético. Uma das bases ideológicas do socialismo era o engajamento das mulheres na revolução. As publicações socialistas sempre pavonearam a participação feminina como uma bandeira, a própria Revolução Russa iniciou com uma greve de operárias. Os vietnamitas sempre enfatizaram o serviço das mulheres no esforço de guerra, gerando uma disputa com os franceses no campo da propaganda; o General Giap dedica um capítulo inteiro para o engajamento feminino em seu livro sobre a guerra subversiva, e faz o mesmo o francês Bernard Fall no seu relato da Guerra da Indochina. O mesmo ocorreu na Argélia, apesar das liberdades e narrativas pró-feministas recuarem após a guerra de volta aos padrões muçulmanos. Nada mais natural que as mulheres cubanas tomassem parte na cruzada internacionalista em Angola.

Durante a Guerra Fria, Havana se dedicou a "exportador a revolução", atuando da América do Sul ao Vietnã. Esta função expedicionária era chamada de "internacionalização", ou seja, a internacionalização da revolução socialista global. Nos anos 1980, o desdobramento cubano em Angola atingiu um pico de 50 mil militares e 8 mil civis auxiliando o governo comunista angolano do MPLA (ao lado dos conselheiros soviéticos); intervenção chamada Operação Carlota.

Na década de 80, os cubanos mantiveram missões militares na Argélia, Gana, Guiné-Bissau (ex-Guiné Portuguesa), Somália, Líbia, Tanzânia, Zâmbia, Síria e Afeganistão; além de contingentes militares consideráveis em Angola, conforme já citado, Congo (500 soldados), Etiópia (4 mil soldados, 1978-1984), Moçambique (600 soldados), Iêmen do Sul (500 soldados) e Nicarágua (500 soldados e 3 mil funcionários civis). Os cubanos também enviaram militares para a Síria em 1973, durante a Guerra do Yom Kippur, e uma equipe de 30 oficiais e engenheiros, munidos de 10 escavadeiras para fortificar a linha Ho Chi Minh no Vietnã e Camboja nos anos 1970. Conselheiros cubanos também ordenaram a tomada de Kolwezi pelos guerrilheiros Tigres em 1978. 

Organização das FAR

As FAR eram consideráveis, sendo a maior força latino-americana depois do Brasil. Isso se deveu à doutrina soviética de forças militares em massa divididas em funções de defesa, expedicionária e de controle interno; essa militarização maciça era alienígena à cultura cubana pré-revolução, e específica do novo sistema. Em 1990, o Exército cubano era assim composto:
  • 3 divisões blindadas,
  • 3 divisões mecanizadas,
  • 13 divisões de infantaria.
Exército Ocidental formava um corpo nas províncias de Pinar del Rio e Havana, o Exército Central formava um outro corpo em Matanzas e Las Villas e o Exército Oriental formava dois corpos em Camagüey e Oriente; a Isla de la Juventud (ex-Isla de Pinos) contava com uma divisão de infantaria.

Cada corpo continha 3 divisões, cada uma com três regimentos (2x batalhões), regimento de artilharia, batalhão de reconhecimento e unidades de serviço. Cada quartel-general do exército possuía uma divisão blindada e uma divisão mecanizada.

Divisão Blindada
  • 3 regimentos de tanques,
  • 1 regimento mecanizado,
  • 1 regimento de artilharia.
Divisão Mecanizada
  • 3 regimentos mecanizados (2x batalhões),
  • 1 regimento de tanques (3x batalhões),
  • 1 regimento de artilharia,
  • 1 regimento de reconhecimento mecanizado.
O exército ainda possuía robusta defesa anti-aérea com 26 regimentos AAe e brigadas de mísseis terra-ar, 8 regimentos de infantaria independentes, uma Brigada de Forças Especiais (2x batalhões) e uma Brigada Paraquedista. A Marinha tinha 12 mil homens, com um batalhão de fuzileiros navais com uniformes pretos copiados dos soviéticos; uma Força Aérea de 18.500 homens; tropas de segurança interna (estilo KGB) com 17 mil homens; 3.500 guardas de fronteira; e, em reserva, 1.200.000 homens e mulheres na Milícia Revolucionária, 100 mil na Juventude Trabalhista e 50 mil na Defesa Civil.

"O longo período de serviço militar (3 anos); forças armadas bem treinadas e eficientes; extensa experiência de combate na África e na Ásia; e uma força de reserva vigorosa, fazem de Cuba a maior potência militar do Caribe depois dos Estados Unidos."
- Caballero Jurado & Nigel Thomas, Central American Wars 1959-89, 1990, pg. 7.

Bibliografia recomendada:

Bush Wars: Africa 1960-2010.

Batalha Histórica de Quifangondo.

Operación Carlota: Pasajes de una epopeya.

Leitura recomendada:

FOTO: Vespa cubana, 13 de janeiro de 2022.

FOTO: Guardando o Campo de Batalha, 8 de setembro de 2021.

FOTO: Pôster ucraniano com as regras de manuseio de armas

Pôster ucraniano explicando manuseio de armamento com atrizes "à vontade".

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 29 de março de 2022.

Com o objetivo de acelerar a curva de aprendizado dos voluntários ucranianos, um pôster com atrizes pornográficas segurando armas em várias poses foi distribuído pelo exército ucraniano.

"Regras simples
    1. Sempre trate uma arma como se ela estivesse carregada.
    2. Nunca aponte uma arma para onde você não vai atirar.
    3. Não coloque o dedo no gatilho até que esteja pronto para atirar.
    4. Controle o espaço na frente e atrás do alvo.
    5. Certifique-se de atirar no inimigo, ou atirar apenas sob as ordens do comandante.
Regras para abrir fogo."

O pôster mirando "homens de cultura" é uma ideia criativa para captar a atenção dos soldados. É sempre interessante como andam de mãos dadas os homens das armas e estas mulheres "do lar", lembrando do artigo da revista Soldado da Fortuna na Playboy e da vez que uma soldado da Força Aérea americana foi playmate em três Playboys diferentes. Um outro exemplo famoso é calendário da Hot Shots, onde as modelos fazem ensaios com temática militar.

