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domingo, 5 de setembro de 2021

Qual é a aparência da "Defesa Europeia"? A resposta pode estar no Sahel


Por Quentin Lopinot, War on the Rocks, 19 de março de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 5 de setembro de 2021.

Algumas semanas atrás, o governo dinamarquês anunciou que apresentaria ao seu parlamento um pedido para o desdobramento de dois helicópteros de média capacidade de carga AW101 e cerca de 70 militares para a região do Sahel como parte da operação de contraterrorismo "Barkhane", liderada pela França. Assim que o desdobramento for aprovada pelos legisladores, como parece provável, os ativos dinamarqueses se juntariam à operação no final de 2019.

Este anúncio recebeu pouca atenção, mas é significativo - tanto para a luta contra grupos jihadistas na região do Sahel quanto para o futuro da cooperação de defesa europeia. Ele fornece uma visão sobre uma nova abordagem para o projeto de construção da defesa europeia, que não depende necessariamente das estruturas ou configurações institucionais complexas da União Europeia, mas se concentra na cooperação pragmática e operacional entre os Estados.

O estado do jogo

As operações de combate continuam intensas no Sahel. Dos 600 combatentes neutralizados pelas forças francesas desde 2014, 200 foram mortos apenas em 2018. Algumas das figuras jihadistas mais importantes da região foram recentemente abatidas.

Nesse contexto, as capacidades de transporte aéreo são cruciais por pelo menos três razões. Em primeiro lugar, dada a amplitude da área de operações da Barkhane, as capacidades de transporte aéreo são necessárias para sustentar e rotacionar as forças em uma vasta rede de bases permanentes (Gao no Mali, N'Djamena no Chade, Niamey no Níger) e plataformas operacionais temporárias (Kidal e Tessalit no Mali; Abeche e Faya-Largeau no Chade; Madama e Aguelal no Níger) a partir dos quais as forças operam. Em segundo lugar, essas capacidades são decisivas para conservar tempo e espaço preciosos, de modo que a postura da força possa ser rapidamente adaptada, e incursões contra alvos altamente móveis podem ser executados. Terceiro, as capacidades de transporte aéreo reduzem significativamente os riscos para as tropas, em particular a exposição a dispositivos explosivos improvisados e emboscadas, que são inerentes aos movimentos terrestres.

Nenhum país europeu - nem mesmo a França e sua estrutura de força amplamente expedicionária - possui capacidade de transporte aéreo tático suficiente para sustentar uma operação tão exigente por muitos anos. Isso é ainda mais válido quando se considera o quão difícil é o ambiente do Sahel para os equipamentos. Como resultado, as taxas de disponibilidade das principais capacidades desdobradas na área caíram, em particular os helicópteros de transporte, conforme relatado recentemente pelo Senado francês (embora este não seja o único fator explicativo). As forças armadas dos EUA têm fornecido transporte aérea indispensável para a Barkhane no nível estratégico, mas os requisitos no teatro continuam altos.

Dadas essas limitações, o sucesso na luta contra os grupos jihadistas no Sahel exigirá alguma cooperação internacional séria e sustentada.

Um cadinho para a Defesa Europeia 2.0


Os soldados dinamarqueses são esperados para desdobrarem-se com 4.500 soldados franceses atualmente participando da operação Barkhane, bem como outras forças europeias que se juntaram no verão passado. O Reino Unido está fornecendo transporte aéreo estratégico com três helicópteros CH-47 Chinook e a Estônia está destacando 50 soldados de seu Batalhão de Escoteiros para proteger a base estratégica de Gao, no Mali. Além disso, as forças alemãs, espanholas e americanas fornecem apoio logístico essencial para a operação geral. Muitos outros países europeus também estão envolvidos em missões distintas, mas relacionadas, incluindo a Missão de Estabilização Integrada Multidimensional da ONU no Mali (MINUSMA) chefiada pela Suécia - que fornece importantes capacidades de inteligência, vigilância e reconhecimento - a Missão de Treinamento no Mali da UE e missões de capacitação da União Europeia em Níger e Mali.

Esta cooperação operacional entre os Estados europeus para fazer face a uma ameaça comum à sua segurança, num formato ad hoc, desmascara alguns mitos sobre a defesa europeia. Esses mitos impedem uma melhor compreensão dos benefícios potenciais desta cooperação europeia.

