sexta-feira, 25 de março de 2022

FOTO: A Filha do General

Formandos de um curso de oficiais da Força de Defesa de Israel, 1º de agosto de 1957.
A primeira à direita é Yael Dayan, filha do General Moshe Dayan.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 25 de março de 2022.

Yael Dayan nasceu em Nahalal, atual Israel, durante a era do Mandato Britânico da Palestina em 12 de fevereiro de 1939. Ela era filha do famoso general israelense Moshe Dayan e neta do sionista Shmuel Dayan, ambos pais fundadores do Estado de Israel.

Yael está portando um fuzil Mauser durante a cerimônia, armamento típico da Força de Defesa de Israel de 1948 até a padronização com o FAL nos início dos anos 50, relegando o fuzil a funções cerimoniais. Os israelenses conseguiram muitos fuzis Mauser da FN Herstal, o blog tratou desse assunto aqui.

Na Guerra dos Seis Dias (1967), a Tenente Yael Dayan serviu na unidade de comunicação social do estado-maior da divisão de Arik Sharon e escreveu um diário da sua guerra no Sinai contra os egípcios. Ela publicou cinco romances, bem como uma biografia de seu pai chamada My Father, His Daughter (Meu Pai, Sua Filha). Ela escreveu um livro de memórias da Guerra dos Seis Dias chamado Israel Journal: June 1967 (Diário de Israel: junho de 1967), também intitulado como A Soldier's Diary e traduzido no Brasil como "Diário de um Soldado".

Yael Dayan ao lado do seu pai Moshe Dayan nos dias que antecederam a ofensiva do Sinai, 1967.
O General Moshe Dayan era então o Ministro da Defesa.

Embora ela mesma não tenha entrado em combate, pois esta não era a sua função, ela esteve próxima da ação e observou as operações de perto, ao lado dos militares que comandavam as ações. De particular importância foi a tomada da fortaleza de Umm Qatef em Abu Agheila, a noz dura que ancorava o sistema de defesa egípcio. O exército de Nasser então passou à debandada em pânico em direção ao Canal de Suez, uma catástrofe militar para o Cairo. A tão a
lardeada "Força Shazly", que deveria ter atuado como reserva estratégica, deu as costas e fugiu para o Egito africano ao invés de contra-atacar o rompimento em Umm Qatef-Abu Agheila.

Os egípcios tinham 80 tanques T-34 defendendo a fortificação, e tanques Sherman e Centurion espalhados pelo Sinai. Havia também os pesados tanques IS-3, que eram impermeáveis na blindagem frontal. O Egito ainda possuía os então novíssimos T-55, muito mais modernos que os tanques israelenses. Ainda assim, a manobra e violência da ação dos israelenses nocauteou os árabes. O exército egípcio no Sinai esfacelou-se, com grandes números de soldados zanzando pelo deserto e sendo feitos prisioneiros pelos israelenses. Yael descreve a situação em Nakhl, no centro do deserto do Sinai:

"Nakhl é uma região esquecida por Deus, não obstante possuir abundância de água. Vocês precisavam provar a água! É malcheirosa, enjoativamente adocicada e oleosa. Arik e Dov conheciam Nakhl de trás pra frente pois tinham estado lá na última guerra [1956]. Poucas casas, um acampamento militar, uma colina ou duas em volta, e a estrada para o Passo de Mitla e o Canal que ali faz uma esquina em ângulo reto. Na vez passada, tomáramos a localidade em poucos minutos, antes de avançar para Mitla.

[...]

De súbito, fomos informados pelo rádio de que a Fôrça Aérea ia dar-nos apoio. Paramos o jipe na ladeira e galgamos a parte lateral da colina. Pudemos, então, divisar seis tanques Centuriões egípcios na estrada. Pareciam maciços e bem protegidos, em meio aos demais veículos. Seria tolice expormo-nos, em carros de meia esteira ou jipes, aos canhões dos pesados Centuriões.

[...]

A Fôrça Aérea surgiu no céu azul. Quatro Super Mystères voaram baixo, despejando bombas incendiárias sôbre os tanques [egípcios]. Estávamos todos muito nervosos, com exceção de Dov que, com a maior calma, ficou de pé e filmou tôda a cena, com uma câmera Canon 8 mm. 'Como nas manobras', comentou alguém.

Os aviões mergulharam duas ou três vêzes. Esperei que nos reconhecessem. Seus ataques eram por demais precisos para nos arriscarmos a não ser identificados. Achávamo-nos bem próximos aos alvos. No seu quarto círculo, acenaram Shalon para nós, pendendo as asas. Poucos dias depois, encontrei-me com um dos pilotos - Arik, meu colega de classe em Nahalal. 'Eu sabia que um dia nós dois iríamos trabalhar juntos', disse-me. Quando êles se afastaram pelo nordeste, embarcamos no jipe e dirigimo-nos a tôda velocidade para a estrada abaixo. Aproximamo-nos arriscadamente dos tanques que se incendiavam. Munições explodiam em tôdas as direções.

[...]

De repente, escutamos tiroteio atrás de nós. Alguns dos nossos soldados começaram a trocar disparos de armas de fogo portáteis com soldados egípcios escondidos num arbusto a poucas jardas de distância. Devemos ter tido sorte, pois apenas dez minutos antes passáramos por êsses mesmos arbustos, erguendo uma nuvem protetora de poeira à nossa volta. Arik optou por permitir que seguíssemos a infantaria blindada em sua operação de limpeza até Nakhl. Veículos de meia esteira, jipes russos, tanques incendiavam-se e vomitavam fumaça para onde quer que se olhasse. Viam-se canhões e transportes de tropas blindadas atirados em tôdas as direções e posições. Centenas de soldados egípcios avançavam precipitadamente em direção a Nakhl. Posteriormente, revelaram-nos que imaginavam achar-se em área ainda sob seu domínio. Nossos soldados conclamavam-nos a se renderem. Alguns o fizeram. Outros responderam com um disparo ou uma saraivada - ou fugiram. À minha frente, vi um jovem soldado de um dos nossos veículos de meia esteira matar um egípcio, depois correr para trás do carro blindado e vomitar, logo em seguida refazendo-se e indo juntar-se à sua divisão.

Eu agarrava com firmeza uma metralhadora portátil Uzi. Dov estava ao volante, Katz atrás da metralhadora dianteira e Itzik apontava um canhão automático. Nenhum de nós chegou a disparar. Outros se encarregavam disso, e nos limitamos à observação. Cadáveres estiravam-se pelo caminho, e saltávamos do carro para retirar-lhes as armas. Os adversários de tocaia nos arbustos foram mortos. Grupos de soldados inimigos fugiam nas mais diversas direções. Alguns escaparam. No entanto, não pude afastar o pensamento de que isso era mais uma caçada que um combate. Eu não ia atirar. Os homens nos jipes achavam-se armados e, se fôssemos alvejados diretamente, êles responderiam ao tiroteio. Todavia, minha minha arma permanecia carregada e engatilhada. Meus óculos contra o vento de nada valiam e meus olhos doíam. Além da canícula do meio-dia, havia o calor irradiado pelos veículos em chamas, um inferno em miniatura, odioso e medonho.