Esta não é a primeira vez que manuais são ilustrados de forma parecida para garantir que sejam lidos pela tropa. Na Segunda Guerra Mundial, o Exército alemão emitiu manuais com desenhos de pin-ups seminuas para tropas da Panzerwaffe em meio às instruções de cuidado com os blindados.

Lições sobre cuidados com o motor do tanque Tigre alemão.
Uma pin-up se refresca em um banho de ducha.

Ainda falando sobre pin-ups, os ucranianos também capitanearam um reavivamento das pin-ups militares após a invasão da Criméia em 2014 e início da "guerra híbrida" contra Moscou.


Homens de cultura, estes ucranianos...

Leitura recomendada:

segunda-feira, 28 de março de 2022

A visão de um ex-fuzileiro naval americano na Ucrânia

Um soldado ucraniano diante de uma canhão de artilharia autopropulsada russa destruída após uma batalha na cidade de Trostyanets, na região de Sumy.

Por Elliot Ackerman, The Times, 27 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 28 de março de 2022.

Tecnologia e táticas só podem levá-lo até certo ponto na batalha. Os combatentes ucranianos obtêm sua maior vantagem da motivação superior, escreve Elliot Ackerman.

Algumas noites atrás, em Lviv, entrei no elevador do meu hotel depois do jantar, quando um homem vestido como um mochileiro enfiou a mão na porta que se fechava. Ele perguntou se eu era americano e como eu disse que era, notei sua lã. Tinha uma águia, um globo e uma âncora em relevo no peito esquerdo. "Você é um fuzileiro naval?" Perguntei. Ele disse que sim, e eu disse a ele que também servira nos fuzileiros navais.

Ele se apresentou (ele pediu que eu não usasse o nome dele, então vou chamá-lo de Jed) e perguntou se eu sabia onde ele poderia tomar uma xícara de chá. Ele tinha, depois de uma viagem de dez horas, acabado de chegar de Kiev.

Enquanto Jed estava sentado à minha frente no restaurante vazio do hotel, ele explicou que desde que chegou à Ucrânia no final de fevereiro, ele estava lutando como voluntário junto com uma dúzia de outros estrangeiros fora de Kiev. As últimas três semanas o marcaram. Quando perguntei como ele estava, ele disse que o combate foi mais intenso do que qualquer coisa que ele presenciou no Afeganistão. Ele começou a discutir os aspectos técnicos do que tinha visto, explicando em detalhes granulares como os militares ucranianos em inferioridade numérica e de armamentos haviam lutado contra os russos até um impasse.

Trincheiras na região de Donetsk têm sido usadas para afastar os rebeldes.

Primeiro, ele falou sobre armas anti-blindagem, particularmente a Javelin de fabricação americana e a NLAW de fabricação britânica. O último mês de combates havia demonstrado que o equilíbrio da letalidade havia se deslocado dos blindados para as armas anti-blindagem. Mesmo os sistemas de blindagem mais avançados, como o tanque de batalha principal russo da série T-90, mostraram-se vulneráveis, com suas couraças carbonizadas espalhadas pelas estradas ucranianas.

Quando mencionei a Jed que havia lutado em Fallujah em 2004, ele disse que as táticas que o Corpo de Fuzileiros Navais usaram para tomar aquela cidade nunca funcionariam hoje na Ucrânia. Em Fallujah, nossa infantaria trabalhou em estreita coordenação com nosso principal tanque, o M1A2 Abrams. Em várias ocasiões, observei nossos tanques receberem golpes diretos de granadas propelidas por foguetes (tipicamente RPG-7 de geração mais antiga) sem sequer gaguejar em seu progresso. Hoje, um ucraniano defendendo Kiev ou qualquer outra cidade, armado com um Javelin ou um NLAW, destruiria um tanque similarmente capaz.

Se o dispendioso tanque de batalha principal é a plataforma arquetípica de um exército (como é o caso da Rússia e da OTAN), então a plataforma arquetípica de uma marinha (particularmente a marinha americana) é o navio capital ultra-custo, como um porta-aviões. Assim como as modernas armas antitanque mudaram a maré para o exército ucraniano em menor número, a última geração de mísseis antinavio (tanto em terra quanto no mar) poderia no futuro – digamos, em um lugar como o Mar da China Meridional ou no Estreito de Ormuz - vire a maré para uma marinha aparentemente superada. Desde 24 de fevereiro, os militares ucranianos demonstraram de forma convincente a superioridade de um método de guerra centrado em antiplataforma. Ou, como disse Jed: “No Afeganistão, eu costumava sentir inveja daqueles tanquistas, abotoados em toda aquela blindagem. Não mais."

Isso levou Jed ao segundo assunto que ele queria discutir: táticas e doutrina russas. Ele disse que passou grande parte das últimas semanas nas trincheiras a noroeste de Kiev. "Os russos não têm imaginação", disse ele. “Eles bombardeiam nossas posições, atacam em grandes formações e, quando seus ataques falham, fazem tudo de novo. Enquanto isso, os ucranianos fariam incursões nas linhas russas em pequenos grupos noite após noite, desgastando-os.” A observação de Jed ecoou uma conversa que tive no dia anterior com Andriy Zagorodnyuk. Após a invasão russa do Donbas em 2014, Zagorodnyuk supervisionou uma série de reformas nas forças armadas ucranianas que agora estão dando frutos, entre elas mudanças na doutrina militar da Ucrânia; então, de 2019 a 2020, ele atuou como ministro da defesa.

Um soldado ucraniano guarnece um veículo blindado nos subúrbios de Kiev.

A doutrina russa se baseia no comando e controle centralizado, enquanto o comando e controle no estilo de missão - como o nome sugere - depende da iniciativa individual de cada soldado, do soldado ao general, não apenas para entender a missão, mas também para usar sua iniciativa para se adaptar às exigências de um campo de batalha caótico e em constante mudança para cumprir essa missão. Embora as forças armadas russas tenham se modernizado sob Vladimir Putin, nunca adotaram a estrutura de comando e controle descentralizada no estilo de missão que é a marca registrada das forças armadas da OTAN e que os ucranianos adotaram desde então.

