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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O Grupo Mercenário Wagner está recrutando comandos afegãos treinados pelos EUA para lutar na Ucrânia, diz seu ex-general

Por Safiullah Stanikzai, Soldier of Fortune, 1º de novembro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de novembro de 2022.

Um ex-funcionário do Ministério da Defesa afegão reiterou as alegações de que comandos afegãos foram recrutados para lutar como mercenários na Ucrânia.

Relatos começaram a circular no final da semana passada de que o sombrio Grupo Wagner, uma força mercenária russa privada com laços estreitos com o Kremlin, está tentando aumentar suas fileiras na Ucrânia recrutando comandos afegãos treinados pelos EUA e outras forças de segurança, os quais fugiram para o Irã após a tomada do Afeganistão pelo Talibã.

Um ex-general afegão esta semana repetiu as alegações.

Comandos afegãos com máscaras de caveira durante uma parada militar.

Cerca de 15 ex-comandos afegãos já se juntaram ao grupo paramilitar Vagner e milhares mais podem ser recrutados com a ajuda do Irã para lutar na Ucrânia, de acordo com o General Abdul Raouf Arghandiwal, ex-autoridade do Ministério da Defesa afegão e comandante do Corpo de Exército Zafar 207 de elite do Afeganistão.

O Grupo Wagner planeja “recrutar 1.000 pessoas na primeira fase e 1.000 pessoas na segunda fase como um batalhão, e continuar gradualmente esse processo”, disse Arghandiwal à Rádio Azadi da RFE/RL por telefone dos Estados Unidos.

Outro general, Hibatullah Alizai, o último chefe do exército afegão antes do Talibã assumir, disse que o esforço está sendo ajudado por um ex-comandante das forças especiais afegãs que fala russo e que já viveu na Rússia.

A Rússia ocupou inicialmente grandes áreas da Ucrânia após sua invasão em grande escala em fevereiro, mas há meses sofre perdas significativas de tropas e perdas territoriais devido em grande parte a uma contra-ofensiva ucraniana em duas frentes.

Os contratempos, que deixaram a Rússia tentando manter a linha em partes do sul e leste da Ucrânia que ainda ocupa e reivindica como sua, forçaram o Kremlin a introduzir um alistamento militar e a contar cada vez mais com mercenários Wagner e tropas chechenas para reabastecer suas forças esgotadas.

Arghandiwal diz que foi informado pessoalmente da campanha de recrutamento por “centenas” de seus ex-soldados. “Os russos, através da empresa de segurança Wagner e em cooperação com o país anfitrião [Irã], onde a maioria das forças de segurança e defesa do Afeganistão estão [agora] localizadas, bem como alguns afegãos que anteriormente se mudaram para o Irã e a Rússia, estão tentando recrutar comandos”, disse ele.

O general afegão disse que ex-membros do Exército Nacional Afegão, da Polícia Nacional Afegã e outras ex-forças de segurança são os próximos na fila para o recrutamento a ser realizado na Rússia e depois lutar na Ucrânia.

Combatentes do Talibã assumem o controle do palácio presidencial afegão depois que o presidente afegão Ashraf Ghani fugiu do país, em Cabul, Afeganistão, 15 de agosto de 2021.

Dezenas de milhares de soldados afegãos e pessoal de segurança foram treinados pelas forças armadas americanas durante a guerra de quase 20 anos no Afeganistão, que terminou com uma retirada caótica de forças estrangeiras e o Talibã retomando o poder em Cabul em agosto de 2021. Temendo retribuição do Talibã, muitos membros do exército e da polícia do Afeganistão, bem como oficiais militares e de inteligência leais ao governo deposto fugiram para o Irã, Paquistão e outros países.

O Inspetor Geral Especial dos EUA para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR) informou em maio que, mesmo antes da queda de Cabul, “cerca de 3.000 forças de segurança afegãs, compostas de oficiais de alto escalão a soldados de infantaria, juntamente com seus equipamentos militares e veículos, cruzaram a fronteira para o Irã”, embora muitos tenham retornado ao Afeganistão depois que o Talibã ofereceu uma anistia geral.

Logo após o Talibã retornar ao poder, o Irã teria oferecido vistos temporários aos afegãos que pudessem provar que serviram nas forças armadas afegãs.

Recrutas do treinamento básico treinam combate em compartimento (CQB) como parte do currículo de Operações Militares em Terreno Urbano do Centro de Treinamento Militar de Cabul, 10 de maio de 2010.

Enquanto mais de 80.000 afegãos em risco que trabalharam ou lutaram ao lado dos EUA e outras forças ocidentais foram retirados de avião quando o Talibãn avançou sobre Cabul, dezenas de milhares foram deixados para trás no Afeganistão, onde mais de 100 assassinatos extrajudiciais de ex-militares e funcionários do governo foram registradas nos primeiros meses do regime talibã, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

A situação levou a preocupações dos líderes militares e políticos dos EUA de que Washington não estava fazendo o suficiente para evacuar os afegãos que lutaram contra o Talibã, abrindo a possibilidade de que cerca de 20.000 a 30.000 soldados treinados pelos EUA não tivessem outra alternativa a não ser se juntar ao Talibã ou a um adversário regional.

