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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Quais as lições militares para o pós-guerra de 1870 e hoje?

Soldados bávaros em combate urbano com as tropas navais francesas em Bazeilles, 1870.

Por François ChauvancyTheatrum Belli, 7 de setembro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 8 de setembro de 2020.

Para compreender esta guerra, pouco estudada no ginásio e no colegial, leia e estude as memórias de generais e marechais que testemunharam esta época e ignoradas muito frequentemente, com descrições particularmente detalhadas, hoje iluminam o terreno sobre os homens, a sociedade e a resiliência francesa diante da derrota.

Esses generais e marechais chamados "africanos" são experientes. Eles se destacaram nos campos de batalha mais distantes. Eles conquistaram notavelmente o Norte da África, que serviu de escola de guerra para os oficiais. Quanto à duração dos desdobramentos, às vezes vários anos, torna nossas experiências de quatro ou seis meses de OPEX muito leves. Os marechais Bugeaud (sem ofender Jacques Attali e outros) Mac Mahon, Pélissier, de Saint-Arnaud, Canrobert, os generais Yusuf, de Ladmirault, Martimprey, de Lamoricière, até mesmo o Marechal Bazaine, apesar de seus erros e sua ambição, todos demonstraram essa exigência de servir, na linha de frente muitas vezes, com grande coragem, heroísmo, no contato e à frente de seus soldados. Muitos generais morreram em ação nas guerras do Segundo Império e, claro, em 1870. Esta guerra, entretanto, foi perdida.

No entanto, esse conflito é muito distante, muito “século XIX” para não despertar nenhum interesse? É certo que as táticas, senão a estratégia da época, já não são realmente relevantes no mundo "informatizado" do século XXI, com um desdobramento bastante fraco de tropas - 5.000 homens, basicamente uma brigada dotada de um poder de fogo sem comparação - atuando em uma estrutura conjunta e tanto quanto possível em coalizão, com uma preocupação do homem com a unidade então na época, o exército profissional, do marechal ao soldado, entra em combate com bravura e brio, sem questionar a morte ou o olhar midiático, das redes sociais, da opinião pública.

"O Batalhão Jäger No. 9 lauenburguês perto de Gravelotte", pintura de Ernst Zimmer, 1910.

No entanto, um exército profissional, seja em 1870 ou em 2020, parece-me ter muito em comum, assim como as sociedades das duas eras com suas relutâncias e seus entusiasmos, seus medos e seus atos de bravura, seus políticos e seus generais. Quem conhece os exércitos desde a década de 1980 verá nas reformas pós-1870 que muitas soluções certamente terão sido adotadas de forma adaptada. A reconstrução e a desconstrução do exército francês exigem, de fato, soluções que já foram experimentadas ao longo do tempo: dependendo da situação econômica em que os exércitos são uma variável de ajuste como fontes de despesas - porém a segurança tem não tem preço? -; novas ameaças ou que não queremos ver; um espírito de defesa, civilidade, senão patriotismo a ser desenvolvido através do serviço militar ou serviço nacional universal...

O contexto político e militar em 4 de setembro de 1870

Sem voltar aos primeiros postos dedicados ao período anterior à proclamação da Terceira República, o exército imperial francês foi derrotado em 3 de setembro, embora cidades como Metz e Belfort resistiram por muitas semanas. No resto da França, os exércitos franceses formados em uma emergência à partir da guarda nacional móvel criada pela lei Niel* de 1º de fevereiro de 1868 e de mobilizados mostram uma coragem desigual a partir de 4 de setembro, apesar da determinação dos generais Chanzy, Faidherbe, dos almirantes Jauréguiberry e Jaurès. Esses exércitos se formaram rapidamente, mas em ação descoordenada, são mal-fortalecidos, mal-treinados e mal-equipados. Por exemplo, os fuzis Chasspot não foram produzidos em número suficiente por decisão da legislatura nos anos anteriores à guerra e foram substituídos por fuzis de todos os tipos, principalmente comprados nos Estados Unidos. O cerco de Paris não pôde ser levantado e as vitórias locais não puderam ser exploradas durante os cinco meses de combates que se seguiram à queda de Sedan.

*Nota do Tradutor: A lei Niel é uma lei proposta por Napoleão III para reformar e modernizar o exército francês, levando o nome do Marechal Niel, então ministro da guerra. Napoleão III queria reformar o sistema do exército francês para poder lutar em pé de igualdade contra as tropas prussianas que mostraram sua superioridade durante a vitória de Sadowa/Königgrätz em julho de 1866.

Soldados bávaros em combate contra tropas navais francesas em Bazeilles, 1870.

Deve-se lembrar que desde a proclamação da Terceira República, a guerra foi travada diretamente pelo novo executivo, notadamente com Gambetta e de Freycinet, pouco cientes das questões militares. Em 10 de outubro de 1870, Gambetta anunciou aos prefeitos que o Ministro do Interior (ele) era agora o responsável pela administração da guerra (Ref. "Histoire du général Chanzy", de JM Villefranche, 1889). Até o armistício de 28 de janeiro de 1871, ele agiu com base em cálculos políticos - para preservar os republicanos no poder, ou seja, a esquerda, em detrimento do interesse geral - derrotar os prussianos - e, portanto, da ação dos generais no terreno.

A paz voltou em 10 de maio de 1871 pelo Tratado de Frankfurt, que era então Thiers primeiro Presidente da Terceira República (e depois o Marechal Mac Mahon), todos sabem que é necessário preparar a grande vingança após a perda da Alsácia-Lorena enquanto evitando um retorno do exército alemão que quase aconteceu em 1875.

General du Barail (1820-1902), Ministro da Guerra sob o Marechal Mac Mahon, (Ref. "Mes souvenirs", General du Barail, Tomo III, 1913) inicia esta reconstrução do Exército. Como ele aponta em suas memórias, "Qualquer empreendimento humano que tivesse sido submetido ao regime imposto ao exército francês por nossos desastres e por nossas instituições políticas durante um quarto de século certamente não resistiria a ele" o que deve trazer de volta memórias de muitos chefes de estado-maior do exército hoje. Além disso, esta missão é dificultada pela ingerência política, que se expressa não só pelo número de comissões que tratam de assuntos militares na Assembléia Nacional, mas também pela presença de generais ou almirantes, eleitos como deputados e, portanto, políticos.