“Os russos não capacitam seus soldados”, explicou Zagorodnyuk. “Eles dizem a seus soldados para irem do Ponto A ao Ponto B, e somente quando chegarem ao Ponto B eles serão informados para onde ir em seguida, e os soldados juniores raramente são informados do motivo pelo qual estão realizando qualquer tarefa. Esse comando e controle centralizados podem funcionar, mas somente quando os eventos ocorrerem conforme o planejado. Quando o plano não se sustenta, seu método centralizado entra em colapso. Ninguém pode se adaptar, e você acaba tendo coisas como engarrafamentos de 40 milhas fora de Kiev.”

Durante um ataque noturno fracassado em sua trincheira, Jed disse que um grupo de soldados russos se perdeu na floresta próxima. “Eventualmente, eles começaram a chamar gritando”, disse ele. “Eu não pude evitar; eu me senti mal. Eles não tinham ideia de para onde ir.” Quando perguntei o que aconteceu com eles, ele retornou um olhar sombrio.

Em vez de contar essa parte da história, ele descreveu a vantagem que os ucranianos desfrutam na tecnologia de visão noturna. Quando eu disse a ele que tinha ouvido que os ucranianos não tinham muitos óculos de visão noturna, ele disse que era verdade e que eles precisavam de mais. “Mas nós temos Javelins. Todo mundo está falando sobre os Javelins como uma arma antitanque, mas as pessoas esquecem que os Javelins também têm uma CLU.”

Os mísseis Javelin fornecidos pelo Reino Unido, retratados em um exercício de treinamento, foram inestimáveis.

A CLU, ou unidade de comando de lançamento, é uma óptica térmica de alta capacidade que pode operar independentemente do sistema de mísseis. No Iraque e no Afeganistão, muitas vezes carregávamos pelo menos um Javelin em missões, não porque esperávamos encontrar qualquer tanque da Al-Qaeda, mas porque o CLU era uma ferramenta tão eficaz. Nós o usávamos para vigiar os cruzamentos de estradas e nos certificar de que ninguém estava colocando IEDs. O Javelin tem um alcance superior a uma milha, e o CLU é eficaz a essa distância e além.

Perguntei a Jed em que distâncias eles estavam enfrentando os russos. “Normalmente, os ucranianos esperariam e os emboscariam bem perto.” Quando perguntei o quão perto, ele respondeu: “Às vezes assustadoramente perto”. Ele descreveu um ucraniano, um soldado que ele e alguns outros falantes de inglês haviam apelidado de “Maníaco” por causa dos riscos que ele corria ao engajar blindados russos.

Napoleão, que lutou muitas batalhas nesta parte do mundo, observou que “o moral está para o físico como três está para um”. Eu estava pensando nessa máxima quando Jed e eu terminamos nosso chá. Na Ucrânia – pelo menos neste primeiro capítulo da guerra – as palavras de Napoleão foram verdadeiras, provando-se de muitas maneiras decisivas. Em minha conversa anterior com Zagorodnyuk, enquanto ele e eu passamos pelas muitas reformas e tecnologias que deram vantagem aos militares ucranianos, ele foi rápido em apontar a única variável que ele acreditava que superava todas as outras. “Nossa motivação – é o fator mais importante, mais importante do que qualquer coisa. Estamos lutando pela vida de nossas famílias, por nosso povo e por nossos lares. Os russos não têm nada disso, e não há nenhum lugar onde eles possam ir para obtê-lo.”

Sobre o autor

Elliot Ackerman é o autor do romance Red Dress in Black and White e co-autor do romance 2034. Ele é um ex-fuzileiro naval e oficial de inteligência que serviu cinco vezes no Iraque e no Afeganistão.

As Pedras Estão Clamando: Uma perspectiva realista sobre a invasão russa na Ucrânia


“E, respondendo Ele, disse-lhes: Digo-vos que, se estes se calarem, as próprias pedras clamarão.” 
Lucas 19:40.

Após um mês de invasão russa na Ucrânia, entre muitas incertezas, ao menos um fato delineia-se de forma clara: a iniciativa de Vladimir Putin foi um enorme equívoco. Ampliou-se sobremaneira o afastamento russo em relação à Comunidade Internacional, com reflexos devastadores na economia de um país já combalido nessa área desde a queda da União Soviética, e as justificativas russas para a invasão foram rechaçadas de maneira acachapante na ONU e outros fóruns. Para piorar a situação, mesmo no plano militar, que seria, ao menos em tese, o mais promissor, os russos enfrentam dificuldades. A Operação Especial, como gostam de denominar, está demorando muito mais que o previsto por todos – incluindo o autor destas linhas –, consumindo recursos humanos e financeiros importantes. A consequente elevação do número de vítimas civis contribui para piorar a já péssima reputação de que goza o Kremlin.

Com tantos revezes nos aspectos político, econômico e militar, a pergunta que não quer calar é: O que levou Vladimir Putin a tomar uma decisão tão radical, com consequências potencialmente ruins para o seu próprio regime? O número de interpretações se avoluma em publicações diuturnas na imprensa. De palpiteiros a analistas de reconhecida competência, todos procuram decifrar o enigma da esfinge putinista, esgrimindo argumentos que vão do político ao psicológico. Poucos, porém, parecem confiar nas ferramentas do Realismo Clássico para a realização dessa tarefa, refletindo o esprit-du-temps no qual vivemos desde a queda do Muro. O realismo é encarado como algo demodê, superado.


Na opinião deste que vos escreve, os preconceitos de nossa época, embora naturais – todas as épocas os têm –, atrapalham o entendimento da questão. Se formos analisar a trajetória de Vladimir Putin, veremos que um traço comum de sua mentalidade é justamente o realismo político, tanto no plano interno quanto externo. O triunfalismo liberal que governa as mentes ocidentais, por essa razão, tem sido causa de muitos dos desacertos entre o Ocidente e a Rússia, como bem pontua John Mearsheimer [1], apesar de eu discordar de algumas de suas conclusões, por exemplo, quanto à absoluta responsabilidade do Ocidente pelo caso em tela. A responsabilidade de fato existe, mas é relativa.

