Mostrando postagens com marcador Socialismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Socialismo. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

FOTO: Soldado afegã em trajes tradicionais

Soldado afegã na parada militar celebrando a Revolução de Saur em Cabul, Afeganistão, 1984.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 16 de fevereiro de 2023.

Uma mulher soldado do exército afegão socialista da República Democrática do Afeganistão, vestida em roupas tradicionais e segurando um AK-47, em Cabul no ano de 1984. Ela faz parte da parada militar celebrando a Revolução de Saur de 1978.

Ocorrida de 27 a 28 de abril de 1978, a Revolução Saur (persa: انقلاب ثور) é o nome dado à tomada do poder pelo Partido Democrático do Povo, tornando o Afeganistão em um país socialista em 28 de abril de 1978. O nome "Saur" refere-se ao nome Dari do segundo mês do calendário persa, mês em que ocorreu o levante.

Rescaldo da Revolução de Saur em Cabul no dia seguinte,
29 de abril de 1978.

Bibliografia recomendada:

A Mulher Militar:
Das origens aos nossos dias,
Raymond Caire.

Leitura recomendada:

A primeira mulher piloto do Afeganistão agora está lutando para voar pelas forças armadas dos EUA6 de julho de 2022.

ENTREVISTA: Svetlana Alexievich, A Guerra não tem rosto de Mulher13 de maio de 2022.

Milicianas cubanas com submetralhadoras tchecas27 de abril de 2022.

GALERIA: Treinamento de CQB de um Pelotão Tático Feminino afegão30 de agosto de 2021.

FOTO: Exercício de mulheres soldados do antigo Exército Nacional Afegão27 de setembro de 2021.

FOTO: Graduação da primeira classe de policiais especiais femininas afegãs1º de setembro de 2021.

FOTO: Professora iraniana com o M1 Garand na época do Xá13 de março de 2022.

FOTO: Vespa cubana13 de janeiro de 2022.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

O retorno da China Vermelha: Xi Jinping traz de volta o Marxismo

Votação do presidente chinês Xi Jinping durante o 20º Congresso do Partido em Pequim, outubro de 2022.
(Tingshu Wang / Reuters)

Por Kevin Rudd, Foreign Affairs, 9 de novembro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 24 de novembro de 2022.

Em 1978, o líder chinês Deng Xiaoping anunciou que seu país romperia com o passado. Depois de décadas de expurgos políticos, autarquia econômica e controle social sufocante sob Mao Tsé-tung, Deng começou a estabilizar a política chinesa, removendo as proibições de empresas privadas e investimentos estrangeiros e dando aos indivíduos maior liberdade em suas vidas diárias. Essa mudança, denominada “reforma e abertura”, levou a políticas pragmáticas que melhoraram as relações de Pequim com o Ocidente e tiraram centenas de milhões de chineses da pobreza. Embora a China permanecesse autoritária, Deng dividia o poder com outros líderes importantes do partido — ao contrário de Mao. E quando Deng deixou o cargo, seus sucessores continuaram seguindo o mesmo caminho.


Até agora. Durante o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCC) no mês passado, o líder chinês Xi Jinping encerrou definitivamente a era Deng da política chinesa. Em muitos aspectos, ficou claro que a “reforma e abertura” estava se esgotando no 19º Congresso do Partido em 2017, quando Xi proclamou “uma nova era” na qual o partido retificaria os “desequilíbrios” ideológicos, políticos e de políticas deixados por seus predecessores. Mas foi o 20º Congresso do Partido que deu a Xi um terceiro mandato sem precedentes como líder e removeu funcionários pró-mercado da liderança do PCC. Até mesmo removeu o antecessor de Xi do processo. Depois de quase 44 anos, a história registrará que foi este congresso que administrou os últimos ritos à era reformista de Deng. O admirável mundo novo estatista de Xi Jinping está agora em pleno vigor.

Isso significa que os estrangeiros devem deixar de lado as estruturas analíticas confortáveis que muitos deles usaram para analisar a China nas últimas duas gerações. A maioria dos países, incluindo muitos no Ocidente, está predisposta a pensar que quando os líderes da China falam em termos ideológicos, isso não deve ser levado a sério (ou que, se for, a ideologia se aplica exclusivamente à política interna do partido). Mas isso não é mais o caso. Como escrevi no Foreign Affairs pouco antes do congresso do partido, “sob Xi, a ideologia dirige a política com mais frequência do que o contrário”. Ele é um verdadeiro crente no marxismo-leninismo; sua ascensão representa o retorno ao cenário mundial do Homem Ideológico. Essa estrutura ideológica marxista-nacionalista impulsiona o retorno de Pequim ao controle partidário sobre a política e a sociedade, reduzindo o espaço para a dissidência privada e as liberdades pessoais. Também impulsiona a abordagem estatista renascida de Pequim para a gestão econômica e suas políticas externas e de segurança cada vez mais assertivas, destinadas a mudar o status quo internacional.


Xi usou o “relatório de trabalho” do 20º Congresso do Partido (um discurso que o principal líder do PCC faz em cada congresso descrevendo as regras ideológicas e políticas do caminho para os próximos cinco anos) para demonstrar ao partido e ao mundo que a China agora tem uma visão integrada nacional e internacional do que ele chama de “modernização ao estilo chinês”. Essa visão exige a dissociação da modernidade econômica das normas políticas e sociais ocidentais e das crenças culturais subjacentes. Ele oferece uma nova ordem internacional ancorada no poder geopolítico chinês, e não nos EUA. E envolve a criação de um conjunto de instituições e normas compatíveis com os próprios interesses e valores da China, e não com os do Ocidente. É uma visão de mundo maniqueísta, colocando a mistura de valores confucionistas e marxistas-leninistas da China contra a democracia liberal e o internacionalismo liberal do Ocidente e de alguns (mas não todos) do resto do mundo. Como este congresso deixou claro, Xi quer demonstrar que o PCC sob sua liderança tem tanto a audácia quanto a capacidade de traduzir esta nova e ousada visão em realidade.

A caneta e a espada


No Partido Comunista Chinês, as palavras importam. A frequência com que vários termos e frases aparecem nos principais relatórios e discursos é um mecanismo interpretativo crítico que tanto os membros do partido quanto os observadores externos usam para discernir as mudanças de direção da liderança. O famoso ataque de Mao aos “seguidores da via capitalista”, por exemplo, acompanhou as esmagadoras campanhas de nacionalização do partido e sua oposição às empresas privadas de pequena escala. Os escritos ideológicos de Jiang Zemin sobre os “três representantes” – que incluíam a necessidade de aproveitar as “forças produtivas” da economia chinesa – eram um sinal claro para os líderes do partido trazerem empresários privados para as fileiras do partido (o que eles fizeram).

As frases e escolhas de palavras de Xi têm consequências semelhantes no mundo real. E o relatório de trabalho do 20º Congresso do Partido, entregue por Xi, está repleto de uma série de termos ideológicos novos e contínuos. No total, eles indicam que o PCC agora está avaliando a economia, a segurança nacional e a identidade nacionalista do país de maneiras diferentes. No relatório que saiu do 14º Congresso do Partido em 1992, quando Deng ainda governava, o termo “economia” foi usado 195 vezes. No relatório deste ano, a economia é citada apenas 60 vezes. O mantra de Deng de “reforma e abertura” foi mencionado 54 vezes em 1992; no 20º Congresso do Partido, a frase foi invocada apenas nove vezes. Em 1992, o termo “segurança nacional” apareceu uma vez e foi usado apenas quatro vezes em 2012. Mas no 19º Congresso do Partido em 2017, o primeiro de Xi como líder, o termo teve 18 aparições. Este ano, é mencionado 27 vezes. Enquanto isso, o termo chinês para Estado poderoso, qiangguo, aparece 23 vezes este ano, em comparação com 19 em 2017 e apenas duas em 2002. No geral, essas mudanças indicam que o partido agora está focado no nacionalismo chinês e na segurança nacional. Esta é uma ruptura acentuada com os regimes anteriores, que se preocupavam quase exclusivamente com o desenvolvimento econômico.