Este choque da derrota forçou reformas.

“1871: o ano terrível”, estátua de mármore do escultor Paul Cabet (1815-1876) por encomenda do Estado e exposta no Museu Orsay.

Crie um estado-maior geral e reorganize as forças

Três reformas são principalmente em engajadas.

A primeira reforma é a criação de um estado-maior geral. Antes de 1870, o Estado-Maior do Exército não existia. O General du Barail criou este grande estado-maior geral em 12 de março de 1874, que se tornou o órgão de comando, responsável pela parte militar do Exército. A parte administrativa é dedicada ao que antes eram chamados de escritórios de guerra. Ele agora está separado do escritório do Ministro da Guerra, cujo chefe também era chefe do Estado-Maior desde 1871. Ele inclui seis escritórios: organização, inteligência, operações, serviço de escala, correspondência, contabilidade (Ref. Revue Inflexions, 2012 : "La réforme de l’armée française après 1871"). No entanto, o General du Barail menciona quatro escritórios com uma seção “África”, uma seção histórica e um serviço geográfico (Ref. Mes souvenirs, Tomo III, 1913, página 472).

Seu objetivo é simples: o Exército deve estar pronto desde os tempos de paz até os tempos de guerra, o que não acontecia no Império. Os regimentos, únicas unidades permanentemente constituídas, estavam espalhados pelo país em 21 divisões territoriais. Eles trocavam de guarnição periodicamente, apesar da tentativa mal-sucedida de Napoleão III de modificar esse sistema. As tropas não foram colocadas sob o comando dos generais que deveriam conduzi-las contra o inimigo. Os órgãos de comando não existiam. Quando estourou a guerra, era preciso começar formando brigadas com os regimentos, divisões com as brigadas e o corpo com as divisões, para depois dar chefes a todas essas unidades. Esta operação foi improvisada em detrimento de tropas que não conheciam seus chefes e dirigentes que não conheciam suas tropas, criando uma desordem inexprimível como nos primeiros dias da guerra de 1870.

A atual organização do Exército, que certamente dispõe do nível da brigada para as operações, corresponde em parte a essa situação com o desejo de compensar essa deficiência criando estados-maiores divisionais em tempos de paz, que desapareceram em reestruturações anteriores.

A segunda reforma é a reorganização estrutural do Exército. Em 29 de julho de 1873, foi votada pela Assembleia a constituição do exército em dezenove corpos militares, sendo o 19º aquele da Argélia, que hospeda permanentemente uma grande parte do exército. A partir de agora, cada corpo de exército é atribuído a uma zona administrativa que lhe proporciona os recursos necessários para o recrutamento, permite-lhe recuperar reservas para completar as suas tropas e poder marchar contra o inimigo. Esta lei leva a um aumento do número de regimentos e, portanto, a um aumento das despesas que a lei de finanças ainda não havia previsto. Como não é possível aumentar o número de tropas, a solução encontrada é destinar a cada corpo de exército apenas uma parte das unidades, a fim de constituir novas unidades, menos numerosas mas com existência formal. Na década de 1980, o princípio de diminuir os efetivos desta vez para não dissolver as unidades era praticado no Exército com companhias ou seções colocadas em "sommeil" (suspensão)...

Depois de criar esses corpos, eles deveriam receber comandantes-em-chefe, teoricamente generais de corpo de exército. No entanto, a primeira menção a essa classificação aparece apenas no aviso sobre os uniforme de 17 de março de 1921. Esta denominação foi criada em 1939 (Ref. Service historique de la défense), as duas patentes de oficiais-generais permanecem as de general de brigada e general de divisão. O general de divisão, portanto, permanece neste posto, seja ele ministro da guerra ou comandante de um corpo de exército. Os marechais, sendo nada mais do que uma distinção, o obedecem. Muitos desses generais têm entre 50 e 60 anos, muito longe da imagem de envelhecimento dos generais. Apenas quatro vieram do corpo de estado-maior que existia antes da Guerra de 1870. O "divisionnaire" (divisionário) que comanda um corpo de exército é nomeado por três anos. Em tempos de paz, ele agora é responsável por recrutar, administrar e treinar tropas, bem como preparar a mobilização. Em tempos de guerra, ele permanece à frente.

"Um engenheiro militar francês", pintura de Alphonse-Marie-Adolphe de Neuville em 1885.

Por fim, a terceira reforma é aquela do apoio. A intendência que tinha mostrado suas fraquezas não estando sob comando operacional é reorganizada. O despreparo para a guerra, a total falta de ligação entre o comando e os serviços foram todas deficiências que sem dúvida contribuíram para a derrota. Uma grande reforma da administração militar francesa foi preparada e não se concretizou até a lei de 16 de março de 1882. A administração militar estava subordinada ao comando do corpo de exército ou da região militar. Sob sua autoridade, a Intendência permanece responsável por toda a administração financeira e todos os assuntos relacionados à logística humana. É também por delegação de comando que os intendentes exercem a supervisão administrativa e, por ordem destes, realizam as avaliações dos efetivos.

A partir de 2009, a reforma do comissariado das forças armadas com a criação de bases de defesa, o desaparecimento da autoridade operacional dos chefes dos corpos sobre os serviços voltaram a mostrar o mesmo erro a tal ponto que em particular o exército restaura parte da autoridade dos “operacionais” sobre os serviços dos regimentos. Como lembrou o General CEMAT Thierry Burkhard, "os exércitos estão presos a um excesso de normas", resultante das reformas realizadas entre 2008 e 2017 (Ref. Le Monde de 18 de junho de 2020:  L’armée de terre envisage de futurs affrontements "État contre État") Uma doença muito francesa é a do primado da administração civil ou militar sobre a operacional, enquanto a administração legitima sua existência apenas pelos serviços que presta ao operacional ou ao cidadão. Ela não é um fim em si mesmo! O COVID-19, ao que parece, nos lembrou disso.

Selecione oficiais de equipe, construa equipe e se fortaleça

Três reformas de longo prazo são colocadas em andamento: selecionar e treinar oficiais de estado-maior, ter uma força de trabalho treinada e ser capaz de proteger as fronteiras orientais e a capital.

