sábado, 23 de maio de 2020

TAIWAN NA ERA DO MACH 2. O Starfighter em ação!


Por Everton Pedroza.
O Lockheed F-104 Starfighter sempre foi um dos mais polêmicos aviões de caça de todos os tempos. Era polêmico tanto pela forma que foi vendido às nações amigas quanto pelo registro de acidentes e percepção insatisfatória sobre sua atuação no combate aéreo em vários conflitos. Mesmo relegado a segundo plano na USAF, após a Guerra do Vietnã, prestou serviço com alguns países até o início do século XXI. Mas, diferente de grande parte dos aviões de caça americanos que entraram em combate, o F-104 não se destacou por suas atuações em guerras no Oriente Médio: foi nos céus asiáticos que ele se destacou positiva e negativamente, reivindicando, inclusive, o possível abate de algumas poucas aeronaves adversárias sobre Paquistão e Taiwan, nos anos 1960. No caso Taiwanês, a última das dezenas de escaramuças entre aviões chineses e taiwaneses ocorreu em 1967, e foi marcada pelo embate entre caças supersônicos e por um mistério que perdura até os dias atuais.
Caças F-104G Starfighter.

O COMBATE ENTRE SUPERSÔNICOS: A "BATALHA AÉREA 113”
Os tambores de guerra ecoavam no início de 1967. Nove anos após uma série de embates ocorridos entre a ROCAF (Força Aérea da República da China, ou seja, Taiwan) e a PLAAF (Força Aérea do Exército de Libertação Popular da China), cuja reedição dos embates entre F-86 e MiG-15 (1958) deixou um saldo de mais de uma dezena de aviões abatidos, a tensão entre ambos os países alcançou o ponto mais alto. Temendo um conflito militar, a força aérea taiwanesa intensificou os voos de reconhecimento, a fim de obter fotos da movimentação das tropas da China Continental. 
No dia 13 de janeiro de 1967, uma aeronave RF-104G da ROCAF, pilotada pela tenente-coronel Song Junhua, decolou do 12º SQN (Tao Yuan) para uma missão de reconhecimento na costa da província de Fujian, e rapidamente  “alarmou” uma notícia bastante indigesta: foi verificada a decolagem de dois grupos de 4 aeronaves  J-6 (versão chinesa do caça MiG-19), tendo como destino  o Estreito de Taiwan. Song acionou pós combustão e relatou ao controle de solo o fato de estar sendo perseguido por 2 caças adversários. Diante da performance das aeronaves da China Comunista, os taiwaneses decidiram contrapor a ameaça decolando com 4 de suas novas aeronaves Canadair F-104G “Starfighter”, armadas com mísseis AIM-9B Sidewinder e canhões M61 Vulcan.
Caça chinês J-6, versão local do MIG-19, empregado para interceptar o jato RF-104 de Taiwan.
Por volta das 12:40, 3 das 4 aeronaves decolaram da base aérea de Qingquangang, com uma delas (de matrícula 4344) tendo problemas de motor, vindo a decolar 1 minuto depois.  Após poucos minutos de voo sobre o mar, e com um controle de solo eficiente, os F-104 taiwaneses foram colocados em posição vantajosa, imediatamente atrás de uma das formações com 4 Shenyang J-6. As aeronaves taiwanesas encontraram as chinesas sobre ilha de kinmen (Estreito de Taiwan), onde deu-se início a um combate “dogfight” entre alguns jatos de ambos os “pacotes”. Tomando a iniciativa da batalha, o Ten Cel Xiao Yamin (F-104 #4341) viu um J-6 na mira, mas não conseguiu liberar a trava de segurança do míssil, na hora do disparo. Foi então que o seu ala, o Maj. Shih-lin Hu (F-104G matrícula 4347) “travou” o mesmo J-6 e disparou um míssil AIM-9B, destruindo-o rapidamente. Outro J-6 do grupo logo fez uma manobra de mergulho, tentando escapar dos starfighters, no momento em que Shih-lin Hu iniciou sua perseguição, até vê-lo explodir no ar em sua frente, já com ambas as aeronaves em sobrevoo sobre o mar territorial da China continental. De acordo com a ROCAF, a segunda aeronave teria sido atingida por um míssil AIM-9B disparado pelo F-104G (matrícula 4344) do Cap.  Bei-puo Shi. Com os F-104 voando sobre o território inimigo, o controlador aéreo taiwanês “gritava” na fonia, pedindo o retorno dos 4 pilotos envolvidos na ação.