Em agosto, uma investigação do Congresso americano liderada pelos republicanos, crítica à retirada dos EUA, destacou o risco representado para os Estados Unidos por ex-forças afegãs que fugiram para o Irã, “devido ao fato de que esse pessoal afegão conhece as táticas, técnicas e procedimentos da comunidade militar e de inteligência americanas”.

Indignados com o grande número de tropas afegãs que não foram transportadas de avião para fora do Afeganistão nos últimos dias da guerra liderada pelos EUA, vários grupos liderados por veteranos americanos da guerra foram lançados para ajudar a tirar seus aliados afegãos do país.

“Nenhuma outra opção”

Operadores do 6º Kandak de Operações Especiais praticando a limpeza de um compartimento durante um exercício de treinamento em Cabul, província de Cabul, Afeganistão, 26 de novembro de 2013.

Mike Edwards, ex-treinador das forças especiais afegãs que formaram a organização voluntária Exodus Relief, disse à RFE/RL em março que “esses caras não têm outra opção a não ser serem mortos ou, se tiverem sorte, serem recrutados para o outro lado." Se eles escolherem o último, disse Edwards, isso significaria ter “alguns dos melhores que já treinamos trabalhando contra nós”.

Arghandiwal diz que as autoridades iranianas estavam dando às forças especiais afegãs que se mudaram para o Irã um ultimato para retornar ao Afeganistão ou lutar pela Rússia na Ucrânia.

A RFE/RL não conseguiu verificar de forma independente as alegações de Arghandiwal.

A Foreign Policy informou na semana passada que comandos afegãos estavam sendo recrutados para lutar na Ucrânia, citando ex-combatentes dizendo que estavam sendo contatados nos serviços de mensagens WhatsApp e Signal. Uma fonte militar disse à revista que até 10.000 ex-comandos afegãos podem estar dispostos a aceitar a oferta do Grupo Wagner.

Sequência com os Comandos do 6º Kandak na porta prestes a entrarem.

A AP informou esta semana que membros das forças especiais afegãs estavam sendo atraídos com a promessa de US$ 1.500 por mês e refúgio seguro para seus familiares. A agência de notícias citou um ex-comando afegão atualmente no Irã dizendo que cerca de 400 combatentes estavam pensando em se juntar ao Grupo Wagner.

O ex-comando disse que muitos de seus colegas soldados se sentiram abandonados por Washington e que sua oferta incluía vistos para a Rússia para ele, assim como para seus filhos e esposa, que estão no Afeganistão.

Sírios também foram oferecidos dinheiro para se tornarem mercenários

O Grupo Wagner esteve envolvido na guerra da Rússia na Ucrânia desde o início, com relatos no início do conflito sugerindo que o grupo mercenário estava oferecendo aos sírios US $ 3.000 por mês para se juntarem à luta.

A inteligência ucraniana disse que cerca de 40.000 sírios estavam se preparando para se aliar às forças russas na Ucrânia, mas acredita-se que apenas algumas centenas de sírios realmente chegaram ao campo de batalha e o esforço de recrutamento acabou sendo amplamente descartado como desinformação russa.

Comandos da 6º Kandak de Operações Especiais se protegem durante um tiroteio noturno com o Talibã no distrito de Ghorband, província de Parwan, em 15 de janeiro de 2014.

O impacto potencial dos comandos afegãos - considerados combatentes altamente qualificados e treinados - se lutarem na Ucrânia é contestado. Um ex-alto funcionário de segurança afegão sugeriu à Foreign Policy que sua entrada na guerra Rússia-Ucrânia “seria um divisor de águas” para o esforço de guerra do Kremlin.

Sergei Danilov, vice-diretor do Centro de Estudos do Oriente Médio da Academia Russa de Ciências, disse em entrevista ao Current Time que não tinha dúvidas de que a Rússia estava tentando recrutar afegãos. Mas ele disse que as forças afegãs estavam dispersas demais para serem recrutadas em grande número para formar uma força de combate unida, e observou suas falhas na defesa do Afeganistão contra o Talibã.

“Eles são treinados, mas não estão absolutamente motivados”, disse Danilov. “Eles não representam uma ameaça. Alguns conseguiram ir para o Paquistão – ou mesmo para o Irã – e agora estão na região e além…. Mas isso não é dezenas de milhares ou mesmo milhares.”

Bibliografia recomendada:

História dos Mercenários:
De 1789 aos nossos dias,
Walter Bruyère-Ostells.

Leitura recomendada:


sábado, 17 de setembro de 2022

Como e por que o Exército Afegão caiu tão rapidamente para o Talibã?

Recrutas do Exército Nacional Afegão ouvem as explicações de seu instrutor durante uma sessão de treinamento no Centro de Treinamento Militar de Cabul, no Afeganistão, em 19 de julho de 2009.
(AP Photo/Emilio Morenatti)

Por Todd Lehmann, The Times of Israel, 23 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de setembro de 2022.

Padrões de colapso indicam que foi o resultado coletivo de soldados individuais tomando decisões racionais sobre suas próprias situações e decidindo não lutar.

A CONVERSA via AP - O rápido colapso das forças armadas afegãs nos últimos dias pegou muitos nos EUA de surpresa, incluindo o presidente do Estado-Maior Conjunto.