O termo “marxismo” também aparece várias vezes no relatório de 2022 e é cercado por outra linguagem sugerindo que Xi está se preparando para o conflito. O conceito marxista-leninista de “luta” – lutar por meios violentos ou não-violentos para resolver o que os marxistas-leninistas consideram ser “contradições” na sociedade doméstica e internacional, é mencionado 22 vezes. Por definição ideológica, o conceito autoriza Xi a se envolver em várias formas de confronto para promover sua causa revolucionária. E o relatório do líder foi seguido por uma intensa campanha de propaganda, para consumo público e interno do partido, sobre a necessidade da China se preparar para os tempos difíceis endurecendo seu “espírito de luta”. Essa luta não se limita aos desafios do partido em casa (incluindo potencialmente dentro do próprio partido). Também é direcionado aos desafios da China ao redor do mundo, inclusive com os Estados Unidos.

O admirável mundo novo estatista de Xi Jinping está agora em pleno vigor.

A crescente defesa da “luta” foi enfatizada pela decisão de Xi de levar o recém-eleito Comitê Permanente do Politburo – o mais alto órgão político da China – em uma visita a Yan’an após o término do congresso. Yan'an foi onde Mao se baseou durante parte da primeira guerra civil contra os nacionalistas chineses e na maior parte da guerra contra o Japão. Foi também onde ele convocou o Sétimo Congresso Nacional do Partido em 1945, que confirmou sua liderança absoluta do PCC depois de sua própria luta política contra oponentes internos do partido na década anterior. Essa reunião também foi a precursora da segunda guerra civil do partido contra o governo nacionalista da China, que terminou quando o líder nacionalista anticomunista Chiang Kai-shek fugiu para Taiwan com os remanescentes de seu regime. As ressonâncias políticas da visita de Xi a Yan'an, então, são relativamente claras. Como Mao, Xi emergiu triunfante após sua própria década de implacável consolidação de poder, muitas vezes por meio de violentos conflitos internos. E agora ele está se preparando para a renovada luta de longo prazo da China contra o velho inimigo: os separatistas em Taiwan.


Anteriormente, o PCC hesitava em adotar qualquer tipo de cronograma ou prazo público para a retomada de Taiwan. Xi, por outro lado, afirmou que a retomada de Taiwan é fundamental para o “rejuvenescimento nacional” da China e que ele pretende concluir esse rejuvenescimento até 2049. Os predecessores de Xi durante o período de reforma e abertura acreditavam que, se a China quisesse se desenvolver economicamente, o país precisava de boas relações com o resto do mundo, por isso nunca pensaram em lutar para tomar a ilha. Os relatórios anteriores do congresso do partido continham uma referência padrão à “paz e desenvolvimento” como a principal tendência subjacente dos tempos modernos, sinalizando que a China não enfrentava nenhuma ameaça de grande guerra e poderia, portanto, fazer do desenvolvimento econômico sua prioridade central. A partir de 2002, os relatórios também declaravam rotineiramente que a China estava passando por um “período de oportunidade estratégica”, ou zhanlue jiyuqi: uma frase que indica que as distrações militares dos Estados Unidos no Oriente Médio deram à China ainda menos pressão internacional e, portanto, mais espaço para concentrar-se totalmente no desenvolvimento rápido.

Nenhuma dessas expressões padrão aparece no relatório de 2022. Em vez disso, o documento descreve uma “situação internacional grave e complexa” na qual o partido deve estar “preparado para perigos em tempos de paz”. Também diz que a China deveria estar se preparando para a “tempestade perigosa” ou jingtaohailang. Ele chama de “segurança nacional” a “base do rejuvenescimento nacional”. E Xi usou o relatório para consolidar suas declarações anteriores sobre a necessidade de uma agenda de “segurança total” para garantir que o país tenha segurança ideológica, segurança política, segurança econômica e segurança estratégica. Na verdade, exige a “securitização” de praticamente todos os aspectos da sociedade. Ele também orientou o partido a aplicar esse conceito de segurança total em todos os processos internos do partido. Xi, ao que parece, está sinalizando que o PCC e o Exército Popular de Libertação da China agora devem estar prontos para travar uma grande guerra. E domesticamente, isso significa manter o povo chinês sob vigilância e controle ainda mais rígidos.

Séria e literalmente


Além dessas amplas mudanças ideológicas, o 20º Congresso do Partido carimbou uma série de mudanças políticas e de pessoal significativas. O partido consolidou Xi constitucionalmente como “o líder central do Comitê Central” e declarou “o pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era” como “o novo marxismo do século XXI”. Ele removeu mais funcionários do partido com mentalidade reformista que às vezes discordavam de Xi, como o primeiro-ministro Li Keqiang e Wang Yang, do Comitê Permanente do Politburo, e removeu o reformista Hu Chunhua do Politburo mais amplo - embora nenhum deles tenha alcançado a idade de aposentadoria do cargo, de 68 anos. Enquanto isso, o congresso permitiu que outros partidários políticos acima da idade de aposentadoria ficassem. (Um deles, Zhang Youxia, vice-presidente da Comissão Militar Central, já tem 72 anos.) E embora ainda não esteja claro exatamente por que Hu Jintao, o predecessor imediato de Xi, foi expulso sem cerimônia do processo - um incidente capturado em vídeo que foi infinitamente dissecado nas últimas semanas - é claro que Hu estava descontente com seus protegidos reformistas sendo sumariamente demitidos da liderança central do país. Dada a dinâmica precisa daquele dia, o ato de Hu sendo conduzido para fora do palco foi rico em simbolismo. A China sob Xi é agora um show de um homem só.

A consolidação política não é a única maneira pela qual Xi está reproduzindo partes do manual maoísta. Ela também tem a intenção de empurrar a economia da China para longe do capitalismo de mercado e de volta ao estatismo, reabilitando empresas estatais e designando o Estado como o principal impulsionador da inovação tecnológica. Ele seguiu essa designação injetando centenas de bilhões de dólares em já vastos “fundos de orientação” estatais para tecnologias específicas, como semicondutores. (Os Estados Unidos seguiram o exemplo ao promulgar sua própria política industrial por meio da Lei de Chips e Ciência.) A virada econômica marxista de Xi é enfatizada na ênfase de seu relatório de trabalho na necessidade de “prosperidade comum” e em sua diretriz para que a China encontre maneiras de “regular os mecanismos de acumulação de riqueza”.


O relatório de trabalho afirma que os membros do partido agora são obrigados a “compreender tanto a visão de mundo quanto a metodologia do marxismo-leninismo” e aplicar as “ferramentas analíticas do materialismo dialético e histórico” para entender “os grandes desafios da época”. Ao reforçar mais uma vez essa estrutura ontológica e epistemológica marxista tradicional para entender e responder ao mundo, Xi também convocou o partido a “desenvolver uma nova forma de civilização humana”. Isso agora se estende à política externa chinesa, onde Pequim está cada vez mais confortável usando pressão, alavancagem e força. No congresso, Xi prometeu “uma maior capacidade para o exército vencer”, uma “proporção maior de novas forças de combate” e mais “treinamento de combate real”. Em uma formulação nova e particularmente perturbadora, ele declarou em seu relatório de trabalho que seu governo “agiu com determinação para concentrar toda a atenção militar na preparação para a guerra”. Ele disse que Pequim “coordenou esforços para fortalecer a luta militar em todas as direções e domínios”.

Essas mudanças ideológicas, a retórica política que as acompanha e as novas direções políticas resultantes deixam claro que a China agora está rompendo com décadas de pragmatismo e acomodacionismo político, econômico e de política externa. A China de Xi é assertiva. Ele é menos sutil do que seus predecessores, e seu projeto ideológico para o futuro agora está escondido à vista de todos. A questão para todos é se seus planos prevalecerão ou gerarão seus próprios anticorpos políticos, tanto no país quanto no exterior, que comecem a resistir ativamente à visão de Xi para a China e para o mundo. Mas, novamente, como um dialético marxista praticante, Xi Jinping provavelmente já está antecipando essa resposta – e preparando quaisquer contra-medidas que possam ser justificadas.

