quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Soldados russos mortos na Chechênia, uma visão comum no período

Soldados russos mortos, com o corpo fumegando, em torno de um veículo de transporte blindado destruído durante a primeira guerra chechena.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 4 de agosto de 2022.

Soldados russos mortos ao lado de um blindado destruído em chamas, visão comum durante a Guerra da Chechênia, que ocorreu de 1994 a 1996, e escancarou para o mundo o despreparo da forças russas pós-soviéticas. Os russos foram humilhados diante das câmeras de jornalistas de todo mundo, demonstrando níveis inacreditáveis de incompetência militar e corrupção. Oficiais bêbados, tropas mal armadas e sem treinamento, e massacres sistemáticos praticados contra civis indefesos. O choque das péssimas práticas russas foi ainda amplificado em comparação ao sucesso das tropas americanas, britânicas e francesas na ofensiva relâmpago contra o bem-equipado Iraque em 1991.

Em meio às cidades chechenas completamente arrasadas por bombardeamentos indiscriminados, as tropas russas eram emboscadas diariamente na primeira campanha de ataques filmados para propaganda, com os vídeos sendo reprisados por emissoras de TV ao redor do mundo. As forças armadas russas são famosas por esconderem baixas, e a controvérsia e falta de transparência dos números permanece até hoje, mas agora era basicamente impossível esconder a escala das perdas. 

"Deixe-me falar sobre um caso específico. Eu sabia com certeza que neste dia - era final de fevereiro ou início de março de 1995 - quarenta militares do Grupo Conjunto foram mortos. E eles me trouxeram informações sobre quinze. Eu perguntei: 'Por que você não leva em conta o resto?' Eles hesitaram: 'Bem, você vê, 40 é muito. É melhor distribuirmos essas perdas por alguns dias.' Claro, fiquei indignado com essas manipulações."
- General Anatoly Kulikov, comandante do Grupo Conjunto de Forças Federais russo.

De acordo com o Estado-Maior das Forças Armadas Russas, 3.826 soldados foram mortos, 17.892 ficaram feridos e 1.906 estão desaparecidos em ação. De acordo com o NVO, a publicação oficial semanal militar independente russa, pelo menos 5.362 soldados russos morreram durante a guerra, 52.000 ficaram feridos ou adoeceram e cerca de 3.000 outros permaneceram desaparecidos até 2005. A estimativa do Comitê de Mães de Soldados da Rússia (Союз Комитетов Солдатских Матерей России, Soyuz Komitetov Soldatskikh Materey Rossii), no entanto, colocou o número de militares russos mortos em 14.000, com base em informações de tropas feridas e parentes de soldados. Essa estimativa contando apenas tropas regulares conscritas; ou seja, não incluem os kontraktniki (soldados contratos, profissionais) e as forças especiais, o que exclui números consideráveis de baixas. O Centro de Direitos Humanos "Memorial" (Мемориал, IPA) elaborou uma lista de nomes dos soldados mortos, a qual contém 4.393 nomes.

Em 2009, o número oficial de soldados russos ainda desaparecidos das duas guerras na Chechênia e presumivelmente mortos era de cerca de 700, enquanto cerca de 400 restos mortais dos militares desaparecidos teriam sido recuperados até hoje. Porém, os amontoados de corpos eram filmados e observados por repórteres que não estavam sob a censura de Moscou. Em 1995, o jornalista John Iams, da Associated Press, fez um relato mórbido de pilhas de corpos de jovens soldados russos em geladeiras em um necrotério, sendo transportados secretamente de volta para a Rússia.

Soldados russos na Primeira Guerra da Chechênia (1994-1996).

Centenas de soldados russos mortos se amontoam em necrotério militar

Por John Iams, Associated Press, 11 de fevereiro de 1995.

MOSCOU (AP) - Trens refrigerados transportaram os corpos de centenas de soldados russos mortos na Chechênia para necrotérios militares, onde aguardam identificação e um lugar no número oficial de mortos.

Mais corpos são despejados nos necrotérios todos os dias, alimentando perguntas sobre as verdadeiras dimensões do desastre militar da Rússia na república separatista do Cáucaso.

Corpo carbonizado de um soldado russo.

Patologistas de um único necrotério em Rostov-on-Don, no sudoeste da Rússia, disseram na sexta-feira que lidaram com mais de 1.000 corpos desde que a guerra na Chechênia começou em 11 de dezembro.

Eles também disseram à Associated Press TV que mais de 100 cadáveres de soldados foram trazidos recentemente. A declaração contradiz as afirmações do governo de que os combates na região de maioria muçulmana estão diminuindo.

Pequenas unidades rebeldes ainda estavam lutando contra as forças russas na sexta-feira nos arredores de Grozny, a capital chechena.

Equipes militares estavam vasculhando as ruínas para encontrar mais corpos de soldados e enviá-los para necrotérios como o de Rostov-on-Don, 375 milhas a noroeste da Chechênia.

Fora do necrotério do Hospital Militar Regional da cidade, os cadáveres foram armazenados em prateleiras dentro de nove tendas do exército. Alguns já haviam sido identificados por seus comandantes e os patologistas aguardavam a confirmação de parentes próximos.

Outros corpos foram empilhados em bancos dentro das tendas - as abas abertas para aliviar o fedor da morte - enquanto os soldados patrulhavam o perímetro, tentando evitar que cães vadios comessem os cadáveres.

Corpos de soldados russos aguardando transporte.

Dentro do hospital, mães ansiosas e outros parentes se prepararam para a árdua tarefa de examinar os cadáveres nus dentre os mais de 100 recém-chegados. Funcionários do hospital se recusaram a permitir que repórteres falassem com eles.

Na quinta-feira, o chefe do Estado-Maior do Exército, Mikhail Kolesnikov, disse que havia 1.020 baixas russas confirmadas.

As listas de vítimas do governo não incluem aqueles que permanecem não identificados, e com dois outros necrotérios em operação desde o início da guerra, há dois meses - em Mozdok e Vladikavkaz, na fronteira com a Chechênia - o número de baixas pode aumentar.

Além disso, funcionários do necrotério de Rostov disseram que lidaram apenas com os mortos do exército - e não com baixas entre as forças do Ministério do Interior.

Soldado russo agachado em uma cidade chechena destruída.

O verdadeiro número de mortos na Chechênia pode nunca ser conhecido, mas as estimativas sugerem milhares de baixas, principalmente entre a população civil da república.

Kolesnikov relatou 6.690 mortos entre combatentes chechenos e o que ele chamou de "mercenários".

Na terça-feira, um legislador russo disse que um grupo liderado pelo comissário de direitos humanos do país compilou uma lista de 25.000 civis mortos até agora em Grozny.

O legislador Yuli Rybakov disse que o grupo de direitos humanos coletou os nomes e endereços de refugiados que fugiram do conflito. Os números não puderam ser confirmados de forma independente.

