quinta-feira, 10 de março de 2022

VDV: A polícia de choque glorificada da Rússia


Por Kamil GaleevTwitter, 10 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 10 de março de 2022.

Resumo: Os paraquedistas de "elite" são policiais de choque glorificados. Eles foram usados como tropas aerotransportadas apenas na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968. Na Ucrânia em 2022 eles esperavam desbaratar um motim, mas enfrentaram um exército regular e foram destruídos.

Como vai a guerra na Ucrânia? Hoje eles confirmaram a morte do major-general russo Suhovetsky. Ele é sem surpresa um paraquedista. Então, vamos discutir o papel dos paraquedistas na doutrina militar russa. Isso lançará uma luz sobre o curso desta guerra e por que a Rússia a perdeu.🧵

Major-General Andrei Sukhovetskiy.

Os paraquedistas têm um status mais lendário do que qualquer outra tropa na Rússia. Eles são uma força de elite que compõem a Reserva do Alto Comando Supremo. Eles devem liderar a ofensiva, sendo lançados atrás das linhas inimigas e mantendo o terreno antes que o resto do exército chegue.


Exceto que eles não são usados dessa maneira. Se você olhar para esta foto você vai entender o porquê. É muito fácil atirar em todos eles no ar antes que eles atinjam o chão. É por isso que em praticamente todos os conflitos - Afeganistão, Karabakh, Geórgia, Chechênia - eles foram usados como infantaria regular.

Desde a Segunda Guerra Mundial, houve apenas três casos em que os paraquedistas russos foram lançados sobre o inimigo pelo ar:

  • Hungria, 1956
  • Tchecoslováquia, 1968
  • Ucrânia, 2022

Portanto, os paraquedistas agem como paraquedistas apenas quando não esperam resistência de outro exército regular.


Os paraquedistas não são tão fortes. O poder de fogo de um regimento de paraquedistas de "elite" é muito mais fraco do que o de um regimento de infantaria "não-elite" regular. Eles não podem derrotar um exército. Mas eles não deveriam lutar contra um exército. Eles devem suprimir motins e rebeliões.


Todo o conceito dos paraquedistas russos do VDV faz todo o sentido se considerarmos que eles não são tanto soldados quanto a polícia de choque. Eles não precisam lutar contra outros exércitos regulares, eles precisam reprimir motins e protestos desorganizados.


Como os paraquedistas são as tropas de choque do regime, eles precisam parecer assustadores para assustar qualquer amotinado. Todo o seu status lendário é uma enorme Psyop (operação psicológica). Isso não é segredo, forças muito bem treinadas como as do GRU consideram esses caras fraudadores.



Por esta razão, os paraquedistas absolutamente precisam ser muito altos. A aptidão física não é suficiente, você precisa ser muito grande. Por quê? Porque eles precisam ser assustadores. Porque seu armamento principal é puramente psicológico. As pessoas deveriam ver esses caras grandes e perceber que a resistência não tem sentido.

Daí todo o status "lendário", mitologia e iconografia bem desenvolvidas. Não há outras tropas com simbologia tão desenvolvida tais como os paraquedistas. Considere este exemplo onde Elias, o Profeta, recebe uma boina de paraquedista azul.


Toneladas de músicas, visuais, etc. são dedicados aos paraquedistas, mais do que a qualquer outra tropa. Por quê? Novamente, porque VDV são tropas psyop e são impotentes sem uma mitologia completamente desenvolvida. Assim, o governo investe fortemente na construção dessa mitologia.


2 de agosto é o dia do VDV. Então, todos os anos, ex-paraquedistas (ou quem decidiu usar a camiseta e a boina azul claras) pulam nas fontes públicas.


... assediar civis.


... e a polícia. Pessoas comuns (ou soldados) receberiam longas penas de prisão por espancarem os policiais. Mas não os paraquedistas. Eles são tropas de choque do regime e o regime vai manter seu status de fodão. Eles são tão fodas porque eles têm total apoio do Estado.


É por isso que os paraquedistas de "elite" compõem a Reserva do Alto Comando Supremo. Não é uma reserva para uma grande guerra. Não. É uma reserva para reprimir motins na Rússia ou em países vizinhos. E isso é feito em grande parte através de psyops. Assim, eles trabalham duro para parecerem assustadores.


Quando a Rússia decidiu reprimir a insurreição no Cazaquistão no ano passado, enviou para lá sua glorificada polícia de choque - os paraquedistas. Vê as listras azuis claras em seus coletes? Apenas o VDV as usa.


Sejamos honestos, o Kremlin vê a Ucrânia como uma província rebelde. A própria existência deste país é um motim. E se você precisa reprimir um motim, você manda a polícia de choque. Então Putin enviou paraquedistas e eles foram completamente desbaratados; porque eles não esperavam uma resistência organizada.

Os paraquedistas russos foram usados como paraquedistas apenas durante a repressão da "revolta fascista" na Hungria em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968. Por quê? Porque eles sabiam que não iriam enfrentar outro exército regular lá. Para que eles possam desencadear seu psyop sem temer as consequências.


Quando Putin invadiu a Ucrânia, ele pensou que estava reprimindo mais um motim no Leste Europeu. E enviou sua tropa de choque esperando que o exército ucraniano fugisse ou se rendesse. Mas isso não aconteceu. E uma vez que isso não aconteceu, toda a sua operação especial modelada no Redemoinho de 1956 ou o Danúbio de 1968 falhou.

Os paraquedistas deveriam assumir o controle das principais cidades e aglomerações logísticas, para que a ocupação do país pelo exército ocorresse sem problemas. Mas o exército ucraniano abriu fogo e eles falharam. E depois desse fracasso inicial, todo o plano foi quebrado.


O exemplo mais dramático desse fracasso foram os veículos russos presos na lama do início da primavera. Você vê que eles estão tentando colocar troncos de árvores sob suas rodas para desatolá-os. Parece bom, não funciona.