Chegamos a Nakhl à tardinha. Ali encontramos mais destruição, destruição total, como sòmente sucede um embate de tanques contra tanques. Era o Vale da Morte do Exército egípcio. Cêrca de cento e cinqüenta tanques foram contados no percursos de Temed a Nakhl. Ninguém contou os veículos, a artilharia pesada, os canhões anti-aéreos leves, os tratores pesados que rebocavam os canhões, os caminhões de munições, todos êles em posições insólitas ou formando pilhas, de modo que muitaas vêzes os destroços assumiam semelhança bizarra com peças de escultura moderna."

- Yael Dayan, Diário de um soldado, pg. 131, 132, 133-135, 1967 (trad. 1970).

Post-script: Suspense militar

O título deste artigo é uma homenagem ao filme A Filha do General (The General's Daughter, 1999), um filme de investigação militar onde o investigador Paul Brenner (John Travolta) ao lado de sua parceira Sara Sunhill (Madeleine Stowe) investigam a misteriosa morte da oficial de guerra psicológica Capitã Elisabeth Campbell (Leslie Stefanson), filha do comandante da base: o General Joe Campbell (James Cromwell).

Outros personagens marcantes sendo o Coronel Bob Moore (James Woods), o oficial comandante e mentor da Capitã Elisabeth Campbell, e o Coronel George Fowler (Clarence Williams III), o leal segundo em comando do General Campbell. Além da investigação e da discussão sobre mulheres no exército em uma época onde este era um conceito novo, o filme ainda apresenta a estética esverdeada dos antigos uniformes BDU americanos.

Recomendação do Warfare.


A Filha do General ainda gerou um filme de suspense e investigações militares, Violação de Conduta (Basic, 2003), dessa vez com John Travolta contracenando com a futura rainha Hipólita, Connie Nielsen, como a investigadora Capitão Júlia Osborne e com o titã Samuel L. Jackson interpretando o implacável Sargento Nathan West.

Leitura recomendada:

quinta-feira, 24 de março de 2022

A vacilante política externa de Xi Jinping: Os perigos do governo do homem-forte

O presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês Xi Jinping em Pequim, fevereiro de 2022.
(Aleksey Druzhinin / Reuters)

Por Jude Blanchette, Foreign Affairs, 16 de março de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 24 de março de 2022.

A guerra na Ucrânia e os perigos do governo do homem-forte.

Independentemente de Pequim ter alertado antecipadamente sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, a decisão do líder chinês Xi Jinping de emitir um comunicado no mês passado descrevendo uma parceria “sem limites” com Moscou foi sem dúvida o maior erro de política externa de seus quase dez anos no poder. O presidente russo, Vladimir Putin, receberá a maior parte da reação por seu ataque não provocado à Ucrânia, mas a declaração pública de Xi, juntamente com o contínuo apoio diplomático de Pequim a Moscou, minou a reputação da China e provocou novas preocupações sobre suas ambições globais. De fato, a intensificação da guerra na Ucrânia já provocou pedidos para que Taiwan melhore suas capacidades de defesa e deu a parcerias de segurança como a OTAN, o Quad e o AUKUS um senso de propósito renovado.

O apoio imprudente de Xi a Moscou às vésperas da desastrosa campanha militar da Rússia não é seu primeiro grande passo em falso na política externa. Sua decisão de retaliar autoridades da UE em março passado, em resposta a sanções por abusos de direitos humanos em Xinjiang, custou a Pequim um acordo de investimento há muito cobiçado com a Europa. Suas ameaças a Taiwan estão aproximando Washington e Taipei e forçando outras potências regionais, como Austrália e Japão, a declarar seu próprio interesse na segurança de Taiwan. E o confronto dos militares chineses em 2020 com o exército indiano no Vale de Galwan galvanizou a opinião da linha dura em Nova Délhi. Esses fracassos crescentes destacam uma tendência cada vez mais evidente: quanto mais poderoso Xi se torna e quanto mais autoridade direta ele exerce sobre a política externa de Pequim, mais adversos são os resultados para os interesses estratégicos de longo prazo da China. Após décadas de manobras relativamente ágeis e eficazes da liderança pós-Mao, Xi levou a política externa a uma nova direção – definida por uma maior tolerância ao atrito com os Estados Unidos, Europa e potências vizinhas e caracterizada por pouco debate interno ou entrada externa. O que está tomando forma é menos a política externa da China do que a de Xi.

Desengajamento de tanques de batalha principais chineses e indianos nas margens sul do passo de Pangong Tso, 10 de fevereiro de 2021.

Com Xi pronto para assumir um terceiro mandato de cinco anos como líder da China no próximo 20º Congresso do Partido, é fundamental que os Estados Unidos e seus aliados entendam não apenas os impulsionadores e os contornos de sua política externa, mas o ecossistema político e burocrático em que ele toma decisões. Como a jogada imprudente de Putin na Ucrânia provou, um líder autocrático cercado por bajuladores e alimentado por queixas históricas e ambições territoriais é uma perspectiva ameaçadora. Xi não é Putin e a China não é a Rússia, mas seria imprudente ignorar os crescentes paralelos.

O Homem-Forte

Dizer que Xi consolidou o poder na China é afirmar o óbvio. Poucos contestam que Xi ocupa uma posição singular dentro do aparato burocrático da China, e é cada vez mais difícil negar que algo semelhante a um culto à personalidade está se desenvolvendo na mídia estatal e em outros canais de propaganda. No entanto, as implicações dessa realidade são insuficientemente apreciadas, especialmente seu impacto no comportamento do partido-Estado chinês.

Considere um padrão que surgiu em sistemas políticos autoritários em que os líderes permanecem no cargo por muito mais tempo do que seus colegas democráticos e com mandato limitado. Quanto mais tempo um líder permanece no poder, mais as instituições estatais perdem sua competência administrativa e independência à medida que evoluem para atender às preferências pessoais desse líder. Rodadas sucessivas de expurgos e promoções moldam o caráter da burocracia, movendo-a incrementalmente na mesma direção da grande visão do líder. O que pode começar como punição formal por oposição explícita à liderança acaba se tornando um clima de autocensura informal à medida que os membros da burocracia passam a entender a inutilidade da dissidência e ficam mais sintonizados com as expectativas tácitas de conformidade. O líder também se torna mais distante e isolado, contando com um grupo cada vez menor de conselheiros de confiança para tomar decisões. A maioria desses indivíduos permanece à mesa porque demonstra lealdade absoluta.

