Mostrando postagens com marcador Islã. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Islã. Mostrar todas as postagens

sábado, 12 de fevereiro de 2022

FOTO: Mercenário do Corpo Eslavo com retrato de Bashar al-Assad

Mercenário da PMC Corpo Eslavo com um retrato de Bashar al-Assad, 2013.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 12 de fevereiro de 2022.

Um combatente da Companhia Militar Privada (Private Miltiary Company, PMC) russa Slavyanski Korpus (Corpo Eslavo / Славянский Корпус) posando com o retrato do presidente Bashar al-Assad na Síria, em 2013. O Corpo Eslavo precedeu o Grupo Wagner e teve vida curta, sendo aniquilado em uma emboscada do Jaysh al-Islam (Exército do Islã). Ao chegarem ao aeroporto de Vnukovo, em Moscou, os mercenários sobreviventes foram detidos pelas autoridades; pois o mercenarismo é oficialmente ilegal na Rússia. Alguns destes mercenários foram incorporados no nascente Grupo Wagner.

Vídeos de combate do Corpo Eslavo mostram algumas operações, inclusive um combate noturno com uso de OVN, onde um canhão autopropulsado 2S1 Gvozdika do Exército sírio é visto atirando.

Segundo relatos da mídia, o Corpo Eslavo foi registrado em Hong Kong por dois funcionários da empresa de segurança privada Moran Security Group, os cidadãos russos: Vadim Gusev e Yevgeniy Sidorov.

Na primavera de 2013, anúncios de emprego de uma empresa sediada em Hong Kong surgiram em vários sites militares russos. Os anúncios prometiam 5.000 dólares por mês para os serviços de guarda protegendo as instalações de energia na Síria durante a guerra civil naquele país. Os anúncios atraíram a atenção de ex-membros da OMON, SOBR, VDV e Spetsnaz; muitos deles tinham experiência militar anterior na Guerra Civil do Tajiquistão, bem como na Segunda Guerra da Chechênia.

A foto mais famosa do Corpo Eslavo na Síria.

Em 2013, depois de chegar inicialmente a Beirute, no Líbano, os mercenários foram transferidos primeiro para Damasco, a capital da Síria, e depois para uma base do exército sírio em Latakia. Em outubro, o Corpo Eslavo tinha uma força de 267 contratados divididos em duas companhias que estavam presentes em Latakia.

Os contratados receberam equipamentos desatualizados, o que levantou preocupações entre os participantes. Eles logo perceberam que a FSB e o governo sírio não tinham envolvimento com a operação. Aqueles que desejavam retornar à Rússia não tiveram escolha a não ser ganhar sua passagem de volta através da participação direta na guerra civil síria. O novo objetivo do Corpo Eslavo foi descrito como guardar os campos de petróleo de Deir ez-Zor. Em vez dos prometidos T-72, os contratados receberam ônibus cobertos de placas de metal. A caminho de Deir ez-Zor, a coluna encontrou um helicóptero da força aérea síria que colidiu com uma linha de transmissão e caiu em cima duma caravana, ferindo um dos contratados.

Em 18 de outubro, a coluna recebeu ordens para reforçar as forças do exército sírio na cidade de Al-Sukhnah. Três horas em sua jornada, a coluna foi atacada. Com a ajuda de um canhão autopropulsada do exército sírio e apoio aéreo de um único caça, os contratados assumiram uma posição defensiva. Os combatentes do Jaysh al-Islam, de dois a seis mil homens (de acordo com os russos), tentaram um movimento de pinça. Em desvantagem numérica, os contratados recuaram para seus veículos enquanto uma tempestade no deserto cobria o campo de batalha. No rescaldo da batalha, seis membros do Corpo Eslavo foram feridos. Tendo falhado em atingir seus objetivos, o grupo retornou à Rússia.

Ao chegar ao Aeroporto Internacional de Vnukovo, os participantes foram detidos pela FSB por suspeita de agir como mercenários, o que é punível nos termos do artigo 359 da lei penal russa. Apesar do fato de a empresa estar registrada em Hong Kong, os proprietários, Gusev e Sidorov, também foram acusados e condenados em outubro de 2014.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A batalha pela prisão de al-Hassaká se encerrou depois de seis dias


Por Filipe do A. Monteiro, 26 de janeiro de 2022.

A batalha em al-Hassaká encerrou-se no seu sexto dia com a recaptura da prisão pelas forças das SDF.

Na quinta-feira, 20 de janeiro, mais de cem membros do Estado Islâmico (EI) tomaram de assalto com caminhões-bomba e armas pesadas a prisão de Ghwayran em al-Hassaká, uma das maiores prisões contendo jihadistas na Síria. Confrontos violentos se seguiram por vários dias ao redor e dentro desta prisão no nordeste da Síria. A luta feroz entre as forças curdas das SDF e combatentes árabes do EI vem acontecendo há vários dias dentro e ao redor da prisão após o ataque; o maior reivindicado pelo EI desde sua derrota há quase três anos na Síria.

Liderando a luta contra o Estado Islâmico, as Forças Democráticas Sírias (SDF), em sua maioria curdos, e a coalizão liderada pelos EUA "começaram a invadir partes da prisão, que permanece sob controle do Estado Islâmico" depois de libertar vários combatentes curdos e funcionários detidos pelo Estado Islâmico, de acordo com o OSDH.

O ataque aberto às instalações administradas pelos curdos envolveu um duplo atentado à bomba suicida e viu os jihadistas libertarem outros membros do EI, apreenderem armas e assumirem o controle de uma série de pavilhões da prisão.

Objetos capturados de um militante do EI durante a batalha, incluindo uma bandeira do Estado Islâmico.

Civis reclamam que não há comida e não há água


De acordo com um novo relatório estabelecido segunda-feira pelo Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH), 181 pessoas foram mortas em cinco dias de combates – 124 jihadistas, 50 combatentes curdos e 7 civis. Quase 45.000 pessoas fugiram de suas casas após o assalto à prisão e os intensos combates que se seguiram, segundo a ONU.

Human Rights Watch, com sede nos Estados Unidos da América (EUA), estimou que as forças curdas sírias detêm cerca de 12.000 homens e meninos afiliados ao Estado Islâmico; incluindo até 4.000 estrangeiros de quase 50 países.

Nas redes sociais, as SDF narraram as operações:
Sniper curdo em posição.

Fuzileiro-metralhador curdo observa destroços dos muros da prisão.

Combates de rua prosseguem nos quarteirões da prisão.