Putin esperava que o exército ucraniano se rendesse. Inesperadamente, não apenas o exército, mas até mesmo civis comuns a quem o governo deu armas começaram a atacar as linhas de suprimentos russas. A Rússia não planejou a guerra e simplesmente avançou com apenas um escalão do exército, então as linhas de suprimentos ficaram desprotegidas.
Como resultado, as colunas que avançaram ficaram sem combustível e simplesmente ficaram atolados nas estradas e nos campos. Essa é a explicação mais plausível para esta coluna russa simplesmente ficar em campo e ser filmada por civis.

A Blitzkrieg de Putin falhou porque não era uma Blitzkrieg. Blitzkrieg é uma operação de guerra contra um inimigo que luta. Mas a Rússia lançou uma operação especial esperando que os ucranianos se rendessem. É por isso que eles enviaram sua polícia de choque glorificada. Claro, eles foram batidos.


Eles enviaram apenas um escalão de tropas por terra. Eles queriam ocupar um país indefeso e não se importaram em cobrir suas linhas de abastecimento. Claro que eles foram cortados e agora milhares de veículos russos estão atolados sem combustível.

O plano de Putin falhou e é por isso que ele começou a escalar a violência. Aqui você vê um dormitório estudantil da universidade de Kharkiv após um bombardeio russo.

Ou bairros residenciais de Kiev.

A única questão é se os ucranianos serão capazes de se manter firmes até o iminente colapso econômico da Rússia. Vai acontecer muito mais cedo do que a maioria espera, vou escrever sobre isso amanhã de uma forma mais detalhada. De qualquer forma, o plano de Putin de uma operação especial falhou.

Ela falhou por dois motivos. Em primeiro lugar, depois de 2014, os ucranianos reconstruíram seu exército e seu Estado para o confronto iminente com a Rússia. Em segundo lugar, quando a Rússia finalmente atacou, os ucranianos não se caíram numa psyop vazia e não ficaram com medo. E se você não tem medo, psyop não funciona. Fim do tópico.🧵

ARTE MILITAR: Santa Javelin-chan

Santa Javelin da Ucrânia,
por Grzegorz1996.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 10 de março de 2022.

Versão mangá da Santa Javelin, protetora da Ucrânia, pelo artista Grzegorz1996 (link para o site da Artstation). A auréola contém a inscrição Slava Ukraini (Glória à Ucrânia).

Mangá é um estilo de desenho japonês, com os olhos grandes e expressivos. Esse tipo de estilo prima pelo detalhe e boa aparência dos ambientes e personagens.

Da Wikipedia:

"Metáforas visuais são usadas ​​para simbolizar o estado emocional ou físico de um protagonista. Os personagens têm, frequentemente,olhos grandes , o que reforça a expressividade do rosto. A surpresa é muitas vezes traduzido pela queda do personagem. Os olhos grandes tem sua origem em capas de revistas shoujo de Junichi Nakahara e na influência da Walt Disney Pictures no estilo de Osamu Tezuka. No mangá, é comum o uso de numerosas linhas paralelas para representar o movimento."

A palavra "mangá" vem da palavra japonesa 漫画, (katakana: マンガ; hiragana: まんが) composto pelos dois kanji 漫 (homem) que significa "extravagante ou improvisado" e 画 (ga) que significa "imagens". O mesmo termo é a raiz da palavra coreana para quadrinhos, "manhwa", e a palavra chinesa "manhua".


Leitura recomendada:

Uma coluna russa foi emboscada e destruída, o comandante regimental morreu

Explosão na vanguarda da coluna.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 10 de março de 2022.

Hoje cedo, 10 de março, foi liberado um vídeo gravado por drone mostrando uma coluna blindada russa sendo engarrafada e destruída por uma combinação de artilharia e disparos diretos de tanques aguardando em emboscada. A ação foi compartilhada nas redes sociais imediatamente.

"Incrível vídeo de drone de uma emboscada de uma coluna de tanques russos supostamente do 6º regimento perto da região de Brovary, oblast de Kiev. O áudio parece ser uma interceptação de um oficial russo chamando superiores para relatar a emboscada e morte do comandante do regimento."
O vídeo tem a marca d'água Азов (Azov) e mostra os arredores da emboscada, incluindo tanques em diferentes locais. A perda do comandante regimental foi mais uma ocasião embaraçosa para o Exército Russo, que já perdeu 3 generais desde o início da invasão.

A identidade do comandante foi confirmada como sendo o Coronel Andrei Zakharov.

"Coronel Andrei Zakharov, comandante de um regimento de tanques russo, foi eliminado pelas AFU no distrito de Brovary, na região de Kiev.
Ele recebeu a Ordem da Coragem das mãos de Vladimir Putin em 2016, conforme noticiado pela mídia ucraniana."

Esse vídeo com melhor qualidade permite uma melhor identificação dos veículos.

Os veículos vão sendo alvejados durante a ação enquanto a comunicação russa via rádio é interceptada.

  • Soldado 1: Nitro, aqui é Udar. Câmbio.
  • Soldado 2: Udar, aqui é Nitro. 6º Regimento perdido.
  • Soldado 1: O quê?
  • Soldado 2: Não posso informar sobre o 6º Regimento. Estou coletando dados. Muitas perdas. Eles esperaram por nós. O chefe do comboio entrou na emboscada. Comandante do regimento morto em ação. Classificando sobre o resto.
  • Soldado 1: Assim que você resolver as coisas, informe-me. Entendido?
  • Soldado 2: ...Tanques e artilharia estavam bombardeando de lá. Drones, de Bayraktar, pelo que entendi. Estou resolvendo as outras perdas.

As imagens dão uma vista aérea perfeita da ação, com a vanguarda da coluna sendo atacada primeiro, parando os veículos. Então uma explosão na retaguarda engarrafa os blindados. Alguns tiros ocorrem e um certo número de veículos consegue recuar da emboscada.

Um tanque na beirada da rua.

Explosão na retaguarda da coluna.

Dois homens são visíveis segundos antes no local da explosão.