O primeiro é o da seleção e treinamento de oficiais aptos a servir no estado-maior, inclusive com experiência militar, sendo necessária uma abordagem de armas combinadas. Como o Tenente-Coronel Foch, futuro diretor da Escola Superior de Guerra (École Supérieure de Guerre, ESG), apontou, "A realidade do campo de batalha é que não se estuda. Nós apenas fazemos o que podemos para aplicar o que sabemos. Portanto, para poder fazer um pouco, você tem que saber muito e bem" (Ref. "Des principes de la guerre", 1907). Após o trabalho de uma comissão de doze generais de estado-maior, da qual o Presidente Thiers participará em parte, o General Castelnau é nomeado em 27 de maio de 1874 presidente de uma comissão para preparar a instituição de uma escola superior da guerra aberta a oficiais de todas as armas.

A decisão de criação data de 1876 mas, na realidade, o ESG só se estruturou definitivamente em 1880. Não queriam mais os oficiais que saíram diretamente do corpo de estado-maior e não o deixam mais durante todo a sua carreira. Os oficiais, selecionados por competição entre os ex-tenentes ou os jovens capitães após alguns anos em um regimento, servem alternadamente na tropa e no estado-maior após serem brevetados pela ESG. A cada mudança de posto, os graduados passam um tempo de comando em unidades de combate. O General Lewal, um homem de guerra e de estudos, experimentou essa formação de 1877 a 1880 antes de receber setenta estagiários anualmente. O que tem em comum com a nossa formação hoje com a dificuldade do baixo número de unidades...

Generais Barão Antoine-Henri de Jomini e Carl Philipp Gottfried von Clausewitz.

Finalmente, rejeitando o ensino bastante tático do General Jomini (1779-1869), que ainda aconselhou Napoleão III durante a campanha italiana, o ESG investiga o estudo do general prussiano Carl von Clausewitz (Ref. "A Guerra") descoberto durante a publicação em 1883 do livro "A Nação em armas", do marechal prussiano von der Goltz. Uma tradução francesa apareceu na Bélgica em 1849, mas quase não foi distribuída na França. Em 1884, o Major Cardot descobriu Clausewitz em sua versão alemã e foi um ardente defensor dela. A influência do exército alemão vitorioso inspira o exército francês derrotado...

A segunda reforma diz respeito aos efetivos. A lei militar de 1854 organizou em conjunto isenções e reengajamento. Os recrutas que não quisessem servir pagavam uma quantia que permitia recontratar soldados que queriam permanecer sob as bandeiras. Sua desvantagem era que o exército estava envelhecendo. Além disso, ela estava fechando o recrutamento bloqueando a promoção. A lei de 1872 aboliu todos os bônus de engajamento, mas repentinamente acabou com o reengajamento. A única solução restante era colocar em vigor um bônus de engajamento como nas tropas ultramarinas, mas demorou anos para validá-lo.

Prevendo a guerra com a Prússia, a guarda nacional móvel havia sido criada pela lei Niel de 1º de fevereiro de 1868. Era formada localmente por jovens aptos, mas não incorporados ao serviço do exército ativo após um sorteiro no conselho de revisão. Ela recebeu pouca instrução militar porque originalmente se destinava a servir como uma tropa de segunda linha destinada à defesa de lugares, costas, fronteiras assim como a manutenção da ordem interna. Durante o conflito franco-prussiano, quase todo o exército ativo foi destruído. No final de janeiro de 1871, 370.000 soldados franceses eram prisioneiros na Alemanha. A guarda nacional móvel constituía então mais de um terço das forças disponíveis, mas com uma eficácia militar irregular e fraca.

O General Cissey, Ministro da Guerra e sobrinho do Marechal Davout, aprova a lei de 27 de julho de 1872, que constitui um compromisso enquanto a sociedade tem más lembranças da conscrição (recrutamento obrigatório). A lei estabeleceu os princípios da reserva militar que permaneceram válidos até 1999. Originalmente, as obrigações militares dos cidadãos franceses, com duração de vinte anos, eram definidas da seguinte forma:

  • um serviço nacional no exército ativo que dura cinco anos;
  • quatro anos na reserva ativa do exército;
  • cinco anos no exército territorial;
  • seis anos na reserva do exército territorial.

Outras leis, longamente debatidas, modificaram posteriormente o serviço militar: a de 1889 estabeleceu seu caráter universal removendo as isenções; as de 1905 e 1913 deram-lhe igualdade, aumentando o tempo de serviço de todos para dois, depois três anos.

O exército territorial e, portanto, uma reserva real é criada. Os homens que o compõem passaram mais ou menos tempo sob as bandeiras. Eles são instruídos, supervisionados por ex-graduados ou oficiais superiores aposentados. Os comandantes em tempo de guerra são oficiais da ativa. Um período de exercício de 13 dias consecutivos é estabelecido sob o regime do exército da ativa. Em 1899, o curso superior de estado-maior para oficiais da reserva foi criado e anexado à École Supérieure de Guerre em 1911.

Enfim, não se tratava apenas de tornar o novo exército formidável para uma possível ofensiva. A França ainda precisava se tornar inatacável na defensiva e proteger a parte oriental do território. O General du Barail substitui o General Frossard, diretor de engenharia encarregado das fortificações, pelo general Séré de Rivières, ex-repórter do julgamento do Marechal Bazaine. A reconstrução, em particular das fortificações de Paris, deveria escapar a qualquer discussão pública, a fim de não revelar esses planos à Alemanha. A Assembléia Nacional entendeu isso e deu plenos poderes a uma das suas comissões para receber todas as propostas do ministro da Guerra, discuti-las e implementar "discretamente" esta reforma, inclusive com os fundos necessários.

Por fim, observo que, de acordo com suas memórias, o General du Barail está lançando a obra para a constituição de um círculo destinado aos militares que ficam ou passam por Paris.

Caricatura de James Tissot (1836-1902, pintor francês em exibição no Museu Orsay) publicado no Reino Unido em 4 de setembro de 1869... um ano antes da proclamação da Terceira República.

Para concluir, Napoleão III - Emmanuel Macron, mesma luta contra uma França fragilizada e dividida?