As Forças Democráticas Sírias (Quwwāt Sūriyā al-Dīmuqrāṭīya; em árabe: قوات سوريا الديمقراطية, em curdo: Hêzên Sûriya Demokratîk, em siríaco: Haylawotho d'Suriya Demoqratoyto), são uma aliança de milícias de sírios curdos, árabes, assírios, armênios, turcos e circassianos que lutam na Guerra Civil SíriaEmbora a ofensiva seja amplamente liderada pelas SDF (nesse caso, em sua maioria curdos), militares americanos foram desdobrados para direcionarem apoio de fogo durante a batalha.

As SDF publicaram hoje o progresso das operações na prisão no Twitter pelo perfil Coordination & Military Ops Center - SDF (Centro de Coordenação e Operações Militares - SDF). Um vídeo mostra combatentes curdos do YPJ progredindo dentro de um pavilhão da prisão.

"Durante a noite, as FDS deram ao Daesh a oportunidade de se render. Às 5 da manhã, seguindo o prazo, nossas forças tomaram de assalto um prédio. 300 indivíduos se renderam.

A operação ocorreu conforme o planejado. Executando o plano com exatidão e precisão.[1]

As forças das SDF continuam a varrer a prisão e a área circundante. Localizar aqueles que atacaram e continuaram a tentar apoiar a operação do Daesh dentro da prisão de al-Hassaká.

Durante a batalha, 8 Daesh foram mortos enquanto um membro do SDF perdeu a vida.[2]

As SDF estão garantindo a segurança da população civil. Salvando aqueles que estão detidos pelo Daesh.[3]

#DefeatDaesh"

Por volta das 10:30h da manhã, horário de Brasília, as SDF anunciaram a recaptura total da prisão. As FDS na manhã desta quarta-feira "realizaram operações de busca dentro de blocos prisionais" e em áreas ao redor da instalação, onde confrontos intermitentes ocorreram durante a noite, disse o Observatório Sírio para os Direitos Humanos.

De acordo com o monitor de guerra, um número desconhecido de jihadistas conseguiu escapar, mas seu número exato não ficou imediatamente claro.

Em um comunicado, Farhad Shami, das Forças Democráticas Sírias (SDF), disse que dias de operações "culminaram com todo o nosso controle" sobre a prisão em al-Hassaká depois que todos os combatentes do grupo EI se renderam.

Bibliografia recomendada:

O Mundo Muçulmano.
Peter Demant.

Estado Islâmico:
Desvendando o exército do terror.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Terminada a crise de reféns na sinagoga do Texas, o sequestrador foi morto durante o assalto policial

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 16 de janeiro de 2022.

Com informações do Le Figaro e Agence France Presse (AFP).

No dia de ontem, sábado 15 de janeiro, um terrorista não-identificado tomou reféns quatro judeus na sinagoga de Colleyville, no estado americano do Texas. O sequestrador exigia a libertação de uma mulher paquistanesa condenada por terrorismo. A polícia texana iniciou o cerco à igreja judaica e durante a noite de sábado para domingo foi encerrado o impasse que durara 10 horas com um assalto da equipe de resgate do FBI, a Hostage Rescue Team (HRT).

“A equipe de resgate de reféns invadiu a sinagoga” e “o suspeito está morto”, disse o chefe de polícia local, Michael Miller, durante uma entrevista coletiva após a operação. Todos os reféns foram libertados ilesos, anunciou anteriormente o governador do Texas, Greg Abbott.

A polícia de Colleyville evacuou os moradores próximos e pediu ao público que evitasse a área. O FBI, a polícia federal americana, abriu uma investigação sobre o sequestrador, que foi identificado, disse o agente especial do FBI Matt DeSarno, sem revelar o nome do terrorista abatido.

O terrorista foi mais tarde identificado como Malik Faisal Akram, filho de imigrantes paquistaneses nascido no Reino Unido.

Entrevista com o governador Greg Abbott

A tomada de reféns ocorreu na sinagoga da Congregação Beth Israel em Colleyville, uma cidade de cerca de 23.000 pessoas nos arredores de Dallas; uma metrópole do Texas. Poucas horas antes do assalto, enquanto duravam as negociações entre a polícia e o sequestrador, um primeiro refém havia sido libertado ileso. Antes da libertação do primeiro refém a informação disponível dizia que o terrorista estava armado, detinha quatro pessoas, incluindo um rabino, e que ele alegou ter colocado bombas em locais desconhecidos.

O terrorista afirmou ser o "irmão" de Aafia Siddiqui, uma cientista paquistanesa condenada em 2010 por um tribunal federal de Nova York a 86 anos de prisão por tentar atirar em militares americanos, razão pela qual foi detida no Afeganistão. O termo "irmã" não indica parentesco nesse caso, mas a fé islâmica. Aafia Siddiqui está atualmente detida em um hospital prisional em Fort Worth, perto de Dallas.

Operadores do HRT do FBI.

Este incidente afetou profundamente a comunidade judaica nos Estados Unidos. Ellen Smith, uma adoradora da sinagoga, descreveu à CNN uma situação "chocante e horripilante". No entanto, ela disse que não ficou surpresa que o ataque tenha como alvo a comunidade judaica. "Os casos de anti-semitismo aumentaram ultimamente", disse ela. "Você quase se sente sem esperança." “Ninguém deve ter medo de se reunir em seu local de oração”, disse o Conselho para Relações com a Comunidade Judaica, uma organização com sede em São Francisco.

A voz de um homem às vezes agitado pôde ser ouvida na transmissão do serviço religioso ao vivo no Facebook antes de sua interrupção. “Há algo de errado com a América”, tinha lançado notavelmente este homem. "Eu vou morrer", ele também disse, repetidamente pedindo a um interlocutor não identificado que "sua irmã" estivesse ao telefone com ele.

“Aquele que me odeia hoje vai te odiar amanhã. Portanto, pode começar com os judeus, mas não vai parar com os judeus”, alertou Joseph Potasnik, vice-presidente do Conselho de Rabinos de Nova York. O primeiro-ministro israelense Naftali Bennett também disse estar monitorando a situação.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

COMENTÁRIO: Sobre o sentimento anti-francês no Sahel


Por Rahmane Idrissa, La Gazette Perpendiculaire, 22 de novembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 11 de janeiro de 2022.

Chego a Niamey em uma atmosfera de fúria anti-francesa pan-saheliana que inundou as redes sociais graças aos bloqueios impostos ao avanço de um comboio militar francês pelas massas burquinenses animadas por encontrar um alvo odiado, mas inofensivo à sua indignação contra a situação de opressão violenta (por parte de grupos armados jihadistas) a que está sujeita grande parte do seu país. Há uma opinião generalizada entre a população de que os militares franceses só chegam às zonas de guerra para distribuir armas aos jihadistas.