O equipamento usado pela coluna é notavelmente antigo, com as fotos mostrando carros de combate T-72A da era soviética sendo empregados. O material arcaico vem chocando os observadores, com muitos se perguntando por onde andam as "armas fantásticas" noticiadas à exaustão pela mídia russa nos últimos 20 anos.

T-72A destruído na emboscada.

Inicialmente identificado como um T-72AV, por si só bem antigo, a inspeção subsequente mostrou trata-se de um modelo A, ainda mais antigo, equipado com um pacote DIY Kontakt-1 de blindagem reativa explosiva (Explosive Reactive ArmourERA).

Aos 27 segundos, um lançador russo no meio do comboio faz um disparo.

Momento do disparo.

Trata-se de um lançador múltiplo de foguetes BM-1 armados com foguetes TOS-1A termobáricos.

Os ucranianos também filmaram os resultados da emboscada depois que os russos recuaram.

O local da emboscada foi confirmado por satélite como ocorrido em Bovary, com os pontos de referência marcados.


Os pontos de referência foram examinados pelo Google Earth.

As imagens foram analisadas e notou-se que é a primeira vez que um Grupo Tático de Batalhão russo (Battlegroup, BTG / Батальонная тактическая группа, batal'onnaya takticheskaya gruppa) operando como deveria em nível tático; embora a execução deixe muito à desejar. A unidade russa foi estimada como sendo do 36º ou 41º Exército de Armas Combinadas (Combined Arms ArmyCAA).

A área vermelha mostra o ataque de artilharia.
Material listado indica companhias de BMP-1, T-72 e BTR-82.
O TOS-1 Buratino é visível no canto inferior direito.

A presença dos lançadores TOS-1A é uma novidade, e um tanto preocupante. Os russos atravessaram pela Bielo-Rússia e pretendem posicionar a artilharia no perímetro de Kiev para achatar a cidade com bombardeios indiscriminados. Nos últimos dias, os russos passaram a mirar civis de forma proposital.

BM-1 TOS-1A com a marcação do círculo, designação a procedência como a Bielo-Rússia.

"Os russos nem se preocuparam em desligar as câmeras no posto de fronteira ucraniano, para que o mundo inteiro possa assistir seus tanques entrarem na Ucrânia pelo lado da Bielorrússia."

Os russos têm um sistema de letras - com a letra "Z" tornando-se um símbolo nacional - e estes estão indicados na tabela abaixo.


  • Distrito Militar Oriental: Z
  • Forças da Criméia: Z (dentro de um quadrado)
  • Forças da Bielo-Rússia: O
  • Infantaria Naval: V
  • Chechenos de Kadyrov: X
  • Grupo Alfa de forças especiais: A
Conforme os russos tentam fechar o cerco a Kiev, suas linhas de suprimentos continuam sobre-extendidas. Os ucranianos e os voluntários estrangeiros continuam escaramuçando as linhas desprotegidas do Exército Russo e impedindo que o poder de fogo russo seja desdobrado em força. Resta saber até quando isso vai durar.

E se a Rússia perder? Uma derrota para Moscou não será uma vitória clara para o Ocidente

Por Liana Fix e Michael Kimmage, Foreign Affairs, 4 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 9 de março de 2022.

[Esse artigo é uma análise em duas partes. A outra pode ser lida aqui.]

O presidente russo, Vladimir Putin, cometeu um erro estratégico ao invadir a Ucrânia. Ele julgou mal o teor político do país, que não estava esperando para ser libertado pelos soldados russos. Ele julgou mal os Estados Unidos, a União Européia e vários países - incluindo Austrália, Japão, Cingapura e Coréia do Sul - todos os quais eram capazes de ação coletiva antes da guerra e todos agora estão empenhados na derrota da Rússia na Ucrânia. Os Estados Unidos e seus aliados e parceiros estão impondo altos custos a Moscou. Toda guerra é uma batalha pela opinião pública, e a guerra de Putin na Ucrânia – em uma era de imagens da mídia de massa – associou a Rússia a um ataque não provocado a um vizinho pacífico, ao sofrimento humanitário em massa e a múltiplos crimes de guerra. A cada passo, a indignação resultante será um obstáculo para a política externa russa no futuro.

Protestando contra a guerra em Helsinque, Finlândia, março de 2022.

Não menos significativo do que o erro estratégico de Putin foram os erros táticos do exército russo. Tendo em conta os desafios da avaliação nos estágios iniciais de uma guerra, pode-se dizer com certeza que o planejamento e a logística russos foram inadequados e que a falta de informação dada aos soldados e até mesmo aos oficiais nos escalões superiores foi devastadora para o moral. A guerra deveria terminar rapidamente, com um relâmpago que decapitaria o governo ucraniano ou o obrigaria a se render, após o que Moscou imporia neutralidade à Ucrânia ou estabeleceria uma suserania russa sobre o país. Violência mínima pode ter igualado sanções mínimas. Se o governo tivesse caído rapidamente, Putin poderia ter alegado que estava certo o tempo todo: porque a Ucrânia não estava disposta ou capaz de se defender, não era um país real – exatamente como ele havia dito.

Mas Putin será incapaz de vencer esta guerra em seus termos preferidos. De fato, existem várias maneiras pelas quais ele poderia perder. Ele poderia atolar seus militares em uma ocupação dispendiosa e fútil da Ucrânia, dizimando o moral dos soldados da Rússia, consumindo recursos e entregando nada em troca, mas o anel vazio da grandeza russa e um país vizinho reduzido à pobreza e ao caos. Ele poderia criar algum grau de controle sobre partes do leste e sul da Ucrânia e provavelmente Kiev, enquanto lutava contra uma insurgência ucraniana operando a partir do oeste e se engajando em guerrilhas em todo o país – um cenário que seria uma reminiscência da guerra partisan que ocorreu em Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, ele presidiria a gradual degradação econômica da Rússia, seu crescente isolamento e sua crescente incapacidade de suprir a riqueza de que dependem as grandes potências. E, consequentemente, Putin pode perder o apoio do povo e das elites russas, de quem ele depende para continuar a guerra e manter seu poder, mesmo que a Rússia não seja uma democracia.