Sim, têm razão os que, como Mearsheimer, afirmam que a Rússia foi sistematicamente alienada da Ordem Internacional pela política externa americana desde o fim da URSS. Legítimas preocupações de segurança do Estado russo foram ignoradas, mesmo em questões que diziam respeito à sua periferia histórica - vale relembrar o episódio em que Clinton comunica a invasão da Sérvia a Yeltsin não antes, e sim depois de a decisão ser unilateralmente tomada pelos EUA [2], ultrajando e humilhando um líder que sempre se mostrou disposto a cooperar com o Ocidente. Mas a Rússia é grande o suficiente para não ser tomada como um ator meramente passivo no tabuleiro internacional de poder: ela toma suas decisões e deve ser responsabilizada por elas. O ressentimento por três décadas de declínio explica muito da atual animosidade russa, porém não é justificativa suficiente para ações como a que se verifica agora na Ucrânia, sobretudo em se tratando de um dos garantes do Memorando de Budapeste, no qual se comprometeu a jamais atentar contra a soberania territorial do vizinho. Acordos a respeito de questões tão sensíveis existem para serem honrados.


As alegações russas, portanto, devem ser encaradas com uma dose saudável de ceticismo. Se a perspectiva de uma Ucrânia incorporada à União Européia é incômoda e a de uma admissão à OTAN inaceitável, nenhuma das duas se concretizou. O simples fato de os ucranianos elegerem um governo encarado como “pró-ocidental” é assunto interno de um país soberano, não devendo ser objeto de ingerência de qualquer natureza, a não ser que, e aqui quero começar minha contribuição com este texto, o objetivo russo não seja apenas reconstruir sua zona de influência no leste europeu, mas iniciar uma nova etapa de expansão imperial.

E por que diabos isso seria sequer desejável para a Rússia? Aos adeptos do liberalismo político isso não faz sentido, pois a era dos impérios é um passado a ser esquecido. No mundo pós-moderno, a interdependência comercial regularia os conflitos internacionais, tornando as guerras obsoletas e os impérios inviáveis. No lugar dos campos de batalha, teríamos a OMC (Organização Mundial do Comércio) e outras ‘Instituições’, bem ao sabor de Francis Fukuyama em O Fim da História. Ocorre que, feliz ou infelizmente, a história não acabou, tampouco as grandes nações deixaram de comportar-se como impérios: os EUA, campeões da nova ordem global, invadiram o Iraque, o Afeganistão e a Síria, além de protagonizarem diversas intervenções nos Bálcãs e no Oriente-Médio. Decerto não estavam nesses lugares para fazer caridade ou comércio, e sim para defender os interesses geopolíticos americanos na base da força. A globalização, tão celebrada e promovida pelas potências ocidentais, tem seus perdedores, podendo ser encarada como uma forma tão moderna quanto insidiosa de imperialismo, baseada na exploração das assimetrias de desenvolvimento regionais.


A Rússia é, com certeza, uma das perdedoras desse arranjo, e a maior entre os países considerados potências geopolíticas. Apesar de um saldo migratório positivo, consequência do influxo de migrantes russófonos das ex-repúblicas soviéticas, o país viu sua população decair em 4 milhões de habitantes de 1991 a 2021 devido ao declínio na natalidade [3], sendo as difíceis condições econômicas, a alta prevalência de vício em drogas e álcool e a desagregação familiar as principais causas. Nos anos 1990, o país vivia uma crise de identidade, tanto em relação a si quanto ao seu lugar no mundo. No plano interno, o governo Putin patrocinou uma verdadeira Renascença Ortodoxa, a fim de revitalizar as tradições erodidas pelas décadas de ateísmo de estado; em matéria de política externa, tratou de reconstruir a imagem de Rússia forte, alcançando relativo sucesso. As indústrias energética, bélica e alimentícia foram privilegiadas, reforçando o caráter pragmático da Administração Putin, que focou na produção de bens essenciais para a sobrevivência dos Estados.

Tais iniciativas, contudo, não foram capazes de evitar a estagnação econômica. Dados da série histórica do Banco Mundial apontam uma média de crescimento muito baixa no período entre 1990 e 2021, ou seja, a economia russa hoje é relativamente menor do que era ao final da URSS. Três décadas perdidas que cobraram seu preço na indústria militar: apesar de manter o status tecnológico de ponta, o orçamento de defesa russo tem, atualmente, tamanho similar ao de potências médias como Reino Unido e França [4]. Nesse ínterim, a China avançou de roldão sobre a Eurásia, tradicional área de influência: Cazaquistão, Quirguistão e Turcomenistão já possuem mais relações econômicas com a China do que com a Rússia, e a situação no Uzbequistão e no Tajiquistão evolui rapidamente no mesmo sentido. Astana aparece como parceiro preferencial dos chineses, destino de investimentos vultuosos no contexto da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative – BRI)[5]. Se a expansão da OTAN e da União Européia a leste é incômoda para os russos, é lógico pensar que o mesmo se aplica a esses desenvolvimentos no subcontinente eurasiano, área que MacKinder costumava chamar de Pivô Geográfico da História.


E por que Moscou não verbaliza seu desconforto neste caso? Provavelmente por lhe faltar condições. A deterioração das relações com o ocidente fez de Pequim a única alternativa de parceria estratégica, o que não significa que essa relação não tenha suas tensões. A relação comercial Sino-Russa é desfavorável à última: enquanto aquela exporta produtos de valor agregado, esta comercializa majoritariamente matérias-primas. Espremida por dois imperialismos em expansão constante, é natural que a Rússia se sinta ameaçada. Mantidos tais padrões de desenvolvimento demográfico e econômico, não é nenhum exagero afirmar que existe um risco real de vassalização no médio prazo. Talvez seja a esse tipo de ameaça existencial que o Porta-Voz do Kremlin, Dmitry Peskov, se referiu em entrevista recente [6].