Essa ideia é convincente porque não se baseia em fatos, mas em sentimentos, e os sentimentos, infelizmente, não são contrariados por evidências factuais. Trata-se, neste caso, de uma mitificação da maldade diabólica da França que trabalha a imaginação saheliana em todos os níveis, desde os intelectuais e outros personagens cultos até o camponês sentado em sua cabana, mas que, graças ao seu smartphone, recebe diariamente discursos alucinados sobre esse tema, propagado em um loop por indivíduos que encontraram uma vocação fácil no French bashing.

Como o jornalista Antoine Glaser me disse em uma entrevista recente em Paris, os jihadistas já venceram. Referia-se ao fato de que a insegurança, ainda maior para o Ocidente do que para os locais, levou à sua saída da região, nomeadamente ao nível dos laços humanos tecidos, à margem do grande Estado e das máquinas multilaterais, por pequenas ONGs, por pessoas generosas ou pessoas apaixonadas pela África, destinos aparentemente excêntricos dedicados a trabalhar obscuramente em uma campanha esquecido.


Mas a outra vitória dos jihadistas é certamente o fortalecimento e a histerização do sentimento anti-francês, um fenômeno antigo que não é sem justificativa, é claro, mas que, ao lado de aspectos de reação saudável, também revela patologias morais e intelectuais que, a longo prazo, são perigosos para o próprio Sahel.

Há alguns pontos importantes para entender aqui.

Sempre houve um forte sentimento anti-francês no Sahel e na África francófona em geral, decorrente naturalmente da dominação colonial. Nas últimas décadas, esse sentimento elevou-se para o ódio entre alguns, mas foi, na maioria, contrabalançado por uma espécie de francofilia morna advinda da influência cultural francesa impregnada pela escolarização ou simplesmente pelos "elos históricos" forjados pela colonização. Todos os nascidos antes de 1990 nos países do Sahel já ouviram falar, ou puderam evocar, a França com esta frase que sempre me surpreendeu um pouco: A pátria mãe.

O sentimento anti-francês da época não se explica apenas pelo passado colonial, mas pelo fato da França, ao contrário da Grã-Bretanha, ter estabelecido em 1958, sob a égide do General de Gaulle, uma política neocolonial na África subsaariana, uma política que é um subproduto da política de grandeza preconizada pelo general e praticamente inscrita no DNA da 5ª República.


Essa política neocolonial tinha muitas facetas, nem todas tão terríveis quanto imaginavam seus críticos - especialmente os africanos. No entanto, ela estava sufocando, seja pelo bem que queria fazer (por exemplo, financiar a vida cultural, apoiar a educação por meio de assistência técnica e bolsas de cooperação e outras obrigações benevolentes) ou pela defesa egoísta de certos interesses estratégicos ou táticos.

Acima de tudo, pressionou a França a rotinizar as intervenções militares em seu “quintal” africano. Desde 1964, quando a França restabeleceu à força Léon Mba em Libreville até a Operação Barkhane, calcula-se que a França interveio na África uma vez a cada quinze meses, sem contar as intervenções clandestinas e outros golpes de trabalho implementados com a ajuda de mercenários ou em conluio com regimes deploráveis ​​(o famoso eixo Rabat-Abidjan-Pretória).

Essas operações faziam parte do quadro neocolonial conhecido como Françafrique, pois visavam proteger os interesses estratégicos (incluindo o prestígio) da França, muitas vezes contra projetos políticos que mereciam apoio e não oposição. Isso, de qualquer forma, construiu uma imagem de uma hiperpotência diabólica da França que alimenta dois instintos entre os africanos: ou uma espécie de submissão sem energia a que se pensa não poder resistir (que, consequentemente, alimenta o desprezo divertido e a condescendência colonial do lado francês), ou uma hostilidade odiosa que vai para o outro extremo.

Mas a política de grandeza da França, bem como o neocolonialismo ligado a ela, há muito deixaram de ser viáveis ​​- e a Operação Barkhane é o primeiro ato de sua morte, embora os africanos e, em todo caso, a opinião pública saheliana, absolutamente não percebam isso.

A política de grandeza da França na África obedeceu a dois imperativos aparentemente contraditórios: participar do esforço americano da Guerra Fria e da contenção do comunismo (o que ficou especialmente evidente durante os anos 1960-70), e garantir a autonomia da França vis-à-vis os Estados Unidos, por exemplo, controlando o voto africano francófono nas Nações Unidas e, de forma mais geral, preservando uma capacidade de ação independente da supervisão americana sobre "o mundo livre". Estes são os princípios do Gaullismo, que estão na origem da 5ª República.

Mas tudo isso entrou em crise nas décadas de 1980 e 1990. Durante a década de 1980, os problemas econômicos da França levaram-na gradualmente a reduzir o alcance da sua política externa e, em particular, sua política africana. Por exemplo, a cooperação bilateral, aliás conduzida sem entusiasmo precisamente onde a necessidade era maior - os países do Sahel, para os quais os franceses nutriram um profundo pessimismo econômico desde os tempos coloniais - deu lugar ao "multilateral", isto é, a supervisão das instituições financeiras internacionais quando a crise da dívida atingiu os países francófonos na década de 1980, a França se viu incapaz de fornecer a assistência esperada nos termos implícitos do pacto neocolonial.


No início dos anos 1990, o fim da Guerra Fria também pôs fim a uma das funções do poder francês na África, a de policial do mundo livre. Os Estados Unidos foram capazes de pressionar pela democratização e pela promoção dos direitos humanos, e a França teve que seguir o exemplo, como mostra o famoso discurso de La Baule. Mas na África francófona, como em outros lugares, a conjunção entre a democratização no nível político e o ajuste estrutural político no nível econômico foi explosiva para dizer o mínimo. Com efeito, isso significava que as demandas e pressões populares sobre o Estado se multiplicavam com o surgimento de uma sociedade civil multifacetada ao mesmo tempo em que o campo de ação do Estado se estreitava drasticamente. Economicamente, nem a França nem outros países ocidentais apoiaram a democratização, por exemplo, por meio de planos de investimento em desenvolvimento ou cancelamento da dívida.