Rybakov acusou o governo de encobrir o verdadeiro número de baixas militares, às vezes enterrando soldados não-identificados em valas comuns. Outros críticos da guerra fizeram acusações semelhantes. O governo as negou consistentemente.

Tropas russas em meio a escombros, uma visão típica na Chechênia.

Leitura recomendada:

A intervenção russa em Ichkeria, 16 de agosto de 2020.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Forças iranianas entram em confronto com talibãs na fronteira afegã

Membros das forças do Talibã controlam pessoas esperando para obter vistos, na embaixada do Irã em Cabul, no Afeganistão, em 4 de outubro de 2021.
(REUTERS/JORGE SILVA)

Do jornal The Jerusalem Post, 31 de julho de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de agosto de 2022.

Um membro das forças do Talibã foi morto durante o confronto em Nimroze, no sul do Afeganistão, disse um oficial da polícia afegã.

Confrontos entre forças do Talibã e guardas de fronteira do Irã no domingo deixaram pelo menos um morto no lado do Afeganistão, disse um oficial da polícia afegã.

"Temos um morto e um ferido; a causa do confronto ainda não está clara", disse à Reuters o porta-voz da polícia da província de Nimroze, no sul do Afeganistão, Bahram Haqmal.

Irã: sem baixas em confronto na fronteira

Maysam Barazandeh, governador da área de fronteira iraniana de Hirmand, foi citado pela agência de notícias semi-oficial Fars dizendo que os confrontos pararam e não houve baixas.

A agência de notícias iraniana Tasnim disse que os confrontos eclodiram depois que as forças talibãs tentaram hastear sua bandeira "em uma área que não é território afegão".

Um membro das forças do Talibã patrulha na frente de pessoas esperando para obter vistos, na embaixada do Irã em Cabul, no Afeganistão, em 4 de outubro de 2021
(REUTERS/JORGE SILVA)

Fontes locais disseram à Reuters que as pessoas que vivem perto da fronteira do lado afegão fugiram de suas casas para se protegerem quando os confrontos se intensificaram.

Desde que tomaram o Afeganistão há um ano, as forças do Talibã entraram em confronto com as forças de segurança do Irã, que é vizinho do país a oeste, bem como do Paquistão, que é vizinho a leste.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Falha de comando: Lloyd Fredendall e a Batalha do Passo de Kasserine


Por Dwight Jon Zimmerman, Defense Media Network, 14 de fevereiro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 2 de agosto de 2022.

Como o major-general George S. Patton, o major-general Lloyd Fredendall estava “acima do morro” – uma exceção à idade limite que o chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA, general George C. Marshall, tinha para comandantes seniores. Como Patton, Fredendall era um excelente treinador de homens. E, como Patton, Fredendall era um homem de quem grandes coisas eram esperadas, com Marshall descrevendo Fredendall como “um dos melhores”. Em 12 de novembro de 1942, o tenente-general Dwight Eisenhower, comandante supremo da Operação Tocha, para quem Fredendall comandou os desembarques da Força-Tarefa Central em Oran, escreveu a Marshall: minhas dúvidas anteriores sobre ele eram completamente infundadas.” Mas em fevereiro de 1943 na Tunísia, a reputação de Fredendall estava em ruínas, descrito pelo historiador Carlo d'Este como "um dos oficiais superiores mais ineptos para manter um alto comando durante a Segunda Guerra Mundial".

“De acordo com Harmon, Fredendall é um covarde físico e moral.”
— Maj. Gen. George S. Patton Jr., trecho do seu diário de 2 de março de 1943.

O que deu errado? A resposta curta é: tudo. O estudo do historiador Steven L. Ossad sobre as ações de Fredendall na Tunísia incluiu uma condenação de cinco pontos:
  • Fredendall “não conseguiu entender sua missão”
  • Ele “violou vários princípios básicos de comando incorporados na doutrina americana”
  • Ele “ignorou o profundo benefício que vem da aparência de bravura pessoal do líder”
  • Ele “esqueceu que o autocontrole é um pré-requisito absoluto para o comando”
  • Finalmente, “um comandante não pode cometer erros táticos fundamentais no campo e esperar sobreviver”.
Fredendall era um francófobo e um anglófobo inadequado para travar uma guerra de coalizão; um micro-gerente que contornava a cadeia de comando – dando ordens até o nível da companhia; um covarde, ele permitia que a animosidade com subordinados afetasse seu julgamento e minasse sua autoridade; e, finalmente, encarando a derrota nos olhos em Kasserine, ele tentou jogar a culpa nos outros.

O major-general Lloyd Fredendall tem a aparência de liderança nesta foto, mas suas falhas de comando durante a Batalha do Passo de Kasserine resultaram em desastre.
(Foto do Exército dos EUA)

A campanha aliada da Tunísia no oeste começou mal. Uma estrutura de comando fragmentada, um corpo francês mal equipado e a inexperiência americana contribuíram para o sucesso alemão no terreno em janeiro de 1943. Eisenhower teve a chance de acertar as coisas e aproveitou a oportunidade. Embora ele tenha consertado a situação de comando fazendo Fredendall e o general francês Alphonse Juin reportarem-se ao tenente-general Kenneth Anderson do Primeiro Exército britânico, ele não ordenou uma concentração das unidades blindadas dispersas da 1ª Divisão Blindada americana. Eisenhower sugeriu que eles fossem usados para realizar ataques no sul. Ele também não tomou providências em relação à má colocação defensiva das unidades, mesmo depois de ser informado de tais preocupações pelos comandantes em briefings na 1ª Divisão Blindada e no quartel-general do Comando de Combate A e nas inspeções das linhas de frente.

Um tanque M3 Lee da 1ª Divisão Blindada dos EUA avançando para apoiar as forças americanas durante a Batalha do Passo de Kasserine.

Homens do 2º Batalhão, 16º Regimento de Infantaria da 1ª Divisão de Infantaria dos EUA marcham pelo Passo de Kasserine e em direção a Kasserine e Farriana, na Tunísia, em 26 de fevereiro de 1943.
Depois que o major-general Ernest N. Harmon estabilizou a frente, o Exército dos EUA avançou.
(Foto do Exército dos EUA)

Enquanto isso, em vez de prestar atenção ao que estava acontecendo em sua frente de batalha, Fredendall concentrou-se na construção de sua sede localizada a pelo menos setenta milhas (alguns relatos afirmam cem milhas) da linha de frente. Um batalhão de engenheiros estava abrindo uma série de túneis nas profundezas da face rochosa de uma ravina para construir um quartel-general à prova de bombas. Chamado Speedy Valley, as tropas se referiam a ele como “o último recurso de Lloyd” e “Shangri-la, a um milhão de milhas do nada”. Ao contrário de Eisenhower, Fredendall nunca visitou a frente, contentando-se em direcionar desdobramentos com base em leituras de mapas. Suas ordens, emitidas pelo rádio, eram uma combinação de gírias e frases obscuras destinadas a confundir qualquer monitor inimigo. Infelizmente, os subordinados ficaram igualmente perplexos. O seguinte foi um exemplo típico:

"Em 14 de fevereiro, três horas após Eisenhower ter inspecionado as posições americanas nas passagens de Faïd e Maizila, forças alemãs, incluindo 140 tanques, atacaram. Na resultante Batalha de Sidi Bou Zid, o genro de Patton, o tenente-coronel John Waters, foi capturado."