Em primeiro lugar, está a ideia de que os países da Europa do Norte e do Leste têm os olhos voltados para o Oriente (ou seja, a Rússia), enquanto os da Europa Ocidental e do Sul se concentram apenas no Sul (ou seja, a África e o Oriente Médio). Obviamente, a realidade da ameaça representada por grupos jihadistas no Sahel é sentida em toda a Europa. Claro que seria absurdo negar nuances ou mesmo diferenças nas avaliações de ameaças em todo o continente, mas inferir que os europeus limitam suas áreas operacionais de acordo com sua história e geografia é um mero clichê. Os europeus têm uma percepção ampla e cada vez mais comum de seu ambiente de segurança. Itália e Espanha desdobram forças na Letônia como parte da presença avançada da OTAN, e a França desdobra 4.000 soldados franceses na Europa Oriental todos os anos. A Noruega adotou no ano passado uma estratégia nacional específica para o Sahel, e a Finlândia desdobra mais de 190 soldados no Líbano.

Em segundo lugar, vem o mito de que europeu (defesa) significa União Europeia (defesa) - e que a tomada de decisões complexas, arranjos institucionais obscuros e siglas desagradáveis necessariamente se seguem. A União Europeia possui alguns instrumentos únicos de apoio à base industrial e tecnológica europeia, à investigação e desenvolvimento e ao desenvolvimento de capacidades. Sua Política Comum de Segurança e Defesa oferece uma vasta gama de ferramentas para o gerenciamento de crises. Mas a “defesa europeia” vai muito além disso e deve agora ser entendida como englobando todas as formas de cooperação de defesa entre europeus - seja em formatos da UE, OTAN, ONU ou ad hoc - que tornam as forças armadas europeias mais capazes.


O terceiro e último preconceito é que os europeus são bons apenas em operações de não-combate (manutenção da paz, prevenção de conflitos, capacitação, etc.), mas não desejam e/ou não são capazes de conduzir operações de combate, especialmente em um ambiente exigente. A Operação Barkhane, com seu alto ritmo operacional, desafios logísticos drásticos e ataques agressivos para neutralizar alvos de alto valor e destruir grupos jihadistas, demonstra que isso não é verdade. Pelo contrário, uma das razões pelas quais os europeus estão a fornecer forças a uma operação nacional francesa é precisamente para adquirir essa experiência num complexo teatro de operações. O que é feito e aprendido com o Sahel hoje tornará as forças mais capazes e interoperáveis em qualquer outro cenário que possa ocorrer amanhã.

Estas três lições podem constituir a base para uma nova abordagem à defesa europeia, centrada na cooperação pragmática, realizações operacionais e formatos flexíveis. É a mesma filosofia que inspirou a Iniciativa de Intervenção Europeia (European Intervention Initiative, EI2), um grupo informal de dez países europeus (Bélgica, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Holanda, Portugal, Espanha e Reino Unido) que pretende promover intercâmbios militares-para-militares e planejamento operacional conjunto, sem filiação na União Europeia.

“Só o difícil inspira os nobres de coração”


Os desafios para o futuro da Barkhane e o envolvimento europeu na região do Sahel não devem ser subestimados. Os grupos jihadistas permanecem ativos e agressivos. Apesar do envolvimento planejado da Dinamarca, as principais capacidades permanecem escassas e o transporte aéreo estratégico dos EUA continuará a ser vital para apoiar a Barkhane. A estreita coordenação com a operação de manutenção da paz MINUSMA da ONU deve ser mantida. A Força Conjunta criada em 2017 por membros do “G5 Sahel” (Burkina Faso, Mali, Mauritânia, Níger e Chade) para lutar contra grupos terroristas e tráfico de pessoas fez alguns progressos importantes, mas ainda enfrenta problemas de financiamento. E, em última análise, a estabilidade no Sahel não pode ser alcançada apenas por meios militares. Isso exigirá uma solução política e uma estratégia abrangente para abordar as causas profundas da instabilidade - combinando abordagens políticas, econômicas, de desenvolvimento e de direitos humanos.

No entanto, a intenção da Dinamarca de se juntar à Operação Barkhane ilustra que os europeus estão adotando uma abordagem mais pragmática e voltada para os resultados da defesa europeia, tanto em operações quanto em outras áreas, e estão fazendo mais por sua própria segurança. Em uma discussão cada vez mais tóxica sobre a divisão de encargos, o esforço europeu no Sahel pelo menos merece ser reconhecido e encorajado.