Pelo contrário: a recessão devido à crise fiscal que levou a uma sobrevalorização do franco CFA, a França cedeu em 1993 à pressão do FMI para uma desvalorização draconiana da moeda CFA, apesar do impacto social e psicopolítico duma tal decisão. A desvalorização ocorreu em 1994, ano que acabou sendo o annus horribilis do poder francês na África. De fato, foi também durante este ano que Ruanda explodiu nas mãos de uma França que se fazia de aprendiz de feiticeiro com sentimentos de ódio sócio-étnico de extrema revolta. O relatório sobre a política de François Mitterrand encomendado por Macron fala sobre este tema de uma "derrota do pensamento" e de um "colapso intelectual", sublinhando até que ponto um Estado - ou em todo o caso o seu componente central, o Palácio do Eliseu - que acreditava ele sabia tão bem que o continente negro havia se desviado para o erro fatal e a falta trágica.

Essa derrota foi a da política neocolonial e, subjacente a ela, da política de grandeza. François Mitterrand foi um político que serviu como ministro numa época em que a França ainda tinha colônias na África, e sua intervenção em Ruanda, que começou como uma promoção da democracia - seguindo o slogan americano - adotou uma linha mais sombria depois que ele se convenceu de que as potências anglo-saxônicas estavam tentando infligir um golpe de Fashoda na França em Ruanda. Enquanto o fim da Guerra Fria havia tornado impertinente para o lado anticomunista da política neocolonial, Ruanda pôs fim ao outro lado, a defesa da autonomia face os americanos.


Depois de 1994, a política neocolonial na África não se justificava, exceto pelo fato de que o que foi posto em prática perdurará pelo simples fato do conatus (da vontade de perseverar no próprio ser) até que tenha sido deliberadamente desmontado.

Tal medida é possível, embora as estruturas da 5ª República, em particular a autonomia do Palácio do Eliseu no campo da política externa, pareçam opor-se a ela. Afinal, olhando mais de perto, essa autonomia eliseana é um costume e não uma regra constitucional. As intervenções francesas na África pós-1994 já não faziam parte de uma estratégia neocolonial coerente e estruturada. Elas vieram do conatus. Este foi particularmente o caso no Chade e especialmente na Costa do Marfim, em todas as ocasiões em que o peso dos atores africanos (Déby, Ouattara) prevaleceu, através de relações pessoais com os principais chefes decisores do aparelho governamental francês, dentro duma visão política ou meios de ação que a França não mais dispunha.

A Serval e Barkhane são diferentes. Estas duas operações escapam ao conatus neocolonial porque fazem parte das novas prioridades do Estado francês, a construção europeia (em particular o conceito de defesa europeia) e a luta contra o jihadismo que tem perpetrado numerosos assassinatos em massa em solo francês e europeu.

Ao contrário das intervenções neocoloniais, a Serval e Barkhane não foram projetados para derrotar um oponente da França, ou apoiar um amigo da França, ou mesmo preservar interesses estratégicos ameaçados por potências hostis (como China e Rússia). Trata-se de pôr fim a uma violenta militância salafista enquistada no Sahel-Sahara desde o fim da guerra civil argelina e que foi mobilizada a favor do colapso do regime de Kadafi no norte do Mali, ameaçando desestabilizar todo o território da África Ocidental a longo prazo.

Essas operações sublinham tanto os novos limites da atuação francesa na África - que agora precisa do apoio das potências anglo-saxônicas, outrora consideradas meio-rivais -, quanto as novidades características da época. Por exemplo, ao contrário do que aconteceu mais uma vez no caso das intervenções de estilo neocolonial, a França hoje precisa de Estados africanos fortes e exércitos africanos que não são assim, foi o que aconteceu principalmente no Sahel, com exércitos de opereta. Isso decorre de uma convergência de interesses sem precedentes, na frente de segurança, entre a Europa e o Sahel, e especialmente entre a França e suas ex-colônias.

Como resultado, a ascensão do sentimento anti-francês que se transforma em obsessão odiosa na região é uma daquelas tragédias de erros que resultam de uma história terrível e um passado ruim. Como, até 2013, a França nunca interveio militarmente em África, exceto numa perspectiva neocolonial, é lógico considerar que esta enésima intervenção está na mesma linha. Tanto mais que, ao evoluir para uma nova fase de suas relações com a África, a França ainda preserva alguns dos instintos desenvolvidos pelo gaulismo e sua política de grandeza.


Macron, que certa vez disse à revista Le Point que estava assumindo "a grandeza", mantém o estilo frágil e peremptório que deriva daquela era antiga - e que, além disso, os então chefes de Estado em exercício se abstiveram cuidadosamente de adotar. Seus apelos aos Estados do Sahel para fortalecer seus exércitos e controle territorial, embora estejam na direção certa do bom senso, são feitos em tom de dor de acusação e impaciência e criam um processo de empilhamento sobre todo o tempo desperdiçado pela cooperação multilateral em estados debilitantes (em nome dos princípios neoliberais) e reduzir suas capacidades de governo (substituídas por ONGs), um empreendimento que a França teve o cuidado de não denunciar quando atingiu o poder total na década de 1990. No entanto: enquanto os africanos sofreram com uma espécie de resignação impotente às intervenções neocoloniais francesas do passado, eles finalmente se levantam com a petulância de uma matilha no primeiro momento em que, finalmente, uma intervenção francesa é realmente do seu interesse.

Este ponto em particular refere-se, a meu ver, a um constante e crescente distanciamento cultural entre a França e a África francófona que me parece bastante positivo, bem como a uma espécie de fome nacionalista do lado africano que me parece ser o menos preocupante.

Da independência até o final da década de 1980, havia uma forte proximidade cultural entre a França e os francófonos da África, em parte graças à ação cultural do Estado francês, em parte pela simplicidade dos tempos, onde a França era de certa forma o canal obrigatório dos francófonos para uma cultura cosmopolita. Eu conheci bem esse período, cujo período final coincidiu com minha infância e adolescência. Como indicado anteriormente, o sentimento anti-francês já era muito forte naquela época entre aqueles que se definiam como intelectuais engajados, e lembro-me de ter ficado muitas vezes impressionado com seu caráter ideológico, o fato de parecer esgotado na declamação e lamento, sem preocupação realista - isto é, sem considerar a política neocolonial da França como um problema a ser resolvido em nível prático, não como uma espécie de batalha épica e interminável entre o bem e o mal.

Como resultado, fiquei tão desanimado com o neocolonialismo francês quanto com a galofobia de muitos de meus camaradas e seus tutores intelectuais, embora não soubesse exatamente na época por que isso me incomodava.

Não entendi então que ela era apenas um sintoma de outra coisa, e que essa outra coisa era, de fato, pouco simpática.