“Mova seu comando, ou seja, os meninos ambulantes, armas que fazem pop, a unidade de Baker e a unidade que é o inverso da unidade de Baker e os grandões para M, o qual fica ao norte de onde você está agora, o mais rápido possível. Faça com que seus rapazes se apresentem ao cavalheiro francês cujo nome começa com J em um lugar que começa com D, que fica cinco quadrados à esquerda de M."

Em 14 de fevereiro, três horas após Eisenhower ter inspecionado as posições americanas nas passagens de Faïd e Maizila, forças alemãs, incluindo 140 tanques, atacaram. Na resultante Batalha de Sidi Bou Zid, o genro de Patton, o tenente-coronel John Waters, foi capturado.

Fredendall entrou em colapso, culpando os outros pelo crescente desastre. Em 20 de fevereiro, Eisenhower ordenou que o major-general Ernest Harmon, comandante da 2ª Divisão Blindada, fosse o vice-comandante do corpo de Fredendall. Quando Harmon chegou a Speedy Valley, Fredendall entregou a Harmon uma nota autorizando-o a assumir o comando. Então ele foi para a cama.

Prisioneiros americanos capturados no Passo de Kasserine marchando através de uma aldeia na Tunísia.

Harmon estabilizou a frente, uma situação auxiliada pelo fato de os alemães estarem recuando, embora ele não soubesse disso na época. Ao retornar à sede de Eisenhower, ele disse a Eisenhower que Fredendall “não era bom” e deveria ser demitido. Depois que Harmon rejeitou a oferta de comando do II Corpo, Eisenhower escolheu Patton.

Para manter o moral da frente doméstica alto, Fredendall voltou para as boas-vindas de um herói e uma terceira estrela. Ele passou o resto da guerra em missões de treinamento nos Estados Unidos, aposentando-se em 1946.

Leitura recomendada:

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

A Importância do Nível Tático: A Guerra Árabe-Israelense de 1973


Por Lorris Beverelli, The Strategy Bridge, 19 de novembro de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 1º de agosto de 2022.

É amplamente aceito que existem três níveis de guerra.[1] Do geral ao local, são os níveis estratégico, operacional e tático. Estratégia é o alinhamento de meios e formas para atingir um fim político. Estratégia é ganhar a guerra. A tática consiste em alcançar localmente a vitória por meio de uma série de ações que, tomadas globalmente, participam direta ou indiretamente da realização da estratégia. As táticas são tipicamente sobre vencer batalhas. Por fim, as operações consistem em conectar a tática à estratégia. Para isso, o nível operacional visa criar campanhas – uma série de ações táticas que perseguem objetivos operacionais específicos – para, em última análise, atingir objetivos estratégicos específicos. O nível operacional é tipicamente sobre ganhar uma série de campanhas para cumprir a estratégia declarada.

Cada nível de guerra é essencial para alcançar o sucesso e todos são igualmente importantes. A Guerra Árabe-Israelense de 1973 fornece uma ilustração de por que o nível tático é essencial. Este artigo primeiro fornecerá elementos para entender o aspecto mais amplo do conflito, antes de demonstrar como a falta de habilidade tática condenou os atacantes.

Contexto estratégico e objetivos

Caminhões militares egípcios cruzam uma ponte colocada sobre o Canal de Suez em 7 de outubro de 1973, durante a Guerra do Yom Kippur/Guerra de Outubro.
(Wikimedia)

Após a Guerra dos Seis Dias de 1967, Israel tomou o Sinai do Egito e as Colinas de Golã da Síria. O líder egípcio Muhammad Anwar el-Sadat queria resolver o conflito egípcio-israelense diplomaticamente, mas falhou. Consequentemente, ele decidiu usar a força.[2] O líder sírio Hafez al-Assad também queria guerra com Israel, em parte para vingar a derrota síria de 1967.[3]

Enquanto al-Assad inicialmente buscava a destruição de Israel, Sadat o persuadiu a concordar com objetivos limitados: a recaptura do Sinai e do Golã, uma solução para o problema dos refugiados e o reconhecimento de uma entidade palestina.[4] O líder egípcio considerou que esses objetivos não representavam uma ameaça aos interesses vitais de Israel e não provocariam uma retaliação nuclear.[5]

Os egípcios projetaram uma ofensiva total para atingir esses objetivos. Eles deveriam surpreender os israelenses, cruzar o Canal de Suez, avançar de 8 a 16 quilômetros no Sinai, e então se entrincheirar. Eles então defenderiam seus ganhos contra os israelenses e os exaurirem com infantaria entrincheirada com equipamento anti-carro, coberto por um abrangente sistema de defesa antiaérea.[6] Para compensar as dificuldades passadas com armas combinadas, iniciativa e improvisação tática, os egípcios roteirizaram toda a operação até o último detalhe. Cada grupo de combate e pelotão tinham ordens roteirizadas a serem seguidas, e as tropas ensaiaram a operação.[7]

Soldado egípcio comemorando depois de atravessar o canal de Suez

Os sírios queriam conquistar as Colinas de Golã em 24 horas e então preparar defesas para enfrentar um contra-ataque. Especificamente, eles queriam alcançar dois avanços na área ao norte de Quneitra e na região centro-sul em ar-Rafid, e explorá-los para entrar na retaguarda israelense.[8] O plano também exigia a estabilização das linhas defensivas ao longo do rio Jordão ou nas encostas ocidentais do Golã, ao capturar de Israel o pequeno número de pontos de entrada no Golã, selando o planalto para evitar um contra-ataque e prendendo os defensores no próprio Golã.[9] Como os egípcios, os sírios roteirizaram sua ofensiva em grande detalhe e aprenderam a operação até que a soubessem de cor.[10]

Os egípcios e os sírios deveriam lançar a ofensiva ao mesmo tempo, em duas frentes diferentes, e pegar os israelenses de surpresa. De fato, a inteligência israelense falhou em antecipar a ameaça. Como resultado, Israel estava amplamente despreparado para uma ofensiva estratégica de duas frentes. Além disso, os atacantes tinham uma vantagem absolutamente esmagadora em números.

Forças em cada frente

Ilustração das tropas de assalto egípcias cruzando o Canal de Suez em 6 de outubro de 1973.