Sobre o autor:

Kevin Rudd é presidente da Asia Society, com sede em Nova York, e atuou como primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores da Austrália. Ele é o autor do livro The Avoidable War: The Dangers of a Catastrophic Conflict Between the U.S. and Xi Jinping's China.

Bibliografia recomendada:

Bully of Asia:
Why China's dream of the New World Order,
Steven W. Mosher.

Leitura recomendada:



segunda-feira, 3 de outubro de 2022

FOTO: Combatente curda do PKK capturada por soldados turcos

Combatente curda do PKK capturada pelos turcos,
18 de setembro de 2022.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 3 de outubro de 2022.

Combatente curda do grupo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (پارتی کرێکارانی کوردستان / Partiya Karkerên Kurdistan, PKK) capturada por soldados do Exército Turco em 18 de setembro de 2022. Segunda a Turquia, o PKK é um grupo terrorista e não é reconhecido como uma força combatente legítima e, portanto, não é protegida pela Convenção de Genebra para o tratamento humano de prisioneiros de guerra (PG).

O PKK é uma organização política militante curda, de orientação socialista, e um movimento de guerrilha armada, que historicamente operava em todo o Curdistão, mas agora está baseado principalmente nas regiões montanhosas de maioria curda no sudeste da Turquia e no norte do Iraque. A organização é famosa internacionalmente por empregar mulheres nas suas fileiras, principalmente em funções de apoio e propaganda; o que faz incessantemente.

Guerrilheiras YBŞ e PKK no norte do Curdistão em 2017.
O homem na bandeira é Abdullah Öcalan.

A ideologia do PKK era originalmente uma fusão do socialismo revolucionário e do marxismo-leninismo com o nacionalismo curdo, buscando a fundação de um Curdistão independente. O PKK foi formado como parte de um crescente descontentamento com a supressão dos curdos da Turquia, em um esforço para estabelecer direitos linguísticos, culturais e políticos para a minoria curda. Após o golpe militar de 1980 na Turquia, a língua curda foi oficialmente proibida na vida pública e privada. Muitos que falaram, publicaram ou cantaram em curdo foram detidos e presos. O governo turco negou a existência de curdos e o PKK foi retratado como tentando convencer os turcos a serem curdos.

O PKK está envolvido em confrontos armados com as forças de segurança turcas desde 1979, mas a insurgência em grande escala só começou em 15 de agosto de 1984, quando o PKK anunciou uma revolta curda. Desde o início do conflito, mais de 40.000 pessoas morreram, a maioria civis curdos. Em 1999, o líder do PKK Abdullah Öcalan foi capturado e preso. Em maio de 2007, membros ativos e ex-membros do PKK criaram a União das Comunidades do Curdistão (KCK), uma organização abrangente de organizações curdas no Curdistão turco, iraquiano, iraniano e sírio. Em 2013, o PKK declarou um cessar-fogo e começou lentamente a retirar seus combatentes para o Curdistão iraquiano como parte de um processo de paz com o Estado turco.

O cessar-fogo foi rompido em julho de 2015 quando os turcos invadiram o Iraque para combater o Estado Islâmico e os Estados Unidos abandonaram os curdos. Tanto o PKK quanto o Estado turco foram acusados de se envolver em táticas terroristas e visar civis. O PKK bombardeou os centros das cidades e recrutou crianças-soldados, enquanto a Turquia despovoou e incendiou milhares de aldeias curdas e massacrou civis curdos na tentativa de erradicar os militantes do PKK.

Bibliografia recomendada:

A Mulher Militar:
Das origens aos nossos dias,
Raymond Caire.

Leitura recomendada:

COMENTÁRIO: A Lição Curda, 30 de junho de 2021.



segunda-feira, 19 de setembro de 2022

FOTO: Soldados chineses pró-japoneses

Soldados chineses de um dos vários exércitos fantoches do Mikado, anos 1940.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 19 de setembro de 2022.

Soldados chineses pró-japoneses, dois deles armados com submetralhadoras SIG M1920 "Brevet Bergmann" (MP18 fabricados na Suíça), em um local e data sem precisão nos anos 1940. Eles são equipados em um estilo principalmente japonês, com um deles à esquerda usando um capacete alemão M35 que era do Exército Nacionalista Kuomintang (KMT) do Generalíssimo Chiang Kai-shek.

As divisões "alemãs" do Generalíssimo, aconselhadas pela missão militar alemã do General Hans von Seeckt, foram aniquiladas pelos japoneses em Xangai em 1937, com os sobreviventes e homens recrutados pós-fato sendo incorporados pelo Mikado japonês, o que poderia localizar essas tropas em Nanquim; portanto, sendo soldados do Governo Provisório/Reformado de Wang Jingwei.

Original em preto e branco.

A China possuía muitos exércitos, sendo dominada por senhores da guerra sem fidelidade definida. Os vários exércitos pró-japoneses são aglutinados sob o termo "Exército Chinês Colaboracionista", referindo-se às forças militares dos governos fantoches fundados pelo Japão Imperial na China continental durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa e a Segunda Guerra Mundial. Eles incluem os exércitos dos Governos Nacionais Provisórios (1937-1940), Reformados (1938-1940) e Reorganizados da República da China (1940-1945), que absorveram os dois primeiros regimes.

Essas forças eram comumente conhecidas como tropas fantoches, mas receberam nomes diferentes durante sua história, dependendo da unidade e lealdade específicas, como Exército Nacional de Construção da Paz (Hépíng jiànguó jūn和平建国军). No total, estimou-se que todas as forças chinesas colaboracionistas pró-japonesas combinadas tinham uma força de cerca de 683.000; no entanto, o valor real dessas tropas era mínimo e jamais contaram com a confiança japonesa e sempre lutaram sob estrita supervisão de seus mestres do Mikado.

Uma curiosidade foi os governos fantoches declararem o monopólio da luta anti-comunista para esvaziar o apelo do KMT, que era a principal resistência anti-japonesa. No entanto, a China era um país sempre em um estado de fome perpétua, com a a grande maioria dos soldados "fantoches" servia apenas para arroz no seu prato, e não se importava com as razões de estar em uniforme.

Wang Jingwei com oficiais do exército de Nanquim.

Bibliografia recomendada:

Rays of the Rising Sun:
Armed forces of Japan's Asian allies 1931-1945,
Volume 1: China e Manchukuo,
Philip S. Jowett.

Leitura recomendada:



segunda-feira, 13 de junho de 2022

As fontes da conduta soviética


Por “X” (George F. Kennan)Foreign Affairs, julho de 1947.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de junho de 2022.

O artigo “The Sources of Soviet Conduct”, publicado no Foreign Affairs na edição de julho de 1947 sob a assinatura “X”, estabeleceu uma estrutura para a estratégia da Guerra Fria que definiria a política dos EUA por décadas. Nele, George Kennan – cuja autoria foi publicamente confirmada vários anos após a publicação – apresentou uma rica análise da visão de mundo e do poder da União Soviética, bem como uma recomendação para os estrategistas: os Estados Unidos poderiam administrar o desafio de Moscou com “uma contenção de longo prazo, paciente, mas firme e vigilante das tendências expansivas russas”.

A Cortina de Ferro.

A personalidade política do poder soviético como o conhecemos hoje é produto da ideologia e das circunstâncias: ideologia herdada pelos atuais líderes soviéticos do movimento em que tiveram sua origem política e circunstâncias do poder que agora exercem há quase três décadas na Rússia. Poucas tarefas de análise psicológica podem ser mais difíceis do que tentar traçar a interação dessas duas forças e o papel relativo de cada uma na determinação da conduta oficial soviética. No entanto, a tentativa deve ser feita para que essa conduta seja compreendida e efetivamente combatida.