O mundo começou a mudar na década de 1990. Não só a ação cultural da França, como d'outros países ocidentais, começou a declinar no contexto de entrincheiramentos neoliberais, mas esse novo regime econômico empurrou para a globalização, que começou a oferecer alternativas francófonas à França para acessar uma cultura cosmopolita - e primeiro os Estados Unidos e o Canadá, antes de buscar por outros horizontes. A filha de um amigo meu sonha apenas com Dubai; uma jovem de sua idade em 1995 sonhava com Nova York; em 1980, com Paris.


Os francófonos de 1980, mesmo anti-franceses, entendiam subjetivamente o que estava acontecendo na França; este não é o caso dos de 2021. Por si só, uma certa distância cultural entre a França e os francófonos, ou melhor, uma ausência de intimidade cultural entre os dois é bastante saudável do meu ponto de vista. Tendo em vista as relações de poder de estilo neocolonial que existiam entre a França e seu antigo império africano, havia algo de incestuoso nessa intimidade cultural - embora, de minha parte, eu apreciasse um certo aspecto da influência cultural francesa, seu conteúdo liberal, a substância racionalista, cética e humanista de sua mensagem geral que tinha, pelo menos para mim, cores muito atraentes contrastando com o tufo conservador e retrógrado das culturas africanas circundantes.

Mas precisamente, finalmente me ocorreu que o sentimento anti-francês não se limitava ao anti-neocolonialismo. Também tem a ver com nacionalismo ou, como dizem ultimamente, identidade nacional, algo que costumo ver tão facilmente capaz de cair em formas tóxicas de estupidez, como vemos em outros lugares da extrema-direita francesa. Isso é difícil de ver à primeira vista. O anti-colonialismo é, em princípio, uma coisa boa, e há uma tendência a aprovar qualquer coisa que o alimente - e, além disso, o nacionalismo dos fracos não parece muito perigoso, pelo menos do lado de fora.

Além de alguns franceses afro-amantes (afrófilos), não acho que os franceses estejam tão chocados com as manifestações de ódio e ressentimento que os atingem no Sahel. A maioria a vê de longe ou a aceita como um efeito normal do ressentimento do colonizado. Mas você não pode aceitar o mesmo se for um africano não-nacionalista, como eu. O nacionalismo é um moralismo humanamente perverso que tem, como disse certa vez André Gide, "ódio amplo e amor estreito". Ele surge como um bem absoluto e, portanto, precisa de um mal absoluto para se definir adequadamente. Para Zemmour, o Islã é esse mal absoluto que permite que a França se defina; para os anti-franceses - que parecem ser a maioria no Sahel de hoje - é a França. Uma das primeiras consequências de tal moralismo unificador é a total e definitiva impossibilidade de deliberar e discutir racionalmente, com base factual e pesando os prós e os contras.

Recentemente dei uma aula em Niamey, para a qual criei um exercício de debate. Dividi a turma em vários grupos e fiz uma lista das causas que são comumente atribuídas aos conflitos no Sahel, incluindo a ideia hoje tão difundida na opinião pública saheliana de que agiria fora de um esquema francês. Cada grupo teve que se reunir por cerca de vinte minutos, desenvolver um argumento e apresentá-lo à classe respondendo às críticas e perguntas de seus colegas. Expliquei enfaticamente aos alunos que eles deveriam evitar respostas consensuais e que o grupo que mais me surpreendesse com um argumento bem elaborado ganharia um bônus. Foi para incentivá-los a "pensar fora da caixa", como se diz em inglês. Este foi geralmente um esforço desperdiçado, mas acima de tudo para o grupo que teve que lidar com a "causa" da maquinação francesa. Seguindo a retórica anti-francesa mais aceita, esse grupo argumentou que a guerra do Sahel havia sido conscientemente provocada pela França para explorar "nossos imensos recursos naturais". Isso não me surpreendeu, é claro, mas o que realmente me surpreendeu foi que os outros alunos criticaram esse grupo não por ter dito todas as coisas ruins que pensavam sobre a França, mas por não terem acusado o suficiente!

Vi que estava na presença de um dogma, isto é, do não-pensamento que se apresenta sob a forma de um pensamento, uma espécie de castração do reflexo. Fiquei triste com isso pela França, mas especialmente por nós - porque essas pessoas, e todos aqueles que nutrem sua inclinação dogmática, deveriam ser as elites do Sahel, e essas são elites que, obviamente, em uma questão de urgência vital para o seu povo, não pensam. De alguma forma, a culpa é da França: ela é o diabo que corresponde a todos os nossos problemas e, portanto, dispensa pensar e deliberar.

Outro exemplo: há pouco mais de um ano, eu estava em Ouagadougou com uma professora de direito que eu estava pensando em convidar para uma conferência. Ela me perguntou o que estava acontecendo no Níger. Na época, havia uma espécie de pequeno movimento insurrecional na região de Diffa que denunciou a ditadura do PNDS e atacou especificamente Bazoum Mohamed, então um dos analistas do PNDS, mas sobretudo originário da área. Tentei explicar do que se tratava, mas ela me cortou: “Isso é organizado pela França!" Um pouco pasmo, eu disse a ela, que não, que a França era muito alinhada do regime do PNDS e não tinha motivos para desestabilizá-lo, que na minha opinião tinha a ver com o fato de Bazoum, que era particularmente visado... Ela não me deixou desenrolar minha explicação chata, muito menos excitante para ela do que o diabolismo francês. Eu não podia acreditar: esta senhora não era nigerina, não tinha ouvido falar deste evento antes de eu a informar, mas ela estava convencida, cinco minutos depois de ouvi-lo, que ela o entendia melhor do que eu. A crença é mais forte que o conhecimento.

Lembro-me que o que me frustrou, nos anos da minha primeira justa com os anti-franceses, há muito tempo, era que eu queria discutir com eles soluções práticas para se opor ao neocolonialismo, e eles queriam partir numa cruzada. Insisti prosaicamente nas realidades, e na importância de conhecer as realidades, incluindo as causas endógenas das nossas fraquezas e incapacidades, por exemplo a corrupção, a falta de sentido e preocupação com o Estado, a ausência de visão estratégica, obsessões étnicas onde obsessões são necessárias. Mas a resposta, sempre, era que enquanto a França não fosse derrotada, não se poderia lidar com essas questões - o que eu perguntei, questão de realidade, como se pretendia derrotar a França com todo o seu poder e todas as nossas fraquezas que, ao que parece, não eram prioridade. Nunca houve uma resposta para isso.

(Claro que essas questões são abordadas de forma preocupada e responsável por muitos intelectuais do Sahel, mas nunca realmente de forma a ter o impacto no público que a linha de opinião aqui discutida tem. Não há, na região, intelectuais públicos ou de uma arena pública específica onde esses pontos de vista podem ter um significado quase compensatório).