Do lado egípcio, os atacantes tinham 300.000 soldados, mais de 2.400 tanques e 2.300 peças de artilharia, das quais cerca de 200.000, 1.600 e 2.000 soldados, tanques e peças de artilharia, respectivamente, fizeram parte do ataque inicial.[11] Diante deles estavam cerca de 18.000 soldados, 300 tanques e 90 peças de artilharia, com os reforços significativos mais próximos a 24 horas de distância.[12]

Do lado sírio, os atacantes tinham 60.000 soldados, 1.400 tanques, 600 peças de artilharia e, como os egípcios, um grande sistema de defesa antiaérea.[13] Os defensores tinham cerca de 6.000 soldados, 170 tanques e 60 peças de artilharia.[14]

Detalhe do Panorama 6 de Outubro, no Cairo.
Soldados egípcios cruzando o Canal de Suez e destruindo a Linha Bar-Lev usando mangueiras d'água de alta pressão durante a "Guerra do Ramadã".

Claramente, os israelenses estavam em terrível desvantagem numérica, com uma proporção de aproximadamente 1 para 11 no Sinai e de 1 para 10 no Golã, considerando soldados, tanques e peças de artilharia juntos. Apenas no ar eles tinham aproximadamente uma proporção de 1 para 1, mas essa paridade considerava apenas um atacante por vez. Juntando as Forças Aéreas Egípcia e Síria, os israelenses tinham metade das aeronaves de seus adversários.[15]

Execução das ofensivas

Os atacantes lançaram seu ataque de duas frentes em 6 de outubro. A ofensiva egípcia prosseguiu muito melhor do que o esperado. Em 18 horas, 90.000 soldados e 850 tanques cruzaram o Canal de Suez.[16] Após a travessia, os atacantes começaram a consolidar e expandir suas cabeças de ponte.[17] Os egípcios repeliram todos os contra-ataques e, ao final dos dois primeiros dias, os israelenses perderam 200 de seus 300 tanques.[18] No entanto, os egípcios abandonaram suas posições seguras quando sua liderança política decidiu ajudar seu aliado sírio que estava sendo severamente trucidado pelos israelenses. Consequentemente, uma nova ofensiva, desta vez não roteirizada ou ensaiada, foi lançada em 14 de outubro.[19] O ataque foi uma catástrofe, e os israelenses logo contra-atacaram e danificaram severamente as forças egípcias.[20] A luta parou em 28 de outubro, quando Israel concordou com um cessar-fogo em parte devido à pressão internacional.[21] Os egípcios perderam seus ganhos iniciais e foram empurrados de volta para a margem oeste do canal de Suez.

A Guerra de 1973 no Sinai, de 6 a 15 de outubro.
(Departamento de História da USMA/Wikimedia)

Do lado sírio, o ataque foi catastrófico desde o início e obteve poucos ganhos enquanto sofreu enormes baixas. Os tanques israelenses estavam atirando mais rápido e em com melhor precisão, e a destruição de veículos sírios que avançavam levou a um enorme engarrafamento.[22] 
O primeiro dia da batalha foi um fracasso geral para os sírios, embora tenham conseguido penetrar na linha defensiva geral e tomar partes do Golã a poucos quilômetros das passagens do rio Jordão. Eles também capturaram o posto avançado do Monte Hermon.[23] Especificamente, o setor norte do Golã estava segurando, mas o setor sul havia sido penetrado.[24]

Um mapa dos combates nas Colinas de Golã.
(Departamento de História da USMA/Wikimedia)

No segundo dia da batalha, os sírios estavam muito atrasados; eles ainda não haviam descido o planalto e desistiram de tomar as pontes durante a noite.[25] O fracasso em tomar as pontes permitiu que os israelenses continuassem correndo com reservas no Golã.[26] 
No dia seguinte, 8 de outubro, os israelenses reuniram forças suficientes para montar um contra-ataque para empurrar os sírios de volta, e os combates se seguiram.[27] Os israelenses conseguiram empurrar os sírios de volta para a Síria até 14 de outubro.[28] Os beligerantes então aceitaram um cessar-fogo mediado pelas Nações Unidas em 23 de outubro.[29]

Ineficiência tática

Paraquedistas israelenses avançam no deserto do Sinai.
Embora tivessem força superior, os comandantes egípcios não conseguiram coordenar seus esforços.

Os atacantes tinham condições perfeitas para cumprir seus objetivos operacionais. Na verdade, eles desfrutaram de surpresa estratégica, superioridade numérica esmagadora, um ataque simultâneo de duas frentes e o excesso de confiança complacente de seu inimigo. No entanto, eles foram dramaticamente derrotados no campo de batalha. Sua derrota esmagadora pode ser atribuída principalmente à habilidade tática catastrófica.

Os egípcios foram inicialmente bem sucedidos durante a parte roteirizada do conflito, mas mesmo assim os israelenses tinham apenas cerca de 30 reservistas defendendo cada forte da linha Bar Lev, em oposição a cerca de 100 soldados profissionais em tempos de tensão.[30] No final da ofensiva inicial, as dificuldades egípcias começaram a aparecer.[31] Assim que os efeitos da surpresa, superioridade numérica, despreparo israelense e o roteiro desapareceram, a escassez tática dos atacantes começou a aparecer.[32] Durante a ofensiva improvisada para ajudar os sírios, os egípcios foram lentos e rígidos. As unidades atacaram aos poucos, os comandantes do campo de batalha não eram adaptáveis, os assaltos eram apenas frontais sem manobra e havia pouca ou nenhuma integração de armas combinadas.[33] A infantaria mecanizada nunca desmontou, as barragens de artilharia eram ineficazes, os tanques não manobravam e apenas tentavam esmagar frontalmente os israelenses com poder de fogo.[34] Durante a contra-ofensiva israelense que se seguiu, os egípcios falharam em observar adequadamente seus ataques; seus blindados lançaram ataques frontais desajeitados, não conseguiram manobrar e foram incapazes de se adaptar quando pegos pelo flanco ou pela retaguarda.[35] No ar, os egípcios sofreram uma proporção de baixas de cerca de 25 para 1.[36]

Tanques Centurion israelenses nas Colinas de Golã durante a Guerra do Yom Kippur, 1973.
(The Fincher Files)

Os sírios tiveram um desempenho ainda pior e repetidamente se mostraram incapazes de habilidade tática, mesmo quando a ofensiva estava programada. Quando os veículos blindados de dianteiros foram destruídos durante o primeiro assalto, os outros continuaram avançando, recusando-se a parar ou sair das estradas para contornar os veículos destruídos, causando inúmeras colisões que pioraram ainda mais o congestionamento.[37] Os sírios se recusaram a recuar a menos que ordenados pelo comando superior para fazê-lo, mesmo que fosse por mera manobra.[38] Como os egípcios, eles não conseguiram usar a integração de armas combinadas a seu favor.[39] Notavelmente, eles não deram à sua infantaria um papel maior além de meramente acompanhar unidades blindadas, embora fossem em teoria e, em termos de equipamento, perfeitamente capazes de destruir tanques israelenses.[40] Por exemplo, a 43ª Brigada Mecanizada síria, por sua própria iniciativa, tentou tomar os defensores pela retaguarda em torno de Quneitra, mas não conseguiu desdobrar batedores ou flancoguardas adequados. Como resultado, a unidade foi repetidamente emboscada e atacada por apenas sete tanques, enquanto os atacantes colocaram em campo 45, dos quais apenas cinco permaneceram intactos na conclusão do combate. Após este encontro, a unidade síria recuou.[41] No ar, os sírios sofreram baixas em uma proporção de cerca de 1:16.[42]