Nos meses após o anúncio da retirada das tropas pelo presidente dos EUA, Joe Biden, em abril de 2021, relatórios de inteligência alertaram que os militares afegãos poderiam não lutar por conta própria, abrindo caminho para uma tomada do Talibã após a retirada das forças americanas.

No entanto, poucos esperavam que o Talibã tivesse sucesso tão rapidamente.

Em 10 de agosto, uma avaliação da inteligência americana previu uma tomada do Talibã em 90 dias. Demorou apenas cinco.

Minha pesquisa sobre o que os teóricos dos jogos e acadêmicos chamam de “problemas de comprometimento” identifica o problema, e não é um problema sobre o qual a maioria dos especialistas está falando, como planejamento ruim ou corrupção. Os padrões do colapso das forças armadas afegãs indicam que foi o resultado coletivo de soldados individuais tomando decisões racionais sobre suas próprias situações e decidindo não lutar.

Procurando a causa certa

Milicianos da resistência anti-Talibã na região de Abdullah Khil, na província de Panshir, em 24 de agosto.
(Ahmad Sahel Arman/AFP)

Durante todo o conflito, a ênfase perene em uma “estratégia de saída” dos EUA significava que os políticos dos EUA sempre se concentravam em saber se já era hora de sair. Por 20 anos, os esforços dos EUA se concentraram no pensamento de curto prazo e na solução de problemas que mudaram os objetivos militares e políticos ao longo do tempo, em vez de investir tempo e esforço para desenvolver uma estratégia abrangente de longo prazo para a guerra. Um compromisso indiscutivelmente morno dos EUA criou constantemente muitas das condições subjacentes ao colapso das forças armadas afegãs. No entanto, não determinou inteiramente o resultado.

Biden afirmou que os militares afegãos não tinham vontade de lutar. Outros culparam possíveis problemas de treinamento, soldados afegãos incompetentes ou corruptos e muita dependência de contratados privados para sustentar as forças afegãs.

Com base em minha pesquisa e análise, a causa primária do que aconteceu nas forças armadas afegãs não é nenhuma dessas, nem foi uma falha de caráter. Em vez disso, os soldados encontraram um “problema de compromisso”, vendo condições em rápida mudança que mudaram suas mentes de estarem dispostos a lutar para perceber que era uma ideia ruim – e perigosa – naquele momento.

Homens armados afegãos apoiando as forças de segurança afegãs contra o Talibã com suas armas e veículos Humvee na área de Parakh em Bazarak, província de Panjshir, em 19 de agosto de 2021.
(Ahmad Sahel Arman/AFP)

Uma cascata de rendição

Forças especiais afegãs patrulham a vila de Pandola perto do local de um bombardeio dos EUA no distrito de Achin da província de Nangarhar, no leste do Afeganistão, em 14 de abril de 2017.

Os soldados buscam força nos números. Quando os soldados lutam em batalha, eles só têm sucesso se lutarem como uma unidade. No entanto, as decisões individuais de lutar ou fugir dependem de expectativas mútuas. Se um soldado espera que a maioria de seus companheiros lute, o melhor interesse do soldado também é lutar.

Mas se eles esperam que a maioria de seus companheiros se renda, os soldados podem achar mais atraente se render – o que leva a um “problema de ação coletiva”. Se os soldados souberem que outras unidades realmente se renderam, eles esperam que a determinação de seus próprios camaradas seja baixa e se tornem menos propensos a lutar. Algumas rendições ou deserções iniciais podem desencadear mais algumas, e depois mais e mais até que um exército inteiro desmorone.

Foi exatamente isso que aconteceu com os militares afegãos. Quando a retirada dos EUA começou em maio, o Talibã começou a ganhar território. À medida que avançavam, o Talibã também negociou com grupos de forças afegãs estacionadas em postos avançados e em cidades, e convenceu algumas tropas a se renderem. Uma vez que o primeiro ataque de rendição ocorreu e as notícias começaram a se espalhar, outros rapidamente o seguiram, facilitando a aceleração do impulso para o Talibã à medida que avançavam sem enfrentar grande resistência. No final, os soldados afegãos escolheram a segurança em números ao se renderem juntos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

FOTO: Exercício de mulheres soldados do antigo Exército Nacional Afegão

Mulheres soldados com capacetes de kevlar sobre véus negros,
22 de outubro de 2014.

A foto mostra soldados do antigo Exército Nacional Afegão (ANA) participando de um exercício de treinamento em Cabul, em 22 de outubro de 2014.

Fotos de treinamento de mulheres no ANA são famosas e eram incluídas na quase totalidade das matérias sobre a guerra no Afeganistão. O Ministério da Defesa afegão chegou a apresentar um plano de expansão para 5 mil soldados femininas afegãs.

As matérias geralmente giravam em torna das conquistas das mulheres afegãs e do orgulho de serviram nas Forças Armadas da República Islâmica do Afeganistão. Havia sempre a narrativa de estarem "ao lado dos homens", apesar das mulheres servirem apenas em funções internas.

Apesar de todo marketing, a eficiência tática real das mulheres soldados afegãs foi insignificante e não teve qualquer peso na ofensiva final do Talibã em sua marcha para Cabul.

O atual Califado Islâmico do Afeganistão não emprega mulheres em suas forças armadas.