É difícil resumir o conjunto de conceitos ideológicos com os quais os líderes soviéticos chegaram ao poder. A ideologia marxista, em sua projeção russo-comunista, sempre esteve em processo de evolução sutil. Os materiais em que se baseia são extensos e complexos. Mas as características marcantes do pensamento comunista, tal como existia em 1916, talvez possam ser resumidas da seguinte forma:
  • (a) que o fator central na vida do homem, o fator que determina o caráter da vida pública e a "fisionomia da sociedade", é o sistema pelo qual os bens materiais são produzidos e trocados;
  • (b) que o sistema capitalista de produção é um sistema nefasto que inevitavelmente leva à exploração da classe trabalhadora pela classe proprietária de capital e é incapaz de desenvolver adequadamente os recursos econômicos da sociedade ou de distribuir de forma justa os bens materiais produzidos pelos trabalho humano;
  • (c) que o capitalismo contém as sementes de sua própria destruição e deve, em vista da incapacidade da classe proprietária de capital de se ajustar à mudança econômica, resultar final e inevitavelmente em uma transferência revolucionária de poder para a classe trabalhadora; e
  • (d) que o imperialismo, a fase final do capitalismo, leva diretamente à guerra e à revolução.
O resto pode ser esboçado nas próprias palavras de Lênin: "A desigualdade do desenvolvimento econômico e político é a lei inflexível do capitalismo. Segue-se disso que a vitória do socialismo pode vir originalmente em alguns países capitalistas ou mesmo em um único país capitalista. O proletariado vitorioso daquele país, tendo expropriado os capitalistas e organizado a produção socialista em casa, se levantaria contra o resto do mundo capitalista, atraindo para si no processo as classes oprimidas de outros países." [ver nota final 1] Deve-se notar que não havia suposição de que o capitalismo pereceria sem a revolução proletária. Um empurrão final era necessário de um movimento proletariado revolucionário para derrubar a estrutura cambaleante. Mas era considerado inevitável que, mais cedo ou mais tarde, esse empurrão fosse dado.

Por 50 anos antes da eclosão da Revolução, esse padrão de pensamento exerceu grande fascínio sobre os membros do movimento revolucionário russo. Frustrados, descontentes, sem esperança de encontrar a auto-expressão - ou impacientes demais para buscá-la - nos limites confinantes do sistema político czarista, mas sem amplo apoio popular para sua escolha da revolução sangrenta como meio de melhoria social, esses revolucionários encontraram na teoria marxista uma racionalização altamente conveniente para seus próprios desejos instintivos. Forneceu justificativa pseudocientífica para sua impaciência, para sua negação categórica de todo valor no sistema czarista, para seu desejo de poder e vingança e para sua inclinação a cortar custos na busca por isso. Portanto, não é de admirar que eles tenham acreditado implicitamente na verdade e na solidez dos ensinamentos marxistas-leninistas, tão compatíveis com seus próprios impulsos e emoções. Sua sinceridade não precisa ser contestada. Este é um fenômeno tão antigo quanto a própria natureza humana. Nunca foi descrito com mais propriedade do que por Edward Gibbon, que escreveu em A Ascenção e Queda do Império Romano: "Do entusiasmo à impostura, o passo é perigoso e escorregadio; o demônio de Sócrates oferece um exemplo memorável de como um homem sábio pode enganar a si mesmo, como um homem bom pode enganar os outros, como a consciência pode adormecer em um estado misto e intermediário entre auto-ilusão e fraude voluntária." E foi com esse conjunto de concepções que os membros do Partido Bolchevique chegaram ao poder.

Agora, deve-se notar que, durante todos os anos de preparação para a revolução, a atenção desses homens, como na verdade do próprio Marx, estava centrada menos na forma futura que o socialismo [ver nota 2] tomaria do que na necessária derrubada do poder rival que, em sua opinião, teve que preceder a introdução do socialismo. Suas opiniões, portanto, sobre o programa positivo a ser posto em prática, uma vez que o poder fosse alcançado, eram na maior parte nebulosas, visionárias e impraticáveis. Além da nacionalização da indústria e da expropriação de grandes participações de capital privado, não havia um programa acordado. O tratamento do campesinato, que segundo a formulação marxista não era o proletariado, sempre foi um ponto vago no padrão do pensamento comunista; e permaneceu um objeto de controvérsia e vacilação durante os primeiros dez anos do poder comunista.

Vladmir Lenin.

As circunstâncias do período pós-revolucionário imediato — a existência na Rússia de guerra civil e intervenção estrangeira, juntamente com o fato óbvio de que os comunistas representavam apenas uma pequena minoria do povo russo — tornaram necessário o estabelecimento do poder ditatorial. A experiência com o "comunismo de guerra" e a tentativa abrupta de eliminar a produção e o comércio privados tiveram consequências econômicas desastrosas e provocaram ainda mais amargura contra o novo regime revolucionário. Ao mesmo tempo em que o relaxamento temporário do esforço de comunização da Rússia, representado pela Nova Política Econômica, aliviou parte dessa angústia econômica e, assim, serviu ao seu propósito, também tornou evidente que o "setor capitalista da sociedade" ainda estava preparado para lucrar imediatamente de qualquer afrouxamento da pressão governamental e, se permitido que continuasse a existir, sempre constituiria um poderoso elemento de oposição ao regime soviético e um sério rival pela influência no país. Mais ou menos a mesma situação prevalecia em relação ao camponês individual que, à sua pequena maneira, era também um produtor privado.

Lenin, se tivesse vivido, poderia ter se mostrado um homem grande o suficiente para reconciliar essas forças conflitantes para o benefício final da sociedade russa, embora isso seja questionável. Mas seja como for, Stalin e aqueles que ele liderou na luta pela sucessão à posição de liderança de Lenin não eram homens para tolerar forças políticas rivais na esfera de poder que eles cobiçavam. A sensação de insegurança deles era muito grande. Seu tipo particular de fanatismo, não modificado por nenhuma das tradições anglo-saxônicas de compromisso, era muito feroz e muito ciumento para conceber qualquer partilha permanente de poder. Do mundo russo-asiático de onde emergiram traziam consigo um ceticismo quanto às possibilidades de coexistência permanente e pacífica de forças rivais. Facilmente persuadidos de sua própria "correção" doutrinária, eles insistiam na submissão ou destruição de todo poder concorrente. Fora do Partido Comunista, a sociedade russa não deveria ter rigidez. Não deveria haver formas de atividade ou associação humana coletiva que não fossem dominadas pelo Partido. Nenhuma outra força na sociedade russa deveria ter permissão para alcançar vitalidade ou integridade. Só o Partido deveria ter estrutura. Todo o resto seria uma massa amorfa.

E dentro do Partido o mesmo princípio deveria ser aplicado. A massa de membros do Partido pode passar pelas moções de eleição, deliberação, decisão e ação; mas nessas moções eles deveriam ser animados não por suas próprias vontades individuais, mas pelo sopro temeroso da liderança do Partido e pela presença insidiosa da "palavra".

Ressalte-se novamente que, subjetivamente, esses homens provavelmente não buscaram o absolutismo por si só. Eles sem dúvida acreditavam — e achavam fácil acreditar — que só eles sabiam o que era bom para a sociedade e que realizariam esse bem uma vez que seu poder estivesse seguro e incontestável. Mas, ao buscar a segurança de seu próprio governo, eles estavam preparados para não reconhecer restrições, nem de Deus, nem do homem, sobre o caráter de seus métodos. E até que essa segurança pudesse ser alcançada, eles colocaram bem abaixo em sua escala de prioridades operacionais o conforto e a felicidade dos povos confiados aos seus cuidados.

