quinta-feira, 3 de junho de 2021

O Hamas como senhor de Gaza: A geopolítica dos palestinos

Militantes do Hamas desfilando em Gaza comemorando a alegada vitória contra Israel, 22 de março de 2021.
Enquanto isso, o Egito intermediava um cessar-fogo com Israel.

Por George Friedman, Stratfor, 19 de junho de 2007.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de junho de 2021.

[Nota do Tradutor: Análise feita quando o Hamas venceu a guerra contra o Fatah e tomou o controle da Faixa de Gaza em 15 junho de 2007. Isso permitiu o fortalecimento do grupo terrorista, desafiando a Autoridade Nacional Palestina e criando um território próprio. Esse artigo deve ser lido em conjunto com este e este artigos.]

Na semana passada, aconteceu uma coisa importante no Oriente Médio. O Hamas, um grupo político islâmico radical, tomou à força o controle de Gaza do rival Fatah, um grupo palestino essencialmente secular. A Cisjordânia, entretanto, permanece mais ou menos sob o controle do Fatah, que domina a Autoridade Nacional Palestina naquela região. Portanto, pela primeira vez, os dois territórios palestinos distintos - a Faixa de Gaza e a Cisjordânia - não estão mais sob uma única autoridade palestina. O Hamas vem aumentando sua influência entre os palestinos há anos e ganhou um grande impulso ao vencer a eleição mais recente. Agora, reivindicou controle exclusivo sobre Gaza, sua fortaleza histórica e base de poder. Não está claro se o Hamas tentará assumir o controle da Cisjordânia também, ou se teria sucesso se fizesse tal jogada. A Cisjordânia é uma região diferente com uma dinâmica muito diferente.


O que é certo, pelo menos por enquanto, é que essas regiões estão divididas em duas facções e, portanto, têm o potencial de se tornarem dois Estados palestinos diferentes. De certa forma, isso faz mais sentido do que o arranjo anterior. A Cisjordânia e a Faixa de Gaza estão fisicamente separadas uma da outra por Israel. Viajar de uma parte dos territórios palestinos para a outra depende da disposição de Israel em permiti-lo - o que nem sempre acontece. Como resultado, os territórios palestinos são divididos em duas áreas com contato limitado.

A guerra entre os filisteus e os hebreus é descrita nos livros de Samuel. Os filisteus controlavam as planícies costeiras do Levante, a costa leste do Mediterrâneo. Eles tinham tecnologias avançadas, como a habilidade de fundir bronze, e conduziam o comércio internacional para cima e para baixo do Levante e dentro do Mediterrâneo oriental. Os hebreus, incapazes de enfrentarem os filisteus em combate direto, recuaram para as colinas a leste da costa, na Judéia, área hoje chamada Cisjordânia. Os filisteus faziam parte de uma entidade geográfica que ia de Gaza ao norte até a Turquia. Os hebreus faziam parte do interior que ligava o norte à Síria, o sul nos desertos da Arábia e a leste pelo Jordão. Os filisteus não conseguiram perseguir os hebreus no interior, e os hebreus - até Davi - não conseguiram desalojar os filisteus da costa. Duas entidades distintas existiram.

Hoje, Gaza está ligada ao sistema costeiro, que Israel e Líbano agora ocupam. Gaza é a ligação entre a costa do Levante e o Egito. A Cisjordânia não é uma entidade costeira, mas uma região cujos laços são com a Península Arábica, Jordânia e Síria. A questão é que Gaza e Cisjordânia são entidades geográficas muito distintas que vêem o mundo de maneiras muito diferentes. Gaza, com suas ligações ao norte cortadas pelos israelenses, historicamente foi orientada para os egípcios, que ocuparam a região até 1967. Os egípcios influenciaram a região criando a Organização para a Libertação da Palestina (Palestine Liberation Organization, PLO), enquanto sua dissidente Irmandade Muçulmana ajudou a influenciar a criação do Hamas em 1987.

A Cisjordânia, parte da Jordânia até 1967, é maior e mais complexa em sua organização social e realmente representou o centro de gravidade do nacionalismo palestino sob o Fatah. Gaza e a Cisjordânia sempre foram entidades separadas, e a recente ação do Hamas provou essa realidade. A vitória do Hamas em Gaza significa muito mais para os palestinos e egípcios do que para os israelenses - pelo menos a curto prazo. O medo em Israel agora é que Gaza, sob o governo do Hamas, se torne mais agressiva na realização de ataques terroristas em Israel. O Hamas certamente tem uma ideologia que defende isso, e é totalmente possível que o grupo se torne mais antagônico. No entanto, parece-nos que o Hamas já era capaz de realizar tantos ataques quantos desejasse antes de assumir o controle total. Além disso, ao aumentar os ataques agora, o Hamas - que sempre foi capaz de negar a responsabilidade por esses incidentes - perderia o elemento de negação. Tendo assumido o controle de Gaza, independentemente de realizar ataques, não teria conseguido evitá-los. A liderança do Hamas está agora mais vulnerável do que nunca.