Ilustração de um assalto à baioneta na Guerra Russo-Japonesa 1904-05.

Putin parece estar tentando restabelecer alguma forma de imperialismo russo. Mas ao fazer essa aposta extraordinária, ele parece não ter se lembrado dos eventos que desencadearam o fim do império russo. O último czar russo, Nicolau II, perdeu uma guerra contra o Japão em 1905. Mais tarde, ele foi vítima da Revolução Bolchevique, perdendo não apenas sua coroa, mas sua vida. A lição: governantes autocráticos não podem perder guerras e permanecer autocratas.

Nesta guerra, não há vencedores

É improvável que Putin perca a guerra na Ucrânia no campo de batalha. Mas ele pode perder quando a luta terminar e a pergunta se tornar: E agora? As consequências não intencionais e subestimadas desta guerra sem sentido serão difíceis para a Rússia suportar. E a falta de planejamento político para o dia seguinte – comparável aos fracassos de planejamento da invasão do Iraque pelos EUA – fará sua parte para tornar esta guerra invencível.

A Ucrânia não poderá fazer recuar os militares russos em solo ucraniano. As forças armadas russas estão em outra liga daquela da Ucrânia, e a Rússia é, obviamente, uma potência nuclear, enquanto a Ucrânia não é. Até agora, os militares ucranianos lutaram com determinação e habilidade admiráveis, mas o verdadeiro obstáculo aos avanços russos tem sido a própria natureza da guerra. Por meio de bombardeios aéreos e ataques de mísseis, a Rússia poderia nivelar as cidades da Ucrânia, alcançando assim o domínio sobre o espaço de batalha. Poderia tentar um uso em pequena escala de armas nucleares com o mesmo efeito. Caso Putin tome essa decisão, não há nada no sistema russo que possa detê-lo. “Eles fizeram um deserto”, escreveu o historiador romano Tácito sobre as táticas de guerra de Roma, atribuindo as palavras ao líder de guerra britânico Calgacus, “e chamaram isso de paz”. Essa é uma opção para Putin na Ucrânia.

Paraquedistas franceses contendo uma manifestação civil em Argel.

Mesmo assim, ele não seria capaz de simplesmente se afastar do deserto. Putin travou uma guerra por causa de uma zona-tampão controlada pela Rússia entre ele e a ordem de segurança liderada pelos EUA na Europa. Ele não poderia evitar erigir uma estrutura política para atingir seus objetivos e manter algum grau de ordem na Ucrânia. Mas a população ucraniana já demonstrou que não deseja ser ocupada. Resistirá ferozmente – por meio de atos diários de resistência e por meio de uma insurgência na Ucrânia ou contra um regime fantoche do leste da Ucrânia estabelecido pelo exército russo. A analogia da guerra da Argélia de 1954-62 contra a França vem à mente. A França era o poder militar superior. No entanto, os argelinos encontraram maneiras de exaurir o exército francês e minar o apoio em Paris para a guerra.

Ocupar a Ucrânia seria incalculavelmente caro.

Talvez Putin possa montar um governo fantoche com Kiev como capital, uma Ucrânia de Vichy. Talvez ele possa reunir o apoio necessário da polícia secreta para subjugar a população desta colônia russa. A Bielorrússia é um exemplo de país que segue um regime autocrático, repressão policial e o apoio dos militares russos. É um modelo possível para uma Ucrânia oriental governada pela Rússia. Na realidade, porém, é um modelo apenas no papel. Uma Ucrânia russificada pode existir como uma fantasia administrativa em Moscou, e os governos certamente são capazes de agir de acordo com suas fantasias administrativas. Mas nunca poderia funcionar na prática, devido ao tamanho da Ucrânia e à história recente do país.

Em seus discursos sobre a Ucrânia, Putin parece perdido em meados do século XX. Ele está preocupado com o nacionalismo germanófilo ucraniano da década de 1940. Daí suas muitas referências aos nazistas ucranianos e seu objetivo declarado de “desnazificar” a Ucrânia. A Ucrânia tem elementos políticos de extrema-direita. O que Putin não consegue ver ou ignora, no entanto, é o sentimento muito mais popular e muito mais potente de pertencimento nacional que surgiu na Ucrânia desde que reivindicou a independência da União Soviética em 1991. A resposta militar da Rússia à revolução Maidan de 2014 na Ucrânia, que varreu um governo corrupto pró-Rússia, foi um estímulo adicional a esse sentimento de pertencimento nacional. Desde que a invasão russa começou, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky tem sido perfeito em seus apelos ao nacionalismo ucraniano. Uma ocupação russa expandiria o senso de nacionalidade da política ucraniana, em parte criando muitos mártires para a causa – como a ocupação da Polônia pela Rússia imperial fez no século XIX.

Para funcionar, então, a ocupação teria que ser um empreendimento político maciço, ocorrendo em pelo menos metade do território da Ucrânia. Seria incalculavelmente caro. Talvez Putin tenha em mente algo como o Pacto de Varsóvia, através do qual a União Soviética governou muitos estados-nação europeus diferentes. Isso também era caro - mas não tão caro quanto controlar uma zona de rebelião interna, armada até os dentes por seus muitos parceiros estrangeiros e à procura de qualquer vulnerabilidade russa. Tal esforço drenaria o tesouro da Rússia.

O horror desta guerra vai sair pela culatra em Putin.