Soldado chinês com uma máscara em Wuhan diante de um retrato de Mao Tsé-tung quando o governo chinês bloqueou o local, 22 de janeiro de 2020.

Esse pequeno círculo, por sua vez, atua como a janela do líder para o mundo, deixando muito dependente da precisão da representação da realidade externa que seus membros optam por fornecer. Um processo de tomada de decisão tão opaco torna difícil para observadores externos interpretarem os sinais da liderança central. Mas ainda mais crucial, torna difícil para os atores desses sistemas autocráticos antecipar e interpretar as ações de seus líderes. O resultado é uma política externa cada vez mais imprevisível, com o líder formulando em segredo decisões precipitadas e o resto da burocracia correndo para se adaptar e responder.

Xi não é Putin e a China não é a Rússia, mas seria imprudente ignorar os crescentes paralelos.

O paralelo óbvio no caso chinês é Mao Tsé-Tung, que supervisionou um tortuoso esvaziamento das instituições políticas e administrativas nascentes da China. A subserviência a Mao definia a burocracia, e as promoções eram baseadas na correção ideológica. Embora outros atores tenham influenciado a política externa de Pequim, notadamente o primeiro-ministro Zhou Enlai, o fator mais importante que moldou o comportamento estratégico da China foi a opinião pessoal de Mao. Mas identificar o domínio de Mao sobre a burocracia chinesa não forneceu, por si só, pistas sobre futuras decisões de política externa. A crença de Mao na luta revolucionária global o levou a apoiar movimentos armados no Sudeste Asiático, e seu senso de realpolitik o levou a normalizar as relações com os Estados Unidos arquicapitalistas apenas alguns anos depois. O ponto-chave da política externa de Mao, como é hoje com a de Xi, era que os observadores externos precisavam estar sintonizados com sua visão de mundo, suas ambições e suas ansiedades para entender, antecipar e sobreviver a seus movimentos.

Xi, claro, não é Mao. Ele não deseja fomentar a revolução global, e sua visão da ordem política doméstica adequada é muito mais conservadora do que a de Mao. Também é importante notar que a oposição interna à política externa cada vez mais nacionalista e belicosa de Xi existe claramente e provavelmente crescerá à medida que suas decisões afetarem os interesses da China. Mas, ao mesmo tempo, há pouco que um possível oponente possa fazer para restringir significativamente Xi – tal é o nível de autoridade política e burocrática esmagadora que ele agora exerce. Seus apoiadores ocupam posições no ápice de todos os centros de poder do Estado, incluindo as forças armadas, o setor de segurança doméstica e a economia estatal. Xi não administra o sistema político da China sozinho, mas, como na Rússia de Putin, a consolidação da autoridade personalizada por um longo período de tempo reformulou os processos de tomada de decisão em favor do titular e de seus assessores. Como resultado, em questões que vão de Taiwan à Ucrânia, todo o sistema político na China aguarda as ordens de Xi. A política externa no período do 20º Congresso do Partido, que vai de 2022 a 2027, será, portanto, impulsionada pela visão subjetiva de Xi dos eventos internacionais e do ecossistema de tomada de decisão cada vez mais isolado que o cerca.

Uma equipe de bajuladores

Como pode ser essa nova era? Em um nível prático, caracterizará a marginalização contínua dos órgãos externos do governo. Considere o Ministério das Relações Exteriores. No papel, o MFA deve ser um canal vital para entender as ações e as intenções da liderança sênior da China em política externa. De fato, é por isso que a coletiva de imprensa diária do MFA foi historicamente vista como importante, pois foi uma das poucas janelas que observadores externos tiveram no pensamento de Pequim.

Na prática, no entanto, o MFA está se esforçando cada vez mais para interpretar os sinais vindos do escritório de Xi, como evidenciado por seus pontos de discussão diários em constante mudança sobre a crise ucraniana. A mesma dinâmica existe dentro do Escritório de Assuntos de Taiwan (Taiwan Affairs Office, TAO), que é, pelo menos no papel, responsável pela política através do Estreito. Tornou-se evidente nos últimos anos que o TAO muitas vezes é pego de surpresa pelas decisões de Xi e fica embaralhado tanto para interpretar quanto para implementar suas políticas. Será importante entender as realidades funcionais dessa marginalização burocrática daqui para frente, pois as declarações do governo chinês nem sempre refletem com precisão as opiniões de Xi. Mais importantes do que as burocracias tradicionais serão os órgãos opacos e secretos, como a Comissão de Segurança Nacional e os vários “pequenos grupos líderes” que Xi comanda.

O círculo de conselheiros de Xi também continuará encolhendo. Embora não seja incomum que os líderes de qualquer sistema político valorizem o conselho de algumas poucas vozes selecionadas, a tomada de decisão eficaz exige que esses conselheiros apresentem pontos de vista conflitantes. Ainda há muito a aprender sobre como Putin passou a acreditar que poderia alcançar uma vitória rápida sobre a Ucrânia, mas os primeiros sinais indicam que seus conselheiros militares o enganaram sobre o verdadeiro estado do exército ucraniano. Este é um lembrete trágico de como as informações precisas são críticas para qualquer organização política, especialmente em sistemas mais fechados e autoritários. Pelo que os analistas entendem, os confidentes de Xi, incluindo Li Zhanshu, Ding Xuexiang e Wang Huning, são atores burocráticos formidáveis, mas não há indicação de que eles desafiem seus julgamentos ou precedentes. E à medida que alguns desses altos funcionários se aposentam, Xi estará cada vez mais cercado por líderes seniores mais jovens, mais inexperientes e mais flexíveis. O que Xi precisa é de uma equipe de rivais. O que ele tem agora e provavelmente terá no futuro é um grupo de puxa-sacos.

A perspectiva de Xi sobre o ambiente de segurança da China na próxima década é cada vez mais pessimista.

Depois, há a questão crítica da visão de mundo de Xi. Está ficando claro em seus discursos e artigos que a visão de Xi sobre o ambiente de segurança da China na próxima década é cada vez mais pessimista. Como disse recentemente, “a situação internacional continua passando por profundas e complexas mudanças”, acrescentando que “o jogo das grandes potências está cada vez mais intenso, [e] o mundo entrou em um novo período de turbulência e mudança”. Os Estados Unidos, acredita Xi, formalizaram uma política de contenção em relação a Pequim. Quando Washington fala em trabalhar com “aliados e parceiros”, Xi ouve ecos do cerco da época da Guerra Fria, decretado por meio do que ele chama de “pequenos círculos exclusivos [e] blocos que polarizam o mundo”. Esse diagnóstico provavelmente levou Xi a se aproximar de Putin e Moscou nos meses que antecederam sua reunião em fevereiro e é por isso que ele não abandonará a Rússia daqui para frente.