Ora, a circunstância notável sobre o regime soviético é que até hoje esse processo de consolidação política nunca foi concluído e os homens do Kremlin continuaram a ser predominantemente absorvidos pela luta para garantir e tornar absoluto o poder que conquistaram em novembro de 1917. Eles se esforçaram para protegê-lo principalmente contra as forças domésticas, dentro da própria sociedade soviética. Mas eles também se esforçaram para protegê-lo contra o mundo exterior. Pois a ideologia, como vimos, ensinou-lhes que o mundo exterior era hostil e que era seu dever eventualmente derrubar as forças políticas além de suas fronteiras. As mãos poderosas da história e da tradição russas estenderam-se para sustentá-los nesse sentimento. Finalmente, sua própria intransigência agressiva em relação ao mundo exterior começou a encontrar sua própria reação; e logo foram forçados, para usar outra frase gibboniana, "para castigar a contumácia" que eles mesmos haviam provocado. É um privilégio inegável de todo homem provar que está certo na tese de que o mundo é seu inimigo; pois se ele reiterar isso com bastante frequência e fizer disso o pano de fundo de sua conduta, acabará fadado a estar certo.

Agora, está na natureza do mundo mental dos líderes soviéticos, bem como no caráter de sua ideologia, que nenhuma oposição a eles pode ser oficialmente reconhecida como tendo qualquer mérito ou justificação. Tal oposição pode fluir, em teoria, apenas das forças hostis e incorrigíveis do capitalismo moribundo. Desde que os resquícios do capitalismo foram oficialmente reconhecidos como existentes na Rússia, foi possível atribuir a eles, como elemento interno, parte da culpa pela manutenção de uma forma ditatorial de sociedade. Mas, à medida que esses remanescentes foram liquidados, pouco a pouco, essa justificativa foi desaparecendo; e quando foi indicado oficialmente que eles haviam sido finalmente destruídos, ela desapareceu completamente. E esse fato criou uma das compulsões mais básicas que vieram a agir sobre o regime soviético: como o capitalismo não existia mais na Rússia e como não se podia admitir que pudesse haver uma oposição séria ou generalizada ao Kremlin surgindo espontaneamente das massas libertadas sob sua autoridade, tornou-se necessário justificar a manutenção da ditadura enfatizando a ameaça do capitalismo no exterior.

Stalin em 1937.

Isso começou cedo. Em 1924, Stalin defendeu especificamente a manutenção dos "órgãos de repressão", significando, entre outros, o exército e a polícia secreta, alegando que "enquanto houver um cerco capitalista haverá perigo de intervenção com todas as consequências que fluem desse perigo." De acordo com essa teoria, e desde então, todas as forças internas de oposição na Rússia têm sido consistentemente retratadas como agentes de forças estrangeiras de reação antagônicas ao poder soviético.

Da mesma forma, uma enorme ênfase foi colocada na tese comunista original de um antagonismo básico entre os mundos capitalista e socialista. Fica claro, por muitas indicações, que essa ênfase não se fundamenta na realidade. Os fatos reais a seu respeito foram confundidos pela existência no exterior de um ressentimento genuíno provocado pela filosofia e tática soviéticas e, ocasionalmente, pela existência de grandes centros de poder militar, notadamente o regime nazista na Alemanha e o governo japonês do final da década de 1930, que de fato, tiveram projetos agressivos contra a União Soviética. Mas há ampla evidência de que a ênfase colocada em Moscou sobre a ameaça que a sociedade soviética enfrenta do mundo fora de suas fronteiras se baseia não nas realidades do antagonismo estrangeiro, mas na necessidade de explicar a manutenção da autoridade ditatorial em casa.

Agora, a manutenção desse padrão de poder soviético, ou seja, a busca de autoridade ilimitada internamente, acompanhada pelo cultivo do semi-mito da implacável hostilidade estrangeira, foi muito longe para moldar a máquina real do poder soviético como a conhecemos hoje. Os órgãos internos de administração que não serviam a esse propósito murcharam na videira. Órgãos que serviam a esse propósito ficaram muito inchados. A segurança do poder soviético baseou-se na disciplina férrea do Partido, na severidade e onipresença da polícia secreta e no intransigente monopólio econômico do Estado. Os "órgãos de repressão", nos quais os líderes soviéticos buscaram a segurança das forças rivais, tornaram-se, em grande medida, os senhores daqueles a quem deveriam servir. Hoje a maior parte da estrutura do poder soviético está comprometida com o aperfeiçoamento da ditadura e com a manutenção do conceito de Rússia em estado de sítio, com o inimigo descendo além dos muros. E os milhões de seres humanos que formam essa parte da estrutura de poder devem defender a todo custo esse conceito da posição da Rússia, pois sem ela eles próprios são supérfluos.

Como as coisas estão hoje, os governantes não podem mais sonhar em se separar desses órgãos de repressão. A busca pelo poder absoluto, perseguida agora há quase três décadas com uma crueldade sem paralelo (pelo menos em escopo) nos tempos modernos, novamente produziu internamente, como fez externamente, sua própria reação. Os excessos do aparato policial transformaram a oposição potencial ao regime em algo muito maior e mais perigoso do que poderia ter sido antes desses excessos começarem.

Mas muito menos os governantes podem dispensar a ficção pela qual a manutenção do poder ditatorial tem sido defendida. Pois esta ficção foi canonizada na filosofia soviética pelos excessos já cometidos em seu nome; e agora está ancorado na estrutura de pensamento soviética por laços muito maiores do que os da mera ideologia.

II

Tudo isso para o pano de fundo histórico. O que isso significa em termos da personalidade política do poder soviético como o conhecemos hoje?

Da ideologia original, nada foi oficialmente descartado. A crença é mantida na maldade básica do capitalismo, na inevitabilidade de sua destruição, na obrigação do proletariado de ajudar nessa destruição e tomar o poder em suas próprias mãos. Mas a ênfase passou a ser colocada principalmente naqueles conceitos que se relacionam mais especificamente com o próprio regime soviético: com sua posição como o único regime verdadeiramente socialista em um mundo escuro e mal orientado, e com as relações de poder dentro dele.


O primeiro desses conceitos é o do antagonismo inato entre capitalismo e socialismo. Vimos quão profundamente esse conceito se enraizou nos fundamentos do poder soviético. Tem profundas implicações para a conduta da Rússia como membro da sociedade internacional. Isso significa que nunca pode haver do lado de Moscou nenhuma assunção sincera de uma comunidade de objetivos entre a União Soviética e as potências consideradas capitalistas. Deve-se invariavelmente assumir em Moscou que os objetivos do mundo capitalista são antagônicos ao regime soviético e, portanto, aos interesses dos povos que ele controla. Se o governo soviético ocasionalmente assina documentos que indiquem o contrário, isso deve ser considerado uma manobra tática permissível para lidar com o inimigo (que não tem honra) e deve ser tomada no espírito de caveat emptor [aceitar os riscos]. Basicamente, o antagonismo permanece. Está postulado. E daí decorrem muitos dos fenômenos que achamos perturbadores na condução da política externa do Kremlin: o sigilo, a falta de franqueza, a duplicidade, a desconfiança cautelosa e a hostilidade básica de propósito. Esses fenômenos estão aí para ficar, no futuro próximo. Pode haver variações de grau e de ênfase. Quando há algo que os russos querem de nós, uma ou outra dessas características de sua política pode ser temporariamente colocada em segundo plano; e quando isso acontecer, sempre haverá americanos que darão um salto à frente com anúncios alegres de que "os russos mudaram", e alguns que até tentarão levar o crédito por terem provocado tais "mudanças". Mas não devemos ser enganados por manobras táticas. Essas características da política soviética, como o postulado do qual derivam, são básicas para a natureza interna do poder soviético e estarão conosco, seja em primeiro plano ou em segundo plano, até que a natureza interna do poder soviético seja alterada.