Ainda hoje, a mesma história. Dada a onda de sentimento anti-francês que agora atinge um vigor popular que não teve, ou que teve antes, todos aqueles que querem existir na praça pública e não querem se envolver com os rigores do pensamento, prova e contraditório, junte-se ao movimento e una-se com unanimidade. Eles uivam com os lobos. O populista não é aquele que lidera o povo, mas aquele que o segue para melhor explorá-lo - e as consequências!


Os Estados do Sahel, que já são instáveis como​​ padrão, estão em processo de desestabilização diante do desafio de massacres e destruição (principalmente de escolas) pelos jihadistas. Em tal situação, aqueles que rejeitam o caminho seguido pelo poder, por exemplo a aliança com a França, não devem se contentar em denunciar esse caminho e exigir a renúncia dos que estão no poder: Eles têm que explicar o que fariam uma vez no comando, que caminho pretendem seguir e como pretendem resolver o problema quando a França for expulsa de campo. Mas a partir disso, nada é ouvido.

As bombásticas conferências urbi et orbi proferidas urbi et orbi por políticos da oposição, "ulemás", acadêmicos até então escondidos em suas torres de marfim, e zelosamente transmitidas pelo WhatsApp, todas e sempre se relacionam com a eterna maldade da França, nunca em soluções práticas ou apresentações estratégicas. E por um bom motivo. Nenhum desses declamadores estudou a situação, perguntou a quem o fez ou quis saber mais. É verdade que certas realidades acabam por prevalecer. Em Burkina, onde a população está delirando com sua galofobia galopante, vozes devem ter se levantado contra a verdadeira razão das decepções do país que não é a França, mas o abandono do exército pelo poder do Estado - já no tempo de Blaise Compaoré, centrado nos generais leais e no Regimento de Segurança Presidencial (Régiment de la Sécurité Présidentielle)e agora no tempo de Roch Marc Christian Kaboré, muito assustado com os riscos dum putsch para reformar vigorosamente a máquina militar, como Macron havia dito em uma conversa "on record" com Antoine Glaser e Pascal Airault.

Falei de nacionalismo - mas trata-se dum nacionalismo negativo, nacionalismo puramente de oposição e simbólico. A oposição à França, símbolo da opressão colonial, presta-se perfeitamente ao que é; em última análise não mais que uma petição de princípios, sem consequências práticas – embora a arma do ódio assim empregada possa sempre levar a consequências violentas. É esta arma que, no Níger, levou aos ataques de igrejas, com mortes, na sequência dos motins anti-Charlie (que foram também motins anti-franceses) de Niamey e Zinder. E ouvimos os declamadores burquinenses alegando ataques de dacarianos contra "interesses franceses", neste caso algumas lojas Auchan e Carrefour, como meio de sua "libertação". Dada a demonização dos cristãos e dos franceses que levaram a esses atos de violência, não posso deixar de pensar no anti-semitismo, na visão dos judeus que os anti-semitas têm como fonte de todas as misérias do mundo, na crença de que eles controlariam tudo e seu oposto em nome de interesses enormes e ocultos, e aos ataques às lojas judaicas e aos pogroms que resultaram.

É claro que os franceses, ao contrário dos judeus, podem se defender - mas isso não impede que, nesta questão específica (mas que não é a única), os sahelianos estejam flertando com uma catástrofe moral.

Como a França em Ruanda no passado, os sahelianos estão experimentando uma derrota do pensamento e um colapso intelectual.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Contra-Terrorismo no Iraque: Capturando um Terrorista de destaque


Do site Unipath, 3 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 22 de dezembro de 2021.

O Serviço de Contra-Terrorismo do Iraque passou anos rastreando pacientemente um dos líderes do Daesh.

A eficácia da guerra contra grupos terroristas depende fortemente de um trabalho cuidadoso de inteligência e do rastreamento da liderança de alto nível de uma organização. Esse trabalho inerentemente complexo requer horas exaustivas e longas para identificar líderes de alto nível, determinar seu paradeiro e a natureza de suas operações e aprender como eles se comunicam com seus subordinados para conduzir as operações. No nível mais básico, os oficiais de inteligência precisam conquistar os corações das pessoas porque são eles que possuem informações importantes que levam aos esconderijos terroristas.

Diante disso, informações fornecidas por cidadãos comuns aos homens do 1º Batalhão de Reconhecimento do Serviço de Contra-Terrorismo do Iraque (Counter-Terrorism Service, CTS) ajudaram a rastrear e deter o terrorista Ahmed Mohsen Najm Hussein Al-Kartani, também conhecido como Abu Naba. Ele foi capturado em outubro de 2020 enquanto tentava reacender uma campanha de terror do Estado Islâmico (Daesh) em Bagdá.

Abu Naba serviu como coordenador administrativo do “Wilayat Iraque” para o Daesh. De acordo com relatórios de inteligência, ele se juntou às facções "jihadistas" em 2003, jurando lealdade à rede al-Qaeda de Abu Musab al-Zarqawi em 2006 após a formação do chamado Estado Islâmico do Iraque (ISI). Abu Naba se tornou um líder do ISI em Bagdá em seu papel de “líder da sharia do distrito de Karkh no sul de Bagdá” antes de assumir um cargo administrativo no mesmo distrito. Ele tinha um relacionamento próximo com Manaf al-Rawi, autoproclamado “wali de Bagdá”, preso em 2010.

Abu Naba nasceu em Bagdá em 1970 em uma família numerosa. Ele se formou na Faculdade de Administração e Economia da Universidade de Bagdá. Ele se tornou um leitor ávido de textos religiosos na década de 1990, quando o antigo regime no Iraque adotou o que é conhecido como Campanha da Fé para neutralizar a indignação pública causada pela deterioração das condições de vida após a primeira Guerra do Golfo.

Uma unidade tática CTS conduz uma missão na cidade velha de Mosul em 2020.

Como resultado, ele aprendeu muito sobre a jurisprudência da sharia, tendo sido um leitor voraz que devorou todos os livros extremistas seculares e islâmicos que conseguiu encontrar. Ele não apenas possuía um profundo conhecimento da jurisprudência islâmica, mas também estudou todos os tipos de teologia. Antes de ingressar em organizações extremistas, ele jogou futebol e era bem conhecido nos clubes, jogando pelo Al-Talaba e Al-Quwa Al-Jawiya.