Minha tese é que esse impasse, mais do que qualquer condicionamento ideológico, psicológico ou político, leva a Rússia ao ataque. Incapazes de se adaptarem aos novos arranjos de domínio por meio das assimetrias de desenvolvimento e se vendo, eles mesmos, vítimas desses processos, os russos tratam de reconstruir seu Lebensraum (espaço vital) à moda antiga, a pontapés. E o observador atento notará que a tática não foi posta em prática agora, de sopetão, mas cuidadosamente preparada e implementada por meio de aproximações sucessivas. Geórgia (2008), Criméia (2014) e agora toda a Ucrânia - em cada uma das ocasiões o Kremlin testou a reação ocidental e progrediu em escala. Outra característica comum dessas incursões militares é que foram precedidas por momentos de alta nas cotações das principais commodities de exportação, reforçando o caixa com moeda forte, já prevendo sanções econômicas como reação.


Tudo leva a crer que a Rússia perdeu a confiança na capacidade de projetar-se por meios políticos. As tentativas de manutenção de sua esfera de influência geoestratégica foram malogradas, nos casos da CEI (Comunidade de Estados Independentes) e da OTSC (Organização do Tratado de Segurança Coletiva), por sua própria iniciativa: a Geórgia se retirou após a invasão da Abecásia e da Ossétia do Sul e a Ucrânia em 2018, por razões óbvias. Já a Comunidade Econômica Eurasiática, hoje União Econômica Eurasiática (UEE), não decola pela baixa performance econômica de seus membros. Com um tal histórico, fica difícil pensar em reversão do quadro por meios convencionais.

Resta, portanto, a força como último recurso. Se ela, sozinha, será suficiente para tornar a Rússia novamente competitiva na corrida das potências mundiais, eu duvido. Contudo, enquanto ela for capaz de reagir agressivamente a um declínio que parece cada vez mais inexorável, é certo que muitos danos serão causados à estabilidade mundial. E se a hipocrisia desta geração calar as poucas vozes capazes de declarar a verdade sobre a Política de Poder, não haverá problema: as ‘pedras’ da Realpolitik clamarão e far-se-ão ouvir, ainda que por meio de bombas e mísseis.

Éder Fonseca
23 de março de 2022


Notas

sexta-feira, 25 de março de 2022

FOTO: A Filha do General

Formandos de um curso de oficiais da Força de Defesa de Israel, 1º de agosto de 1957.
A primeira à direita é Yael Dayan, filha do General Moshe Dayan.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 25 de março de 2022.

Yael Dayan nasceu em Nahalal, atual Israel, durante a era do Mandato Britânico da Palestina em 12 de fevereiro de 1939. Ela era filha do famoso general israelense Moshe Dayan e neta do sionista Shmuel Dayan, ambos pais fundadores do Estado de Israel.

Yael está portando um fuzil Mauser durante a cerimônia, armamento típico da Força de Defesa de Israel de 1948 até a padronização com o FAL nos início dos anos 50, relegando o fuzil a funções cerimoniais. Os israelenses conseguiram muitos fuzis Mauser da FN Herstal, o blog tratou desse assunto aqui.

Na Guerra dos Seis Dias (1967), a Tenente Yael Dayan serviu na unidade de comunicação social do estado-maior da divisão de Arik Sharon e escreveu um diário da sua guerra no Sinai contra os egípcios. Ela publicou cinco romances, bem como uma biografia de seu pai chamada My Father, His Daughter (Meu Pai, Sua Filha). Ela escreveu um livro de memórias da Guerra dos Seis Dias chamado Israel Journal: June 1967 (Diário de Israel: junho de 1967), também intitulado como A Soldier's Diary e traduzido no Brasil como "Diário de um Soldado".

Yael Dayan ao lado do seu pai Moshe Dayan nos dias que antecederam a ofensiva do Sinai, 1967.
O General Moshe Dayan era então o Ministro da Defesa.

Embora ela mesma não tenha entrado em combate, pois esta não era a sua função, ela esteve próxima da ação e observou as operações de perto, ao lado dos militares que comandavam as ações. De particular importância foi a tomada da fortaleza de Umm Qatef em Abu Agheila, a noz dura que ancorava o sistema de defesa egípcio. O exército de Nasser então passou à debandada em pânico em direção ao Canal de Suez, uma catástrofe militar para o Cairo. A tão a
lardeada "Força Shazly", que deveria ter atuado como reserva estratégica, deu as costas e fugiu para o Egito africano ao invés de contra-atacar o rompimento em Umm Qatef-Abu Agheila.

Os egípcios tinham 80 tanques T-34 defendendo a fortificação, e tanques Sherman e Centurion espalhados pelo Sinai. Havia também os pesados tanques IS-3, que eram impermeáveis na blindagem frontal. O Egito ainda possuía os então novíssimos T-55, muito mais modernos que os tanques israelenses. Ainda assim, a manobra e violência da ação dos israelenses nocauteou os árabes. O exército egípcio no Sinai esfacelou-se, com grandes números de soldados zanzando pelo deserto e sendo feitos prisioneiros pelos israelenses. Yael descreve a situação em Nakhl, no centro do deserto do Sinai:

"Nakhl é uma região esquecida por Deus, não obstante possuir abundância de água. Vocês precisavam provar a água! É malcheirosa, enjoativamente adocicada e oleosa. Arik e Dov conheciam Nakhl de trás pra frente pois tinham estado lá na última guerra [1956]. Poucas casas, um acampamento militar, uma colina ou duas em volta, e a estrada para o Passo de Mitla e o Canal que ali faz uma esquina em ângulo reto. Na vez passada, tomáramos a localidade em poucos minutos, antes de avançar para Mitla.

[...]

De súbito, fomos informados pelo rádio de que a Fôrça Aérea ia dar-nos apoio. Paramos o jipe na ladeira e galgamos a parte lateral da colina. Pudemos, então, divisar seis tanques Centuriões egípcios na estrada. Pareciam maciços e bem protegidos, em meio aos demais veículos. Seria tolice expormo-nos, em carros de meia esteira ou jipes, aos canhões dos pesados Centuriões.

[...]

A Fôrça Aérea surgiu no céu azul. Quatro Super Mystères voaram baixo, despejando bombas incendiárias sôbre os tanques [egípcios]. Estávamos todos muito nervosos, com exceção de Dov que, com a maior calma, ficou de pé e filmou tôda a cena, com uma câmera Canon 8 mm. 'Como nas manobras', comentou alguém.