Bibliografia recomendada:

A Mulher Militar:
Das origens aos nossos dias.
Raymond Caire.

domingo, 12 de setembro de 2021

COMENTÁRIO: O Exército de Madeira Compensada

Por Elliot Ackerman, The Atlantic, 17 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de setembro de 2021.

Uma década depois que as forças americanas chegaram ao Afeganistão, o quartel-general da Força-Tarefa de Operações Especiais Combinadas ainda era feito de madeira compensada, assim como a maioria dos outros edifícios que abrigavam as tropas americanas. Os recursos existiam para construir de concreto, mas por que faríamos isso? Em qualquer ponto da nossa odisséia de 20 anos no Afeganistão, estávamos sempre - em nossas mentes, pelo menos - apenas um ou dois anos fora de uma diminuição de tropas seguida por uma eventual retirada total. Claro, os afegãos perceberam isso. Em um posto avançado remoto perto da fronteira iraniana onde servi, o contratado afegão que trabalhava ao lado da minha equipe de operações especiais sempre zombava toda vez que uma aeronave trazia paletes de madeira compensada para nossos projetos de construção. “Guerras”, dizia ele, “não se ganham com madeira compensada”.

Muitos alegaram que a desintegração das forças de segurança afegãs prova que eram um exército de papel. Isso não é muito preciso. Eles provaram ser um exército de madeira compensada. A diferença entre os dois explica como um exército que antes era capaz de lutar contra o Talibã se dissolveu em questão de dias.

Em 8 de julho, em uma coletiva de imprensa na Casa Branca, quando Joe Biden foi questionado se uma tomada pelo Talibã no Afeganistão era inevitável, ele respondeu: “Não, não é. Porque as tropas afegãs têm 300.000 soldados bem equipados - tão bem equipados quanto qualquer exército do mundo - e uma força aérea contra algo em torno de 75.000 talibãs. Não é inevitável.” Durante anos, as forças de segurança afegãs travaram sua própria guerra civil contra o Talibã, sofrendo baixas e mantendo-se firme. Um exército de papel, que possui pouca ou nenhuma capacidade de luta, nunca poderia ter feito tanto. Seu desempenho permitiu que o número de tropas americanas e internacionais diminuísse de quase 150.000 há uma década para 2.500 este ano, sem a implosão total do país.

E ainda assim as forças foram e sempre foram um exército de madeira compensada, com a capacidade de cumprir a missão, mas com problemas fundamentais de recrutamento, administração e liderança. Os militares afegãos eram, por definição, uma força recrutada nacionalmente, o que significa que, normalmente, os soldados afegãos não lutavam em suas províncias nativas. Por causa da história de senhoria da guerra do Afeganistão, a decisão de criar um exército recrutado nacionalmente (em oposição a um recrutado regionalmente) foi tomada no início, com a ideia de que um exército afegão com fortes afiliações regionais e tribais ameaçaria sua própria existência.

Essa decisão também teve suas desvantagens. As estruturas tribais e familiares que formam a espinha dorsal da responsabilidade na sociedade afegã não foram transferidas para os militares. Isso criou desafios disciplinares consistentes dentro das fileiras. Também provou ser um problema ao travar uma contra-insurgência. Um soldado afegão etnicamente tadjique de Mazar-i-Sharif com a missão de lutar na província fortemente pashtun de Helmand se veria ali tão estrangeiro quanto qualquer americano. Nunca conseguimos integrar lealdades tribais e regionais em um exército nacional. Se tivéssemos feito isso, as forças de segurança afegãs teriam sido construídas sobre uma base muito mais sólida.

As duas outras áreas onde as forças de segurança afegãs se mostraram endemicamente fracas - administração e liderança - estão intimamente ligadas. Servi como conselheiro de várias unidades afegãs e vi como a negligência em sua administração - listas de tropas imprecisas e estoques de equipamentos incompletos, por exemplo - alimentou a corrupção endêmica. Com muita frequência, como americanos, comparamos a corrupção no Afeganistão com o fracasso moral da parte dos afegãos, embora raramente questionemos nossa própria cumplicidade na criação de condições que fomentassem a corrupção. Mais tragicamente, nossa mensagem consistente de que estávamos saindo do Afeganistão encorajou os afegãos em posições de poder a abraçarem a corrupção - especificamente, o desvio de recursos para ganho pessoal - como o único meio claro e seguro de sobrevivência. A corrupção tornou-se um plano de contingência financeira, a escolha que qualquer afegão razoável faria para garantir um futuro seguro para seus filhos. Quando, a cada ano, os americanos prometiam que o ano seguinte traria uma retirada americana e eventual abandono ao Talibã, que escolha você faria?

A deterioração das forças de segurança afegãs não ocorreu no campo de batalha tanto quanto ocorreu nas salas de negociação, nas quais os principais líderes tribais - como Ismail Khan em Herat - ou se renderam sem lutar ou fizeram acordos com o Talibã enquanto eles avançavam antes que qualquer batalha substancial por essas cidades pudesse ocorrer. O exército afegão estava lá - bem treinado, bem equipado - mas sem liderança política, pelo menos não mais.

No Afeganistão, existe um ditado: “Os americanos têm os relógios, mas o Talibã tem o tempo”. Desde a decisão do presidente George W. Bush de desviar as tropas do Afeganistão para o Iraque como parte da invasão de 2003, os Estados Unidos sempre tiveram um pé fora da porta. Nunca convencemos nossos aliados - ou adversários - de que possuíamos os relógios e o tempo. Ironicamente, isso nos levou a passar mais tempo no Afeganistão do que passaríamos se tivéssemos uma postura diferente. Se não tivéssemos insistido em construir em madeira compensada.