A fragata chinesa Weifang é recebida na Cidade do Cabo, na África do Sul, antes do Exercício Marítimo Multinacional de 2019 com as marinhas russa e sul-africana.

Mas não é apenas o pessimismo que anima a visão de mundo de Xi; é um forte senso de nacionalismo, alimentado por sua confiança no poder econômico e militar do Partido Comunista Chinês e sua atitude desdenhosa em relação à coesão e estabilidade dos Estados Unidos e de outras democracias. Embora seja indiscutivelmente verdade que Pequim tenha enfatizado demais uma narrativa do declínio dos EUA para fins de propaganda doméstica, as ações de Xi, no entanto, indicam que ele se sente à vontade para afirmar os interesses de Pequim, mesmo quando eles colidem com as capacidades e determinação dos Estados Unidos e seus aliados. Existem inúmeros exemplos dessa dinâmica, desde a evisceração da China das instituições democráticas de Hong Kong até sua campanha contínua de coerção econômica contra a Austrália. O ponto aqui é menos que Pequim adote essas políticas de confronto sem pagar um preço (o que faz), mas sim que a tolerância ao risco de Xi parece ter crescido em resposta às suas avaliações mutáveis do equilíbrio de poder global.

A combinação de um autocrata irrestrito e nacionalista que abriga uma visão cada vez mais sombria do ambiente externo cria um período potencialmente volátil à frente. A posição da China nos assuntos globais é muito mais importante hoje do que durante a era Mao. O ambiente internacional em que Xi tenta orientar os interesses chineses também é significativamente diferente do que era nas décadas de 1960 e 1970. Sem a relativa previsibilidade da bipolaridade da época da Guerra Fria, a competição hoje é mais complicada e mais difícil de navegar. Para compensar, os Estados Unidos e seus aliados devem priorizar a comunicação direta com Xi para garantir que ideias alternativas perfurem sua bolha de liderança.

Também será fundamental que os líderes de países com ideias semelhantes transmitam mensagens consistentes durante suas próprias interações separadas com a liderança da China. Afinal, uma coisa é Xi descartar Washington como preso em uma “mentalidade da Guerra Fria”, mas outra é ignorar uma ampla coalizão de aliados democráticos. Nas últimas quatro décadas, a China mostrou repetidamente que pode mudar de rumo antes de cortejar o desastre. A questão agora é se pode fazê-lo novamente sob Xi.

Jude Blanchette é Freeman Chair em Estudos da China no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Previsões estranhamente precisas em 2021 sobre a guerra na Ucrânia pelo ex-deputado russo Alexander Nevzorov

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 23 de março de 2022.

No dia 10 de março deste ano, ressurgiu um vídeo de 11 de abril de 2021 mostrando o ex-ministro russo Alexander Nevzorov prevendo uma guerra com a Ucrânia onde os russos seriam humilhados por conta do seu despreparo militar - fruta da incompetência e corrupção do sistema oligárquico russo - e como isso afetaria dramaticamente a política russa. Com uma discursiva de poeta, ele delineia todos os raciocínios e percalços da tal invasão da Ucrânia, assustadoramente precisos com o que realmente transpareceu.

Combatente ucraniano.

Sobre o autor

Alexander Glebovich Nevzorov (em russo: Алекса́ндр Гле́бович Невзо́ров; nascido em 3 de agosto de 1958) é um jornalista de televisão russo e soviético, diretor de cinema e ex-deputado do parlamento russo - a Duma. Ele é o fundador de uma escola de equitação, Nevzorov Haute École.

No final da década de 1980, Alexander Nevzorov apresentou notavelmente o programa de televisão 600 segundos transmitido pelo canal de Petersburgo TV-5. Em 13 de dezembro de 1990, ele foi baleado e ferido por um homem desconhecido que conseguiu atrair o jornalista para uma área deserta nos arredores de Leningrado, alegando possuir os documentos que permitiam algumas revelações "sensacionais".

Durante os eventos de janeiro em Vilnius, Nevzorov filma as forças da OMON atacando a Torre de Vilnius. Ele extrairá dela um documentário Nashi ("Nosso") que elogia os soldados soviéticos e trata os opositores do regime como fanáticos. Sua parcialidade será então criticada pelos democratas russos. Ele também fundou o movimento Nashi em São Petersburgo em 1991, que ele definiu como uma frente única de resistência à política antinacional da administração da Rússia e das outras repúblicas da ex-URSS. Durante os anos de Yeltsin, seu programa se tornou a voz da oposição nacionalista russa às políticas de Yeltsin e foi suspenso duas vezes antes de ser banido permanentemente em outubro de 1993.

Nevzorov fez dois filmes sobre a Primeira Guerra da Chechênia, Inferno (documentário, 1995) e Purgatório (ficção, 1997).

Um separatista checheno perto do Palácio Presidencial em Grozny, janeiro de 1995.

Previsões

"A Rússia de alguma forma consegue encontrar humilhação em todos os lugares."

Entre as previsões mais impressionantes são o número de baixas sugerido na primeira semana - cerca de 5 mil, igual na estimativa pós-ação do FSB - e até mesmo a propaganda de soldados russos crucificados, que chegou a ser circulado em mídias sociais. Além da afirmação de que o exército invasor seria composto por conscritos que não sabem o porquê de estarem lutando, ele também afirma que os generais teriam pela frente apenas duros combates, tendo que enfrentar "guerrilheiros, emboscadas, minas terrestres, snipers, humilhação e morte". No mês passado, dia 28, o General Andrey Sukhovetsky foi morto por um sniper ucraniano nos arredores de Kharkov. Ele foi o segundo general morto em combate, com um terceiro no dia 11, e um quarto no dia 16 (o Major-General Oleg Mityaev).

O Major-General Andrey Sukhovetsky foi morto por um sniper ucraniano.
Ele era um veterano dos paraquedistas e das spetsnaz.

Nevzorov também aponta para a ideia fantasiosa de Moscou de que os ucranianos simplesmente deitaria de barriga pra cima e deixariam o exército russo conquistar a Ucrânia sem lutarem. Ele prevê que resistirão mais do que os chechenos, pois os ucranianos são munidos de exército regular com grande número de reservistas experientes enquanto os chechenos eram grupos irregulares improvisados. Ele relembra os caixões de zinco da época do Afeganistão.

O ex-deputado menciona o Japão olhando para as ilhas Curilas, o que de fato ocorreu no início desse mês, e sobre a Alemanha olhando para Koenigsberg/Kaliningrado. Em 7 de março de 2022, o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, declarou que as Curilas do sul são "um território peculiar ao Japão, um território no qual o Japão tem soberania".