Aqui podemos ver Shi-Lin Hu e Bei Puo posam ao lado de um F-104G.
Com a formação dispersa, após a batalha aérea, os pilotos rapidamente curvaram suas aeronaves para retornar para suas respectivas bases. Foi então que o líder da missão, o Ten Cel Xiao Yamin pediu que todos os pilotos envolvidos na missão se identificassem via rádio e mantivessem voo a 7 mil pés de altura. Máquinas 1, 2, 3 e 4 a salvo... Porém, a transmissão da aeronave #3 foi interrompida após uma reação assustada (“Hey!”) do seu piloto. O F-104 de matrícula 4353 voado pelo Maj Yang Jingzong desapareceu, e Yang nunca mais foi visto. De acordo com Bei-puo, havia muitas nuvens acima do Estreito, naquele dia, o que poderia ter causado desorientação espacial, culminando num acidente com aeronave de Yang. A China não aceita essa versão, diz que nenhum dos seus J-6 foi perdido e que o F-104 em questão foi abatido por disparos de canhão, enquanto ambas as aeronaves adversárias estavam voando uma de frente para a outra. A tática de ‘’abordar o inimigo pela frente’’ era bastante comum para minimizar a vantagem que os adversários tinham em velocidade e aceleração. De acordo com os chineses, o piloto Hu Shougen, piloto da 24ª Divisão Aérea da PLAAF e o piloto #3 da formação chinesa, teria sido o responsável pelo abate, disparando 48 projéteis, com alguns deles acertando a cabine do F-104. Segundo algumas fontes da China continental, Yang chegou a lançar 2 AIM-9B, mas o Shougen conseguiu “heroicamente” escapar de ambos, ao mesmo tempo que disparava contra o Yang. Em 2002, um pesquisador independente visitou Shougen na China e lá obteve “provas” de que os pilotos Qiao Tianfu(#1), Ye Muyou (#2) , Cheng Guoliang (#4) e os outros 4 pilotos chineses da outra formação que voaram naquela missão estavam vivos. Shougen mostrou, inclusive, fotos de gun câmera (que seriam de seu J-6) captando o momento dos disparos. Porém, logo se constatou que o avião sendo abatido na foto era muito semelhante ao F-104C norte-americano abatido no Vietnã em Setembro de 1965. O Cap. Bei-puo Shi rechaça categoricamente as informações chinesas, ao dizer que “no momento da última transmissão de rádio de Yang (sugestionando estar  a salvo), os F-104 estavam retornando da missão, sem que ninguém relatasse a presença  de caças inimigos nas proximidades e que hipoteticamente ambas as aeronaves estariam voando na faixa dos 600 km/h, uma de frente para a outra , numa aproximação beirando os 1.200 km/h . Pelas distâncias e velocidades nas quais ocorreram os outros combates do dia, o tempo que Shougen teria para atirar seria de 1.1 segundo. Não existe tática para agir em tão pouco tempo. O confronto entre as aeronaves adversárias, caso tivesse acontecido, seria muito curto para a ocorrência de um dogfight tão “dramático”, sem qualquer aviso de Yang’’.  Alguns pesquisadores independentes dizem que Yang pode ter sido abatido por Bei-puo por engano: como o F-104 número 4 atrasou na decolagem e possivelmente disparou um míssil (algo que não foi comprovado) num local onde haviam aeronaves hostis e amigas (tentando acertar um MiG), poderia ter atingido seu próprio colega, visto que a batalha aérea já poderia  estar encerrada, com os caças da PLAAF bem distantes. Bei-puo nega, alegando que seu avião estava à frente do avião de Yang, daí não poderia ter atirado para trás... Segundo Kelly Johnson, que foi um dos projetistas do F-104, os combates de 13 de janeiro de 1967, conhecidos como “A Batalha 113”, apontaram os pontos fracos e fortes da aeronave. “Podíamos manter aceleração forte e altitude constante, mas não podíamos manobrar com eles”, disse Kelly.
O piloto chinês hu Shougen posa ao lado do seu caça.