Quentin Lopinot é Visitante no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, onde se concentra em questões de segurança europeias. Anteriormente, atuou em diferentes funções no Ministério das Relações Exteriores da França, cobrindo a não proliferação nuclear, política de defesa da UE e da OTAN.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:









sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Takuba: "O Sahel merece os nossos esforços para servir de laboratório para uma força européia eficaz"

Soldados da Força-Tarefa Européia "Takuba" desfilam durante o desfile militar anual do Dia da Bastilha na Avenue des Champs-Elysées, em Paris, em 14 de julho de 2021.
(Michel Euler / POOL / AFP)

Por Dominique Trinquand, Marianne, 2 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de setembro de 2021.

Ex-chefe da missão militar junto à ONU, o General Dominique Trinquand defende que a força militar antiterrorista Takuba, formada por unidades de forças especiais de vários países da União Européia, sirva de base para a construção de uma força européia de 5.000 homens no Sahel.

Muito tem sido escrito e dito sobre as lições que os europeus deveriam aprender com o cavaleiro solitário que os americanos acabaram de tirar ao se retirar do Afeganistão nas condições catastróficas que acabamos de vivenciar. A necessária autonomia da Europa é um assunto que está voltando à ordem do dia. Porém, para além dos intercâmbios teóricos sobre o assunto, a prática no Sahel deve nos oferecer um campo prático a ser melhor aproveitado.

Josep Borrell, o Alto Representante da União Européia (UE) para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, apoiado por Thierry Breton, Comissário Europeu para o Mercado Interno, relembra os objetivos de construção de uma capacidade européia de reação rápida. Depois da formação dos grupos de combate que estão em estado de alerta desde 2007 sem nunca terem sido contratados, trata-se agora de constituir uma força de 5.000 homens. O não-emprego de grupos de batalha não se deve à falta de prontidão militar ou capacidade operacional, mas à falta de vontade política e a procedimentos inadequados de tomada de decisão.

O trabalho deve continuar para convencer os nossos parceiros da necessidade de dispor dessa capacidade, mas sobretudo de implementar procedimentos de emprego flexíveis e eficientes. Neste domínio, a França não pode servir de referência, uma vez que a sua cadeia de comando direta (Chefe de Estado/Forças Armadas) está longe dos procedimentos da maioria dos nossos parceiros (consentimento prévio do Parlamento).

O exemplo Takuba


No entanto, um caso mais pragmático poderia servir de exemplo. A força Takuba no Sahel, tão condenada por muitos comentaristas, está implementando uma abordagem de baixo para cima que pode tanto reforçar nossos parceiros europeus no compromisso necessário em face de uma ameaça próxima, mas também servir para alimentar a “bússola estratégica” européia. Esta força, cuja fraqueza muitos criticam, constitui uma novidade onde tchecos, suecos, dinamarqueses, italianos, gregos, portugueses e, claro, franceses estão trabalhando com os países do Sahel para conter a ameaça jihadista.

“No Sahel, ao contrário do Afeganistão, não se trata de criar um Estado e um exército, mas de apoiar os Estados para que reconquistem territórios perdidos e se oponham à aplicação da Sharia estrangeira aos costumes da região."

São as forças especiais, a ponta de diamante desses exércitos que, no terreno, forjam tanto procedimentos comuns, mas também uma apreciação da ameaça compartilhada em suas capitais. Enquanto todos estes países, muito apegados à OTAN, medem os limites da sua ação após a retirada do Afeganistão, descobrem outras ameaças, outros parceiros, outros lugares e uma estratégia cuja realidade os aproxima da segurança do continente europeu.

No Sahel, ao contrário do Afeganistão, não se trata de criar um Estado e um exército, mas de apoiar os Estados para que reconquistem territórios perdidos e se oponham à aplicação da Sharia estrangeira aos costumes da região. Assim, o Sahel, porta de entrada de África para a Europa, merece este esforço europeu que, ao mesmo tempo, serve de laboratório para uma força européia flexível e eficiente. É no terreno que os europeus irão conhecer-se e apreciar-se melhor.

É na África que eles vão entender a importância de investirem militarmente, mas também financeiramente para permitir o desenvolvimento harmonioso dos países da região. A presença americana necessária (drones, satélites, logística) pesa menos lá do que na OTAN e permite aos europeus encontrarem o seu caminho e construir a autonomia de que necessitam para gerir esta crise, tão longe das preocupações asiáticas dos Estados Unidos. Unidos, mas sim perto de nosso continente.