O poeta russo também relembrou como a Rússia trata os heróis, e como ela sempre se livra deles no exato momento que não precisa mais deles - pois são ameaças ao regime. A opinião pública ficará totalmente contra a Rússia e haverá um surto anti-russo na mídia internacional. Enquanto isso, um exército russo quase completamente sem condições de combate continuará chafurdando em derrotas e humilhações.

Transcrição do vídeo

A coisa mais importante é, claro, a agora claramente inevitável guerra com a Ucrânia.

Os desenhos e vídeos vitoriosos dos exercícios de treinamento militar do Ministério da Defesa fizeram seu trabalho. Todos agora acreditam no poder da máquina militar russa.

Russos saltando de um helicóptero Mi-8 durante exercícios na Bielo-Rússia.

No entanto, todos esses exercícios são apenas uma performance em um piano imaginário. Você pode fazer caretas como o famoso pianista Van Cliburn costumava fazer. Você pode revirar os olhos retratando inspiração, êxtase, incrível destreza de seus dedos, você pode fingir fazer tudo isso, mas só até que algum bastardo enfie um piano de verdade sob as suas mãos. E é aí que a humilhação começa. Acontece que o grande pianista teórico não pode nem tocar o "brilhar cintilar" de um dedo. E isso é na melhor das hipóteses.

Agora, o que vai acontecer nesta guerra, e como?

Aconteça o que acontecer, em qualquer caso, terminará em uma terrível derrota e tragédia para a Rússia. Para adicionar ao afegão, vietnamita, checheno, o pobre país crescerá mais uma corcova de vergonha.

Paraquedistas russos da VDV desfilando.

Por que, por que, apesar de uma aparente desigualdade de poder, ainda suponho que a vitória pertencerá à Ucrânia? Simplesmente porque para a Ucrânia, qualquer resultado da guerra será uma vitória. Porque existem apenas dois resultados, e ambos são fatais para a Federação Russa.

Em um caso, o monstro gigante, raivoso e sangrento chamado "Rússia" atropela o vizinho pequeno, orgulhoso e indefeso. Em outro caso, o vizinho pequeno, orgulhoso e indefeso atropela o monstro gigante e sangrento. Para a Rússia, ambas as opções são igualmente trágicas.

Agora, quem entende menos de guerra? Quem são os que você nunca deve ouvir em relação a isso? Eu vou te dizer. São os chamados analistas militares, que agora estarão alimentando a todos com a besteira terminológica, sobre como seus Hurricanes, Grads, Poseidons, Pinóquios queimarão os corredores estratégicos para as divisões de tanques e atrás deles, comboios de infantaria se dirigirão para Kiev. Isso é uma besteira completa.

Isto é o que pode acontecer durante um exercício militar. Com um acordo prévio e por um salário muito grande, o lado ucraniano se deitará consideravelmente sob os tanques russos e aceitará obedientemente os golpes de apenas alguns dos mísseis. Todas as análises militares são feitas predominantemente por tolos que há muito perderam o contato com a realidade, ou nunca a tocaram em primeiro lugar. Nenhum deles leva em consideração a resistência mais que furiosa da Ucrânia e a completa falta de proeza militar do exército russo.

Veículos russos destruídos na Ucrânia.

As subdivisões ucranianas serão, eu suspeito, ainda mais ferozes do que as chechenas. A guerra chechena foi perdida pelo antigo exército soviético que ainda tinha algumas tradições, generais e experiência militar. Agora não há nada disso. Sem generais, sem Rokhlin, sem Lebed, ninguém.

Então, como será essa guerra russo-ucraniana? Para começar, o que é a guerra para a Rússia? Em primeiro lugar, é a possibilidade de roubar seu próprio exército impunemente. Uma vez que você será capaz de amortizar absolutamente qualquer coisa. A habilidade mágica da guerra de anular as coisas é bem conhecida. Todos os melhores negócios são feitos na linha de frente. Já existem mísseis inteligentes que mudam de trajetória no momento em que são comprados. E como a experiência da Primeira Guerra da Chechênia mostrou, a Rússia aprendeu há muito tempo como vender seus próprios tanques ao inimigo, empacotados juntos com a tripulação. Tudo começará com algumas divisões se perdendo. Não pode ficar sem isso.

Essas divisões inevitavelmente serão bombardeadas pela Força Aérea Russa, que na Chechênia ganhou uma incrível capacidade de bombardear suas próprias unidades, depois de eliminar pelo menos um quarto das forças russas. Agora, essa é uma habilidade que duvido que eles já tenham conseguido beber até o esquecimento, e a Força Aérea Russa finalmente poderá colocá-la em prática. A Marinha Russa também terá a oportunidade de testar seus talentos. Com alguma artilharia de longo alcance, binóculos e vinho do Porto, vão inevitavelmente disparar contra algumas praias com turistas tomando banhos de sol e provenientes da mesma Rússia. À medida que os pedaços de turistas são separados em sacolas, os almirantes suados vão se esquivando. Não por causa dos turistas, mas depois de descobrir que os cascos de seus navios de guerra são mantidos juntos apenas por uma espessa camada de tinta.

É claro que, no que diz respeito a toda a parte de "morrer", acontecerá que as caricaturas patrióticas não podem fazer guerra ou morrer por si mesmas. E as linhas de frente, como é tradição, serão presenteadas com recrutas que só têm experiência em atirar com esfregões e pás, correr para pegar a cerveja para os seus mais antigos e arrumar camas. Essas galinhas camufladas serão estranguladas pelos batalhões Yarosh desesperadamente ferozes, experientes e altamente motivados - cerca de cinco mil na primeira semana. A Rússia será inundada pela chuva de caixões de zinco. Nem um único soldado ou oficial terá a menor idéia de por que diabos eles estão aqui e por cujos iates e palácios eles estão lutando.

O que, você acha que não haverá outro terminal ferroviário de Grozny? [Onde a Brigada Maikop foi emboscada e aniquilada] Certamente e inevitavelmente haverá. Já que os idiotas vestidos de calças com listras e encharcados de conhaque ainda são os mesmos, e continuam apontando seus pequenos lápis para seus mapas.

Generais Shoigu e Gerasimov.

A Rússia de alguma forma consegue encontrar humilhação em todos os lugares. Encontra-o, engole-o, digere-o de alguma forma e, durante vários anos, sofre de uma horrível diarreia midiática. Mas aqui ela vai morder a humilhação em quantidades indigestas.

Uma semana depois, a chuva de caixões de zinco só ficará mais forte. Pelo que se lutou a Guerra da Chechênia, que decorou as paisagens da Rússia com 18.000 lápides? Agora ficou mais ou menos claro: Construir palácios de diamantes, mesquitas em Grozny, curvar-se em reverência à Chechênia e transferir um bilhão de rublos todos os dias do orçamento federal. Em outras palavras, pagar-lhe um tributo digno de um vencedorE por esta exata razão o governo russo transformou milhares de seus meninos em carne queimada, e em torno da mesma quantidade aleijada. E isso considerando que na Chechênia eles não estavam lutando contra um exército, mas com alguns bandos de voluntários que nem eram soldados de verdade - apenas alguns poetas, ginecologistas e agrimensores.