O anúncio do presidente Biden de uma retirada americana completa do Afeganistão no início deste ano desencadeou uma crise de moral entre os afegãos que resultou em suas forças de segurança desistirem sem lutar. Eles podem ter possuído superioridade numérica e material, mas sua crença em si mesmos desapareceu quando partimos.

O que estamos vendo agora no Afeganistão é o acúmulo de centenas de decisões erradas ao longo de duas décadas. No entanto, o que não consigo tirar da minha cabeça hoje é que escolhemos madeira compensada.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:




segunda-feira, 30 de agosto de 2021

GALERIA: Treinamento de CQB de um Pelotão Tático Feminino afegão


Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 30 de agosto de 2021.

Militares do Pelotão Tático Feminino (Female Tactical Platoon, FTP) afegão do Ktah Khas participam de treinamento físico matinal e de treinamento de trio e CQB em Camp Scorpion nas cercanias de Cabul, no Afeganistão, em 29 de maio de 2016.

As mulheres dos FTP trabalhavam junto com os homens nas operações para envolver e interagir com mulheres e crianças. Os FTP eram treinados em tiro ao alvo, linguagem, descida rápida de corda (fast-roping), e outras habilidades relacionadas ao combate; sua missão era atuar com as forças de operações especiais afegãs (Comandos e Ktah Khas).

Matéria fotografada pelo Sargento Douglas Ellis, Força Aérea Americana (USAF).

Tiro ao alvo




CQB: Entrada no compartimento






Treinamento físico matinal

Comando afegã em descida rápida de corda (fast-roping).














quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Atirando pedras em um incêndio: uma história de meus nove meses treinando soldados afegãos

O autor com dois soldados ANA.
(Cortesia do autor)

Por Dustin Gladwell, SOFREP, 23 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de agosto de 2021.

“O quartel dos seus soldados afegãos está pegando fogo.”

Eu tinha acabado de me sentar com meu café da manhã em nossa pequena sala de jantar na Firebase Cobra, na província de Uruzgan, no norte, quando o capitão da equipe ODA do 3º Grupo de Forças Especiais se aproximou casualmente de mim. Parei no meio da mastigação, meu garfo pendurado no ar, a meio caminho entre minha boca e meu prato. Reconheço que demorei um pouco para processar o que ele acabou de dizer, especialmente devido à natureza relaxada de seu comportamento e à expressão cômica em seu rosto.

"O quê?" Eu perguntei a ele.

“Claro que está”, pensei. “Por que não estaria?”

Ele ficou lá, claramente ainda se divertindo, e provavelmente curtindo o momento ao máximo.

“Roger, senhor. Obrigado!" Eu pulei, joguei meu prato quase cheio de café da manhã no lixo no caminho para fora da porta e corri pela área de preparação para o nosso lado da Firebase (base de fogo), através do grande portão de metal que separava nosso lado da base do lado afegão. Ao chegar ao portão e dobrar a esquina, vi a fumaça. Com certeza, assim como o capitão havia dito, o pequeno quartel, feito de blocos de concreto e madeira compensada, pertencente ao Exército Nacional Afegão (Afghan National ArmyANA) estava, na verdade, em chamas. Até aquele momento, eu meio que esperava que ele estivesse apenas brincando comigo.

Atirar pedras em um incêndio não ajudará a apagá-lo

Logo depois que vi a fumaça e as chamas começando a sair do quartel, vi três dos meus homens ANA parados do lado de fora da entrada do quartel. Eles estavam pegando pedras do chão e jogando-as na porta do quartel na tentativa de apagar o fogo.

Eu prometo que não estou inventando isso. Não apenas fiquei surpreso ao saber que seu quartel estava em chamas, mas provavelmente fiquei mais surpreso ao vê-los atirando pedras para apagar o incêndio.

Quando cheguei à porta e disse-lhes para pararem, entrei parcialmente pela porta para ter certeza de que os outros soldados estavam sendo evacuados. Eu só podia ver alguns deles parados do lado de fora, então eu sabia que muitos mais ainda deviam estar lá. Eu também estava tentando dar uma olhada rápida em quão sério estava o fogo.

Quando olhei para dentro, pude ver que os cobertores no chão e nas paredes estavam em chamas. As paredes de compensado também estavam começando a pagar fogo.

Nesse momento, a maioria dos soldados ANA começou a correr pelo corredor, passando pelo fogo e saindo pela porta. Felizmente, alguns deles tinham mais presença de espírito do que seus amigos gênios atiradores de pedras e ajudaram o resto a sair. Algumas pequenas queimaduras foram os únicos feridos.

Acontece que eles estavam tomando seu chá da manhã e um dos afegãos chutou o queimador de gás propano que estava sendo usado para ferver a água. Que rapidamente acendeu os cobertores no chão. Em vez de simplesmente pegar o queimador pelo tanque e começar a abafar as chamas com seus outros cobertores ou com a água, eles simplesmente o deixaram ali no chão, queimando e acendendo mais cobertores. A grande ideia deles era sair correndo e começar a atirar pedras. Não pegar o queimador, nem tentar apagar o fogo, nem contar aos colegas, nem pedir ajuda. Nada. Pedras.