Bibliografia recomendada:

A História Secreta das Forças Especiais.
Éric Denécé.

Leitura recomendada:


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Depois do Afeganistão, a intervenção de crises da UE deve crescer, não voltar para casa

Um soldado francês parado entre os evacuados, Cabul.

Por Tobias Pietz, World Politics Review, 1º de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 1º de Setembro de 2021.

É difícil falar de ambições europeias para a gestão de crises internacionais tendo como pano de fundo as imagens de Cabul nas últimas semanas, que parecem contar uma história do fracasso das políticas intervencionistas ocidentais. Mas essa discussão é necessária com urgência. Sim, será necessário avaliar as lições da derrota no Afeganistão. Mas essa guerra, com sua construção-estatal dominada pelos EUA, é em muitos aspectos um caso especial que deve ser analisado distintamente. Nesse ínterim, existem muitas outras crises e conflitos globais em que a União Europeia, bem como as Nações Unidas e organizações regionais, estão atualmente a intervir, sem a participação dos EUA e da OTAN. Esses esforços precisam continuar - incluindo, se necessário, por meio do uso de força militar, se autorizado por um mandato do Conselho de Segurança da ONU. Em outras palavras, a Europa não pode simplesmente lavar as mãos na gestão de crises internacionais.

Até a queda de Cabul, as recentes discussões e debates da UE sobre seu papel global giravam em torno da ideia de “autonomia estratégica europeia” e de como a UE poderia se tornar mais soberana na condução da política externa e de segurança. Acima de tudo, a preparação do “Compasso Estratégico” da UE, programado para 2022, parecia ter sinalizado uma nova ambição para alcançar a autonomia. Mas essa ambição não tem muito em comum com as realidades atuais da política externa e de segurança europeias.

O objetivo principal da Bússola Estratégica, iniciada durante a presidência rotativa da Alemanha na UE, é que os Estados-membros finalmente cheguem a um acordo sobre objetivos estratégicos claros e viáveis para fortalecer a UE como ator de política de segurança e defesa. A bússola também se destina a fornecer orientação política para futuros processos de planejamento militar. No entanto, embora a bússola inclua uma “cesta” de gerenciamento de crises, o processo de redação está fortemente focado em questões de defesa, particularmente a proteção da Europa. Isso corre o risco de enfraquecer ainda mais as missões de gestão de crises externas da UE conduzidas sob os auspícios da sua Política Comum de Segurança e Defesa.

Boina e distintivo do Eurocorps.

Curiosamente, apesar da recém-descoberta ênfase na proteção, ainda parece haver algum fascínio em projetar poder para além da Europa. Em maio, por exemplo, os ministros da defesa da UE discutiram a criação de uma força de reação rápida europeia de quase 5.000 soldados. Mas também aqui a ambição ignora as realidades atuais. Afinal, a UE já tem dois Grupos de Batalha da UE, cada um com 1.500 soldados, que nunca foram usados desde sua criação em 2007. Muitas vezes, eles nem mesmo estão totalmente operacionais.

O fato dos países europeus engajados militarmente no Afeganistão não terem conseguido evacuar seus próprios cidadãos de Cabul, sozinhos ou em um esforço coordenado da UE, sem a ajuda dos EUA, demonstra ainda mais o estado das capacidades militares coletivas da Europa. A falta de capacidades e vontade política para a gestão de crises externas também é sublinhada pelas atuais dificuldades do bloco em mobilizar apenas 200-300 reinadores para a nova missão de treinamento militar da UE no Moçambique; a Alemanha já cancelou sua participação.

Eventualmente, a Política Comum de Segurança e Defesa da UE pode se tornar apenas mais uma ferramenta para proteger a "Fortaleza Europa".

Nem sempre foi assim. A gestão precoce de crises na UE ao abrigo da Estratégia Europeia de Segurança de 2003 foi bastante diversificada e ambiciosa. Na altura, a UE esteve envolvida desde o Kosovo e a Geórgia à República Democrática do Congo e à Somália, com um grande número de destacamentos. Em 2008, a UE destacou pouco menos de 3.700 soldados para o Chade para proteger os refugiados da vizinha República Centro-Africana contra grupos armados que operam na área. Mas isso começou a mudar com o alargamento da UE; desde a adoção do Tratado de Lisboa em 2009, as missões da UE tornaram-se progressivamente menos ambiciosas. Simplificando, os novos Estados-membros da Europa Oriental têm diferentes percepções de ameaças que afetaram o tamanho e os mandatos dos destacamentos da UE, entre outras coisas.