Durante a violência sectária em Bagdá em 2007, ele foi detido pelas forças da coalizão e encarcerado no centro de internação Camp Bucca, ao sul de Basra, administrado pelas forças da coalizão. Ele permaneceu na prisão por dois anos e foi libertado em 2009 junto com os demais detidos, em um momento em que a situação de segurança no Iraque era estável e o governo iraquiano lançou um programa de reconciliação nacional. De acordo com o programa, os detidos se comprometeram por escrito a se reintegrarem à sociedade e a não retornarem às atividades terroristas. No entanto, Abu Naba não cumpriu sua promessa e, em vez disso, voltou ao terrorismo poucas semanas após sua libertação, desta vez ocupando uma posição importante na fabricação e desenvolvimento de armas e explosivos em “Wilayat Bagdá”. Ele trabalhou como assistente principal do agora morto Mutez Numan Abd Nayef al-Jabouri, também conhecido como Haji Tayseer, emir de desenvolvimento e preparação para o ISI. Abu Naba foi encarregado de recrutar engenheiros e técnicos, oferecendo incentivos materiais e morais e usando ameaças e intimidação caso eles recusassem sua oferta.

O plano de Haji Tayseer e Abu Naba se concentrava na tentativa de construir dispositivos explosivos improvisados em grande escala, cuja capacidade destrutiva excederia os ataques de mísseis para multiplicar as perdas humanas e materiais e minar a segurança e estabilidade relativas em Bagdá. Caminhões pesados carregados com mais de uma tonelada de explosivos foram detonados em áreas sensíveis da capital. O primeiro foi o ataque da “Quarta-feira Sangrenta” que teve como alvo o Ministério das Relações Exteriores no bairro de Al-Salehiya, em Bagdá, em 2010. Isso foi seguido por explosões semanais semelhantes contra edifícios do governo provincial de Bagdá, o Ministério da Justiça e o Ministério das Finanças. As explosões mataram pessoas inocentes que eram patrocinadores e funcionários do ministério.

Depois de um golpe devastador para o ISI em 2010, quando Manaf al-Rawi foi preso e tanto Abu Omar al-Baghdadi, o chamado emir do grupo terrorista, quanto Abu Ayyub al-Masri, seu comandante militar, foram mortos em uma operação de segurança na região de Tharthar da província de Anbar, o grupo foi desmantelado e a maioria de seus líderes presos. Outros, incluindo Abu Naba, fugiram do Iraque ou se esconderam nos desertos. Depois disso, o Iraque experimentou uma estabilidade notável entre 2011 e 2012.

Mas, tão rapidamente quanto desapareceu a organização terrorista, ela reapareceu no final de 2012 com o lançamento de um ataque terrorista no distrito de Haditha. O ataque não teve impacto, mas serviu como ferramenta de recrutamento e propaganda para tranquilizar os membros de que a organização ainda estava ativa em campanha.

Em 2013, no auge da violência na Síria, com um influxo de doações financeiras e mobilização de elementos suspeitos e clérigos extremistas, a arena síria tornou-se um refúgio para organizações extremistas e fugitivos do deserto chegaram a áreas controladas por grupos extremistas. O terrorista Ibrahim Awad, mais conhecido como o emir do Estado Islâmico do Iraque, Abu Bakr al-Baghdadi, anunciou a anexação da Síria ao seu chamado Estado. Seu novo nome se tornou Estado Islâmico do Iraque e Al-Sham (Daesh). Derramamento de sangue na forma de decapitações, bombardeios e assassinatos com pistolas equipadas com silenciador tornou-se familiar em várias cidades, e fugitivos procurados como Abu Naba tornaram-se líderes do Daesh.

Após uma reunião de líderes do Daesh em Fallujah em 2013 para finalizar suas operações de ocupação e moldar a futura política do Daesh, Abu Naba foi nomeado qadi, ou juiz, do "Wilayat Bagdá" e tornou-se um confidente de Abu Jaafar, o "wali de Bagdá”.

Após a ocupação de algumas províncias pelo Daesh, ele foi nomeado para gerenciar os assuntos administrativos do Daesh, escondendo-se na governadoria de Erbil, que não estava ocupada. Durante sua estada em Erbil, ele recebeu cartas editadas do "wali do Iraque" Haji Tayseer contendo perguntas, pedidos de veredictos da sharia e questões consultivas sobre a política da organização.

Abu Naba foi responsável pela transferência de famílias de líderes terroristas da Síria e da Turquia para a governadoria de Nínive durante a ocupação do Daesh. Estes incluíam a família do Dr. Ismail al-Ithawi (Abu Zeid al-Iraqi), um membro do comitê delegado da organização.

Soldados CTS conduzem treinamento especial no Rio Tigre.

Em 2016, Abu Naba foi convocado pelo comitê delegado, especificamente por Abu Zeid al-Iraqi (mais tarde capturado pelo Serviço Nacional de Inteligência) e com a tarefa de estabelecer oportunidades de investimento em áreas sob o controle da organização para autofinanciar o Daesh. Abu Naba foi de Erbil para a Turquia, onde foi recebido por Taleb Al-Zub'i, que fazia parte de uma rede de contrabandistas que transportava pessoas e correspondência para o Daesh. Da Turquia, Abu Naba foi levado para a governadoria síria de Raqqa, onde estabeleceu frentes comerciais, como investimentos imobiliários, empresas corporativas e outros negócios administrados por habitantes locais para disfarçar o envolvimento da organização, mas cujas receitas foram canalizadas para o Daesh.

No início de 2020, Abu Naba foi convocado de Raqqa para a Turquia por Abu Bakr e Abu Muhammed, que estavam ligados ao comitê delegado e diretamente ligados ao chamado califa. Ele foi nomeado para administrar e coordenar os negócios do "Wilayat Iraque" e recebeu ordens de retornar a Bagdá, onde estabeleceria destacamentos de segurança, militares e de mídia em uma tentativa de revigorar o Daesh na capital depois que as forças de segurança iraquianas o reprimiram. Nunca ocorreu a Abu Naba que a inteligência do CTS estava monitorando seus movimentos e que ele seria pego na rede da justiça.

Depois que Abu Naba entrou no Iraque, a Diretoria de Inteligência do Serviço de Combate ao Terrorismo formou uma equipe de seleção de alvos para monitorar seus movimentos e contatos dentro do Iraque e obter mandados de prisão para ele.

Após meses de monitoramento e vigilância pela divisão de inteligência da unidade de reconhecimento, a operação policial para derrubar a célula terrorista administrada por Abu Naba foi lançada em outubro de 2020. Abu Naba deveria estar em Bagdá para se encontrar com o wali e o comandante-em-chefe do chamado Wilayat Bagdá. A unidade CTS havia se infiltrado e rastreado com sucesso este grupo terrorista desde o momento em que realizou reuniões na Turquia até a chegada de Abu Naba ao Iraque na governadoria de Erbil.