Combatentes chechenos em Grozny, 1995.

Por que as pilhas de cadáveres eram necessárias? Você poderia começar a pagar a Chechênia imediatamente, sem disparar um único tiro. Aqueles oficiais russos cuja memória ainda não foi totalmente lavada com conhaque, certamente se lembrarão de todos os heróis presos da Primeira e da Segunda Guerras da Chechênia, começando pelo coronel Budanov, eles lembrarão de todas as intimidações dos tribunais e sua traição pelo governo. Oficiais são pessoas observadoras, certamente perceberam que a Pátria não perdoa feitos heróicos.

Em outras palavras, banho de sangue, terror, caos, clamor da imprensa, União das Mães dos Soldados, tudo isso aumentará dez vezes, a cada dia. A base informacional mundial, composta inteiramente de xingamentos, expondo e difamando a Rússia, estará colocando algemas mais pesada e acorrentar ainda mais os movimentos de um exército que já mal está em pé.

A chuva do caixões de zinco continuará ficando mais forte. Considere que não é apenas a propaganda russa que pode fabricar "Rapazes Crucificados". Mas você nem precisará inventar nada aqui, porque qualquer guerra cria precedentes bastante sangrentos e de partir o coração. E outras coisas à parte, esta não é apenas uma guerra com a Ucrânia, a Ucrânia teria sido apenas metade do problema. Esta também é uma guerra contra Odessa. Em outras palavras, a melhor maneira barata e eterna de se tornar motivo de chacota do mundo. O poderoso movimento anti-guerra na própria Rússia se tornará o núcleo que finalmente unirá todos os que odeiam o regime. E há outra nuance desagradável. Neste momento, o poder mágico da arte está em ação - desenhos animados, vídeos, declarações, desfiles, mas é melhor não familiarizar ninguém com as reais capacidades do exército russo.

Spetsnaz da companhia de reconhecimento paraquedista presos em um elevador.

Soldados russos capturados em Mariupol.

Depois de ver o exército russo em ação, os japoneses se lembrarão imediatamente das Ilhas Curilas, os alemães sorrirão sobre Konigsberg, a Moldávia sobre a Transnístria e assim por diante. E outra coisa. É preciso lembrar que o ambiente militar esconde surpresas difíceis e rápidas para o governo. O perigo da guerra também está em forjar rapidamente heróis, autoridades, favoritos das legiões, que logo perceberão que possuem todos os ases, e aquele que será o primeiro a confraternizar com os ucranianos e se tornará o mais legal e renomado.

Talvez alguns dos comandantes estejam realmente ardendo de desejo de resgatar o povo de língua russa, salvá-lo da opressão, da pobreza, da humilhação e do roubo. Mas se você tem aquela coceira terrível e imparável para salvar as pessoas, então, claro, você pode ir para Kiev, mas também pode ir para Moscou. As direções são, a este respeito, absolutamente equivalentes. Mas no caminho para Kiev, você encontrará os desesperados batalhões Yarosh, AFU, guerrilheiros, emboscadas, minas terrestres, snipers, humilhação e morte. Ao mesmo tempo, a estrada para Moscou está totalmente livre desses obstáculos, enquanto o resultado final é aproximadamente o mesmo.

Bem, Zolotov e a Guarda Nacional se juntarão rapidamente à OTAN. E Putin será deixado apenas com uma ligação para seu amigo, Biden, pedindo para enviar os fuzileiros navais americanos para proteger Moscou dos comandantes russos enlouquecidos.

Fim.

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domingo, 20 de março de 2022

A Doutrina Putin

O presidente russo, Vladimir Putin, em uma cerimônia diplomática em Moscou, em dezembro de 2021.
(Sputnik Photo Agency / Reuters)

Por Angela Stent, Foreign Affairs, 27 de janeiro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 20 de março de 2022.

Uma jogada na Ucrânia sempre foi parte do plano.

[Este artigo foi escrito antes da invasão de 24 de fevereiro]

A atual crise entre a Rússia e a Ucrânia é um acerto de contas que está sendo elaborado há 30 anos. É muito mais do que a Ucrânia e sua possível adesão à OTAN. É sobre o futuro da ordem europeia criada após o colapso da União Soviética. Durante a década de 1990, os Estados Unidos e seus aliados projetaram uma arquitetura de segurança euro-atlântica na qual a Rússia não tinha nenhum compromisso ou participação clara, e desde que o presidente russo Vladimir Putin chegou ao poder, a Rússia vem desafiando esse sistema. Putin reclamou rotineiramente que a ordem global ignora as preocupações de segurança da Rússia e exigiu que o Ocidente reconheça o direito de Moscou a uma esfera de interesses privilegiados no espaço pós-soviético. Ele organizou incursões em Estados vizinhos, como a Geórgia, que saíram da órbita da Rússia para impedir que se reorientassem totalmente.

Putin agora levou essa abordagem um passo adiante. Ele está ameaçando uma invasão muito mais abrangente da Ucrânia do que a anexação da Crimeia e a intervenção no Donbas que a Rússia realizou em 2014, uma invasão que prejudicaria a ordem atual e potencialmente reafirmaria a preeminência da Rússia no que ele insiste ser seu “legítimo” lugar no continente europeu e nos assuntos mundiais. Ele vê isso como um bom momento para agir. Em sua opinião, os Estados Unidos são fracos, divididos e menos capazes de buscar uma política externa coerente. Suas décadas no cargo o tornaram mais cínico sobre o poder de permanência dos Estados Unidos. Putin está agora lidando com seu quinto presidente dos EUA e passou a ver Washington como um interlocutor não confiável. O novo governo alemão ainda está encontrando seus pés políticos, a Europa como um todo está focada em seus desafios domésticos e o mercado de energia apertado dá à Rússia mais influência sobre o continente. O Kremlin acredita que pode contar com o apoio de Pequim, assim como a China apoiou a Rússia depois que o Ocidente tentou isolá-la em 2014.

Putin ainda pode decidir não invadir. Mas, quer ele faça ou não, o comportamento do presidente russo está sendo impulsionado por um conjunto interligado de princípios de política externa que sugerem que Moscou será disruptivo nos próximos anos. Chame isso de “doutrina Putin”. O elemento central dessa doutrina é fazer com que o Ocidente trate a Rússia como se fosse a União Soviética, uma potência a ser respeitada e temida, com direitos especiais em sua vizinhança e voz em todos os assuntos internacionais sérios. A doutrina sustenta que apenas alguns Estados devem ter esse tipo de autoridade, juntamente com soberania completa, e que outros devem se curvar aos seus desejos. Implica defender regimes autoritários em vigor e minar democracias. E a doutrina está ligada ao objetivo abrangente de Putin: reverter as consequências do colapso soviético, dividir a aliança transatlântica e renegociar o assentamento geográfico que encerrou a Guerra Fria.