Só no Afeganistão.

Cobertores e madeira compensada seca queimam muito rapidamente no deserto

Companhia de infantaria do Exército Nacional Afegão na Firebase Cobra, em Uruzgan.
(Cortesia do autor)

Nesse ponto, o fogo já estava queimando por alguns minutos. Alguns dos soldados afegãos mais hábeis perceberam que todos haviam fugido sem seus pertences e equipamentos. Pude ver que o fogo estava se espalhando rapidamente e, como havia começado na sala bem ao lado da porta da frente, não haveria maneira segura de entrar ou sair. Assim que eles tentaram correr para dentro e recuperar seus equipamentos e pertences, eu intervi.

"Deixem. Vamos substituí-los”, eu disse por meio do meu intérprete, enquanto os empurrava fisicamente para trás pelo peito.

Foi aí que a munição começou a disparar sozinha. A munição de fuzil e metralhadora de cinta começou a disparar como fogos de artifício, e não muito tempo depois, as granadas e foguetes RPG. Nós nos mudamos para trás da parede para o complexo apenas esperando e observando. Embora todos estivessem preocupados com o fato de terem perdido seus equipamentos, roupas e os poucos dólares e bens que tinham em vida, não havia mais nada a fazer a não ser observar. Não podíamos chegar perto o suficiente para tentar apagar o fogo com água também.

Longa história resumida, eles perderam tudo. Assim que o fogo se extinguiu e esperamos várias horas para que toda a munição disparasse, borrifamos água sobre tudo por garantia e começamos a avaliar os danos. Em um dia, substituímos todos os uniformes, armas, munições e equipamentos e fornecemos a eles um pouco de dinheiro extra. Felizmente, ninguém ficou ferido.

Encontramos todos os fuzis, pistolas, metralhadoras e lançadores de RPG. Cada um foi queimado, carbonizado e parcialmente derretido. Não havia como salvar nenhum deles. Prestamos contas de cada um, carregamo-los em um palete e os colocamos em um helicóptero com destino a Kandahar. Lembre-se deste ponto, porque é importante: nós contabilizamos cada um e nós, os americanos, os carregamos no helicóptero.

Quatro meses depois...

Negociando no mercado da vila de Oshay fora da Firebase Cobra.
(Cortesia do autor)

Eu tinha sido rotacionado para outra base de fogo e depois para a base aérea de Kandahar. A companhia de infantaria afegã, cujo quartel havia pegado fogo quatro meses atrás, também foi transferida de volta para a base aérea de Kandahar.

Um dia, enquanto eu estava cuidando de algumas coisas na base afegã, perto da base aérea, cruzei com a companhia por acidente. Eu não esperava vê-los lá e não sabia que eles haviam sido rotacionados. Após uma rápida saudação, um dos intérpretes pediu para falar comigo.

Após o evento com o incêndio e por meio de missões de combate e patrulhas, esta companhia afegã passou a confiar um pouco em nós. Mais do que seus outros conselheiros, inclusive.

Eles eram novos em nossa base de fogo quando atearam fogo no quartel deles, e havia tensão entre nós. Nos primeiros dias, eles testaram a água comigo e com meus colegas e tentaram ver até onde poderiam nos empurrar. Eles tiveram experiências ruins com outros conselheiros e Instrutores Táticos Embutidos (Embedded Tactical Trainers, ETT) no passado e muitas vezes se sentiram negligenciados, abusados ou simplesmente que não se importavam com eles.

Este incêndio se tornou um evento fortuito. Eu havia ganhado a confiança deles e eles sabiam que eu estava protegendo-os, já que não os deixei - ou os fiz - correr no fogo para recuperar suas armas, e substituímos tudo muito rapidamente. Também não os culpamos nem os punimos. Foi um acidente estúpido e bobo. E pelo lado bom, eles ganharam coisas novas. Ganha, ganha, ganha.

Então, agora, alguns deles, junto com o intérprete, puxaram-me de lado e, em voz baixa, pediram minha ajuda. Eles sabiam que eu os ajudaria.

Seja corrupto ou tenha suas mãos cortadas

Um suboficial do Exército Afegão observa a multidão de moradores e talibãs reunidos durante uma MEDCAP (patrulha de socorro médico), na AO da Firebase Cobra.
(Cortesia do autor)

Como conselheiro do ANA, experimentei essa corrupção da parte dos afegãos regularmente; frequentemente diariamente. Muitas vezes, era um problema tão grande quanto o Talibã e outras forças anti-coalizão. Os oficiais frequentemente roubavam dinheiro, recursos e suprimentos das fileiras de seus subordinados e soldados alistados. O dinheiro acabava em seus bolsos e os suprimentos muitas vezes iam para o mercado negro. Era um sistema de corrupção generalizado e uma regra não-escrita da política dos oficiais. O pensamento é, alguém de cima vai tirar de mim, então eu vou tirar daqueles abaixo.

No Exército dos EUA, diz-se que “há apenas um ladrão no Exército; todo mundo está apenas tentando acompanhar.” Agora multiplique isso por 1.000 em um sistema fermentado por milhares de anos de corrupção, e aí está.