Destruição na aldeia síria de al-Qunaitra nas Colinas de Golã, após a retirada israelense em 1974.
(Wikimedia)

Vantagem material não é eficiência tática

A Guerra Árabe-Israelense de 1973 é uma ilustração de que a vitória na batalha não depende apenas de números ou equipamentos. O que mais importa é a capacidade de adaptação à situação e implementação efetiva da integração de armas combinadas, iniciativa dos oficiais, doutrina empregada, qualidade do treinamento e familiaridade com o equipamento. Especificamente, esse conflito é uma ilustração do que pode acontecer quando um defensor que implementa o “sistema moderno” está lutando contra atacantes que não o fizeram. De acordo com Stephen Biddle, o sistema moderno é um “complexo estreitamente inter-relacionado de cobertura, ocultação, dispersão, supressão, manobra independente de pequenas unidades e armas combinadas no nível tático, e profundidade, reservas e concentração diferencial no nível operacional de guerra.”[43] Em outras palavras, o sistema moderno é um atributo militar que enfatiza o emprego da força – a doutrina e a tática – que um militar usa, em vez da qualidade do equipamento usado ou dos números em si.[44]

Um militar usando o sistema moderno, consequentemente, prioriza fatores não-materiais, como tática, doutrina, habilidade, moral e liderança sobre elementos materiais para alcançar a vitória na batalha.[45] Em 1973, Israel possuía tal sistema, ao contrário do Egito e da Síria. Por causa disso, o número esmagador de atacantes não foi suficiente para superá-lo. A combinação do sistema moderno e a letalidade das armas modernas mostraram rapidamente que os números não eram suficientes.[46]

Tanques israelenses cruzando o Canal de Suez, contra-invadindo o território do Egito africano, 1973.

Explicando a ineficiência tático do Egito e da Síria

A ineficácia tática dos atacantes em 1973 pode ser explicada por uma escassez crítica de fatores não-materiais essenciais necessários para o desempenho ideal na batalha. O Egito e a Síria provavelmente não conseguiram implementar o sistema moderno, principalmente por causa de fatores culturais e comportamentais inerentes às suas sociedades.[47] O Egito foi inicialmente bem-sucedido porque roteirizou toda a operação, o que impediu que fatores comportamentais negativos desempenhassem um papel na execução da ofensiva. Mas quando os egípcios foram incapazes de usar seu roteiro, eles tiveram que improvisar, o que trouxe esses fatores de volta ao jogo, para o desespero do Egito.[48] A Síria teve que se adaptar desde o início, pois seu plano roteirizado falhou, o que significou que tais fatores impactaram a condução da operação imediatamente, com consequências infames.

Conclusão

A Guerra Árabe-Israelense de 1973 mostra o que pode acontecer quando um atacante, apesar da esmagadora superioridade numérica e das principais vantagens, como surpresa estratégica e uma ofensiva de duas frentes, é incapaz de prevalecer por causa de táticas ruins. Nenhuma decisão operacional ou estratégica da liderança militar para mudar a situação ajudou ou poderia ter ajudado. O Egito e a Síria estavam fadados ao fracasso, desde que seu plano roteirizado fosse seriamente interrompido. Boas táticas poderiam ter mudado a situação, pois os atacantes poderiam ter se adaptado aos eventos no terreno para perseguir seus objetivos operacionais e estratégicos — sensatos e realistas. No entanto, as forças egípcias e sírias demonstraram uma falta crítica de adaptabilidade, integração de armas combinadas, manobras e treinamento abrangente, entre outras coisas. Em outras palavras, uma falta crítica de habilidade tática. Surpresa, números esmagadores e poder de fogo (impreciso) não poderiam compensar essa falha.

Sobre o autor:

Lorris Beverelli é um cidadão francês que possui um Master of Arts em Estudos de Segurança com uma concentração em Operações Militares pela Universidade de Georgetown. As opiniões expressas neste artigo são exclusivas do autor e não representam a política ou posições do governo francês ou das forças armadas.

Notas:
  1. Por exemplo, vide Lawrence Freedman, Strategy: A History, New York: Oxford University Press, 2013, 72-5, 201-13; Général Michel Yakovleff, Tactique théorique, 3rd edition, Paris: Ed. ECONOMICA, 2016, 35-7; Daniel Sukman, “The Institutional Level of War,” The Strategy Bridge, 2016, https://thestrategybridge.org/the-bridge/2016/5/5/the-institutional-level-of-war.
  2. Kenneth M. Pollack, Arabs at War: Military Effectiveness, 1948-1991, Lincoln: University of Nebraska Press, 2004, 98.
  3. Ibid., 478.
  4. Simon Dunstan, The Yom Kippur War: The Arab-Israeli War of 1973, Oxford: Osprey Publishing, 2007, 17-8.
  5. Ibid., 18.
  6. Pollack, Arabs, 102.
  7. Ibid.
  8. Ibid., 481.
  9. Brig. Gen. (reformado) Dr. Dani Asher, “Halting the Syrian Attack,” in Inside Israel’s Northern Command: The Yom Kippur War on the Syrian Border, editado pelo Brigadier General Dani Asher, FDI (reformado) (Lexington: University Press of Kentucky, 2016), 127; Pollack, Arabs, 481.
  10. Pollack, Arabs, 482.
  11. Ibid., 107.
  12. Ibid., 106-7.
  13. Ibid., 483.
  14. Ibid.
  15. Ibid., 107, 108, 484; Dunstan, The Yom Kippur War, 127.
  16. Pollack, Arabs, 111.
  17. Ibid.
  18. Kenneth M. Pollack, Armies of Sand: The Past, Present, and Future of Arab Military Effectiveness, New York: Oxford University Press, 2019, 134-35.
  19. Pollack, Arabs, 115-16.
  20. Ibid., 116.
  21. Ibid., 123.
  22. Abraham Rabinovich, The Yom Kippur War: The Epic Encounter That Transformed the Middle East, New York: Schocken Books, 2004, 153; James L. Young, Jr., “The Heights of Ineptitude: The Syrian Army’s Assault on the Golan Heights,” The Journal of Military History 74, no. 3 (July 2010), 861; Dunstan, The Yom Kippur War, 150.
  23. Eyal Zisser, “Syria and the October War: The Missed Opportunity,” in The Yom Kippur War: Politics, Legacy, Diplomacy, editado por Asaf Siniver (Oxford: Oxford University Press, 2013), 75.
  24. Asher, “Halting,” 161.
  25. Rabinovich, The Yom Kippur War, 194.
  26. Pollack, Arabs, 489.
  27. Dunstan, The Yom Kippur War, 183.
  28. David Rodman, Israel in the 1973 Yom Kippur War, Eastbourne: Sussex Academic Press, 2017, 47.
  29. Pollack, Arabs, 498.
  30. Ibid., 106.
  31. Pollack, Armies, 136.
  32. Pollack, Arabs, 113-14.
  33. Pollack, Armies, 138.
  34. Pollack, Arabs, 117.
  35. Ibid., 119.
  36. Pollack, Armies, 141.
  37. Pollack, Arabs, 486.
  38. Dunstan, The Yom Kippur War, 164.
  39. Young, “The Heights,” 862.
  40. Para mais detalhes sobre o equipamento anti-carro da infantaria síria, vide ibid., 858.
  41. Pollack, Arabs, 487.
  42. Ibid., 500.
  43. Stephen Biddle, Military Power: Explaining Victory and Defeat in Modern Battle, Princeton: Princeton University Press, 2004, 3.
  44. Ibid., 2.
  45. Ibid., 17.
  46. Ibid., 69.
  47. Para uma argumentação sobre como a cultura impactou negativamente a eficácia militar, vide Kenneth M. Pollack, Armies of Sand: The Past, Present, and Future of Arab Military Effectiveness, New York: Oxford University Press, 2019.
  48. Ibid., 472-75.