Enquanto isso, as sanções que os Estados Unidos e os países europeus impuseram à Rússia resultarão em uma separação da Rússia da economia global. O investimento externo cairá. O capital será muito mais difícil de adquirir. As transferências de tecnologia vão secar. Os mercados fecharão para a Rússia, possivelmente incluindo os mercados de gás e petróleo, cuja venda foi crucial para a modernização da economia russa por Putin. O talento comercial e empresarial sairá da Rússia. O efeito a longo prazo dessas transições é previsível. Como argumentou o historiador Paul Kennedy em A Ascensão e Queda das Grandes Potências, esses países têm a tendência de travar as guerras erradas, de assumir encargos financeiros e, assim, privar-se do crescimento econômico — a força vital de uma grande potência. No caso improvável de que a Rússia pudesse subjugar a Ucrânia, ela também poderia se arruinar no processo.

Uma variável chave nas consequências desta guerra é o público russo. A política externa de Putin foi popular no passado. Na Rússia, a anexação da Crimeia foi muito popular. A assertividade geral de Putin não agrada a todos os russos, mas agrada a muitos. Isso também pode continuar sendo o caso nos primeiros meses da guerra de Putin na Ucrânia. As baixas russas serão lamentadas e também criarão um incentivo, como todas as guerras, para tornar as baixas propositais, para prosseguir com a guerra e a propaganda. Uma tentativa global de isolar a Rússia pode sair pela culatra ao isolar o mundo exterior, deixando os russos basearem sua identidade nacional em queixas e ressentimentos.

Mais provável, porém, é que o horror desta guerra se volte contra Putin. Os russos não foram às ruas para protestar contra os bombardeios russos de Aleppo, na Síria, em 2016 e a catástrofe humanitária que as forças russas incitaram no curso da guerra civil daquele país. Mas a Ucrânia tem um significado totalmente diferente para os russos. Existem milhões de famílias russo-ucranianas interligadas. Os dois países compartilham laços culturais, linguísticos e religiosos. Informações sobre o que está acontecendo na Ucrânia chegarão à Rússia através das mídias sociais e outros canais, refutando a propaganda e desacreditando os propagandistas. Este é um dilema ético que Putin não pode resolver apenas pela repressão. A repressão também pode sair pela culatra por si só. Muitas vezes saiu na história russa: basta perguntar aos soviéticos.

Causa perdida

As consequências de uma perda russa na Ucrânia apresentariam à Europa e aos Estados Unidos desafios fundamentais. Assumindo que a Rússia será forçada a se retirar um dia, reconstruir a Ucrânia, com o objetivo político de recebê-la na UE e na OTAN, será uma tarefa de proporções hercúleas. E o Ocidente não deve falhar novamente com a Ucrânia. Alternativamente, uma forma fraca de controle russo sobre a Ucrânia pode significar uma área fraturada e desestabilizada de combates contínuos com estruturas de governança limitadas ou inexistentes a leste da fronteira da OTAN. A catástrofe humanitária seria diferente de tudo que a Europa viu em décadas.

Não menos preocupante é a perspectiva de uma Rússia enfraquecida e humilhada, abrigando impulsos revanchistas semelhantes aos que apodreceram na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Se Putin mantiver o poder, a Rússia se tornará um Estado pária, uma superpotência rebelde com forças militares convencionais castigadas, mas com seu arsenal nuclear intacto. A culpa e a mancha da guerra na Ucrânia permanecerão com a política russa por décadas; raro é o país que lucra com uma guerra perdida. A futilidade dos custos gastos em uma guerra perdida, o custo humano e o declínio geopolítico definirão o curso da Rússia e da política externa russa por muitos anos, e será muito difícil imaginar uma Rússia liberal emergindo após os horrores desta guerra.

Mesmo que Putin perca o controle sobre a Rússia, é improvável que o país emerja como uma democracia pró-ocidente. Poderia se separar, especialmente no norte do Cáucaso. Ou pode se tornar uma ditadura militar com armas nucleares. Os formuladores de políticas não estariam errados em esperar por uma Rússia melhor e pelo tempo em que uma Rússia pós-Putin pudesse ser genuinamente integrada à Europa; eles devem fazer o que puderem para permitir essa eventualidade, mesmo resistindo à guerra de Putin. Eles seriam tolos, no entanto, de não se prepararem para possibilidades mais sombrias.

A história mostrou que é imensamente difícil construir uma ordem internacional estável com um poder revanchista e humilhado perto de seu centro, especialmente um do tamanho e peso da Rússia. Para fazer isso, o Ocidente teria que adotar uma abordagem de isolamento e contenção contínuos. Manter a Rússia e os Estados Unidos dentro se tornaria a prioridade para a Europa em tal cenário, já que a Europa terá que arcar com o principal ônus de administrar uma Rússia isolada após uma guerra perdida na Ucrânia; Washington, por sua vez, gostaria de finalmente se concentrar na China. A China, por sua vez, poderia tentar fortalecer sua influência sobre uma Rússia enfraquecida – levando exatamente ao tipo de construção de bloco e domínio chinês que o Ocidente queria impedir no início da década de 2020.

Pagar qualquer preço?

Ninguém dentro ou fora da Rússia deve querer que Putin ganhe sua guerra na Ucrânia. É melhor que ele perca. No entanto, uma derrota russa ofereceria poucos motivos para comemoração. Se a Rússia cessasse sua invasão, a violência já infligida à Ucrânia seria um trauma que perduraria por gerações; e a Rússia não cessará sua invasão tão cedo. Os Estados Unidos e a Europa devem se concentrar em explorar os erros de Putin, não apenas fortalecendo a aliança transatlântica e incentivando os europeus a agir em seu desejo há muito articulado de soberania estratégica, mas também transmitindo à China as lições geminadas do fracasso da Rússia: desafiar as normas internacionais , como a soberania dos Estados, vem com custos reais, e o aventureirismo militar enfraquece os países que o praticam.

Se os Estados Unidos e a Europa puderem um dia ajudar a restaurar a soberania ucraniana, e se puderem simultaneamente empurrar a Rússia e a China para um entendimento compartilhado da ordem internacional, o maior erro de Putin se transformará em uma oportunidade para o Ocidente. Mas terá vindo a um preço incrivelmente alto.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Fúria Americana: A verdade sobre as mortes russas na Síria

Sírios em combate em Deir ez-Zor.
(Foto de arquivo)

Por Christoph Reuter, Der Spiegel, 2 de março de 2018.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 9 de março de 2022.