Não podemos ver semelhanças entre o império fracassado de Napoleão III e a França do presidente Macron, entre esta guerra de 1870 e o que vivemos em 2020? Porém, a proclamação da Terceira República e as convulsões da Quinta República, a crise interna na revolta de Paris em 1871 e os “Coletes Amarelos” ou as revoltas das minorias, as crises que, enfim, temos vivido desde 2018 permitem reconciliações.

Certamente, grande parte da derrota deveu-se à fraqueza de Napoleão III e à sua doença, mas também a uma sociedade francesa mais próxima da busca do bem-estar econômico, a uma classe política pouco motivada ou ideologicamente oposta ao Império que me parece muito semelhante à sociedade francesa de hoje, sem esquecer a difícil questão da França colonial.

  • Em 1870, uma minoria da sociedade francesa, os republicanos, na verdade a esquerda, dividiram a sociedade e se opuseram ao chamado Império "autoritário". Hoje, o inimigo imediato é a COVID-19 e o inimigo persistente é a divisão da sociedade francesa: rejeição da autoridade, extremismo de esquerda e direita, separatismo, racialismo, individualismo. Em 1870 uma minoria era contra o imperador, hoje uma minoria (ou minorias) se opõe ao presidente Macron, seu “autoritarismo” e nossa sociedade.

"Desembarque do Corpo Expedicionário em Beirute, 16 de agosto de 1860", pintura de Jean-Adolphe Beaucé, 1863.

  • Sob o Segundo Império, Napoleão III queria restaurar a França ao status de uma grande potência. Primeira operação de caráter  humanitária, interveio em 1860 em Beirute para proteger os cristãos maronitas massacrados pelos drusos, secretamente apoiados pelos turcos. Uma campanha militar até Damasco levou à autonomia do Monte Líbano dentro do Império Otomano em 9 de junho de 1861. No período em que vivemos, é sem dúvida útil também lembrar o papel de Abd El Kader, “o melhor inimigo da França” e que na época residia em Damasco. Ele protegeu milhares de cristãos do massacre (Ref. Abd El Kader). Hoje, o presidente Macron apóia o Líbano como a França faz há muitos anos... e foi para lá no dia 3 de setembro, dia da queda do Segundo Império... Além disso, ele enfrenta o expansionismo, senão "pan-islamismo" turco no Mediterrâneo Oriental, que se expressa na Síria e no Líbano. Durante a longa presença militar no Norte da África, o pan-islamismo também foi considerado uma ameaça sob a Terceira República.

"Minhas saudações de amizade e respeito a todos que falarem de mim", pintura de Jan-Baptist Huysmans, 1861.
Pintura representando o líder argelino emir Abd-el-Kader, protegendo os cristãos em Damasco em 1860, durante os massacres cometidos pelos drusos.

  • Finalmente, permanece o envolvimento francês na colonização, particularmente na Argélia, onde os marechais e generais do Segundo Império foram treinados desde a captura de Argel em 1830. Paradoxalmente, o presidente Macron comemorou em 4 de setembro o nascimento da Terceira República. Lá ele homenageou Gambetta que, no entanto, era a favor da colonização e assimilação da Argélia a partir de 1878, ou seja, de tornar a Argélia parte da França. Sem dúvida, com o objetivo de recriar vínculos com a Argélia à medida que se aproxima o aniversário das negociações de Évian de 1961, essa política de reaproximação lançada neste verão torna-se mais clara com o mandato dado a Benjamin Stora, um ex-trotskista fugido da Argélia em 1962 com os pais, embora devamos recordar esta acusação do candidato Macron em visita pré-eleitoral a Argel em 15 de fevereiro de 2017 (Le Monde, 16 de fevereiro de 2017). A colonização da Argélia teria sido um "crime contra a humanidade", uma avaliação simplista quando se lêem os depoimentos da época daqueles que a conquistaram, inclusive contra os poderes escravistas, e do que foi feito na realidade ("Histoire du général Chanzy", Op. Cit. Governador civil da Argélia durante seis anos e deputado de centro-esquerda). Por fim, seria necessário estudar e conhecer a história da Argélia como um todo e não sob a ótica da Guerra da Argélia. Em particular, no desejo de "apoderar-se da terra", as responsabilidades dos colonos que muitas vezes se opunham ao Império e eram favoráveis ​​aos republicanos, portanto à esquerda da época, e aquelas dos seus descendentes repatriados para a França a partir de 1962 não estariam eles engajados? Assim, a França, que no seu conjunto não foi favorável a esta conquista, não é responsável por esta colonização e não tem que mostrar qualquer culpa ou responsabilidade à custa de rejeitar a sua história.

General François Chauvancy é Saint-cyrien, brevetado pela Escola de Guerra, doutor em ciências da informação e da comunicação (CELSA), titular do terceiro ciclo de relações internacionais pela faculdade de Direito de Sceaux, General (2S) François CHAUVANCY serviu no Exército nas unidades blindadas das tropas navais. Ele deixou o serviço ativo em 2014. Ele é um especialista em questões de doutrina sobre o emprego de forças, em funções relacionadas ao treinamento de exércitos estrangeiros, contra-insurgência e operações de informação. Nessa qualidade, foi o responsável nacional da França para a OTAN nos grupos de trabalho em comunicação estratégica, operações de informação e operações psicológicas de 2005 a 2012.

Bibliografia recomendada:




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sábado, 24 de outubro de 2020

PERFIL: General Hans Kundt, conselheiro militar alemão na Bolívia

O Tenente-General Hans Kundt.
Ele foi o Comandante-em-Chefe e Ministro da Guerra das forças bolivianas na Guerra do Chaco contra o Paraguai de 1932 a 1935.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 24 de outubro de 2020.

O Tenente-General Hans Kundt foi a principal figura militar da Bolívia durante as duas décadas anteriores à Guerra do ChacoInfelizmente para os bolivianos, ele não foi capaz de utilizar corretamente a superioridade da Bolívia em armamentos, tanques e aviação, preferindo táticas fúteis de ataques frontais contra posições bem defendidas. Após o desastre no Cerco de Campo Vía (1933), ele foi substituído pelo General Enrique Peñaranda.