Vamos considerar a posição estratégica dos palestinos. Sua principal arma contra Israel continua sendo o que sempre foi: ataques aleatórios contra alvos civis destinados a desestabilizar Israel. O problema com essa estratégia é óbvio. Usar o terrorismo contra americanos no Iraque é potencialmente eficaz como estratégia. Se os americanos não suportarem o nível de baixas que está sendo imposto, eles têm a opção de deixar o Iraque. Embora a partida possa representar sérios problemas para os interesses regionais e globais dos EUA, isso não afetaria a continuidade da existência dos Estados Unidos. Portanto, os insurgentes poderiam encontrar um limite que forçaria os Estados Unidos a se dobrarem. Os israelenses não podem deixar Israel. Suponha por enquanto que os palestinos poderiam causar 1.000 vítimas civis por ano. Existem cerca de 5 milhões de judeus em Israel. Isso seria cerca de 0,02 por cento de baixas. Os israelenses não vão deixar Israel nessa taxa de baixas, ou em uma taxa mil vezes maior. Ao contrário dos americanos, para quem o Iraque é um interesse subsidiário, Israel é o interesse central de Israel. Israel não vai capitular aos palestinos por causa dos ataques terroristas.

Uma unidade de artilharia israelense dispara contra alvos na Faixa de Gaza, na fronteira israelense com Gaza, quarta-feira, 12 de maio de 2021.

Os israelenses podem ser convencidos a fazerem concessões políticas na formação de um Estado palestino. Por exemplo, eles podem conceder mais terras ou mais autonomia para impedir os ataques. Isso pode ter sido atraente para o Fatah, mas o Hamas rejeita explicitamente a existência de Israel e, portanto, não dá aos israelenses nenhum motivo para fazerem concessões. Isso significa que, embora os ataques possam ser psicologicamente satisfatórios para o Hamas, eles seriam substancialmente menos eficazes do que os ataques realizados enquanto o Fatah conduzia as negociações. Negociar com o Hamas não traz nada para Israel. Um dos usos do terrorismo é desencadear uma resposta israelense, que por sua vez pode ser usada para abrir uma barreira entre Israel e o Ocidente. O Fatah tem sido historicamente habilidoso em usar o ciclo de violência em seu benefício político.

O Hamas, entretanto, é prejudicado de duas maneiras: primeiro, sua posição sobre Israel é considerada muito menos razoável do que a do Fatah. Em segundo lugar, o Hamas é cada vez mais visto como um movimento jihadista e, como tal, sua força ameaça os interesses europeus e americanos. Embora Israel não queira ataques terroristas, esses ataques não representam uma ameaça à sobrevivência do Estado judeu. Para serem de sangue frio, eles são irritantes, não uma ameaça estratégica. A única coisa que poderia ameaçar a sobrevivência de Israel, além de uma barragem nuclear, seria uma mudança na posição dos Estados vizinhos. No momento, Israel tem tratados de paz com o Egito e a Jordânia, e uma relação funcional adequada com a Síria. Com Egito e Jordânia fora do jogo, a Síria não representa uma ameaça. Israel está estrategicamente seguro.

O vizinho mais importante de Israel é o Egito. Quando energizado, é o centro de gravidade do mundo árabe. Sob o ex-presidente Gamal Abdul Nasser, o Egito dirigiu a hostilidade árabe a Israel. Depois que Anwar Sadat reverteu a estratégia de Nasser em relação a Israel, o Estado judeu estava basicamente seguro. Outras nações árabes não poderiam ameaçá-lo, a menos que o Egito fizesse parte da equação. E por quase 30 anos, o Egito não fez parte da equação. Mas se o Egito invertesse sua posição, Israel se sentiria, com o tempo, muito menos confortável. Embora a Arábia Saudita tenha ofuscado recentemente o papel do Egito no mundo árabe, os egípcios sempre podem optar por uma posição de liderança forte e usar sua força para ameaçar Israel. Isso se torna especialmente importante quando a saúde do presidente egípcio Hosni Mubarak piora e levantam-se questionamentos se seus sucessores conseguirão manter o controle do país enquanto a Irmandade Muçulmana lidera uma campanha para exigir reformas políticas [NT: essa problemática explodiu na Primavera Árabe de 2011].