Os aviões mergulharam duas ou três vêzes. Esperei que nos reconhecessem. Seus ataques eram por demais precisos para nos arriscarmos a não ser identificados. Achávamo-nos bem próximos aos alvos. No seu quarto círculo, acenaram Shalon para nós, pendendo as asas. Poucos dias depois, encontrei-me com um dos pilotos - Arik, meu colega de classe em Nahalal. 'Eu sabia que um dia nós dois iríamos trabalhar juntos', disse-me. Quando êles se afastaram pelo nordeste, embarcamos no jipe e dirigimo-nos a tôda velocidade para a estrada abaixo. Aproximamo-nos arriscadamente dos tanques que se incendiavam. Munições explodiam em tôdas as direções.

[...]

De repente, escutamos tiroteio atrás de nós. Alguns dos nossos soldados começaram a trocar disparos de armas de fogo portáteis com soldados egípcios escondidos num arbusto a poucas jardas de distância. Devemos ter tido sorte, pois apenas dez minutos antes passáramos por êsses mesmos arbustos, erguendo uma nuvem protetora de poeira à nossa volta. Arik optou por permitir que seguíssemos a infantaria blindada em sua operação de limpeza até Nakhl. Veículos de meia esteira, jipes russos, tanques incendiavam-se e vomitavam fumaça para onde quer que se olhasse. Viam-se canhões e transportes de tropas blindadas atirados em tôdas as direções e posições. Centenas de soldados egípcios avançavam precipitadamente em direção a Nakhl. Posteriormente, revelaram-nos que imaginavam achar-se em área ainda sob seu domínio. Nossos soldados conclamavam-nos a se renderem. Alguns o fizeram. Outros responderam com um disparo ou uma saraivada - ou fugiram. À minha frente, vi um jovem soldado de um dos nossos veículos de meia esteira matar um egípcio, depois correr para trás do carro blindado e vomitar, logo em seguida refazendo-se e indo juntar-se à sua divisão.

Eu agarrava com firmeza uma metralhadora portátil Uzi. Dov estava ao volante, Katz atrás da metralhadora dianteira e Itzik apontava um canhão automático. Nenhum de nós chegou a disparar. Outros se encarregavam disso, e nos limitamos à observação. Cadáveres estiravam-se pelo caminho, e saltávamos do carro para retirar-lhes as armas. Os adversários de tocaia nos arbustos foram mortos. Grupos de soldados inimigos fugiam nas mais diversas direções. Alguns escaparam. No entanto, não pude afastar o pensamento de que isso era mais uma caçada que um combate. Eu não ia atirar. Os homens nos jipes achavam-se armados e, se fôssemos alvejados diretamente, êles responderiam ao tiroteio. Todavia, minha minha arma permanecia carregada e engatilhada. Meus óculos contra o vento de nada valiam e meus olhos doíam. Além da canícula do meio-dia, havia o calor irradiado pelos veículos em chamas, um inferno em miniatura, odioso e medonho.

Chegamos a Nakhl à tardinha. Ali encontramos mais destruição, destruição total, como sòmente sucede um embate de tanques contra tanques. Era o Vale da Morte do Exército egípcio. Cêrca de cento e cinqüenta tanques foram contados no percursos de Temed a Nakhl. Ninguém contou os veículos, a artilharia pesada, os canhões anti-aéreos leves, os tratores pesados que rebocavam os canhões, os caminhões de munições, todos êles em posições insólitas ou formando pilhas, de modo que muitaas vêzes os destroços assumiam semelhança bizarra com peças de escultura moderna."

- Yael Dayan, Diário de um soldado, pg. 131, 132, 133-135, 1967 (trad. 1970).

Post-script: Suspense militar

O título deste artigo é uma homenagem ao filme A Filha do General (The General's Daughter, 1999), um filme de investigação militar onde o investigador Paul Brenner (John Travolta) ao lado de sua parceira Sara Sunhill (Madeleine Stowe) investigam a misteriosa morte da oficial de guerra psicológica Capitã Elisabeth Campbell (Leslie Stefanson), filha do comandante da base: o General Joe Campbell (James Cromwell).

Outros personagens marcantes sendo o Coronel Bob Moore (James Woods), o oficial comandante e mentor da Capitã Elisabeth Campbell, e o Coronel George Fowler (Clarence Williams III), o leal segundo em comando do General Campbell. Além da investigação e da discussão sobre mulheres no exército em uma época onde este era um conceito novo, o filme ainda apresenta a estética esverdeada dos antigos uniformes BDU americanos.

Recomendação do Warfare.


A Filha do General ainda gerou um filme de suspense e investigações militares, Violação de Conduta (Basic, 2003), dessa vez com John Travolta contracenando com a futura rainha Hipólita, Connie Nielsen, como a investigadora Capitão Júlia Osborne e com o titã Samuel L. Jackson interpretando o implacável Sargento Nathan West.

Leitura recomendada:

quinta-feira, 24 de março de 2022

A vacilante política externa de Xi Jinping: Os perigos do governo do homem-forte

O presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês Xi Jinping em Pequim, fevereiro de 2022.
(Aleksey Druzhinin / Reuters)

Por Jude Blanchette, Foreign Affairs, 16 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 24 de março de 2022.

A guerra na Ucrânia e os perigos do governo do homem-forte.

Independentemente de Pequim ter alertado antecipadamente sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, a decisão do líder chinês Xi Jinping de emitir um comunicado no mês passado descrevendo uma parceria “sem limites” com Moscou foi sem dúvida o maior erro de política externa de seus quase dez anos no poder. O presidente russo, Vladimir Putin, receberá a maior parte da reação por seu ataque não provocado à Ucrânia, mas a declaração pública de Xi, juntamente com o contínuo apoio diplomático de Pequim a Moscou, minou a reputação da China e provocou novas preocupações sobre suas ambições globais. De fato, a intensificação da guerra na Ucrânia já provocou pedidos para que Taiwan melhore suas capacidades de defesa e deu a parcerias de segurança como a OTAN, o Quad e o AUKUS um senso de propósito renovado.