Centenas de soldados russos supostamente morreram em ataques aéreos dos EUA no início de fevereiro. Relatórios do Der Spiegel mostram que os eventos provavelmente foram muito diferentes.

Quando se trata de xingar, o homem não se conteve. "Filho da puta" é o palavrão mais suave que sai da boca do membro da milícia enquanto ele reclama furiosamente sobre o inferno criado pelo ataque aéreo americano de horas de duração a sudeste da cidade de Deir ez-Zor. Mesmo enquanto a fumaça continua subindo de SUV queimados ao redor deles, ele e cinco outros homens vieram para remover o corpo estilhaçado de um de seus companheiros combatentes das brasas incandescentes de um prédio bombardeado.

A cena vem de um vídeo de dois minutos do campo de batalha que um dos combatentes fez na tarde de 8 de fevereiro, horas após a tempestade de fogo, e fornecido ao DER SPIEGEL e ao Eufrates Post, um site de notícias que faz cobertura da região. É a primeira documentação fotográfica de uma das batalhas mais misteriosas ainda nesta guerra cada vez mais complexa.

Inicialmente, os militares dos Estados Unidos anunciaram em 8 de fevereiro que haviam atacado "forças pró-regime" de Bashar al-Assad a sudeste da cidade de Deir ez-Zor, para evitar um ataque a uma base pertencente às Forças Democráticas Sírias (FDS) lideradas pelos curdos, que são aliados dos americanos. Os EUA disseram que as forças pró-Assad atacaram a base das FDS com tanques e morteiros. Os EUA revidaram em resposta, alegando ter matado "mais de 100" dos combatentes no que foi descrito como um ato de legítima defesa.

As seguintes cenas de vídeo do local após o ataque aéreo americano em Deir ez-Zor:


Mas quem eram exatamente esses atacantes? E o que realmente aconteceu naquela noite nas pequenas aldeias meio desertas na margem leste do rio Eufrates? As bombas americanas dizimaram as tropas russas? Poderia o ataque ser um presságio de escaramuças entre americanos e russos?

Abaixo: A primeira tentativa de cruzamento da ponte.
Acima: A segunda tentativa de cruzamento da ponte. 

Uma equipe de jornalistas do DER SPIEGEL passou duas semanas entrevistando testemunhas e participantes da batalha. A equipe também conversou com um membro da equipe do único hospital em Deir ez-Zor, bem como com um funcionário do aeroporto militar local, na tentativa de obter uma imagem clara do que aconteceu durante a batalha de três dias.

Os relatos se corroboram amplamente entre si e a imagem dos eventos que surge é uma contradição com o que foi noticiado na mídia russa e internacional.

Às 5 da manhã de 7 de fevereiro, cerca de 250 combatentes ao sul de Deir ez-Zor tentaram cruzar a margem oeste do Eufrates para o leste usando uma ponte de pontão militar. Eles incluíam membros das milícias de duas tribos, os Bekara e os Albo Hamad, que lutam pelo regime de Assad com apoio iraniano, soldados da 4ª Divisão, bem como combatentes afegãos e iraquianos das brigadas Fatimyoun e Zainabiyoun, que estão sob o comando iraniano. Um soldado da 4ª Divisão contou que as unidades passaram uma semana reunidas na propriedade do aeroporto militar. Testemunhas dizem que nenhum mercenário russo participou da tentativa de travessia.

Os americanos e os russos concordaram no ano passado em fazer do rio Eufrates uma linha de "desconflito". As tropas de Assad e seus aliados estão a oeste do rio, enquanto o lado leste é controlado pelas FDS sob a proteção dos americanos. O lado leste abriga uma cadeia de campos produtivos de gás natural geralmente conhecidos como o campo Conoco.

Como tal, os americanos nas margens orientais viram o avanço como um ataque e dispararam uma série de tiros de advertência em direção à ponte. Ninguém ficou ferido e os atacantes se retiraram.

Mas eles não desistiram. Muito depois do anoitecer, cerca de duas vezes mais homens dos mesmos grupos cruzaram outra ponte improvisada alguns quilômetros ao norte, perto do aeroporto militar de Deir ez-Zor. Eles dirigiram sem as luzes acesas para evitar que os drones americanos os detectassem. Desta vez, sem serem detectados, eles chegaram à vila de Marrat, no lado leste. Quando avançaram mais ao sul por volta das 22h, em direção à base das FDS em Khusham, os americanos, cujas forças especiais também estavam estacionadas lá, mais uma vez abriram fogo. E desta vez não eram tiros de advertência. Os EUA disseram em uma declaração dada à CNN que depois de "20 a 30 tiros de artilharia e tanques caíram a 500 metros" do posto de comando das FDS, as forças da coalizão "atacaram os agressores com uma combinação de ataques aéreos e de artilharia".

Isso estava colocando as coisas suavemente. Porque mais ou menos na mesma hora naquela noite, outro grupo de membros da milícia tribal síria e combatentes xiitas veio da aldeia de Tabiya, ao sul, e também atacou a base das FDS. E os americanos contra-atacaram com todo o seu arsenal destrutivo. Eles desdobraram drones equipados com foguetes, helicópteros de combate, aeronaves pesadas AC 130, apelidadas de "barcos canhoneiros", para disparar contra alvos no solo, foguetes e artilharia terrestre.

Eles atacaram durante a noite, seguidos por um ataque na manhã seguinte a um grupo com uma milícia tribal em Tabiya que veio apenas para recuperar os corpos. E em 9 de fevereiro, eles mais uma vez atacaram uma unidade dos mesmos combatentes que surgiram no lado leste do rio.