Explosão do passado

A Rússia, de acordo com Putin, tem direito absoluto a um assento à mesa em todas as principais decisões internacionais. O Ocidente deve reconhecer que a Rússia pertence ao conselho de administração global. Depois do que Putin retrata como a humilhação da década de 1990, quando uma Rússia muito enfraquecida foi forçada a aderir a uma agenda definida pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, ele alcançou amplamente esse objetivo. Embora Moscou tenha sido expulsa do G-8 após a anexação da Crimeia, seu veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas e seu papel como superpotência energética, nuclear e geográfica garantem que o resto do mundo leve em consideração suas opiniões. A Rússia reconstruiu com sucesso suas forças armadas após a guerra de 2008 com a Geórgia, e agora é a potência militar regional proeminente, com a capacidade de projetar poder globalmente. A capacidade de Moscou de ameaçar seus vizinhos permite forçar o Ocidente à mesa de negociações, como ficou tão evidente nas últimas semanas.


No que diz respeito a Putin, o uso da força é perfeitamente apropriado se a Rússia acredita que sua segurança está ameaçada: os interesses da Rússia são tão legítimos quanto os do Ocidente, e Putin afirma que os Estados Unidos e a Europa os desconsideraram. Na maior parte, os Estados Unidos e a Europa rejeitaram a narrativa de queixa do Kremlin, que se concentra principalmente na dissolução da União Soviética e especialmente na separação da Ucrânia da Rússia. Quando Putin descreveu o colapso soviético como uma “grande catástrofe geopolítica do século XX”, ele lamentava o fato de 25 milhões de russos se encontrarem fora da Rússia e criticava particularmente o fato de 12 milhões de russos se encontrarem no novo Estado ucraniano. Como ele escreveu em um tratado de 5.000 palavras publicado no verão passado e intitulado “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”, em 1991, “as pessoas se viram no exterior da noite para o dia, levadas, desta vez, de sua pátria histórica”. Seu ensaio foi recentemente distribuído às tropas russas.

Em um ensaio no ano passado, Putin escreveu que a Ucrânia estava sendo transformada em “um trampolim contra a Rússia”.

Essa narrativa de perda para o Ocidente está ligada a uma obsessão particular de Putin: a ideia de que a OTAN, não contente em apenas admitir ou ajudar Estados pós-soviéticos, pode ameaçar a própria Rússia. O Kremlin insiste que essa preocupação se baseia em preocupações reais. Afinal, a Rússia foi repetidamente invadida pelo Ocidente. No século XX, foi invadida por forças aliadas anti-bolcheviques, incluindo algumas dos Estados Unidos, durante sua guerra civil de 1917 a 1922. A Alemanha invadiu duas vezes, levando à perda de 26 milhões de cidadãos soviéticos na Segunda Guerra Mundial. Putin vinculou explicitamente essa história às preocupações atuais da Rússia sobre a infraestrutura da OTAN que se aproxima das fronteiras da Rússia e as demandas resultantes de Moscou por garantias de segurança.

Hoje, no entanto, a Rússia é uma superpotência nuclear brandindo novos mísseis hipersônicos. Nenhum país – muito menos seus vizinhos menores e mais fracos – tem qualquer intenção de invadir a Rússia. De fato, os vizinhos do país a oeste têm uma narrativa diferente e enfatizam sua vulnerabilidade ao longo dos séculos à invasão da Rússia. Os Estados Unidos também nunca atacariam, embora Putin os tenha acusado de tentar “cortar um pedaço suculento de nossa torta”. No entanto, a auto-percepção histórica da vulnerabilidade da Rússia repercute na população do país. A mídia controlada pelo governo está repleta de alegações de que a Ucrânia poderia ser uma plataforma de lançamento para a agressão da OTAN. De fato, em seu ensaio no ano passado, Putin escreveu que a Ucrânia estava sendo transformada em “um trampolim contra a Rússia”.

Putin também acredita que a Rússia tem direito absoluto a uma esfera de interesses privilegiados no espaço pós-soviético. Isso significa que seus antigos vizinhos soviéticos não devem aderir a nenhuma aliança considerada hostil a Moscou, particularmente a OTAN ou a União Européia. Putin deixou essa exigência clara nos dois tratados propostos pelo Kremlin em 17 de dezembro, que exigem que a Ucrânia e outros países pós-soviéticos – bem como a Suécia e a Finlândia – se comprometam com a neutralidade permanente e evitem a adesão à OTAN. A OTAN também teria que recuar para sua postura militar de 1997, antes de sua primeira ampliação, removendo todas as tropas e equipamentos da Europa Central e Oriental. (Isso reduziria a presença militar da OTAN ao que era quando a União Soviética se desintegrou.) A Rússia também teria poder de veto sobre as escolhas de política externa de seus vizinhos não pertencentes à OTAN. Isso garantiria que os governos pró-Rússia estivessem no poder nos países que fazem fronteira com a Rússia – incluindo, principalmente, a Ucrânia.

Dividir e conquistar

Até agora, nenhum governo ocidental estava preparado para aceitar essas exigências extraordinárias. Os Estados Unidos e a Europa adotam amplamente a premissa de que as nações são livres para determinar seus sistemas domésticos e suas afiliações de política externa. De 1945 a 1989, a União Soviética negou a autodeterminação à Europa Central e Oriental e exerceu controle sobre as políticas doméstica e externa dos membros do Pacto de Varsóvia por meio de partidos comunistas locais, a polícia secreta e o Exército Vermelho. Quando um país se afastou demais do modelo soviético — Hungria em 1956 e Tchecoslováquia em 1968 — seus líderes foram depostos à força. O Pacto de Varsóvia foi uma aliança que teve um histórico único: invadiu apenas seus próprios membros.

Cidadãos alemães-orientais atirando pedras num tanque soviético durante a intervenção de 1953.

A interpretação moderna da soberania do Kremlin tem paralelos notáveis com a da União Soviética. Sustenta, parafraseando George Orwell, que alguns Estados são mais soberanos do que outros. Putin disse que apenas algumas grandes potências – Rússia, China, Índia e Estados Unidos – desfrutam de soberania absoluta, livres para escolher quais alianças aderir ou rejeitar. Países menores, como Ucrânia ou Geórgia, não são totalmente soberanos e devem respeitar as restrições da Rússia, assim como a América Central e a América do Sul, segundo Putin, devem atender seu grande vizinho do norte. A Rússia também não busca aliados no sentido ocidental da palavra, mas busca parcerias instrumentais e transacionais mutuamente benéficas com países, como a China, que não restringem a liberdade da Rússia de agir ou julgar sua política interna.