domingo, 31 de julho de 2022

A Importância do Nível Operacional: As Ofensivas de Ludendorff de 1918

Ludendorff em seu estudo no Quartel-General, 1918.

Por Lorris Beverelli, The Strategy Bridge, 28 de outubro de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 31 de julho de 2022.

É amplamente aceito que existem três níveis de guerra. Do mais geral ao mais local, são os níveis estratégico, operacional e tático. Estratégia é o alinhamento de meios e formas para atingir um fim político. Estratégia é ganhar a guerra. A tática consiste em alcançar localmente a vitória por meio de uma série de ações que, tomadas globalmente, participam direta ou indiretamente da realização da estratégia. As táticas são tipicamente sobre vencer batalhas. Por fim, as operações consistem em conectar a tática à estratégia. Para isso, o nível operacional visa criar campanhas – uma série de ações táticas que perseguem objetivos operacionais específicos – para, em última análise, atingir objetivos estratégicos específicos. O nível operacional é tipicamente sobre ganhar uma série de campanhas para cumprir a estratégia declarada.

Cada nível de guerra é essencial para alcançar o sucesso e todos são igualmente importantes. As Ofensivas de Ludendorff de 1918 ilustram por que o nível operacional é essencial. Este artigo fornecerá o contexto estratégico antes de apresentar os objetivos da campanha alemã, sua execução e uma análise seguida de uma conclusão.

Contexto estratégico

Em 3 de março de 1918, a Rússia se retirou oficialmente da Grande Guerra. Logo depois, a Romênia seguiu.[1] A Alemanha viu a retirada desses dois estados, notadamente o primeiro, como uma oportunidade para enfrentar os exércitos francês e britânico em termos mais iguais e aliviar as dificuldades na frente interna.[2] O general intendente Erich Ludendorff, que estava no comando das forças alemãs, queria desferir um golpe o mais cedo possível para alcançar a vitória decisiva.[3] A entrada dos Estados Unidos na guerra forneceu mão de obra e suprimentos que a Alemanha não poderia igualar, e nem a Alemanha nem seus aliados suportariam a tensão de uma guerra defensiva contínua.[4] O Comando Supremo do Exército Alemão acreditava que somente o rompimento da Entente levaria à vitória.[5]

Objetivos

Para quebrar a Entente, Ludendorff queria uma campanha rápida e única visando especificamente as forças britânicas no Ocidente antes da chegada americana.[6] O objetivo estratégico geral era simples. Os alemães deveriam perfurar a defesa britânica entre Arras e o rio Oise, então girar para o norte e envelopar a linha britânica, para permitir um empurrão o qual traria os defensores contra os portos do Canal e os destruiria.[7] Especificamente, um ataque bem sucedido através do eixo Péronne-Albert-Abbeville poderia separar os britânicos dos franceses e afunilá-los para o mar.[8]

Ofensiva de Ludendorff, 1918.
(Wikimedia)

Para isso, Ludendorff tinha inicialmente três exércitos à sua disposição: o 17º no norte, o 2º no centro e o 18º no sul.[9] Os 2º e 17º Exércitos primeiro tiveram que ir para sudoeste para limpar o saliente de Cambrai, e então redirecionar no meio da batalha para ir para noroeste em direção a Arras e Vimy.[10] Especificamente, o 2º teve que chegar a Péronne e depois Amiens, enquanto o 17º teve que romper entre Arras e Cambrai, depois chegar a Bapaume e seguir para o norte em direção a Saint-Pol.[11] O 18º essencialmente só teve que proteger o flanco sul dos franceses.[12] O plano operacional foi projetado para permitir que os alemães rompessem as linhas britânicas rapidamente e as envolvessem antes de um possível contra-ataque.[13]

Os britânicos foram o alvo por várias razões. Os alemães acreditavam que os franceses seriam muito resistentes, e que os britânicos eram mais propensos a desistir de terrenos que não os seus.[14] Eles também achavam que o fim do apoio britânico levaria ao colapso francês.[15] Os alemães consideraram o primeiro como sendo taticamente mais fraco do que o último, e que a prontidão geral britânica foi diminuída pela instabilidade na estrutura da força, treinamento e extensão excessiva de suas linhas.[16]

Execução da campanha

Toda a campanha foi subdividida em várias operações de março a julho de 1918. A primeira foi a operação Michael, iniciada em 21 de março. O ataque no sul foi muito bem sucedido, enquanto o ataque do norte nem tanto. Consequentemente, o objetivo operacional crítico, indo para a costa via Péronne-Albert-Abbeville, foi alterado. O peso do ataque foi transferido para o sul para o 2º e 18º Exércitos com Amiens como seu objetivo, o qual eles não conseguiram alcançar.[17]

A partir deste momento, o plano original passou a ser objeto de mudanças na tentativa de se adequar a cada situação. Ludendorff concluiu que uma nova ofensiva contra os britânicos ao norte de Péronne seria realizada em uma frente muito estreita. Já na noite de 21 de março, os alemães fizeram mudanças táticas diferentes das posições previamente acordadas, e Ludendorff moveu divisões da Reserva Geral não para a frente, onde estava o objetivo, mas para o sul, para o setor do 18º Exército, onde o ponto fraco tático foi encontrado. Em 23 de março, as ordens do Comando Supremo do Exército alemão apontavam para uma mudança do eixo de ataque para o sul. Consequentemente, enquanto o objetivo permaneceu o mesmo, a disposição tática mudou muito.[18]