Soldados somalis treinados por várias forças da União Europeia passam por exercícios no campo de treinamento de Bihanga, a oeste da capital de Uganda, Kampala, em 31 de agosto de 2011 (foto da AP por Stephen Wandera).

Desde 2010, apenas três missões e operações da UE envolveram mais de 500 pessoas: a Operação Sophia, missão naval atualmente destacada para o Mediterrâneo, com cerca de 1.400; a operação militar na República Centro-Africana, com cerca de 750; e a missão de treinamento militar no Mali, com pouco mais de 500. O efetivo de pessoal das outras missões destacadas desde então tem sido geralmente entre 20 e 100. Em vez de estabilização de curto prazo, as operações de gestão de crises da UE agora se concentram principalmente no treinamento de média a longa duração e construção de capacitação.

Outra mudança nas operações de 2015 em diante foi impulsionada pelo aumento dramático nos fluxos de refugiados no Mar Mediterrâneo. A Operação Sophia, que foi lançada originalmente como EUNAVFOR Med em 2015, tornou-se, entre outras coisas, uma ferramenta para interromper os fluxos migratórios para a Europa, tentando combater o tráfico de pessoas e capacitar a guarda costeira da Líbia.

Esta mudança foi reforçada pela adoção da Estratégia Global da UE em 2016, que fez da proteção dos cidadãos da UE um objetivo fundamental da política externa e de segurança coletiva. Isso ocorreu às custas da ênfase tradicional da UE em sua identidade como uma comunidade de Estados que busca, acima de tudo, defender valores e fornecer bens comuns, incluindo segurança, internacionalmente.

Posteriormente, muitos Estados-membros levaram adiante essa narrativa de uma “Europa protetora”, ao mesmo tempo que aplicaram uma interpretação bastante restrita da Estratégia Global. Até que ponto essa interpretação se consolidou ficou mais evidente em 2018, quando o governo austríaco colocou um “foco na segurança e na luta contra a migração ilegal” no topo de suas três prioridades para a presidência rotativa da UE, sob o slogan “Uma Europa que protege”.

Como resultado, as políticas internas dos Estados-membros têm influenciado cada vez mais os mandatos das missões existentes e novas da UE, como as missões de capacitação civil EUCAP Sahel Níger e EUCAP Sahel Mali, cujas atividades passaram a fazer parte das chamadas parcerias de migração da UE com ambos países. Para este fim, a missão no Níger abriu um escritório de campo em Agadez em abril de 2016 para contribuir “para um melhor controle dos fluxos de migração irregular e crimes relacionados”. Esta reorientação das missões de gestão de crises da UE para os interesses internos dos Estados-membros gerou críticas ferozes em alguns setores, uma vez que poderia, entre outras coisas, levar a que as missões de estabilização e capacitação se reduzissem à gestão da migração e das fronteiras. Eventualmente, a Política Comum de Segurança e Defesa da UE pode se tornar apenas mais uma ferramenta para proteger a "Fortaleza Europa".

Soldado francês supervisiona entrada em compartimento de soldados iraquianos durante treinamento de CQB.

Isso não precisa ser o caso. A Bússola Estratégica oferece a oportunidade de encontrar um novo terreno comum sobre o que a UE pretende alcançar em termos de paz e segurança, e o que pode alcançar. No domínio da gestão de crises, a UE necessita de uma política operacional multifacetada semelhante à era anterior ao Tratado de Lisboa. A este respeito, as missões da UE devem ser ambiciosas e, idealmente, preencher lacunas onde outros parceiros, como as Nações Unidas ou a União Africana, não desejam ou não podem agir, seja por que motivo for. No entanto, o desastre que se desenrola no Afeganistão agora ameaça ofuscar o debate sobre a Bússola Estratégica nas próximas semanas e meses, com o risco de reforçar o ceticismo em relação a desdobramentos internacionais.

Embora o Afeganistão ofereça algumas lições para a gestão de crises, não deve ser usado pelos Estados-membros da UE para rejeitar intervenções internacionais per se e, em vez disso, se concentrar em "proteger a Europa". Infelizmente, o mantra de “não repetir 2015” já está sendo ouvido por alguns políticos franceses, alemães e austríacos, apenas reforçando essa narrativa.