O apoio imprudente de Xi a Moscou às vésperas da desastrosa campanha militar da Rússia não é seu primeiro grande passo em falso na política externa. Sua decisão de retaliar autoridades da UE em março passado, em resposta a sanções por abusos de direitos humanos em Xinjiang, custou a Pequim um acordo de investimento há muito cobiçado com a Europa. Suas ameaças a Taiwan estão aproximando Washington e Taipei e forçando outras potências regionais, como Austrália e Japão, a declarar seu próprio interesse na segurança de Taiwan. E o confronto dos militares chineses em 2020 com o exército indiano no Vale de Galwan galvanizou a opinião da linha dura em Nova Délhi. Esses fracassos crescentes destacam uma tendência cada vez mais evidente: quanto mais poderoso Xi se torna e quanto mais autoridade direta ele exerce sobre a política externa de Pequim, mais adversos são os resultados para os interesses estratégicos de longo prazo da China. Após décadas de manobras relativamente ágeis e eficazes da liderança pós-Mao, Xi levou a política externa a uma nova direção – definida por uma maior tolerância ao atrito com os Estados Unidos, Europa e potências vizinhas e caracterizada por pouco debate interno ou entrada externa. O que está tomando forma é menos a política externa da China do que a de Xi.

Desengajamento de tanques de batalha principais chineses e indianos nas margens sul do passo de Pangong Tso, 10 de fevereiro de 2021.

Com Xi pronto para assumir um terceiro mandato de cinco anos como líder da China no próximo 20º Congresso do Partido, é fundamental que os Estados Unidos e seus aliados entendam não apenas os impulsionadores e os contornos de sua política externa, mas o ecossistema político e burocrático em que ele toma decisões. Como a jogada imprudente de Putin na Ucrânia provou, um líder autocrático cercado por bajuladores e alimentado por queixas históricas e ambições territoriais é uma perspectiva ameaçadora. Xi não é Putin e a China não é a Rússia, mas seria imprudente ignorar os crescentes paralelos.

O Homem-Forte

Dizer que Xi consolidou o poder na China é afirmar o óbvio. Poucos contestam que Xi ocupa uma posição singular dentro do aparato burocrático da China, e é cada vez mais difícil negar que algo semelhante a um culto à personalidade está se desenvolvendo na mídia estatal e em outros canais de propaganda. No entanto, as implicações dessa realidade são insuficientemente apreciadas, especialmente seu impacto no comportamento do partido-Estado chinês.

Considere um padrão que surgiu em sistemas políticos autoritários em que os líderes permanecem no cargo por muito mais tempo do que seus colegas democráticos e com mandato limitado. Quanto mais tempo um líder permanece no poder, mais as instituições estatais perdem sua competência administrativa e independência à medida que evoluem para atender às preferências pessoais desse líder. Rodadas sucessivas de expurgos e promoções moldam o caráter da burocracia, movendo-a incrementalmente na mesma direção da grande visão do líder. O que pode começar como punição formal por oposição explícita à liderança acaba se tornando um clima de autocensura informal à medida que os membros da burocracia passam a entender a inutilidade da dissidência e ficam mais sintonizados com as expectativas tácitas de conformidade. O líder também se torna mais distante e isolado, contando com um grupo cada vez menor de conselheiros de confiança para tomar decisões. A maioria desses indivíduos permanece à mesa porque demonstra lealdade absoluta.

Soldado chinês com uma máscara em Wuhan diante de um retrato de Mao Tsé-tung quando o governo chinês bloqueou o local, 22 de janeiro de 2020.

Esse pequeno círculo, por sua vez, atua como a janela do líder para o mundo, deixando muito dependente da precisão da representação da realidade externa que seus membros optam por fornecer. Um processo de tomada de decisão tão opaco torna difícil para observadores externos interpretarem os sinais da liderança central. Mas ainda mais crucial, torna difícil para os atores desses sistemas autocráticos antecipar e interpretar as ações de seus líderes. O resultado é uma política externa cada vez mais imprevisível, com o líder formulando em segredo decisões precipitadas e o resto da burocracia correndo para se adaptar e responder.

Xi não é Putin e a China não é a Rússia, mas seria imprudente ignorar os crescentes paralelos.

O paralelo óbvio no caso chinês é Mao Tsé-Tung, que supervisionou um tortuoso esvaziamento das instituições políticas e administrativas nascentes da China. A subserviência a Mao definia a burocracia, e as promoções eram baseadas na correção ideológica. Embora outros atores tenham influenciado a política externa de Pequim, notadamente o primeiro-ministro Zhou Enlai, o fator mais importante que moldou o comportamento estratégico da China foi a opinião pessoal de Mao. Mas identificar o domínio de Mao sobre a burocracia chinesa não forneceu, por si só, pistas sobre futuras decisões de política externa. A crença de Mao na luta revolucionária global o levou a apoiar movimentos armados no Sudeste Asiático, e seu senso de realpolitik o levou a normalizar as relações com os Estados Unidos arquicapitalistas apenas alguns anos depois. O ponto-chave da política externa de Mao, como é hoje com a de Xi, era que os observadores externos precisavam estar sintonizados com sua visão de mundo, suas ambições e suas ansiedades para entender, antecipar e sobreviver a seus movimentos.

Xi, claro, não é Mao. Ele não deseja fomentar a revolução global, e sua visão da ordem política doméstica adequada é muito mais conservadora do que a de Mao. Também é importante notar que a oposição interna à política externa cada vez mais nacionalista e belicosa de Xi existe claramente e provavelmente crescerá à medida que suas decisões afetarem os interesses da China. Mas, ao mesmo tempo, há pouco que um possível oponente possa fazer para restringir significativamente Xi – tal é o nível de autoridade política e burocrática esmagadora que ele agora exerce. Seus apoiadores ocupam posições no ápice de todos os centros de poder do Estado, incluindo as forças armadas, o setor de segurança doméstica e a economia estatal. Xi não administra o sistema político da China sozinho, mas, como na Rússia de Putin, a consolidação da autoridade personalizada por um longo período de tempo reformulou os processos de tomada de decisão em favor do titular e de seus assessores. Como resultado, em questões que vão de Taiwan à Ucrânia, todo o sistema político na China aguarda as ordens de Xi. A política externa no período do 20º Congresso do Partido, que vai de 2022 a 2027, será, portanto, impulsionada pela visão subjetiva de Xi dos eventos internacionais e do ecossistema de tomada de decisão cada vez mais isolado que o cerca.