Carreira inicial no Exército Imperial Alemão

Hans Anton Wilhelm Friedrich Kundt nasceu em 28 de fevereiro de 1869, em Neustrelitz, no Grão-Ducado de Mecklenburg-Strelitz, na então Confederação Alemã do Norte. Vindo de uma família de oficiais militares, Hans Kundt ingressou no 4º Regimento de Infantaria da Turíngia Nº 72 (4. Thüringische Infanterie-Regiment Nr. 72) do Exército Prussiano em 7 de março de 1888. Lá, ele foi nomeado Portepeefähnrich (cadete aspirante a oficial) em 15 de outubro de 1888 e promovido a segundo-tenente em 21 de setembro de 1889. De 1º de outubro de 1893 a 15 de setembro de 1896, ele serviu como ajudante no comando distrital de Naumburg (Saale).

Kundt então estudou na Academia de Guerra (Kriegsakademie) por três anos e, entretanto, foi promovido a Primeiro-Tenente (Premierleutnant) em 20 de maio de 1897, sendo transferido para o Regimento de Infantaria "Vogel von Falckenstein" (7º Westfaliano) Nº 56 - Infanterie-Regiment "Vogel von Falckenstein“ (7. Westfälisches) Nr. 56Depois de ter concluído com sucesso a academia militar, foi designado para o Großen Generalstab (oficialmente Grão-Estado-Maior, o Estado-Maior Geral do Exercito Imperial) por um ano. Esse comando foi então prorrogado por mais um ano, até que finalmente agregou em 22 de março de 1902 com sua promoção a capitão do Estado-Maior do Exército (Hauptmann dem Generalstab der Armee) e foi transferido para servir ao Estado-Maior do XVII Corpo de Exército (Generalstab des XVII. Armee-Korps), com sede em Dantzig.

Seu irmão Jasper Kundt (1872-1940) foi um major-general (Generalmajor) do exército alemão; sua irmã Marie Kundt ocupou o cargo de diretora da Academia de Arte Fotográfica de Lette.

Missão Militar Alemã na Bolívia

Guarda Presidencial boliviana durante uma cerimônia na capital La Paz.
Eles estão equipados com os capacetes Pickelhauben, de tradição prussiana, em estilo cuirassier imperial alemão. A Guarda Presidencial era recrutada no "Regimento Colorados 1º de Infanteria".


Hans Kundt foi enviado à Bolívia em 1908, durante o primeiro governo do presidente Ismael Montes Gamboa, como chefe da missão militar de treinamento alemã; com o posto de major. O efetivo da missão alemã era de 5 oficiais e 13 gruaduados.

Kundt teve um excelente relacionamento com o governo e o Exército bolivianos, adquirindo reputação de grande administrador e instrutor de tropas. Em 1911, durante o governo do presidente Eliodoro Villazón Montaño, Kundt iniciou a reorganização do Exército boliviano segundo o modelo prussiano.

Primeira Guerra Mundial

Retrato com dedicatória do então Oberstleutnant Hans Kundt em 1915.

Em 1914, ele retornou à Alemanha e  tornou-se tenente-coronel (Oberstleutnant) em 19 de agosto de 1914 no comando do Regimento de Infantaria da Reserva Nº 254 (Reserve-Infanterie-Regiments Nr. 254) da Landwehr na Frente Oriental; combatendo na Polônia e na Galícia contra o Exército Imperial Russo. Ele foi chefe do Estado-Maior do X Exército do Corpo de Reserva entre 30 de junho e 29 de novembro de 1915.

O Coronel Kundt também comandou o 1º Regimento de Granadeiros da Guarda "Kaiser Alexander" (Kaiser Alexander Garde-Grenadier-Regiment Nr. 1) de 3 de janeiro de 1917 a 1º de março de 1918. Promovido a coronel (Oberst) em 2 de abril do mesmo ano, em 3 de janeiro de 1918 assume o comando da 42ª Brigada de Infantaria (42. Infanterie-Brigade)., mantendo-o até 8 de setembro de 1918.

Após a assinatura do armistício, reassumiu o comando do 1º Regimento de Granadeiros da Guarda "Kaiser Alexander" de 20 de janeiro de 1919 até sua dissolução. Ele então passou, em 1º de janeiro de 1920, ao comando do distrito militar de Glogau, na Baixa Silésia, que logo se tornaria Glogóvia, território da Polônia recém-independente.

Em 30 abril do mesmo ano foi realocado para a reserva com o posto de major-general (Generalmajor).

De volta à Bolívia

Em 1921, ele retornou à Bolívia como civil, mas foi imediatamente nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército com o posto de Tenente General. Nesta posição, ele deu continuidade à reorganização iniciada em 1911 e se tornou muito popular porque - ao contrário da maior parte do corpo de oficiais bolivianos - cuidava do bem-estar de cada soldado. Em 1923 foi nomeado Ministro da Guerra, iniciando um programa de modernização dos materiais fornecidos ao exército. Esse programa foi executado durante a década de 1920 e estudou-se o plano operacional para a ocupação definitiva do Chaco, área em litígio com o Paraguai.

Ernst Röhm com o uniforme boliviano.

Em 1928, ele alcançou Ernst Röhm, futuro criador do Batalhão de Assalto (Sturmabteilung, SA) do partido nazista, e que então trabalhava como instrutor militar na patente de tenente-coronel na Bolívia.

Hans e sua esposa Gertrude, 1925.

Em meados da década de 1930, Kundt tentou influenciar os oficiais do exército a favorecerem a reeleição do presidente Hernando Siles Reyes e, portanto, quando este foi deposto em um golpe-de-estado, Kundt foi forçado a se exilar: mudou-se então para o Chile e tornou-se instrutor do exército local, também prussiano, estudando o teatro operacional da Patagônia em caso de conflito com a Argentina.

Guerra do Chaco

Em 15 de junho de 1932, tropas bolivianas atacaram o estratégico posto avançado paraguaio de Carlo Antonio Lopez, localizado próximo a uma das principais fontes de água na região do Chaco: um soldado paraguaio foi morto e cinco foram feitos prisioneiros.

A reação paraguaia foi extremamente rápida e levou à reocupação da posição perdida, mas foi o início de uma guerra aberta entre os dois países. No final do ano, a liderança boliviana convocou com urgência Kundt, que chegou do Chile via Lima de trem, sendo acolhido por uma multidão jubilosa; em 5 de dezembro foi nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército no lugar do General Filiberto Osorio.