Manifestantes durante os protestos em massa no Cairo, capital do Egito, em 2011.

Como já dissemos, Gaza faz parte do sistema costeiro mediterrâneo. O Egito controlou Gaza até 1967 e reteve influência lá depois, mas não na Cisjordânia. O Hamas também foi influenciado pelo Egito, mas não pelo governo de Mubarak. O Hamas foi uma conseqüência da Irmandade Muçulmana egípcia, que o regime de Mubarak fez um trabalho razoavelmente bom em conter, principalmente por meio da força. Mas também existe um paradoxo significativo nas relações do Hamas com o Egito. O regime de Mubarak, particularmente por meio de seu chefe de inteligência (e possível sucessor de Mubarak) Omar Suleiman, tem boas relações de trabalho com o Hamas, apesar de ser duro com a Irmandade Muçulmana. Esta é a ameaça a Israel. O Hamas tem laços com o Egito e ressoa com os egípcios, bem como com os sauditas. Seus membros são sunitas religiosos. Se a criação de um estado islâmico palestino em Gaza for bem-sucedida, o efeito negativo mais importante pode ser no Egito, onde a Irmandade Muçulmana - que atualmente está muito baixa - poderia ser reativada. Mubarak está envelhecendo e espera ser sucedido por seu filho.

A credibilidade do regime é limitada, para dizer o mínimo. É improvável que o Hamas tome o controle da Cisjordânia - e, mesmo que o fizesse, ainda não faria diferença estratégica. O aumento dos ataques terroristas contra a população de Israel alcançaria menos do que os ataques que ocorreram enquanto o Fatah negociava. Eles poderiam acontecer, mas não levariam a lugar nenhum. A estratégia de longo prazo do Hamas - na verdade, a única esperança dos palestinos que não se prepararam para aceitar um acordo com Israel - é que o Egito mude seu tom em relação a Israel, o que poderia muito bem envolver energizar as forças islâmicas no Egito e provocar a queda do regime de Mubarak. Essa é a chave para qualquer solução para o Hamas. Embora muitos estejam se concentrando no aumento da influência do Irã em Gaza, deixando de lado a retórica, o Irã é um jogador secundário na equação israelense-palestina. Mesmo a Síria, apesar de hospedar a liderança exilada do Hamas, tem pouco peso quando se trata de representar uma ameaça estratégica para Israel.

Militantes do Hamas brandindo armas e bandeiras.

Mas o Egito tem um peso enorme. Se um levante islâmico ocorresse no Egito e fosse instalado um regime que pudesse energizar o público egípcio contra Israel, isso refletiria uma ameaça estratégica à sobrevivência do Estado israelense. Não seria uma ameaça imediata - levaria uma geração para transformar o Egito em uma potência militar - mas, em última análise, representaria uma ameaça. Apenas um Egito disciplinado e hostil poderia servir como a pedra angular de uma coalizão anti-Israel. O Hamas, ao se afirmar em Gaza - especialmente se puder resistir ao exército israelense - pode acertar a nota no Egito que o Fatah não consegue fazer por quase 30 anos. Essa é a importância da criação de uma entidade separada em Gaza; isso complica as negociações entre israelenses e palestinos e provavelmente as torna impossíveis. E isso por si só funciona a favor de Israel, já que ele não precisa nem mesmo entreter negociações com os palestinos enquanto os palestinos continuarem se dividindo.

Se o Hamas fizesse incursões significativas na Cisjordânia, as coisas seriam mais difíceis para Israel, assim como para a Jordânia. Mas com ou sem a Cisjordânia, o Hamas tem o potencial - não a certeza, apenas o potencial - de alcançar o oeste ao longo da costa mediterrânea e influenciar os eventos no Egito. E essa é a chave para o Hamas. Provavelmente há uma dúzia de razões pelas quais o Hamas fez a mudança que fez, a maioria delas triviais e limitadas a problemas locais. Mas a consequência estratégica de uma Gaza islâmica independente é que ela pode atuar tanto como um símbolo quanto como um catalisador para a mudança no Egito, algo que era difícil enquanto o Hamas estava emaranhado com a Cisjordânia. Isso provavelmente não foi planejado, mas é certamente a consequência mais importante - pretendida ou não - do caso de Gaza. Duas coisas devem ser monitoradas: primeiro, se há reconciliação entre Gaza e a Cisjordânia e, em caso afirmativo, em que termos; segundo, o que os islâmicos egípcios liderados pela Irmandade Muçulmana fazem agora que o Hamas, sua própria criação, assumiu o controle de Gaza, uma região que já foi controlada pelos egípcios. O Egito é o lugar para assistir.