Uma versão diferente dos eventos

Foi principalmente o segundo ataque noturno da aldeia de Tabiya que desencadeou o paroxismo americano, disseram dois homens pertencentes à milícia al-Baqir da tribo Bekara. Porque além da linha de desconflito, havia também um segundo acordo que permitia a permanência de até 400 combatentes pró-Assad, que permaneceram no lado leste do Eufrates após a batalha de 2017 contra o Estado Islâmico. Pelo menos enquanto não fossem mais de 400 deles e permanecessem em paz. Mas exatamente isso não era mais o caso.

Entre os estacionados em Tabiya estava um pequeno contingente de mercenários russos. Mas as duas fontes da milícia disseram que não participaram dos combates. Ainda assim, eles disseram, 10 a 20 deles de fato perderam suas vidas. Eles disseram que um total de mais de 200 dos agressores morreram, incluindo cerca de 80 soldados sírios da 4ª Divisão, cerca de 100 iraquianos e afegãos e cerca de 70 combatentes tribais, principalmente da milícia al-Baqir.

Tudo aconteceu à noite, e a situação ficou extremamente complicada quando os combatentes de Tabiya entraram na briga. Um funcionário do único grande hospital em Deir ez-Zor diria mais tarde que cerca de uma dúzia de corpos russos foram entregues. Enquanto isso, um funcionário do aeroporto testemunhou a entrega dos corpos em duas picapes Toyota para uma aeronave de transporte russa que então vôou para Qamishli, um aeroporto perto da fronteira com a Síria, no norte.

Mercenários do Grupo Wagner na Síria.

Nos dias que se seguiram, as identidades dos russos mortos seriam reveladas - primeiro de seis e, finalmente, nove. Oito foram verificados pela Equipe de Inteligência de Conflitos, plataforma investigativa russa, e outro foi divulgado pela rádio Echo Moscou. Todos eram funcionários da empresa mercenária privada Evro Polis, muitas vezes referida pelo nome de guerra de seu chefe: "Wagner".

Ao mesmo tempo, no entanto, uma versão completamente diferente dos eventos ganhou força - disseminada inicialmente por nacionalistas russos como Igor "Strelkov" Girkin e depois por outros associados à unidade Wagner. De acordo com esses relatos, muitos mais russos foram mortos na batalha - 100, 200, 300 ou até 600. Uma unidade inteira, dizia-se, foi exterminada e o Kremlin queria encobri-la. Gravações de supostos combatentes apareceram aparentemente confirmando essas perdas horríveis.

Era uma versão que soava tão plausível que até agências de notícias ocidentais como Reuters e Bloomberg a pegaram. O fato de que o governo em Moscou a princípio não quis confirmar nenhuma morte e depois falou de cinco "cidadãos russos" mortos e depois, de forma nebulosa, de "dezenas de feridos", alguns dos quais morreram, só parecia tornar o versão dos eventos parecem mais credíveis. Afinal, geralmente tem sido o caso que, quando algo na guerra síria é negado pelo Kremlin, ou quando os russos o admitem pouco a pouco, provavelmente está correto. Além disso, as perdas russas na Síria são constantemente minimizadas.

"A má sorte de estar no lugar errado na hora errada"

As relações entre os mercenários russos na Síria - acredita-se que existam mais de 2.000 deles - e o governo em Moscou estão tensas há algum tempo. Os combatentes alegam que estão sendo usados como bucha de canhão, estão sendo mantidos em silêncio e são mal pagos. Para eles agora acusar o Kremlin de tentar encobrir o fato de que os russos foram mortos - pelos americanos, de todas as pessoas - atinge o governo do presidente Vladimir Putin em um ponto fraco: sua credibilidade.

As únicas fontes verificáveis para a dizimação de centenas de russos são as fotos e vídeos que circulam na internet ou de fontes russas que são repassadas aos jornalistas ocidentais. Alguns deles mostram imagens do leste da Ucrânia que mais tarde foram adulteradas ou até mesmo a versão demo de um vídeo game que Putin mostrou pessoalmente ao diretor de Hollywood Oliver Stone como suposta prova de um ataque russo a um comboio do EI.

A situação no terreno entre Khusham e Tabiya, na margem oriental do Eufrates, descrita por meia dúzia de testemunhas e pessoas que participaram nos acontecimentos, não confirma a participação dos mercenários russos no ataque ou mesmo que eles se tenham juntado aos combates. Ahmad Ramadan, o jornalista que fundou o Eufrates Post e desde então emigrou para a Turquia, vem de Tabiya. Um de seus contatos luta pela milícia al-Baqir e gravou o vídeo no local dos bombardeios. "Se tivesse sido um ataque russo, com muitos russos mortos, teríamos relatado sobre isso", disse ele. "Mas não foi. Os russos em Tabiya tiveram o azar de estar no lugar errado na hora errada."

O Pentágono rejeita que países da OTAN forneçam jatos para a Ucrânia

Um oficial militar está passando entre a aeronave MiG-29 da Bulgária e a aeronave espanhola Eurofighter EF-2000 Typhoon II e o MiG-29, em Graf Ignatievo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022. Como parte dos esforços unidos dos parceiros da OTAN para reforçar a defesa do flanco leste da Aliança, enquanto as tensões continuam sobre uma possível invasão russa na Ucrânia, a Espanha está enviando caças para a Bulgária para implementar missões conjuntas de policiamento aéreo. (Foto AP/Valentina Petrova)

Por Vanessa Gera e Robert Burns, AP News, 9 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 9 de março de 2022.

VARSÓVIA, Polônia (AP) - O Pentágono bateu a porta na quarta-feira para qualquer plano de fornecer caças MiG para a Ucrânia, mesmo através de um segundo país, chamando-o de empreendimento de "alto risco" que não alteraria significativamente a eficácia da Força Aérea Ucraniana.

O secretário de imprensa do Pentágono, John Kirby, disse a repórteres que o secretário de Defesa, Lloyd Austin, conversou com seu colega polonês na quarta-feira e disse a ele a avaliação dos EUA. Ele disse que os EUA estão buscando outras opções que forneceriam necessidades militares mais críticas para a Ucrânia, como defesa aérea e sistemas de armas anti-blindados.