General Kundt, vestindo uniforme boliviano e rodeado de praças, no seu posto de comando no Chaco, 14 de setembro de 1933.

No entanto, apesar da superioridade numérica e da disponibilidade de armamentos modernos, o exército boliviano não conseguiu prevalecer, sendo incapaz de usar sua superioridade a seu favor devido a táticas inadequadas. O uso de ataques frontais contra posições bem defendidas (típicas da Primeira Guerra Mundial), a falta de coordenação entre exército e força aérea, as graves deficiências logísticas e o deficiente serviço de reconhecimento levaram os bolivianos a sofrer inúmeras derrotas, com perdas graves de homens e meios.

A estratégia boliviana baseava-se na indubitável superioridade de recursos econômicos e populacionais (3 para 1) que possuía sobre o Paraguai. Para o estado-maior boliviano, a ocupação do Chaco e o acesso ao rio Paraguai eram mais um problema diplomático do que militar.

"O Tenente-Coronel Ángel Rodríguez acreditava que só havia água suficiente para enviar 5.000 homens, e que apenas unidades do tamanho de uma companhia poderiam manobrar pelos arbustos, enquanto Kundt permanecia firmemente convencido de que 3.000 homens seriam suficientes para tomar Assunção."

- James Dunkerley, Orígenes del poder militar: Bolivia 1879-1935, pg. 207, 1987.

Soldados bolivianos se movendo pelo terreno inclemente do Chaco.

Não se levou em conta a história daquele pequeno país localizado ao sul e a importância que dava à posse do Chaco Boreal. Em 1928, o presidente Daniel Salamanca, para quem o Paraguai era "a mais miserável das repúblicas da América do Sul", disse:

"A Bolívia tem uma história de desastres internacionais que devemos contrapesar com uma guerra vitoriosa [...]. Assim como os homens que pecaram devem ser submetidos à prova de fogo para salvar suas almas [...] países como o nosso, que cometeram erros de política interna e externa, devemos e precisamos nos submeter à prova de fogo, que não pode ser qualquer outra coisa que não o conflito com o Paraguai [...] o único país que podemos atacar com garantias de vitória."

Jorge Antezana Villagrán, La Guerra del Chaco: análisis y crítica sobre la conducción militar, pg. 12-13, 1982.

Comando-em-Chefe das forças bolivianas

Kundt à cavalo durante um exercício na Bolívia.

Devido ao fracasso das operações militares bolivianas nos primeiros três meses de combate, e da popularidade que tinha na Bolívia pela tarefa de estruturação do Exército que havia realizado, o presidente Daniel Salamanca ofereceu-lhe o cargo de Comandante-em-Chefe. Salamanca também achava que com essa medida poderia controlar os rebeldes oficiais do alto comando boliviano e ter um "bode expiatório" no suposto caso de que as coisas não corressem bem. Kundt tinha então 63 anos.

"O Exército Boliviano era obra de Hans Kundt, era o Exército que desfilava em formações perfeitas nos dias de lembrança cívica, era o Exército que realizou manobras no Altiplano, causando inquietude nos governos do Chile e do Peru, e era também o Exército que nunca foi preparado para uma campanha em clima tropical e terreno arborizado."

- Querejazu Calvo, Historia de la Guerra del Chaco, pg. 55, 1990.

Limitado por sua concepção estratégica de ocupar o território do Chaco até chegar ao rio Paraguai e acreditando que poderia levar adiante uma guerra "econômica" sem mobilizar todos os recursos militares que lhe teriam dado uma superioridade avassaladora sobre o Paraguai, Kundt tentou desalojar o Exército Paraguaio de todos os pontos intermediários a esse objetivo estratégico por meio de ataques frontais.

As características do teatro de operações do Chaco, o custo em homens que reduziam suas forças e a ação da camarilha de oficiais bolivianos que sabotavam suas ações de diferentes maneiras, determinaram que depois de 9 meses de ataques Kundt não conseguira destruir o inimigo conforme seu objetivo inicial.

Kundt e oficiais bolivianos,
estes ainda com o uniforme de influência francesa.


Depois das pesadas derrotas nas batalhas de Nanawa e Alihuata, onde Kundt ordenou sangrentos ataques frontais de infantaria a posições fortificadas, o prussiano liderou os bolivianos no desastre da Batalha de Campo Via.

Ocorrida entre 3 e 11 de setembro, o Exército Boliviano lastimou a perda de mais de 9.000 soldados (2.600 mortos e 7.500 feitos prisioneiros), 8.000 fuzis, 536 metralhadoras, 25 morteiros e 20 peças de artilharia, o presidente Daniel Salamanca Urey o destituiu do comando e o substituiu pelo General Enrique Peñaranda del Castillo.

Charge paraguaia representando Hans Kundt e o presidente Salamanca sendo repelidos pelo General Estigarribia, à frente do presidente Eusebio Ayala.
A legenda diz: 

"O Ajudante de Kundt: Um momento, Excelência; o prudente general previu esta emergência..."


Em 16 de novembro de 1934, ocorreu a rendição das 1ª e 2ª Divisões de Reserva bolivianas em El Carmen. A consequência imediata foi a retirada de 18.000 homens do exército boliviano do forte Ballivián, localizado ao sul, em direção a Villamontes.

Em 27 de novembro, o presidente Salamanca tentou substituir Peñaranda pelo General Lanza, mas Peñaranda, apoiado pelo Coronel Germán Bush (ex-comandante-em-chefe do Exército Boliviano), cercou a vila onde Salamanca estava localizado e o obrigou a reconfirmá-lo no posto.

Em 30 de novembro de 1934, após a derrota de El Carmen, Salamanca demitiu definitivamente Peñaranda e mais uma vez deu o comando supremo do exército a Kundt; este procedeu à remoção do General Peñaranda del Castillo, e então tentou revitalizar as tropas agora perto do colapso total.

O exército paraguaio surpreendentemente se infiltrou em uma divisão entre duas divisões bolivianas, viajando 70km pelo deserto com o objetivo de capturar os poços do forte Yrendagüé localizado na retaguarda boliviana e deixar três divisões inimigas sem água, no meio do deserto.