O FINAL DE CARREIRA.
Devidamente pintado com uma estrela vermelha do lado da cabine, O F-104 “4347” usado por Shih-Lin Hu foi perdido num acidente em 29 de abril de 1971: logo após a decolagem, o piloto relatou problemas e fez um pouso de emergência num campo de golfe. O F-104 4341 de Yamin sofreu um acidente com danos irreparáveis em 19 de julho de 1980. Já o F-104 “4344” utilizado por Bei-puo teve mais sorte: serviu até 12 de fevereiro de 1980 (após 4.635 horas de voo) e hoje encontra-se exposto na Academia de Pilotos da ROCAF , em Okayama, Taipei.
Dos 4 pilotos que participaram da missão, apenas  Bei-puo Shih continua vivo: Hu Shilin faleceu devido às complicações de um câncer e Xiao Yamin foi vítima de um acidente aéreo durante um treinamento em 1989: foi “queimado vivo” no assento traseiro de F-104 que pegou fogo enquanto estava aterrissando. Shi Beibo prestou serviços a ROCAF apenas por 10 anos, saindo da força aérea após várias violações de regras de conduta. Pouco tempo depois de ele “dar baixa”, começou a trabalhar como piloto-chefe na Fuxing Airlines, onde viu eclodir um protesto coletivo de pilotos contra os salários e condições de trabalho. Diante da desorganização do movimento e punição aos envolvidos, Bei-puo não quis retornar ao trabalho, vindo a se arrepender nos anos seguintes, devido à perda dos ótimos salários oferecidos a ele.
O F-104 de numero 4044 usado por Bei-puo está conservado na Academia de Pilotos de Taipei.
Em 27 de janeiro de 2017, passados 50 anos da batalha aérea contra a China (a última escaramuça entre os países que culminou num combate real), o Cap. Bei-puo foi condecorado, recebendo a “medalha de Defesa de Taiwan” do presidente taiwanês Ma Ying-jeou.
De acordo com a ROCAF, as vitórias de 13 de janeiro de 1967 foram as primeiras e únicas obtidas por caças F-104 em todo o mundo. Porém, a PAF (Força Aérea Paquistanesa) reivindica o abate de 2 Folland Gnat da IAF e 1 Mystère (Guerra de 1965), mas em relação aos abates de Gnat existem muitas controvérsias entre as reivindicações paquistanesas e a versão indiana. O F-104 encerrou sua carreira longa na força aérea taiwanesa em 22 de maio de 1998 e foi substituído pelos Mirage 2000-5. Durante os 38 anos de serviço, Taiwan operou 247 Starfighters, provenientes dos EUA, Canadá, Alemanha, Japão, Dinamarca e Bélgica, dos quais 114 aeronaves foram perdidas em acidentes que resultaram na morte de 62 pilotos.
Bei-puo e pres: Bei- Puo recebe medalha do presidente taiwanês em 2017.
Em relação a versão chinesa, devido às restrições de uso da internet, essa carece de fontes relatando os fatos ocorridos na ‘’Batalha 113’’. Poucos livros tratam do assunto.O que sabe-se é que a PLAAF celebra seus J-6 como ‘’aviões imbatíveis’’, que saíram do serviço ativo (2010) com uma folha de serviço sem manchas, no Vietnã e em escaramuças locais. Alegam que seus pilotos de J-6 abateram 26 aeronaves norte-americanas e taiwanesas sem qualquer perda. 
No caso nos combates entre China e Taiwan, existe um fator que atrapalha bastante a pesquisa de qualquer reivindicação, de ambos os lados: vários aviões atingidos acabam caindo no mar, e nunca mais são vistos. Se faltam algumas evidências materiais, o respeito que os chineses têm demonstrado pela ROCAF desde 1967, por si só, evidencia a qualidade e preparo dos pilotos  taiwaneses. Durante muitos anos, o bom treinamento dos pilotos da ilha era suficiente para ‘’igualar’’ a gigante, porém envelhecida e pouco eficaz PLAAF. Contudo, as coisas mudaram: a China hoje dispõe de uma economia que permite gastos militares muito superiores aos de Taiwan, e desenvolve equipamentos de ponta como caças de quinta geração e uma avançada gama de armas locais. A ROCAF, por sua vez, continua dependendo muito dos suprimentos e equipamentos provenientes do exterior. Talvez se um dia o hipotético (mas não impossível) cenário de uma China expansionista for real, Taiwan vai pagar o preço de lutar uma guerra desproporcional, caso não receba ajuda norte-americana.


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