Isso significa que vamos continuar por muito tempo a achar difícil lidar com os russos. Isso não significa que eles devam ser considerados como embarcados em um programa de vida ou morte para derrubar nossa sociedade em uma determinada data. A teoria da inevitabilidade da eventual queda do capitalismo tem a feliz conotação de que não há pressa. As forças do progresso podem demorar a preparar o golpe de misericórdia final. Enquanto isso, o que é vital é que a "pátria socialista" - esse oásis de poder que já foi conquistado para o socialismo na pessoa da União Soviética - seja acarinhada e defendida por todos os bons comunistas em casa e no exterior, suas fortunas promovidas, seus inimigos atormentados e confundidos. A promoção de projetos revolucionários prematuros e "aventureiros" no exterior que pudessem de alguma forma constranger o poder soviético seria um ato indesculpável, até mesmo contrarrevolucionário. A causa do socialismo é o apoio e a promoção do poder soviético, conforme definido em Moscou.

Isso nos leva ao segundo dos conceitos importantes para a perspectiva soviética contemporânea. Essa é a infalibilidade do Kremlin. O conceito soviético de poder, que não permite focos de organização fora do próprio Partido, exige que a direção do Partido permaneça, em teoria, como o único repositório da verdade. Pois se a verdade fosse encontrada em outro lugar, haveria justificativa para sua expressão na atividade organizada. Mas é precisamente isso que o Kremlin não pode e não irá permitir.

A direção do Partido Comunista está, portanto, sempre certa, e sempre esteve certa desde que, em 1929, Stalin formalizou seu poder pessoal anunciando que as decisões do Politburo estavam sendo tomadas por unanimidade.

No princípio da infalibilidade repousa a disciplina férrea do Partido Comunista. Na verdade, os dois conceitos são mutuamente auto-sustentáveis. A disciplina perfeita requer o reconhecimento da infalibilidade. A infalibilidade requer a observância da disciplina. E os dois juntos vão longe para determinar o comportamento de todo o aparato de poder soviético. Mas seu efeito não pode ser entendido a menos que um terceiro fator seja levado em conta: a saber, o fato de que a liderança tem a liberdade de apresentar para fins táticos qualquer tese particular que considere útil para a causa em qualquer momento específico e exigir que os fiéis e aceitação inquestionável da tese pelos membros do movimento como um todo. Isso significa que a verdade não é uma constante, mas é realmente criada, para todos os efeitos, pelos próprios líderes soviéticos. Pode variar de semana para semana, de mês para mês. Não é nada absoluto e imutável – nada que flui da realidade objetiva. É apenas a manifestação mais recente da sabedoria daqueles em quem a sabedoria suprema deve residir, porque eles representam a lógica da história. O efeito cumulativo desses fatores é dar a todo o aparato subordinado do poder soviético uma teimosia e firmeza inabaláveis em sua orientação. Essa orientação pode ser alterada à vontade pelo Kremlin, mas por nenhum outro poder. Uma vez que uma determinada linha partidária tenha sido estabelecida em uma determinada questão da política atual, toda a máquina governamental soviética, incluindo o mecanismo da diplomacia, move-se inexoravelmente ao longo do caminho prescrito, como um automóvel de brinquedo persistente que dá corda e segue em uma determinada direção, parando apenas quando encontra alguma força incontestável.

Os indivíduos que são os componentes dessa máquina são inacessíveis ao argumento ou à razão que lhes vem de fontes externas. Todo o seu treinamento os ensinou a desconfiar e desconsiderar a persuasão loquaz do mundo exterior. Como o cachorro branco diante do fonógrafo, eles ouvem apenas a "voz do mestre". E se eles devem ser cancelados dos propósitos que lhes foram ditados por último, é o mestre quem deve cancelá-los. Assim, o representante estrangeiro não pode esperar que suas palavras causem alguma impressão neles. O máximo que ele pode esperar é que elas sejam transmitidas para aqueles que estão no topo, que são capazes de mudar a linha do partido. Mas mesmo esses provavelmente não serão influenciados por qualquer lógica normal nas palavras do representante burguês. Uma vez que não pode haver apelo a propósitos comuns, não pode haver apelo a abordagens mentais comuns. Por esta razão, os fatos falam mais alto que as palavras aos ouvidos do Kremlin; e as palavras têm o maior peso quando têm o tom de refletir, ou serem apoiadas por, fatos de validade incontestável.

Mas vimos que o Kremlin não está sob compulsão ideológica para cumprir seus propósitos com pressa. Como a Igreja, está lidando com conceitos ideológicos que são de validade de longo prazo, e pode se dar ao luxo de ser paciente. Não tem o direito de arriscar as conquistas existentes da revolução por causa de bugigangas vãs do futuro. Os próprios ensinamentos do próprio Lênin exigem grande cautela e flexibilidade na busca dos propósitos comunistas. Mais uma vez, esses preceitos são fortalecidos pelas lições da história russa: de séculos de batalhas obscuras entre forças nômades ao longo de uma vasta planície não fortificada. Aqui cautela, circunspecção, flexibilidade e engano são as qualidades valiosas; e seu valor encontra apreciação natural na mente russa ou oriental. Assim, o Kremlin não tem escrúpulos em recuar diante de uma força superior. E estando sob a compulsão de nenhum cronograma, não entra em pânico com a necessidade de tal recuo. Sua ação política é uma corrente fluida que se move constantemente, onde quer que seja permitido, em direção a um determinado objetivo. Sua principal preocupação é garantir que ele preencha todos os cantos e recantos disponíveis na bacia do poder mundial. Mas se encontra barreiras inatacáveis em seu caminho, aceita-as filosoficamente e acomoda-se a elas. O principal é que sempre deve haver pressão, pressão constante e incessante, em direção ao objetivo desejado. Não há nenhum traço de qualquer sentimento na psicologia soviética de que esse objetivo deva ser alcançado a qualquer momento específico.

Napoleão cruza o passo de Grand-Saint-Bernard, nos Alpes,
por Jacques Louis David.

Essas considerações tornam a diplomacia soviética ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil de lidar do que a diplomacia de líderes agressivos individuais como Napoleão e Hitler. Por um lado, é mais sensível à força contrária, mais pronta para ceder a setores individuais da frente diplomática quando essa força é considerada muito forte e, portanto, mais racional na lógica e na retórica do poder. Por outro lado, não pode ser facilmente derrotada ou desencorajada por uma única vitória por parte de seus oponentes. E a persistência paciente pela qual ela é animada significa que ela pode ser efetivamente combatida não por atos esporádicos que representam os caprichos momentâneos da opinião democrática, mas apenas por políticas inteligentes de longo alcance por parte dos adversários da Rússia – políticas não menos firmes em seu propósito, e não menos variadas e engenhosas em sua aplicação, do que as da própria União Soviética.

Nessas circunstâncias, é claro que o principal elemento de qualquer política dos Estados Unidos em relação à União Soviética deve ser a contenção de longo prazo, paciente, mas firme e vigilante, das tendências expansivas russas. É importante notar, no entanto, que tal política não tem nada a ver com histrionismo exterior: com ameaças ou gestos fanfarrões ou supérfluos de "dureza" exterior. Embora o Kremlin seja basicamente flexível em sua reação às realidades políticas, não é de forma alguma inacessível a considerações de prestígio. Como quase qualquer outro governo, ele pode ser colocado por gestos indelicados e ameaçadores em uma posição em que não pode ceder, mesmo que isso possa ser ditado por seu senso de realismo. Os líderes russos são juízes perspicazes da psicologia humana e, como tal, estão altamente conscientes de que a perda de temperamento e de autocontrole nunca é uma fonte de força nos assuntos políticos. Eles são rápidos em explorar tais evidências de fraqueza. Por essas razões, é condição sine qua non para o sucesso no trato com a Rússia que o governo estrangeiro em questão permaneça sempre calmo e sereno e que suas demandas sobre a política russa sejam apresentadas de forma a deixar o caminho aberto para um cumprimento não muito prejudicial ao prestígio russo.