Operação Michael: retirada das tropas britânicas, março de 1918.
(Wikimedia)

Independentemente disso, a primeira ofensiva foi um grande sucesso tático. Produziu os avanços territoriais mais significativos no Ocidente desde 1914 e, em um dia, os atacantes capturaram uma área fortificada de 300 quilômetros quadrados, a primeira na frente ocidental.[19] Entre 24 e 26 de março, as forças da Entente perderam quase 10 quilômetros por dia, e no dia 27, os atacantes empurraram os franceses por 15 quilômetros e capturaram Montdidier.[20] Os alemães ganharam quase 65 quilômetros e ameaçaram o entroncamento ferroviário vital de Amiens.[21] No entanto, a direção final de Michael não permitiu o envolvimento decisivo inicialmente pretendido. Além disso, o 17º e o 2º Exércitos não puderam ampliar a frente com suas forças exaustas.[22] A ofensiva foi um sucesso tático, mas não alcançou nenhum dos objetivos operacionais ou estratégicos declarados.

As ofensivas alemãs nos próximos quatro meses também alcançariam sucesso tático geral com ganhos territoriais significativos. No entanto, eles não atingiriam objetivos operacionais ou estratégicos reais. No entanto, Ludendorff continuou atacando, pois queria manter a iniciativa e obter uma decisão.[23] Após vários meses de ofensivas, o objetivo estratégico de derrotar os britânicos não foi alcançado.[24] Ludendorff deixou suas tropas em um enorme saliente exposto em todas as frentes, recusando-se a ordenar uma retirada. Eles se tornaram objeto de golpes cada vez mais destrutivos.[25]

A Entente sofreu mais baixas do que os alemães, mas tinha mais reforços disponíveis e um forte apoio industrial.[26] Esses fatores, entre outros, permitiram à Entente receber duros golpes dos alemães antes de contra-atacar decisivamente. As forças alemãs estavam agora frágeis e seus melhores soldados haviam sido perdidos nas ofensivas.[27] Todas as operações seguintes se tornaram tentativas de manter uma frente ininterrupta ou conduzir uma retirada ordenada.[28] Os alemães perderam a iniciativa e nunca a recuperariam.[29]

Análise

As ofensivas alemãs de março-julho de 1918 demonstraram a capacidade alemã de alcançar grande sucesso tático. Em meados de julho de 1918, o território controlado pelo Império Alemão estava em sua maior extensão, aproximando-se de Paris.[30] No entanto, as ofensivas foram um completo fracasso operacional e estratégico. Uma das principais razões é a incapacidade de Ludendorff de seguir os objetivos operacionais declarados. De fato, Ludendorff ordenou assaltos que não serviam aos objetivos operacionais e estratégicos iniciais, objetivos que ele perdeu de vista. Ele dissipou suas forças em uma série de ataques que alcançaram sucesso tático, mas nenhuma decisão operacional ou estratégica.[31] Ele o fez apesar de saber que tinha apenas forças suficientes para um ataque frontal.[32]

Enquanto os objetivos estratégicos e operacionais eram claros, Ludendorff se deixava levar pelos sucessos táticos e queria obsessivamente explorar avanços locais. Ele dava mais ênfase à questão das táticas bem-sucedidas do que aos objetivos estratégicos a serem alcançados. Ludendorff afirmou que um plano estratégico que ignorasse o fator tático fracassaria, e que sem sucesso tático os objetivos estratégicos não podem ser alcançados.[33] Embora axiomático, não significa que o aspecto tático deva prevalecer. Deve ser considerado igualmente com os aspectos estratégicos e operacionais.

Ao se concentrar excessivamente no nível tático, ele não conseguiu articular objetivos táticos que fossem coerentes com os objetivos operacionais. Ludendorff argumentou que bastava abrir um buraco e que o resto se seguiria.[34] Em vez de ter em mente todo o propósito da campanha, ele continuou adaptando o plano de acordo com as circunstâncias e eventos locais, muitas vezes diariamente.[35] Tal método poderia, em teoria, ser absolutamente relevante dependendo da situação. No entanto, o plano deve sempre ter em mente o objetivo geral da campanha e a natureza do adversário enfrentado.[36] Ludendorff não conseguiu fazê-lo.

Por exemplo, entre 28 de março e 6 de abril, os alemães perderam tempo e meios que poderiam ter beneficiado a operação maior contra os britânicos no norte – o verdadeiro objetivo da campanha alemã – atacando obstinadamente outros locais.[37] Além disso, ele decidiu atacar o Chemin des Dames, onde nenhum avanço tático poderia ter quebrado as tropas francesas, a maior parte das quais ainda estava fresca. Em vez disso, ele deveria ter se concentrado na captura de Amiens ou Abbeville, que eram os únicos objetivos decisivos ao alcance possível, já que sua ocupação poderia ter dividido os franceses e os britânicos.[38]

No final de maio, Ludendorff tomou a decisão de suspender a ofensiva no Flandres e enviar todas as suas forças para Champagne, em parte para ameaçar Paris.[39] Embora esse alvo fosse certamente tentador, esse movimento não perseguiu os objetivos operacionais e estratégicos inicialmente declarados de toda a campanha. Os alemães até tentaram ampliar sua zona em Champagne, embora isso significasse adiar novos ataques contra os britânicos e dar a eles e aos americanos tempo para se fortalecerem.[40] Mais uma vez, Ludendorff não seguiu os objetivos operacionais e estratégicos inicialmente declarados.

Ignorar os objetivos operacionais de Michael também teve consequências negativas subsequentes para o próximo grande passo do plano alemão. De fato, a operação Georgette foi lançada por Ludendorff em 28 de março, apesar dos objetivos operacionais iniciais não terem sido alcançados.[41] Seus objetivos eram enfraquecer as forças britânicas e forçá-las a recuar para Calais, e tomar pelo menos os nós de transporte de Hazebrouck e, se possível, de Saint-Omer.[42] No entanto, Michael não conseguiu enfraquecer suficientemente os britânicos e, mais importante, falhou em atrair suas reservas para o sul.[43] Mas os alemães decidiram começar Georgette mesmo assim, pois não havia outra alternativa.[44]

Ludendorff também não reconheceu que a Entente tinha recursos humanos e suprimentos superiores, um bom sistema logístico e estava lutando como uma única força coordenada.[45] Consequentemente, suas ofensivas operacional e estrategicamente inúteis tinham ainda menos chances de serem algo mais do que taticamente bem-sucedidas.