ARQUIVO - Dois Mig 29 de fabricação russa da Força Aérea Polonesa voam acima e abaixo de dois caças F-16 de fabricação americana da Força Aérea Polonesa durante o Air Show em Radom, na Polônia, em 27 de agosto de 2011. Em uma vídeo-chamada privada com legisladores americanos no fim de semana, o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy fez um apelo “desesperado” aos Estados Unidos para ajudar Kiev a obter mais aviões de guerra para combater a invasão da Rússia e manter o controle de seu espaço aéreo. (Foto AP/Alik Keplicz, Arquivo)

A Polônia havia dito que estava preparada para entregar aviões MiG-29 à OTAN que poderiam ser entregues à Ucrânia, mas Kirby disse que a inteligência dos EUA concluiu que isso poderia ser considerado uma escalada e desencadear uma reação russa “significativa”.

As observações de Kirby foram além de seus comentários em um comunicado na terça-feira, rejeitando a oferta da Polônia de dar caças aos Estados Unidos para transferência para a Ucrânia.

Ele disse que as nações individuais da OTAN podem decidir por si mesmas sobre qual assistência dar à Ucrânia, mas é questionável se alguma delas forneceria caças sem o apoio dos EUA.

Refugiados que fogem da guerra na vizinha Ucrânia passam por barracas depois de cruzarem para Medyka, Polônia, quarta-feira, 9 de março de 2022. (AP Photo/Daniel Cole)

ESTA É UMA ATUALIZAÇÃO DE ÚLTIMAS NOTÍCIAS. A história anterior da AP segue abaixo.

VARSÓVIA, Polônia (AP) - Uma disputa embaraçosa entre os Estados Unidos e a Polônia, aliada da OTAN, está colocando em dúvida as esperanças da Ucrânia de obter os caças MiG que ela diz precisar para se defender contra a invasão da Rússia.


Ninguém quer se destacar sozinho por trás da ação, que pode convidar a retaliação russa.

O governo dos EUA jogou uma batata quente na Polônia com um pedido para enviar caças de fabricação soviética – que os pilotos ucranianos são treinados para voar – para a Ucrânia. A Polônia a devolveu, dizendo que estava preparada para entregar todos os 28 de seus aviões MiG-29 – mas para a OTAN, levando-os para a base dos EUA em Ramstein, na Alemanha.

Esse plano pegou os EUA desprevenidos. No final da terça-feira, o Pentágono o rejeitou como “insustentável”. Na quarta-feira, o secretário de Estado Antony Blinken disse que, em última análise, cada país teria que decidir por si mesmo. Em linguagem diplomática: “A proposta da Polônia mostra que há complexidades que a questão apresenta quando se trata de fornecer assistência de segurança”.

A vice-presidente Kamala Harris chega para embarcar no avião Força Aérea Dois, quarta-feira, 9 de março de 2022, na Base Aérea de Andrews, a madame Harris está iniciando uma viagem à Polônia e à Romênia para reuniões sobre a guerra na Ucrânia. (Saul Loeb/Piscina via AP)

A Ucrânia receberá os aviões? A vice-presidente Kamala Harris estava chegando a Varsóvia na quarta-feira, embora a Casa Branca tenha dito que não negociaria a questão dos aviões. Blinken disse que os EUA estão consultando a Polônia e outros aliados da OTAN. O chefe do Pentágono, Lloyd Austin, e o presidente da Junta de Chefes, general Mark Milley, também consultaram seus colegas poloneses, disse a Casa Branca.

No cenário proposto pela Polônia, caberia a toda a aliança da OTAN, que toma suas decisões por unanimidade, decidir.

A Polônia já está recebendo mais pessoas fugindo da guerra na Ucrânia do que qualquer outra nação no meio da maior crise de refugiados em décadas.

Ela sofreu invasões e ocupações da Rússia durante séculos e ainda teme a Rússia apesar de ser membro da OTAN. Já teve de rivalizar com o território russo de Kaliningrado em sua fronteira nordeste e está desconfortavelmente ciente das tropas russas em outra fronteira, com a Bielo-Rússia.

Em uma visita quarta-feira a Viena, o primeiro-ministro polonês Mateusz Morawiecki insistiu que a Polônia não é parte da guerra da Ucrânia e que qualquer decisão sobre enviar os caças não poderia ser apenas para Varsóvia.

Traz o risco de “cenários muito dramáticos, ainda piores do que aqueles com os quais estamos lidando hoje”, argumentou Morawiecki.

Embora grande e forte, a OTAN também está profundamente preocupada com qualquer ato que possa arrastar seus 30 países membros para uma guerra mais ampla com uma Rússia armada com armas nucleares. Sob a garantia de segurança coletiva da OTAN, um ataque a um membro deve ser considerado um ataque a todos. É a principal razão pela qual os apelos da Ucrânia por uma zona de exclusão aérea ficaram sem resposta. A Ucrânia não é membro da OTAN.

O Secretário-Geral da OTAN, Jens Stoltenberg, elogiou na quarta-feira novamente a bravura do povo e das forças armadas ucranianas diante de um ataque de um adversário muito maior, mas sublinhou que a maior organização de segurança do mundo deve manter sua “decisão dolorosa” de não policiar o céus do país.

Dias antes, o Secretário dos EUA, Blinken, disse que Washington havia dado "luz verde" à ideia de fornecer caças à Ucrânia e estava analisando uma proposta sob a qual a Polônia forneceria a Kiev os caças da era soviética e, por sua vez, receberia os F-16 americanos para compensar a perda.

Michal Baranowski, diretor do escritório de Varsóvia do think tank German Marshall Fund, disse à Associated Press que o governo de Varsóvia “ficou cegado e surpreso” com o pedido público de Blinken.

“Isso foi visto como pressão dos EUA em Varsóvia. E, portanto, a reação foi colocar a bola de volta na quadra do governo dos EUA”, disse Baranowski em entrevista.

Tudo “deveria ter sido tratado nos bastidores”, disse ele.