Sobre o autor:

George Friedman.

George Friedman é um analista geopolítico reconhecido internacionalmente e estrategista em assuntos internacionais, fundador do Stratfor e o fundador e presidente da Geopolitical Futures, uma publicação online que analisa e prevê o sistema internacional. É o autor dos best-sellers Flashpoints: The Emerging Crisis in Europe, The Next Decade, America's Secret War, The Future of War e The Intelligence Edge. Seus livros foram traduzidos para mais de 20 idiomas.

Post-script: O Egito bloqueia Gaza

Um soldado egípcio em cima de um tanque na Praça Tahrir, durante a Revolução Egípcia de 2011, parte da Primavera Árabe.

Os militares egípcios realizaram uma repressão sangrenta ao governo da Irmandade Muçulmana durante o golpe de 2013, liderado pelo General Abdel Fattah al-Sisi. O presidente da Irmandade Muçulmano, Mohamed Morsi, que havia subido à presidência depois da Primavera Árabe (2011), foi deposto e os meios de comunicação da Irmandade foram silenciados. O Egito retornou ao nasserismo. Iniciou-se uma insurgência islâmica no Sinai.

Em 23 de janeiro de 2008, depois que militantes do Hamas na Faixa de Gaza detonaram uma explosão perto da passagem de fronteira de Rafah, destruindo parte do muro de 2003, iniciou-se um êxodo palestino para o Egito. As Nações Unidas estimam que cerca de metade do 1,5 milhão de habitantes da Faixa de Gaza cruzou a fronteira com o Egito em busca de alimentos e suprimentos. Por temer que militantes adquirissem armas no Egito, a polícia israelense ficou em alerta crescente.

O Egito havia fechado a passagem de fronteira de Rafah em junho de 2007, dias antes do Hamas assumir o controle de Gaza no final do conflito Fatah-Hamas; A violação da fronteira seguiu-se a um bloqueio da Faixa de Gaza por Israel começando em parte naquele mesmo junho, com reduções no fornecimento de combustível em outubro de 2007. Um bloqueio total começou em 17 de janeiro de 2008 após um aumento nos ataques com foguetes contra Israel vindos de Gaza.

Policiais egípcios dirigindo em uma estrada que leva à capital da província do Sinai do Norte, El-Arish, em 26 de julho de 2018.

Embora Israel exigisse que o Egito fechasse a fronteira devido a questões de segurança, o presidente egípcio Hosni Mubarak ordenou que suas tropas permitissem travessias para aliviar a crise humanitária, enquanto verificava que os habitantes de Gaza não tentavam trazer armas de volta para Gaza. Em cinco dias, os habitantes de Gaza gastaram cerca de US$ 250 milhões apenas na capital do governo do Sinai do Norte, Arish. A súbita e enorme demanda por produtos básicos levou a grandes aumentos de preços locais e escassez.

A Irmandade Muçulmana no parlamento egípcio desejava abrir o comércio através da fronteira com Gaza em 2012, uma medida que teria sido resistida pelo governo egípcio de Tantawi. Após o golpe de Estado egípcio de 2013, os militares egípcios destruíram a maioria dos 1.200 túneis usados para o contrabando de alimentos, armas e outros bens para Gaza. Estes túneis custam bilhões e são pagos com ajuda humanitária desviada. Após o massacre de Rabaa em agosto de 2013 no Egito, a passagem de fronteira foi fechada "indefinidamente".

O argumento do Egito é que não pode abrir a passagem de Rafah a menos que a Autoridade Palestina chefiada por Mahmoud Abbas controle a passagem e monitores internacionais estejam presentes. O ministro das Relações Exteriores do Egito, Ahmed Aboul Gheit, disse que o Hamas deseja que a fronteira seja aberta porque isso representaria o reconhecimento egípcio do controle do grupo sobre Gaza. "É claro que isso é algo que não podemos fazer", disse ele, "porque isso minaria a legitimidade da Autoridade Palestina e consagraria a divisão entre Gaza e a Cisjordânia."

Posto militar egípcio no Sinai.

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