A campanha alemã planejou uma série de ataques suficientemente rápidos entre Picardia e Flandres em uma área suficientemente ampla para atrapalhar a manobra das reservas britânicas. Esses ataques também tinham que ser poderosos o suficiente para tomar os nós de transporte de Amiens, Saint-Pol, Hazebrouck e, se possível, de Abbeville e Saint-Omer.[46] Mas a série de decisões tomadas por Ludendorff, baseadas em oportunidades táticas, tornaram esse plano discutível. Atacou locais e objetivos secundários que não atendiam aos objetivos operacionais e estratégicos inicialmente declarados, quando deveria ter concentrado todas as suas forças nos objetivos principais da campanha para ter a chance de obter algum efeito estratégico positivo.

Uma multidão de prisioneiros alemães capturados pelo Quarto Exército Britânico na Batalha de Amiens.
(Wikimedia)

Conclusão

Claro, o único fracasso em seguir os objetivos operacionais inicialmente declarados não explica inteiramente o fracasso alemão em 1918. Os alemães foram incapazes de montar mais de uma ofensiva ao mesmo tempo, o que significa que a Entente poderia organizar mais facilmente suas forças para enfrentar as ofensivas alemães.[47] A Entente também concebeu meios para enfrentar melhor os poderosos ataques alemães depois de saber como eles funcionavam. Seus soldados e líderes também merecem crédito por serem capazes de organizar defesas e contra-ataques eficazes. Finalmente, a estratégia alemã, mesmo que os objetivos operacionais tenham sido cumpridos, pode muito bem não ter tido sucesso de qualquer maneira, dado o contexto estratégico em 1918 e devido a falhas na estratégia e no plano de campanha alemães.[48] No entanto, uma coisa é certa: o não cumprimento dos objetivos operacionais esmagou qualquer chance de sucesso. A excelência tática não poderia compensar essa falha.

Sobre o autor:

Lorris Beverelli é um cidadão francês que possui um Master of Arts em Estudos de Segurança com uma concentração em Operações Militares pela Universidade de Georgetown. As opiniões expressas neste artigo são exclusivas do autor e não representam a política ou posições do governo francês ou das forças armadas.

Notas:
  1. Hew Strachan, The First World War, New York: Viking Penguin, 2004, 270.
  2. William Philpott, War of Attrition: Fighting the First World War, New York: The Overlook Press, 2014, 305.
  3. Strachan, The First World War, 291.
  4. Major Patrick T. Stackpole, German Tactics in the “Michael” Offensive - March 1918, Pickle Partners Publishing, 2014, Chapter 1 – Introduction, Kindle; Lieutenant-Colonel Philip Neame, German Strategy in the Great War, London: Edward Arnold & Co., 1923, 102.
  5. Stackpole, German Tactics, Chapter 1 – Introduction.
  6. Pierre Jardin, “Ludendorff, le tacticien dépassé par la stratégie,” Guerres & Histoire, no. 33 (October 2016), 83; Stackpole, German Tactics, Chapter 1 – Introduction; Timothy T. Lupfer, “The Dynamics of Doctrine: The Changes in German Tactical Doctrine During the First World War,” Leavenworth Papers no. 4 (July 1981), 37; Neame, German Strategy, 102.
  7. Stackpole, German Tactics, Chapter 4 – Analysis of the Offensive – German Plan and Task Organization.
  8. Neame, German Strategy, 103.
  9. Stackpole, German Tactics, Chapter 4 – Analysis of the Offensive – German Plan and Task Organization.
  10. Neame, German Strategy, 107.
  11. Michel Goya, Les vainqueurs : Comment la France a gagné la Grande Guerre, Paris: Editions Tallandier, 2018, 111.
  12. Neame, German Strategy, 107.
  13. Stackpole, German Tactics, Chapter 4 – Analysis of the Offensive – German Plan and Task Organization.
  14. Ibid., Chapter 1 – Introduction; Strachan, The First World War, 293.
  15. Stackpole, German Tactics, Chapter 1 – Introduction.
  16. Ibid., Chapter 3 – Preparation of the Offensive – The British Defense.
  17. Neame, German Strategy, 107.
  18. Ibid., 107-8.
  19. Strachan, The First World War, 296; Goya, Les vainqueurs, 135-36.
  20. Goya, Les vainqueurs, 120, 123.
  21. Strachan, The First World War, 296.
  22. Jardin, “Ludendorff,” 84.
  23. Strachan, The First World War, 297.
  24. Goya, Les vainqueurs, 196.
  25. Jardin, “Ludendorff,” 84.
  26. Goya, Les vainqueurs, 170.
  27. Ibid., 187.
  28. Neame, German Strategy, 115.
  29. Ibid., 114.
  30. Strachan, The First World War, 298.
  31. Jonathan M. House, Combined Arms Warfare in the Twentieth Century, Lawrence: University Press of Kansas, 2001, 55.
  32. Jardin, “Ludendorff,” 84.
  33. Neame, German Strategy, 103.
  34. Philpott, War, 312.
  35. Ibid., 313.
  36. Ludendorff se comportou na frente ocidental como na Rússia, e assumiu que os métodos alemães usados no leste seriam tão eficientes na França contra inimigos diferentes (Strachan, The First World War, 293).
  37. Goya, Les vainqueurs, 125.
  38. Neame, German Strategy, 112.
  39. Goya, Les vainqueurs, 158.
  40. Ibid., 164.
  41. Ibid., 127.
  42. Ibid.
  43. Ibid., 128.
  44. Ibid., 127.
  45. Philpott, War, 322.
  46. Goya, Les vainqueurs, 136-37.
  47. Ibid., 188.
  48. Especificamente, nocautear temporariamente um beligerante provavelmente não seria decisivo – como mostrado na Polônia em 1915, na Romênia em 1916 e na Itália em 1917 – especialmente nesta fase da guerra (Philpott, War, 312). Além disso, as táticas e operações alemãs seriam eficazes contra linhas finas apoiadas por uma logística ruim, mas provavelmente não seriam ótimas contra a logística muito eficaz, defesas profundas e grande mão de obra da Entente (Ibid., 313). Além disso, considerável poder de combate alemão foi desperdiçado na missão defensiva do 18º Exército. De fato, o 18º foi aumentado, em vez do 2º e, em particular, do 17º, embora tivessem que realizar o esforço crítico (Stackpole, German Tactics, Chapter 4—Analysis of the Offensive—German Plan and Task Organization). Finalmente, os alemães não reconheceram o impacto das reservas da Entente que poderiam ser lançadas na batalha. A Entente tinha reservas suficientes para conter ofensivas contra Amiens e, logo após o início de Michael, a coalizão tinha cerca de 60 divisões de reserva apoiadas por excelentes comunicações rodoviárias e ferroviárias. Portanto, por mais bem-sucedida que fosse a operação, era quase certo que as reservas da Entente poderiam ter chegado ao campo de batalha a tempo de evitar um avanço crítico (Philpott, War, 312; Neame, German Strategy, 109).
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