O que é necessário, em vez disso, é uma análise honesta das últimas 30 missões civis e destacamentos militares da UE. O que funcionou? O que era política puramente simbólica? E que tipo de consenso ainda pode ser encontrado no futuro? O fracasso no Afeganistão não deve lançar uma sombra definitiva sobre a gestão de crises na Europa. Apesar de tudo, há lugar e necessidade para uma política externa e de segurança europeia ambiciosa.

Tobias Pietz é vice-chefe da Divisão de Análise do Centro Alemão para Operações Internacionais de Paz (ZIF) em Berlim.

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segunda-feira, 30 de agosto de 2021

A diminuição de tropas da França na África Ocidental alimenta a esperança dos extremistas locais de uma vitória ao estilo do Talibã

Soldados do Exército Francês monitoram uma área rural durante a operação Barkhane no norte de Burkina Faso em 12 de novembro de 2019.
(MICHELE CATTANI / AFP via Getty Images)

Por Danielle Paquette e Rick Noack, The Washington Post, 27 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 30 de agosto de 2021.

Os combatentes leais à al-Qaeda e ao Estado Islâmico vêem a "paciência" do Talibã contra potências estrangeiras como uma estratégia vitoriosa.

DACAR, Senegal - Enquanto o Afeganistão caía nas mãos do Talibã neste mês, um dos extremistas mais notórios da África Ocidental elogiou seus “irmãos” e o que ele considerou sua estratégia bem sucedida.

“Duas décadas de paciência”, disse Iyad Ag Ghaly, chefe de uma afiliada da al-Qaeda que visa conquistar o Mali. A rara declaração pública ilustrou como o colapso do Afeganistão elevou o moral e ofereceu uma nova motivação para grupos militantes que conduzem insurgências de rápido crescimento em toda a África Ocidental.

Combatentes em todo o continente - muitos dos quais professaram lealdade à al-Qaeda e ao Estado Islâmico - celebraram publicamente a tomada do Talibã como resultado da perseverança contra os Estados Unidos e outras forças armadas ocidentais. Agora que a França anunciou planos para começar a reduzir sua presença militar na África Ocidental em cerca de metade no próximo ano, alguns daqueles que sofreram quase uma década de violência extremista vêem um paralelo assustador.

Iyad Ag Ghaly, chefe de uma afiliada da al-Qaeda que visa conquistar o Mali, responde às perguntas dos jornalistas no aeroporto Kidal, norte do Mali, em novembro de 2012.
(Romaric Hien / AFP / Getty Images)

“Temo que teremos o mesmo destino que os afegãos”, disse Azidane Ag Ichakane, 30, presidente de um grupo de jovens em Bamako, capital do Mali.

A tomada rápida do Talibã após a saída americana do Afeganistão aumentou a pressão sobre a França, que tem cerca de 5.100 soldados na África Ocidental, o maior número de qualquer parceiro estrangeiro. O presidente francês Emmanuel Macron disse em julho que a redução militar de seu país estava programada para começar "nas próximas semanas". Três bases militares estão programadas para fecharem no norte de Mali, o coração da crise.

Macron não ofereceu nenhuma atualização pública desde que o Talibã reivindicou Cabul.

“Todos os países ocidentais, incluindo a França, é claro, fariam bem em aprender as lições dessa derrota amarga”, disse o general francês Marc Foucaud, que liderou uma grande operação de contraterrorismo no Mali em 2014. “O presidente Macron certamente fará tudo para evitar ter o mesmo destino de nossos amigos americanos.”

As forças francesas desembarcaram na região há oito anos a pedido de autoridades do Mali, que advertiram que os combatentes da al-Qaeda estavam prestes a atacar Bamako. Desde então, os extremistas se dispersaram e se espalharam, e Paris prometeu manter a linha enquanto o Mali construía suas próprias capacidades de defesa.

Mas os militantes ganharam força, desencadeando insurgências em Burkina Faso e no vizinho Níger, enquanto o Mali mergulhava no caos político. No ano passado, a nação sofreu dois golpes de estado em nove meses. O oficial militar que derrubou os dois presidentes agora está no comando.

Pelo menos 1.852 malianos morreram na violência desde janeiro, de acordo com o Armed Conflict Location & Event Data Project (Projeto de Dados de Local & Eventos de Conflito Armado), e o conflito não mostra sinais de diminuir.

Enquanto isso, os militares regionais relataram falta de recursos e mão de obra para vencer a ameaça. Cerca de 4.000 extremistas na região regularmente causam mortes em massa e roubam equipamentos.