As equipes de monitoramento e vigilância da Primeira Unidade de Reconhecimento foram alertadas e por dois dias as equipes acompanharam Abu Naba, desde sua saída da governadoria de Erbil até sua entrada em Bagdá. Durante esse tempo, Abu Naba mudou-se entre vários bairros de Bagdá. No terceiro dia, Abu Naba completou sua missão e planejou voltar para Erbil. Membros da equipe de reconhecimento, um deles se passando por um motorista de táxi, atraiu Abu Naba enquanto ele se dirigia para a estrada do aeroporto de Bagdá. Os militares de inteligência do CTS acionaram sua armadilha.

E assim, depois de muitos anos de perseguição, um dos terroristas mais perigosos do Iraque foi levado à justiça por seus crimes contra inocentes.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A França está substituindo o Reino Unido como principal aliado da América na Europa


Por Michael Shurkin e Peter A. Wilson, Newsweek, 30 de março de 2015.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de novembro de 2021.

A combinação do desarmamento contínuo da Europa Ocidental e uma situação estratégica em rápida evolução - o retorno das tensões do tipo Guerra Fria com a Rússia e a ascensão do ISIS (também conhecido como "O Califado") e movimentos islâmicos aliados - ressaltou um desenvolvimento importante para a abordagem estratégica dos EUA em relação à Aliança do Atlântico Norte: O principal aliado na Europa da OTAN pode não ser mais o Reino Unido, mas a França.

Esta é uma boa notícia, na medida em que significa que o declínio do Reino Unido como potência militar não deixa os Estados Unidos privados de um aliado capaz e disposto, e a relação dos EUA com a França deve ser reconhecida e fortalecida. A má notícia é que a estabilidade do relacionamento está ameaçada pela ascensão da francesa Marine Le Pen e do partido de extrema direita Frente Nacional que ela lidera.


A França, a única entre as grandes potências da OTAN, mantém a capacidade militar e a coragem política para contribuir significativa e agressivamente para as respostas coletivas às ameaças à segurança da Aliança Atlântica. Paris demonstrou isso em 2013, quando o presidente francês François Hollande lançou uma intervenção militar no Mali para salvá-lo dos militantes islâmicos e efetivamente assumiu a responsabilidade pela "frente sul" da Europa no Sahel africano.

Hoje, mais de 3.000 soldados franceses apoiados por caças estão envolvidos em uma guerra regional "quente" apoiada pelos EUA contra grupos islâmicos no Sahel, e os franceses estão avançando em direção a um maior envolvimento na guerra contra o grupo islâmico nigeriano Boko Haram. No Oriente Médio, os franceses se juntaram à coalizão liderada pelos EUA contra o ISIS. Lá, assim como na África, Paris se vê fazendo o que pode para impedir que as várias peças de um potencial califado islâmico se unam.


Em relação à Rússia, os franceses têm se mostrado firmes em sua oposição à agressão russa nos níveis diplomático e econômico, e Paris chegou ao ponto de bloquear a entrega à Rússia de dois navios de assalto anfíbios de alta capacidade. A França também tem a maior capacidade de qualquer um dos aliados europeus de contribuir rapidamente com uma força significativa capaz de lidar com um confronto com a Rússia, se necessário.

A recente decisão do governo francês de congelar os cortes nos gastos com defesa, mesmo em face de forte pressão financeira - ao contrário do governo britânico, que parece comprometido com mais reduções de defesa para um estabelecimento de defesa do Reino Unido já reduzido e em retração - indica um desejo de preservar essa capacidade.

Além disso, a França, que só recentemente voltou à integração total com a OTAN, tem feito grandes esforços para garantir que as forças francesas possam lutar efetivamente ao lado dos americanos. Por exemplo, os caças franceses Rafale têm praticado operações em porta-aviões americanos e, na primeira semana de março, Rafales operavam em porta-aviões americanos no Golfo Pérsico, participando da campanha anti-ISIS.


A importância do crescente relacionamento franco-americano torna o surgimento de Le Pen preocupante. Supostamente explorando o sentimento anti-muçulmano pós-Charlie Hebdo, ela agora está à frente nas pesquisas de todos os outros grandes líderes políticos franceses. Mas, em vez de aplaudir as ações militarmente robustas de Paris no exterior, Le Pen e seu partido defendem a retirada da OTAN e a retirada das operações de coalizão em andamento para uma postura de isolacionismo armado combinado com admiração, senão apoio, por homens fortes estrangeiros.

Le Pen critica Hollande e seu antecessor, Nicolas Sarkozy, por minarem o presidente sírio Bashar al-Assad e derrubar Muammar el-Qaddafi da Líbia. Le Pen também expressou apoio ao presidente russo, Vladimir Putin, e se opõe ao alinhamento de Hollande com os EUA em relação à crise na Ucrânia. Parte desse apoio pode ter sido comprado: um banco russo supostamente emprestou ao partido Frente Nacional US$ 11 milhões, gerando especulações de que Putin está apoiando Le Pen secretamente.

Seja qual for o caso, é claro que há uma aliança na Europa entre Putin e populistas da extrema direita e da extrema esquerda que compartilham antipatia em relação à União Europeia e à ordem liberal e militar liderada pelos EUA. Esses esforços não são inconsistentes com as tentativas sistemáticas de Moscou de desenvolver "relações especiais" com aguerridos nacionalistas europeus na Hungria, Sérvia e Grécia, enquanto tenta prejudicar a coesão de curto prazo da União Europeia.


Embora pouco possa ou deva ser feito pelos Estados Unidos em relação a Le Pen, é do interesse dos Estados Unidos fortalecer as relações bilaterais com a França. A cooperação militar já está ocorrendo em uma escala sem precedentes e deve ser incentivada. O valor da força de dissuasão nuclear francesa deve ser abertamente reconhecido como parte da postura de dissuasão coletiva da Aliança em relação a uma liderança russa que ostenta abertamente a perspectiva de uso limitado de armas nucleares no caso de uma futura crise político-militar severa na Europa.

Finalmente, pode ter chegado a hora de trazer a França para o clube exclusivo de compartilhamento de inteligência conhecido como "os Cinco Olhos", que inclui antigos aliados dos EUA, Canadá, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia. O preço da adesão para a França é alto porque se espera que Paris dê e receba. Mas, à luz da convergência estratégica entre Paris e Washington, tanto americanos quanto franceses teriam muito a ganhar.

Sobre os autores:

Michael Shurkin é um cientista político e Peter A. Wilson um analista sênior de pesquisa de defesa, ambos na organização sem fins lucrativos e apartidária RAND Corporation.