III

À luz do exposto, será visto claramente que a pressão soviética contra as instituições livres do mundo ocidental é algo que pode ser contido pela aplicação hábil e vigilante de contra-força em uma série de pontos geográficos e políticos em constante mudança, correspondentes às mudanças e manobras da política soviética, mas que não podem ser enfeitiçadas ou descartadas. 
Os russos anseiam por um duelo de duração infinita e vêem que já obtiveram grandes sucessos. Deve-se ter em mente que houve um tempo em que o Partido Comunista representava muito mais uma minoria na esfera da vida nacional russa do que o poder soviético representa hoje na comunidade mundial.

Mas se a ideologia convence os governantes da Rússia de que a verdade está do lado deles e que eles podem, portanto, esperar, aqueles de nós sobre os quais essa ideologia não diz respeito, são livres para examinar objetivamente a validade dessa premissa. A tese soviética não apenas implica uma completa falta de controle do Ocidente sobre seu próprio destino econômico, mas também pressupõe unidade, disciplina e paciência russas por um período infinito. Vamos trazer essa visão apocalíptica para a terra e supor que o mundo ocidental encontre a força e a capacidade de conter o poder soviético por um período de dez a quinze anos. O que isso significa para a própria Rússia?

Os líderes soviéticos, aproveitando as contribuições da técnica moderna para as artes do despotismo, resolveram a questão da obediência dentro dos limites de seu poder. Poucos desafiam sua autoridade; e mesmo aqueles que o fazem são incapazes de fazer valer esse desafio contra os órgãos de repressão do Estado.

O Kremlin também se mostrou capaz de cumprir seu propósito de construir na Rússia, independentemente dos interesses dos habitantes, uma base industrial de metalurgia pesada, que certamente ainda não está completa, mas que continua a crescer e está aproximando-se das dos outros grandes países industrializados. Tudo isso, no entanto, tanto a manutenção da segurança política interna quanto a construção da indústria pesada, foi realizado a um custo terrível em vidas humanas e em esperanças e energias humanas. Isso exigiu o uso de trabalho forçado em uma escala sem precedentes nos tempos modernos em condições de paz. Envolveu a negligência ou abuso de outras fases da vida econômica soviética, particularmente agricultura, produção de bens de consumo, habitação e transporte.

A tudo isso, a guerra acrescentou seu tremendo preço de destruição, morte e exaustão humana. Em consequência disso, temos hoje na Rússia uma população que está física e espiritualmente cansada. A massa do povo está desiludida, cética e não mais tão acessível quanto antes à atração mágica que o poder soviético ainda irradia para seus seguidores no exterior. A avidez com que as pessoas aproveitaram o ligeiro descanso concedido à Igreja por razões táticas durante a guerra foi um testemunho eloquente do fato de que sua capacidade de fé e devoção encontrou pouca expressão nos propósitos do regime.

Nessas circunstâncias, há limites para a força física e nervosa das próprias pessoas. Esses limites são absolutos, e são obrigatórios mesmo para a ditadura mais cruel, porque além deles as pessoas não podem ser conduzidas. Os campos de trabalhos forçados e outras agências de constrangimento fornecem meios temporários de obrigar as pessoas a trabalhar mais horas do que sua própria vontade ou mera pressão econômica ditariam; mas se as pessoas sequer sobrevivem a eles, elas envelhecem antes do tempo e devem ser consideradas vítimas humanas das exigências da ditadura. Em ambos os casos, seus melhores poderes não estão mais disponíveis para a sociedade e não podem mais ser colocados a serviço do Estado.

Aqui apenas a geração mais jovem pode ajudar. A geração mais jovem, apesar de todas as vicissitudes e sofrimentos, é numerosa e vigorosa; e os russos são um povo talentoso. Mas ainda resta ver quais serão os efeitos sobre o desempenho maduro das tensões emocionais anormais da infância que a ditadura soviética criou e que foram enormemente aumentadas pela guerra. Coisas como segurança normal e placidez do ambiente doméstico praticamente deixaram de existir na União Soviética, fora das fazendas e aldeias mais remotas. E os observadores ainda não têm certeza se isso não deixará sua marca na capacidade geral da geração que está chegando à maturidade.

Além disso, temos o fato de que o desenvolvimento econômico soviético, embora possa listar certas conquistas formidáveis, tem sido precariamente irregular e desigual. Os comunistas russos que falam do "desenvolvimento desigual do capitalismo" deveriam enrubescer ao contemplar sua própria economia nacional. Aqui, certos ramos da vida econômica, como as indústrias metalúrgicas e mecânicas, foram deslocados de forma desproporcional em relação a outros setores da economia. Aqui está uma nação lutando para se tornar em um curto período uma das grandes nações industriais do mundo, enquanto ainda não possui uma rede rodoviária digna desse nome e apenas uma rede ferroviária relativamente primitiva. Muito tem sido feito para aumentar a eficiência do trabalho e ensinar aos camponeses primitivos algo sobre o funcionamento das máquinas. Mas a manutenção ainda é uma deficiência gritante de toda a economia soviética. A construção é apressada e de baixa qualidade. A depreciação deve ser enorme. E em vastos setores da vida econômica ainda não foi possível incutir no trabalho algo parecido com aquela cultura geral de produção e auto-respeito técnico que caracteriza o trabalhador especializado do Ocidente.

É difícil ver como essas deficiências podem ser corrigidas precocemente por uma população cansada e desanimada trabalhando em grande parte sob a sombra do medo e da compulsão. E enquanto eles não forem superados, a Rússia continuará sendo uma nação economicamente vulnerável e, em certo sentido, impotente, capaz de exportar seu entusiasmo e irradiar o estranho encanto de sua vitalidade política primitiva, mas incapaz de respaldar esses artigos de exportação pelas evidências reais de poder material e prosperidade.

Enquanto isso, uma grande incerteza paira sobre a vida política da União Soviética. Essa é a incerteza envolvida na transferência de poder de um indivíduo ou grupo de indivíduos para outros.

Este é, naturalmente, o problema da posição pessoal de Stalin. Devemos lembrar que sua sucessão ao pináculo da proeminência de Lenin no movimento comunista foi a única transferência de autoridade individual que a União Soviética experimentou. Essa transferência levou 12 anos para se consolidar. Custou a vida de milhões de pessoas e abalou o Estado até seus alicerces. Os tremores decorrentes foram sentidos por todo o movimento revolucionário internacional, em detrimento do próprio Kremlin.

Prisioneiros de um Gulag.

É sempre possível que outra transferência de poder preeminente ocorra silenciosa e discretamente, sem repercussões em qualquer lugar. Mas, novamente, é possível que as questões envolvidas possam desencadear, para usar algumas das palavras de Lenin, uma daquelas "transições incrivelmente rápidas" de "engano delicado" para "violência selvagem" que caracterizam a história russa, e pode abalar o poder soviético em seus alicerces.

Mas esta não é apenas uma questão do próprio Stalin. Houve, desde 1938, um perigoso congelamento da vida política nos altos círculos do poder soviético. O Congresso dos Sovietes de Toda a União, teoricamente o órgão supremo do Partido, deve reunir-se pelo menos uma vez a cada três anos. Em breve serão oito anos completos desde sua última reunião. Durante este período, o número de membros do Partido duplicou numericamente. A mortalidade do partido durante a guerra foi enorme; e hoje bem mais da metade dos membros do Partido são pessoas que entraram desde o último congresso do Partido. Enquanto isso, o mesmo pequeno grupo de homens continuou no topo por uma incrível série de vicissitudes nacionais. Certamente há alguma razão pela qual as experiências da guerra trouxeram mudanças políticas básicas para cada um dos grandes governos do ocidente. Certamente as causas desse fenômeno são básicas o suficiente para estar presentes em algum lugar na obscuridade da vida política soviética também. E, no entanto, nenhum reconhecimento foi dado a essas causas na Rússia.