Tanque Vickers Mark E. de 6 toneladas boliviano capturado pelos paraguaios. Blindados foram adquiridos por insistência de Kundt mas, apesar de aquisições caras, foram utilizados mal e provaram-se inúteis no terreno do Chaco.

Após a derrota de Yrendagué (5 a 8 de dezembro de 1934), as tropas bolivianas abandonaram definitivamente o Chaco e com a deposição do presidente Salamanca, substituído pelo vice-presidente José Luis Tejada Sorzano, Hans Kundt foi novamente demitido do comando e praticamente colocado em prisão domiciliar em sua casa. Em abril de 1935 o exército paraguaio entrou em território boliviano e, no mês de junho seguinte, foi assinado o tratado de paz que atribuía definitivamente a maior parte do território do Chaco ao Paraguai.

Depois de deixar a Bolívia permanentemente no primeiro trimestre de 1936, Kundt se estabeleceu por um curto período na Alemanha e depois mudou-se para Minusio, na Suíça. Ele morreu em Lugano, em 30 de agosto de 1939; apenas dois dias antes da invasão nazista à Polônia.

Publicações

- Prescripciones para el tiro con cartuchos de guerra, para los cuerpos armados con fusil y carabina, que regirán desde la fecha, Intendencia de Guerra, La Paz, 1923.

- Campaña del Chaco, el general Hans Kundt, comandante en jefe del Ejército en Bolivia, com Raúl Tovar Villa, Editorial Don Bosco, La Paz, 1961.

Avaliação como comandante

Quadro do General Hans Kundt.

Embora demonstrasse excelentes qualidades como administrador e instrutor e se preocupasse com o bem-estar das tropas sob seu comando, ele não se mostrou um bom comandante no campo de batalha. Durante a Primeira Guerra Mundial, Kundt demonstrou uma compreensão medíocre sobre táticas, preferindo ataques frontais na maioria das situações. Apesar do seu conhecimento dos problemas de estado-maior, ele não era um bom estrategista. Kundt também mostrou pouco tato diplomático, intrometendo-se na política interna boliviana e tendo de se exilar no Chile após apostar "no cavalo errado".

Na Guerra do Chaco, ele permaneceu ligado às táticas de massa da Primeira Guerra Mundial, preferindo os ataques frontais sem sentido e sangrentos contra posições inimigas bem protegidas em oposição à guerra de movimento, e em vez de penetrar rapidamente no Chaco com as tropas divididas em colunas móveis, optou por uma ocupação ampla, mas dispersa, do território conquistado.

Kundt também não foi capaz de reagir com flexibilidade às manobras do Exército Paraguaio; este cercou unidade por unidade do exército boliviano e os esmagou.

Embora tenha traçado planos operacionais para a ocupação do Chaco desde os anos 1920, Kundt nunca visitou ou conheceu o território disputado; além disso, ele era micro-gerenciador e sempre relutou em depender de seus subordinados bolivianos, preferindo supervisionar diretamente todas as operações militares em andamento, concentrando o poder de decisão em torno de si.

General Hans Kundt sentado em meio a oficiais bolivianos.

Kundt também era arrogante e, segundo o plano inicial, a guerra deveria se transformar em um avanço triunfal e incontestável das tropas bolivianas em toda a região, por serem superiores em número e meios ao Exército Paraguaio.

Este, treinado e aconselhado por uma missão francesa, liderado pelo brilhante General José Félix Estigarribia, soube utilizar o terreno para manobrar contra o adversário (maior e mais poderoso), além de fornecer uma cadeia logística mais eficiente. Kundt, em contrapartida, teve que recusar reforços várias vezes por não poder alimentá-los, e a vasta maioria das mortes por desidratação durante a guerra foram de soldados bolivianos.

Uma vez iniciada a guerra, a Bolívia não realizou uma mobilização total, pois Kundt considerou que bastava realizar uma guerra barateira e que não alteraria o cotidiano da população. Por essas razões, nenhuma tentativa foi feita para melhorar o abastecimento até a distante frente do Chaco, construindo uma linha ferroviária para Muñoz e a ponte essencial sobre o rio Pilcomayo. As tropas foram transportadas por caminhão e trem até Villazón, de lá por caminhão até Tarija e daí a pé até Villamontes, principal base do Chaco. De lá, os soldados deveriam marchar até 400km em meio à poeira, lama e calor sufocante do Chaco Boreal; boa parte dos soldados bolivianos eram índios do altiplano andino, com um clima totalmente diferente.

O meio de transporte básico era o caminhão, sempre em falta. Para cobrir as seis etapas do trecho Villazón-Muñoz foram necessários 480 caminhões. Como eram concentrados em unidades de abastecimento e principalmente de água, os soldados tiveram que se mobilizar principalmente a pé durante toda a guerra. Os veículos foram limitados por sua vez pelas estradas ruins, todas de terra e as quais as chuvas tornavam intransitáveis.

A ferrovia de 146km do rio Paraguai ao coração do Chaco foi vital para o Exército Paraguaio, especialmente durante a batalha do Boquerón.

Ao final da guerra, Kundt mudou de opinião, e os bolivianos de jogos de guerra deixaram de ser "os melhores soldados do mundo depois dos alemães" para serem claramente insuficientes para uma guerra real. Kundt também insistiu na compra de blindados Vickers e tankettes, mesmo contra a opinião da comissão técnica boliviana que avisou corretamente que seriam inúteis no Chaco.

O alemão era conhecido pela preocupação com o bem-estar de seus soldados, característica rara na tradição militar boliviana, mas desprezava os oficiais e generais bolivianos. O General Kundt nunca teve, nem antes e nem durante a guerra, o apoio incondicional dos oficiais sob seu comando. Eles viam na sua presença a prova patente de sua própria incapacidade e Kundt, a quem lhe sobravam exemplos, não perdia a oportunidade de ressaltá-la. Por isso, com seis meses comandando o Exército Boliviano, ele já pensava em renunciar ao cargo.