A corrupção mata o moral e a cultura de comando. O soldado médio mal pago, mal treinado e mal equipado não pode arcar com quaisquer razões adicionais para não lutar. Quando você tira a crença deles na causa e no comando, os resultados são desastrosos - como estamos vendo agora.

Agora, vamos falar sobre o Capitão Mohammed. Mohammed foi um dos melhores oficiais e soldados afegãos que já encontrei. Não porque ele fosse necessariamente um oficial de altamente operacional ou estrategista, ou possuísse habilidades incríveis de soldado. Ele nem mesmo saiu em muitas missões. Foi porque ele era honesto. Ele era um bom homem e era bom para seus homens. Na verdade, ele nunca nos deixou dar-lhe dinheiro para sua companhia de infantaria, nem para seus soldados, seu pagamento, nem comida. Ele não queria ser tentado nem acusado de ter feito malversação de fundos. Ele era um muçulmano devoto, moderado, não simpatizava com o Talibã e tinha quatro filhos. Resumindo, ele não era corrupto.

De volta à corrupção que assola e devasta as fileiras da liderança do Exército Nacional Afegão. O Capitão Mohammed não só não tirou dinheiro de seus homens... ele não iria contribuir com a corrupção e suborno de sua cadeia de comando. Ele também não enviaria dinheiro pela cadeia, como era de se esperar. No brilhantismo de sua corrupção, foi determinado por seu comando que, assim que ele voltasse para Kandahar, ele precisava ser punido. Eles precisavam de um exemplo. Ou seu dinheiro.

Lembra de todas as armas queimadas e destruídas no incêndio? Agora, os homens da companhia de infantaria me disseram que de acordo com o S-4 (oficial de suprimentos) do seu batalhão e o comandante do batalhão, havia um AK-47 “desaparecido”. De acordo com esses bons e íntegros oficiais do Exército Afegão, o Capitão Mohammed roubou este AK-47 desaparecido e "deve tê-lo vendido no mercado e levado o dinheiro". E a menos que ele pudesse produzir esta arma, ou o dinheiro, e dar a eles, eles iriam prendê-lo, colocá-lo na prisão e cortar suas mãos por roubo.

Só no Afeganistão.

"Se você tentar prendê-lo, terá que passar por mim"

Assim que soube o que estava acontecendo, fui imediatamente procurar o Capitão Mohammed. Ele estava em seu beliche, cercado por mais alguns de seus soldados. Todos eles pareciam bastante preocupados. Ele corroborou tudo o que acabei de ouvir.

“Eu não fiz isso”, disse-me ele por meio do intérprete. Ele estendeu as mãos como se estivessem algemadas na sua frente. "Eles vão cortar minhas mãos."

“Eu sei,” eu disse. E eu estava furioso. Ele não tinha muito tempo.

Assad, o intérprete, também defendeu o caso do capitão e tentou me convencer a ajudar e fazer alguma coisa. Eu assegurei a ele que sim.

Olhando para trás, tenho sorte de não ter me colocado em problemas também. Fui direto ao meu comandante, um alto e velho Rapaz Sulista da Geórgia. Ele era um major de infantaria e éramos próximos. Contei tudo a ele. Disse-lhe também que era eu quem tinha prestado contas de tudo, não o ANA. Em seguida, fomos ao nosso oficial de suprimentos, outro major, que conhecia aquele bosta oficial de suprimentos afegão. Assim que lhe contamos a história, ele imediatamente foi conosco conversar com ele.

Como você pode imaginar, o oficial de suprimentos afegão agiu com indiferença e como se estivéssemos enganados, em todos os níveis. Não houve “mal-entendido” e a história era que eles simplesmente não podiam aceitar roubo nas fileiras. Ele era um babaca gordo e presunçoso. Ele dispensou a mim e minha história e tentou apenas falar com meus oficiais. Se a memória não falha, acho que o segundo em comando do batalhão também estava lá. Mesmo assim, não conseguimos falar diretamente com o comandante do batalhão.

É importante notar, neste ponto, que mesmo na base aérea de Kandahar, eu estava sempre armado. Certo. Mas todo mundo também. Eu, no entanto, estava sempre travado e carregado (meio que contra as regras). Eu passava um tempo na borda da base aérea e em torno de muitos contratados afegãos, deixava o perímetro da base aérea e saía às ruas para chegar à base afegã e estava sempre com soldados afegãos. Além disso, você simplesmente “nunca sabia” [se algo ruim iria acontecer].

Então, eu me aproximei da mesa daquele oficial de suprimentos idiota, coloquei minhas mãos em sua mesa, certificando-me de que estava claro que eu estava armado mesmo naquele momento. Eu olhei nos olhos dele e disse: “se você tentar prender o capitão Mohammed, você terá que passar por mim primeiro e eu irei impedi-lo”.

Essa foi a melhor coisa que pude pensar naquele momento. Mas... foi na cara e direto ao ponto.

Meus oficiais parecem surpresos, e meu comandante colocou as mãos em meus ombros e gentilmente, mas com força, puxou-me de volta para perto dele.

"Está tudo bem, Sargento Gladwell", disse ele.

O oficial de suprimentos afegão estava claramente perplexo e sem palavras. Ele entendeu. Ele disse que iria "investigar". E então, nós partimos. Terminada a conversa.