Deve-se supor a partir disso que, mesmo dentro de uma organização tão altamente disciplinada como o Partido Comunista, deve haver uma crescente divergência de idade, perspectiva e interesse entre a grande massa de membros do Partido, recém-recrutados para o movimento, e a pequena camarilha auto-perpetuante de homens no topo, que a maioria desses membros do Partido nunca conheceu, com quem nunca conversaram e com quem não podem ter intimidade política.

Stalin discursando em 1947.

Quem pode dizer se, nestas circunstâncias, o eventual rejuvenescimento das esferas superiores de autoridade (que só pode ser uma questão de tempo) pode ocorrer de forma suave e pacífica, ou se os rivais na busca de poder superior não chegarão eventualmente a essas massas politicamente imaturas e inexperientes para encontrar apoio para suas respectivas reivindicações? Se isso acontecesse, consequências estranhas poderiam fluir para o Partido Comunista: pois a membresia em geral tem sido exercida apenas nas práticas de disciplina férrea e obediência e não nas artes de compromisso e acomodação. E se a desunião algum dia tomasse e paralisasse o Partido, o caos e a fraqueza da sociedade russa seriam revelados em formas indescritíveis. Pois vimos que o poder soviético é apenas uma crosta que esconde uma massa amorfa de seres humanos entre os quais nenhuma estrutura organizacional independente é tolerada. Na Rússia não existe nem governo local. A atual geração de russos nunca conheceu a espontaneidade da ação coletiva. Se, consequentemente, alguma coisa acontecesse para romper a unidade e a eficácia do Partido como instrumento político, a Rússia soviética poderia ser mudada da noite para o dia de uma das mais fortes sociedades para uma das mais fracas e lamentáveis das sociedades nacionais.

Assim, o futuro do poder soviético pode não ser tão seguro quanto a capacidade russa de auto-ilusão faria parecer aos homens do Kremlin. Que eles mesmos podem manter o poder, eles demonstraram. Que eles podem tranquila e facilmente entregá-lo a outros continua a ser uma dúvida. Enquanto isso, as dificuldades de seu governo e as vicissitudes da vida internacional cobraram um alto preço da força e das esperanças das grandes pessoas sobre as quais seu poder repousa. É curioso notar que o poder ideológico da autoridade soviética é hoje mais forte em áreas além das fronteiras da Rússia, além do alcance de seu poder de polícia. Esse fenômeno traz à mente uma comparação usada por Thomas Mann em seu grande romance Buddenbrooks. Observando que as instituições humanas muitas vezes mostram o maior brilho exterior no momento em que a decadência interior está, na realidade, mais avançada, ele comparou a família Buddenbrook, nos dias de seu maior glamour, a uma daquelas estrelas cuja luz brilha mais intensamente neste mundo quando na realidade, há muito deixou de existir. E quem pode dizer com segurança que a forte luz ainda lançada pelo Kremlin sobre os povos insatisfeitos do mundo ocidental não é o poderoso resplendor de uma constelação que na verdade está em declínio? Isso não pode ser provado. E isso não pode ser refutado. Mas a possibilidade permanece (e na opinião deste escritor é forte) que o poder soviético, como o mundo capitalista de sua concepção, carregue em si as sementes de sua própria decadência, e que o surgimento dessas sementes esteja bem avançado.

IV

É claro que os Estados Unidos não podem esperar no futuro próximo desfrutar de intimidade política com o regime soviético. Deve continuar a ver a União Soviética como rival, não como parceira, na arena política. Deve continuar a esperar que as políticas soviéticas não reflitam nenhum amor abstrato pela paz e estabilidade, nenhuma fé real na possibilidade de uma coexistência feliz e permanente dos mundos socialista e capitalista, mas sim uma pressão cautelosa e persistente em direção à ruptura e enfraquecimento de toda influência e poder rivais.


Contra isso estão os fatos de que a Rússia, em oposição ao mundo ocidental em geral, ainda é de longe a parte mais fraca, que a política soviética é altamente flexível e que a sociedade soviética pode conter deficiências que acabarão por enfraquecer seu próprio potencial total. Isso, por si só, garantiria que os Estados Unidos adotassem com razoável confiança uma política de contenção firme, destinada a confrontar os russos com força contrária inalterável em todos os pontos em que eles mostrassem sinais de invadir os interesses de um mundo pacífico e estável.

Mas, na realidade, as possibilidades para a política americana não se limitam de forma alguma a manter a linha e esperar o melhor. É perfeitamente possível que os Estados Unidos influenciem por suas ações os desenvolvimentos internos, tanto na Rússia quanto em todo o movimento comunista internacional, pelo qual a política russa é amplamente determinada. Não se trata apenas da modesta medida de atividade informacional que esse governo pode realizar na União Soviética e em outros lugares, embora isso também seja importante. Trata-se antes de saber até que ponto os Estados Unidos podem criar entre os povos do mundo em geral a impressão de um país que sabe o que quer, que está lidando com sucesso com os problemas de sua vida interna e com as responsabilidades de uma potência mundial, e que tem uma vitalidade espiritual capaz de manter-se entre as grandes correntes ideológicas da época. Na medida em que tal impressão pode ser criada e mantida, os objetivos do comunismo russo devem parecer estéreis e quixotescos, as esperanças e o entusiasmo dos partidários de Moscou devem diminuir e uma tensão adicional deve ser imposta às políticas externas do Kremlin. Pois a decrepitude paralisada do mundo capitalista é a pedra angular da filosofia comunista. Mesmo o fracasso dos Estados Unidos em experimentar a depressão econômica inicial que os corvos da Praça Vermelha previam com tanta confiança complacente desde que as hostilidades cessaram teria repercussões profundas e importantes em todo o mundo comunista.

Da mesma forma, as exibições de indecisão, desunião e desintegração interna neste país têm um efeito estimulante em todo o movimento comunista. A cada evidência dessas tendências, um arrepio de esperança e excitação percorre o mundo comunista; nota-se uma nova elegância na trilha de Moscou; novos grupos de apoiadores estrangeiros sobem para o que eles só podem ver como o movimento da política internacional; e a pressão russa aumenta em toda a linha nos assuntos internacionais.

Seria um exagero dizer que o comportamento americano sem ajuda e sozinho poderia exercer um poder de vida ou morte sobre o movimento comunista e provocar a queda precoce do poder soviético na Rússia. Mas os Estados Unidos têm o poder de aumentar enormemente as pressões sob as quais a política soviética deve operar, de impor ao Kremlin um grau muito maior de moderação e circunspecção do que ele teve de observar nos últimos anos e, dessa forma, promover tendências que devem eventualmente encontrar sua saída no colapso ou no amadurecimento gradual do poder soviético. Pois nenhum movimento místico e messiânico – e particularmente não o do Kremlin – pode enfrentar a frustração indefinidamente sem eventualmente se ajustar de uma forma ou de outra à lógica desse estado de coisas.

Assim, a decisão realmente recairá em grande medida sobre este próprio país. A questão das relações soviético-americanas é, em essência, um teste do valor geral dos Estados Unidos como nação entre nações. Para evitar a destruição, os Estados Unidos precisam apenas estar à altura de suas melhores tradições e provar que são dignos de preservação como uma grande nação.

Certamente, nunca houve um teste mais justo de qualidade nacional do que este. À luz dessas circunstâncias, o observador atento das relações russo-americanas não encontrará motivos para reclamar no desafio do Kremlin à sociedade americana. Ele experimentará uma certa gratidão a uma Providência que, ao fornecer ao povo americano esse desafio implacável, fez com que toda a sua segurança como nação dependesse de eles se recomporem e aceitar as responsabilidades de liderança moral e política que a história claramente pretendia que eles carregassem.

Notas

[1] "Sobre os Slogans dos Estados Unidos da Europa", agosto de 1915. Edição oficial soviética das obras de Lenin.

[2] Aqui e em outras partes deste artigo, "socialismo" refere-se ao comunismo marxista ou leninista, não ao socialismo liberal da variedade da Segunda Internacional.