Robert Brockmann, autor boliviano que escreveu o livro El general y sus presidentes – Hans Kundt. Ernst Röhm y siete presidentes de Bolivia, 1911-1939 (dezembro de 2007), assim resumiu o general prussiano:

"Em grande medida, Hans Kundt foi o bode expiatório dos erros, ineficácia e desobediência de seus subordinados bolivianos. Kundt foi traído por seus subordinados, especialmente seu mais próximo, David Toro. Isso, porém, não o isenta de seus próprios grandes erros, como ter enviado onda após onda de soldados bolivianos à morte em ataques frontais contra a fortaleza de Nanawa, ou não ter reconhecido a magnitude da ofensiva paraguaia em outubro-dezembro de 1933, que levou ao desastre de Alihuatá-Campo Vía."

Bibliografia recomendada:

The Chaco War 1932-1935:
Fighting in Green Hell,
Antonio Luis Sapienza e José Luis Martínez Peláez.

The Chaco War 1932-35:
South America's greatest modern conflict,
Alejando de Quesada com Phillip Jowett e Ramiro Bujeiro.

El general e sus presidentes,
Robert Brockmann.

Leitura recomendada:

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

COMENTÁRIO: Os intelectuais são o poder

Mikhail Andreyevich Suslov, o "ideólogo do Kremlin".

Por Éder Fonseca, Warfare Blog, 13 de setembro de 2020.

Os intelectuais são o poder, e ninguém personificou melhor essa verdade que Mikhail Andreyevich Suslov, o "ideólogo do Kremlin" que ingressou no Partido Comunista da União Soviética (doravante denominado PCUS) em 1921 e atingiu o topo da hierarquia deste em 1946 - para só sair de lá em 1982, no caixão.

Suslov é um caso único de resiliência no ambiente político soviético, provavelmente o mais brutal da história da humanidade. Ele assistiu ao desfecho da Guerra Civil que consolidaria o poder bolchevique e à luta de poder pela sucessão de Lênin, sobreviveu à grande fome de 1932, aos expurgos de Stalin, à Grande Guerra Patriótica (2ª Guerra na denominação soviética) e conseguiu ser apadrinhado por líderes tão díspares como Stalin, Kruschev e Brejnev, superando a todos em longevidade.

Mais do que qualquer outro líder soviético, talvez incluindo Lênin e Stalin, Mikhail Suslov personificou a URSS, num caso de identidade tão umbilical que boa parte do apogeu e declínio daquele império podem ser associados à sua trajetória pessoal e traços de personalidade.

No entanto, ele era discreto em seu próprio país e um quase desconhecido no Ocidente. Apenas especialistas conseguiam identificar aquela figura obscura, quase sempre vestida de terno preto e óculos que aparecia nas fotografias do Politburo.

Suslov (segundo da esquerda na primeira fila) na abertura do 9º Congresso do Partido da Unidade Socialista, o governo da Alemanha Oriental, 18 de maio de 1976.

Dedicado em tempo integral à militância partidária a partir de 1931, Suslov caiu nas graças de Stalin após participar de expurgos bem sucedidos nos Montes Urais e na Ucrânia durante aquela década. Ascende rapidamente na hierarquia até chegar ao Comitê Central em 1941. Em 1944, o PCUS acusa o soviete lituano de "não combater com suficiente zelo os nacionalistas e burgueses na Lituânia". Stalin nomeia Suslov como o chefe da repressão soviética que produz, até 1946, um saldo de 100.000 vítimas políticas, entre execuções, prisões e deportações em massa para gulags na Sibéria. Problem given, problem solved.

Pelo "excelente" trabalho, Stalin premiou o ideólogo com a chefia do importantíssimo Departamento de Agitação e Propaganda (Agitprop) do Comitê Central do PCUS, a Ordem de Lênin e o título de Herói do Trabalho Socialista, destinado geralmente apenas a membros do Presidium. Como diretor do departamento de Agitprop, supervisionava absolutamente TUDO que era divulgado pelo partido e era o seu porta-voz oficial para assuntos doutrinários e políticos.

Rebelião na Hungria, 1956.

Em 1952, é nomeado um dos 11 membros do Politburo, o órgão máximo da URSS. Mesmo sendo um dos quadros mais próximos de Stalin, mantém seu prestígio sob a liderança de Kruschev, pois apoiara o golpe que acabou com o assassinato do odioso Lavrenti Beria. Teve influência decisiva na repressão ao levante húngaro de 1956, tornando-se amigo do embaixador soviético em Budapeste - ninguém menos que Iuri Andropov. Sua relação com o novo presidente soviético se deterioraria ao longo dos anos, por discordar da política de 'desestalinização' e de aproximação com o ocidente. Suslov também culpou Kruschev pela piora nas relações com a China comunista.

Ajudou, então, a articular o golpe bem sucedido que colocaria Brejnev na presidência, chegando ao apogeu de seu poder e influência. É descrito como o "número 2" da hierarquia, mas na prática é o número 1. Leonid Brejnev não gostava de se ocupar com assuntos de grande complexidade, e por isso Suslov foi ocupando espaços privativos do presidente. Participa de todas as decisões importantes, quando não as toma diretamente.

O Secretário Geral do PCUS, Leonid Brezhnev, e o Secretário do Comitê Central do PCUS, Mikhail Suslov, preparam-se para depositar uma coroa de flores no Monumento a Lênin, 1967.

O problema é que ele envelhece, e as estruturas de poder soviéticas envelhecem junto. No final dos anos 1970, quando Suslov já caminhava para se tornar um octogenário, a alta burocracia soviética era na verdade uma gerontocracia. Ele e Brejnev morrem em 1982, e até 1985 mais três membros do Politburo e Secretários-Gerais - Andropov, Chernenko e Gromyko - baixam à sepultura. Sua vontade férrea na defesa de um modelo estalinista a todo custo levam o bloco soviético ao empobrecimento e a disputas infrutíferas com o ocidente, as quais desgastariam o controle do Partido sobre as demais repúblicas.

A União Soviética envelheceu na mesma medida que Mikhail Suslov, sua personificação quase-anônima. Gorbachov foi uma injeção de juventude e novas idéias que veio tarde demais para mudar o destino daquele poder já decrépito. A morte formal da URSS se deu em 1991, mas não seria exagero afirmar que, em certo sentido, a 'morte espiritual' daquele império socialista se deu em 25 de janeiro de 1982.

Tumba de Mikhail Suslov na Necrópole da Parede do Kremlin.

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