Uma equipe de bajuladores

Como pode ser essa nova era? Em um nível prático, caracterizará a marginalização contínua dos órgãos externos do governo. Considere o Ministério das Relações Exteriores. No papel, o MFA deve ser um canal vital para entender as ações e as intenções da liderança sênior da China em política externa. De fato, é por isso que a coletiva de imprensa diária do MFA foi historicamente vista como importante, pois foi uma das poucas janelas que observadores externos tiveram no pensamento de Pequim.

Na prática, no entanto, o MFA está se esforçando cada vez mais para interpretar os sinais vindos do escritório de Xi, como evidenciado por seus pontos de discussão diários em constante mudança sobre a crise ucraniana. A mesma dinâmica existe dentro do Escritório de Assuntos de Taiwan (Taiwan Affairs Office, TAO), que é, pelo menos no papel, responsável pela política através do Estreito. Tornou-se evidente nos últimos anos que o TAO muitas vezes é pego de surpresa pelas decisões de Xi e fica embaralhado tanto para interpretar quanto para implementar suas políticas. Será importante entender as realidades funcionais dessa marginalização burocrática daqui para frente, pois as declarações do governo chinês nem sempre refletem com precisão as opiniões de Xi. Mais importantes do que as burocracias tradicionais serão os órgãos opacos e secretos, como a Comissão de Segurança Nacional e os vários “pequenos grupos líderes” que Xi comanda.

O círculo de conselheiros de Xi também continuará encolhendo. Embora não seja incomum que os líderes de qualquer sistema político valorizem o conselho de algumas poucas vozes selecionadas, a tomada de decisão eficaz exige que esses conselheiros apresentem pontos de vista conflitantes. Ainda há muito a aprender sobre como Putin passou a acreditar que poderia alcançar uma vitória rápida sobre a Ucrânia, mas os primeiros sinais indicam que seus conselheiros militares o enganaram sobre o verdadeiro estado do exército ucraniano. Este é um lembrete trágico de como as informações precisas são críticas para qualquer organização política, especialmente em sistemas mais fechados e autoritários. Pelo que os analistas entendem, os confidentes de Xi, incluindo Li Zhanshu, Ding Xuexiang e Wang Huning, são atores burocráticos formidáveis, mas não há indicação de que eles desafiem seus julgamentos ou precedentes. E à medida que alguns desses altos funcionários se aposentam, Xi estará cada vez mais cercado por líderes seniores mais jovens, mais inexperientes e mais flexíveis. O que Xi precisa é de uma equipe de rivais. O que ele tem agora e provavelmente terá no futuro é um grupo de puxa-sacos.

A perspectiva de Xi sobre o ambiente de segurança da China na próxima década é cada vez mais pessimista.

Depois, há a questão crítica da visão de mundo de Xi. Está ficando claro em seus discursos e artigos que a visão de Xi sobre o ambiente de segurança da China na próxima década é cada vez mais pessimista. Como disse recentemente, “a situação internacional continua passando por profundas e complexas mudanças”, acrescentando que “o jogo das grandes potências está cada vez mais intenso, [e] o mundo entrou em um novo período de turbulência e mudança”. Os Estados Unidos, acredita Xi, formalizaram uma política de contenção em relação a Pequim. Quando Washington fala em trabalhar com “aliados e parceiros”, Xi ouve ecos do cerco da época da Guerra Fria, decretado por meio do que ele chama de “pequenos círculos exclusivos [e] blocos que polarizam o mundo”. Esse diagnóstico provavelmente levou Xi a se aproximar de Putin e Moscou nos meses que antecederam sua reunião em fevereiro e é por isso que ele não abandonará a Rússia daqui para frente.

A fragata chinesa Weifang é recebida na Cidade do Cabo, na África do Sul, antes do Exercício Marítimo Multinacional de 2019 com as marinhas russa e sul-africana.

Mas não é apenas o pessimismo que anima a visão de mundo de Xi; é um forte senso de nacionalismo, alimentado por sua confiança no poder econômico e militar do Partido Comunista Chinês e sua atitude desdenhosa em relação à coesão e estabilidade dos Estados Unidos e de outras democracias. Embora seja indiscutivelmente verdade que Pequim tenha enfatizado demais uma narrativa do declínio dos EUA para fins de propaganda doméstica, as ações de Xi, no entanto, indicam que ele se sente à vontade para afirmar os interesses de Pequim, mesmo quando eles colidem com as capacidades e determinação dos Estados Unidos e seus aliados. Existem inúmeros exemplos dessa dinâmica, desde a evisceração da China das instituições democráticas de Hong Kong até sua campanha contínua de coerção econômica contra a Austrália. O ponto aqui é menos que Pequim adote essas políticas de confronto sem pagar um preço (o que faz), mas sim que a tolerância ao risco de Xi parece ter crescido em resposta às suas avaliações mutáveis do equilíbrio de poder global.

A combinação de um autocrata irrestrito e nacionalista que abriga uma visão cada vez mais sombria do ambiente externo cria um período potencialmente volátil à frente. A posição da China nos assuntos globais é muito mais importante hoje do que durante a era Mao. O ambiente internacional em que Xi tenta orientar os interesses chineses também é significativamente diferente do que era nas décadas de 1960 e 1970. Sem a relativa previsibilidade da bipolaridade da época da Guerra Fria, a competição hoje é mais complicada e mais difícil de navegar. Para compensar, os Estados Unidos e seus aliados devem priorizar a comunicação direta com Xi para garantir que ideias alternativas perfurem sua bolha de liderança.

Também será fundamental que os líderes de países com ideias semelhantes transmitam mensagens consistentes durante suas próprias interações separadas com a liderança da China. Afinal, uma coisa é Xi descartar Washington como preso em uma “mentalidade da Guerra Fria”, mas outra é ignorar uma ampla coalizão de aliados democráticos. Nas últimas quatro décadas, a China mostrou repetidamente que pode mudar de rumo antes de cortejar o desastre. A questão agora é se pode fazê-lo novamente sob Xi.

Jude Blanchette é Freeman Chair em Estudos da China no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.