Tais parcerias autoritárias são um elemento da Doutrina Putin. O presidente apresenta a Rússia como defensora do status quo, defensora dos valores conservadores e um ator internacional que respeita os líderes estabelecidos, especialmente os autocratas. Como os eventos recentes na Bielorrússia e no Cazaquistão mostraram, a Rússia é o poder principal para apoiar governantes autoritários em apuros. Defendeu autocratas tanto em sua vizinhança quanto em muito além – inclusive em Cuba, Líbia, Síria e Venezuela. O Ocidente, de acordo com o Kremlin, apoia o caos e a mudança de regime, como aconteceu durante a guerra do Iraque em 2003 e a Primavera Árabe em 2011.

O Pacto de Varsóvia foi uma aliança que teve um histórico único: invadiu apenas seus próprios membros.

Mas em sua própria “esfera de interesses privilegiados”, a Rússia pode atuar como uma potência revisionista quando considera seus interesses ameaçados ou quando quer avançar em seus interesses, como demonstraram a anexação da Crimeia e as invasões da Geórgia e da Ucrânia. A tentativa da Rússia de ser reconhecida como líder e apoiadora de regimes de homens fortes tem sido cada vez mais bem-sucedida nos últimos anos, à medida que grupos mercenários apoiados pelo Kremlin agiram em nome da Rússia em muitas partes do mundo, como é o caso da Ucrânia.

A interferência revisionista de Moscou também não se limita ao que considera seu domínio privilegiado. Putin acredita que os interesses da Rússia são mais bem atendidos por uma aliança transatlântica fraturada. Assim, ele apoiou grupos antiamericanos e eurocéticos na Europa; apoiou movimentos populistas de esquerda e direita em ambos os lados do Atlântico; envolvidos em interferência eleitoral; e geralmente trabalhou para exacerbar a discórdia nas sociedades ocidentais. Um de seus principais objetivos é fazer com que os Estados Unidos se retirem da Europa. O presidente dos EUA, Donald Trump, desdenhou da aliança da OTAN e desdenhou alguns dos principais aliados europeus dos Estados Unidos – principalmente a então chanceler alemã Angela Merkel – e falou abertamente em retirar os Estados Unidos da organização. O governo do presidente dos EUA, Joe Biden, buscou assiduamente reparar a aliança e, de fato, a crise fabricada de Putin sobre a Ucrânia reforçou a unidade da aliança. Mas há dúvidas suficientes na Europa sobre a durabilidade do compromisso dos EUA após 2024 para que a Rússia tenha encontrado algum sucesso reforçando o ceticismo, principalmente por meio das mídias sociais.

Autoridades militares venezuelanas e russas.

O enfraquecimento da aliança transatlântica poderia abrir o caminho para Putin realizar seu objetivo final: abandonar a ordem internacional liberal e baseada em regras do pós-Guerra Fria promovida pela Europa, Japão e Estados Unidos em favor de uma ordem mais acessível à Rússia. Para Moscou, esse novo sistema pode se assemelhar ao concerto de poderes do século XIX. Também poderia se transformar em uma nova encarnação do sistema de Yalta, onde a Rússia, os Estados Unidos e agora a China dividem o mundo em esferas de influência tripolares. A crescente aproximação de Moscou com Pequim de fato reforçou o apelo da Rússia por uma ordem pós-Ocidente. Tanto a Rússia quanto a China exigem um novo sistema no qual exerçam mais influência em um mundo multipolar.

Os sistemas dos séculos XIX e XX reconheciam certas regras do jogo. Afinal, durante a Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética respeitavam principalmente as esferas de influência um do outro. As duas crises mais perigosas daquela época – o ultimato de Berlim em 1958 do primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev e a crise dos mísseis cubanos em 1962 – foram desarmadas antes do início do conflito militar. Mas se o presente é alguma indicação, parece que a “ordem” pós-Ocidente de Putin seria um mundo hobbesiano desordenado com poucas regras do jogo. Em busca de seu novo sistema, o modus operandi de Putin é manter o Ocidente desequilibrado, adivinhando suas verdadeiras intenções e depois surpreendendo quando ele age.

O recomeço russo

Dado o objetivo final de Putin, e dada sua crença de que agora é a hora de forçar o Ocidente a responder aos seus ultimatos, a Rússia pode ser dissuadida de lançar outra incursão militar na Ucrânia? Ninguém sabe o que Putin decidirá em última análise. Mas sua convicção de que o Ocidente ignorou o que ele considera os interesses legítimos da Rússia por três décadas continua a impulsionar suas ações. Ele está determinado a reafirmar o direito da Rússia de limitar as escolhas soberanas de seus vizinhos e ex-aliados do Pacto de Varsóvia e forçar o Ocidente a aceitar esses limites – seja pela diplomacia ou pela força militar.

Isso não significa que o Ocidente é impotente. Os Estados Unidos devem continuar a buscar diplomacia com a Rússia e buscar criar um modus vivendi que seja aceitável para ambos os lados sem comprometer a soberania de seus aliados e parceiros. Ao mesmo tempo, deve continuar coordenando com os europeus para responder e impor custos à Rússia. Mas está claro que, mesmo que a Europa evite a guerra, não há como voltar à situação anterior à Rússia começar a reunir suas tropas em março de 2021. O resultado final desta crise poderia ser a terceira reorganização da segurança euro-atlântica desde o final da década de 1940. A primeira veio com a consolidação do sistema de Yalta em dois blocos rivais na Europa após a Segunda Guerra Mundial. A segunda surgiu de 1989 a 1991, com o colapso do bloco comunista e depois da própria União Soviética, seguido pelo impulso subsequente do Ocidente para criar uma Europa “inteira e livre”. Putin agora desafia diretamente essa ordem com seus movimentos contra a Ucrânia.

Enquanto os Estados Unidos e seus aliados aguardam o próximo passo da Rússia e tentam deter uma invasão com diplomacia e a ameaça de pesadas sanções, eles precisam entender os motivos de Putin e o que eles anunciam. A crise atual é, em última análise, sobre a Rússia redesenhando o mapa pós-Guerra Fria e buscando reafirmar sua influência sobre metade da Europa, com base na afirmação de que está garantindo sua própria segurança. Pode ser possível evitar um conflito militar desta vez. Mas enquanto Putin permanecer no poder, sua doutrina também permanecerá.

Angela Stent é membro sênior não residente da Brookings Institution e ex-oficial de inteligência nacional dos EUA para a Rússia e a Eurásia. Ela é a autora do livro Putin's World: Russia Against the West and With the Rest.