“Se a França se retirar de forma drástica como os EUA fizeram, o equilíbrio de poder provavelmente mudará em favor dos jihadistas”, disse Ibrahim Yahaya Ibrahim, analista da África Ocidental no Grupo de Crise Internacional no Níger.

Pessoas seguram faixas com os dizeres "França saia" enquanto protestam contra as forças francesas e da ONU baseadas no Mali em janeiro de 2020.
(Annie Risemberg / AFP / Getty Images)

A vitória do Taleban é um presente para suas máquinas de propaganda, acrescentou. O JNIM, o maior afiliado da al-Qaeda na África Ocidental, elogiou as habilidades do Talibã em negociar com os EUA em várias declarações.

“É certamente inspirador e estimulante para eles”, disse Ibrahim.

As operações militares da França na África Ocidental são impopulares em Paris, e Macron, que enfrenta a reeleição no próximo ano, disse que as tropas nunca deveriam ficar para sempre. Os críticos dizem que a presença da França impede o diálogo entre líderes extremistas e o governo maliano.

A missão atual, conhecida como Operação Barkhane, será substituída por uma equipe menor de Forças Especiais. O líder francês pediu aos Estados Unidos e parceiros europeus que forneçam tropas para o esforço, mas tem havido pouco entusiasmo por essa ideia na região.

“Precisamos encontrar uma saída para o clichê de que o Ocidente tem a solução”, disse Boubacar Ba, analista de segurança em Bamako.

A crise no Sahel, o cinturão semi-árido ao sul do Deserto do Saara, sofreu um número recorde de ataques em 2020, de acordo com o ACLED, com Mali e Níger registrando mais vítimas civis do que nunca. Este ano, a batalha se dirigiu para a Costa do Marfim, Benin e Senegal. Os ataques perto ou logo além das fronteiras aumentaram.

Tropas francesas em Timbuktu.

“Independentemente da presença francesa, é improvável que a situação melhore no futuro próximo e as perspectivas são sombrias”, disse Héni Nsaibia, pesquisador sênior do ACLED.

Os combates eclodiram em 2012, quando separatistas no norte do Mali firmaram uma parceria instável com comandantes da Al-Qaeda que buscavam expandir seu território. Os extremistas conseguiram exercer controle sobre várias vilas e cidades, incluindo a lendária Timbuktu, antes que a França interviesse.

Naquele mesmo ano, Paris foi um dos primeiros aliados da OTAN a retirar tropas do Afeganistão depois que um ataque interno matou cinco soldados franceses. A partida teve ampla aprovação pública na França.

Macron não expressou arrependimento na semana passada em um discurso televisionado. Ele prometeu que a França apoiaria a sociedade civil do Afeganistão para defender "nossos princípios, nossos valores", embora não tenha especificado como isso seria possível sob o regime talibã.

Em última análise, disse ele, "o destino do Afeganistão está em suas mãos".

Noack relatou de Paris. Borso Tall em Dakar contribuiu para este relatório.

Danielle Paquette é a chefe da sucursal do The Washington Post na África Ocidental. Antes de se tornar correspondente no exterior em 2019, ela cobriu questões econômicas nos Estados Unidos e no exterior.







Rick Noack é um correspondente baseado em Paris que cobre a França para o The Washington Post. Anteriormente, ele foi repórter de relações exteriores do The Post, baseado em Berlim. Ele também trabalhou para o The Post de Washington, Grã-Bretanha, Austrália e Nova Zelândia.







Bibliografia recomendada:

O Mundo Muçulmano.
Peter Demant.

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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Por trás da disputa argelino-marroquina, a histórica frustração da Argélia com o Marrocos


Por Bernard Lugan, Actualité Africaine, 25 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de agosto de 2021.

Ponto culminante de uma tensão que tem crescido continuamente nos últimos anos, a Argélia acaba de cortar relações diplomáticas com o Marrocos.

O rei Mohammed VI do Marrocos, e o presidente Abdelmadjid Tebboune da Argélia.