Resolvendo as coisas: seja criativo para fazer a coisa certa

Um soldado ANA pratica tiro ao alvo com seu AK-47 fora da base de fogo, na província de Uruzgan.
(Cortesia do autor)

Naquela altura, ninguém tinha ideia do que havia acontecido com aquele carregamento de armas queimadas. Ninguém poderia descobrir o que tinha acontecido depois que elas foram entregues e retiradas dos livros. O que também tornou a situação difícil é que, embora tivéssemos muita autoridade operacional e de combate sobre os afegãos, e eles geralmente fizessem o que queríamos ou sugeríamos, não tínhamos autoridade militar formal sobre eles. E certamente não poderíamos interferir nos procedimentos internos afegãos como este. Mas precisávamos proteger o Capitão Mohammed.

Após a conversa com os oficiais afegãos, voltei para o Capitão Mohammed e sua turma. Contei a eles o que havia acontecido e assegurei que ajudaria a protegê-lo. Dei a eles meu número de celular local. Dei instruções aos seus sargentos e aos intérpretes de que, se o prendessem, ou mesmo tentassem prendê-lo durante a noite, me avisassem - imediatamente. Não seria a primeira vez que quase nos enfrentamos com soldados ou policiais afegãos, e eu estava preparado para fazer isso de novo. Principalmente para fazer a coisa certa e proteger um bom homem.

Lembrei-me de que, em nosso depósito, tínhamos um AK-47 quebrado que havia sido confiscado ou encontrado. Ele ficou lá por semanas. Procurei um dos meus capitães, que era o responsável pelos livros e por nossas coisas, e decidi ser criativo. Seu primeiro nome era Steve, e também éramos amigos.

“Ei, Capitão Steve. Você sabe aquele AK-47 quebrado que você tem em seu escritório... ele pertence a alguém?"

“Umm...” Ele pensou por um momento. "Não, eu acho que não. Eu nem tenho certeza de onde veio."

"Ele está... nos livros?"

"Não que eu saiba."

"Posso ficar com ele?"

Ele riu. "Sério?"

“Afirmativo. Eu vou queimá-lo.”

Depois de uma boa risada, contei-lhe o que estava acontecendo e dei todos os detalhes.

“Vou queimá-lo e direi que o encontrei - que foi meu erro. Então vou largá-lo bem na mesa daquele idiota. Pessoalmente."

"Pegue", disse ele. E então a diversão começou.

Um barril de queima de 50 galões e alguns galões de combustível diesel

Um fogo alimentado por um queimador de propano, uma tonelada de madeira seca e cobertores e munições 7,62 pipocando é realmente quente. Procurei um dos meus bons amigos, um sargento de primeira classe, que sempre atendia pelo nome de Fletch. Até sua esposa o chamava de Fletch.

Fletch era um daqueles caras que era bom com as pessoas e bom em fazer as coisas. Ele era o cara que conhecia todo mundo e podia “fazer as coisas aparecerem”. Por meio de negociações, negociações e negociações, e conversas doces à sua maneira, sempre funcionava do jeito dele. Se você precisava de algo, ele sabia onde e como conseguir. Ele poderia transformar um lápis em um tanque. Ou, pelo menos, um Humvee.

Na verdade, uma vez nós trocamos uma coisa velha ou outra (lixo que não tenho liberdade de divulgar), para colocar em nossas mãos uma caminhonete Ford Ranger semi-quebrada, para então trocar por um Humvee totalmente funcional... fora dos livros… Também uma história verdadeira. Não pergunte, apenas acredite.

Fui a Fletch com meu problema e ele disse: “Conte comigo, irmão”. Entreguei a ele o AK-47 quebrado e voltamos para nossa bebida. Quando voltamos, ele puxou uma Jerry can diesel da traseira de sua picape e jogou um monte de lixo no barril de combustão. Entraram o AK-47 e alguns galões de óleo diesel.

“Temos que deixar muito quente. Parecendo convincente”, disse ele.

Duas horas depois, tínhamos um AK-47 perfeitamente destruído, queimado de forma convincente e semi-derretido. Nós também derramamos água em cima dele, para aumentar a autenticidade - assim como no incêndio real. Na manhã seguinte, assim que esfriou o suficiente, dirigimos para o lado afegão da base aérea. Fletch e eu entramos direto no escritório do oficial de suprimentos, largamos o AK-47 queimado sem cerimônia em sua mesa e eu disse a ele, "encontrei".

Ele olhou para mim, riu nervosamente e disse algo que eu nem me lembro. Provavelmente foi algo bastante estúpido. Ele olhou para o outro cara em seu escritório e disse algo em dari. Não tenho ideia de quem eram os outros caras, ou o que eles disseram.

"Khoobas?" Eu perguntei: [“Tudo bem?” em Dari.] Eu olhei fixamente para ele.

“Khoobas”, ele afirmou. "Tudo certo".

Voltamos ao Capitão Mohammed e eu contei a ele tudo o que havia acontecido e tudo o que fizemos. Ele ficou com os olhos marejados. Ele me deu um abraço e me agradeceu de alma. Situação terminada. Problema resolvido.

Ninguém jamais prendeu o Capitão Mohammed. Ninguém cortou suas mãos também.

Corrupção. E atirar pedras em um incêndio... Exercícios de futilidade. Só no Afeganistão.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

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