A disputa entre os dois países é certamente política, mas também histórico-psicológica. Por quatro razões principais:

1) Passada diretamente da colonização turca para a colonização francesa, a Argélia tem ciúme do Marrocos e de seus 1200 anos de história (veja sobre o assunto no meu livro Algérie, l'Histoire à l'endroit / Argélia, a história no lugar). Ela se recusa a admitir que os brilhantes principados de Tlemcen no oeste, e Bougie no leste, não constituíam as matrizes da Argélia, quando Fez e Marrakech criaram o Marrocos. Com os Idrissidas, os Almorávidas, os Almohads, os Saadianos, os Merinidas e os Alaouitas, durante 1200 anos, o Marrocos de fato desenvolveu um Estado, depois Impérios estendendo-se em certas épocas por todo o Magrebe, parte da Espanha e até Timbuktu. Não havia nada parecido a leste de Moulouya, onde nem os Zianides de Tlemcen nem os Hafsids de Bougie tiveram um destino comparável ao das grandes dinastias marroquinas. É aí que reside o não-dito de toda a política magrebina de Argel.

2) Os dirigentes argelinos não querem reconhecer que herdaram da França territórios historicamente marroquinos, tendo a colonização francesa amputado o Marrocos em favor dos departamentos franceses da Argélia. É por isso que Touat, Saoura, Tidikelt, Gourara e a região de Tindouf são argelinos hoje. Eles se recusam a admitir que, na época da independência, o milenar Marrocos foi convidado a endossar essas amputações territoriais feitas em benefício de uma Argélia nascida em julho de 1962.

Soldados argelinos.

3) Para uma Argélia, "enclavada" neste mar fechado que é o Mediterrâneo, é insuportável constatar que com a recuperação das suas províncias do Saara, o Marrocos tem uma imensa fronteira marítima oceânica a partir de Tânger ao norte, até à fronteira com a Mauritânia ao sul, abrindo assim o reino tanto ao “mar aberto” do Atlântico como à África Ocidental. Recusando-se obstinadamente a admitir esta realidade, a Argélia mantém a Polisario à disposição na tentativa de enfraquecer o Marrocos. No entanto, para Argel, é urgente. Como a última praça dos 24 Estados - dos 193 membros da ONU - ainda reconhecendo este fantasma que é a RASD (República Árabe Sarauí Democrática), tendo finalmente se desintegrado, a tensão com o Marrocos poderia ajudar a conter o sangramento.

4) A Argélia atravessa uma crise econômica, política, institucional e de identidade muito profunda. Ela deve, portanto, procurar reunir as energias nacionais e, para isso, desde a independência, sempre recorreu a dois bodes expiatórios: a França e o Marrocos. Atualmente, por vários motivos, ela precisa da França. Portanto, resta o Marrocos. Esperando que esta política de corrida desenfreada não conduza a uma nova "guerra das areias", como em 1963...

Bernard Lugan (nascido em 10 de maio de 1946 em Meknès) é um historiador francês especializado em história da África. Ele é professor do Institut des hautes études de défense nationale (IHEDN) e editor da revista L'Afrique réelle ("A África Real"). Lugan lecionou anteriormente na Jean Moulin University Lyon 3 e na escola militar especial de Saint-Cyr até 2015. Ele serviu como testemunha especializada para réus hutus envolvidos no genocídio em Ruanda no Tribunal Criminal Internacional para Ruanda.

Bibliografia recomendada:

Novas Geopolíticas.
José William Vesentini.

Leitura recomendada:

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

IntelBrief: Negociando uma saída do contraterrorismo no Sahel


Por Wassim Nasr, The Soufan Center, 6 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de agosto de 2021.

Resumo logo de cara:
  • Talvez em um esforço para sinalizar uma abertura para negociações, o braço da al-Qaeda no Sahel declarou que o solo francês não faz parte do conflito.
  • Pela primeira vez, um afiliado da al-Qaeda declarou publicamente que a guerra em curso com a França não inclui solo francês.
  • Os ramos mais ativos da al-Qaeda e do chamado Estado Islâmico (EI) estão atualmente na África Subsaariana.
  • As negociações são uma ferramenta necessária que pode e deve ser utilizada em paralelo com a ação militar para fornecer soluções sustentáveis.
Com a África se tornando o epicentro da atividade jihadista globalmente, a al-Qaeda do Magrebe Islâmico (AQIM) afiliada do Sahel, Jamaat Nusrat al-Islam wal Muslimin (JNIM), continuou a evoluir para uma força política e militar na região. Os ramos mais ativos da al-Qaeda e do Estado Islâmico estão na África - a região do Sahel e o Chifre da África para a al-Qaeda, e a região do Lago Chade e a África Central para o Estado Islâmico. Até agora, toda experiência de “governança” da al-Qaeda resultou em fracasso, principalmente devido à pressão militar das potências ocidentais, objetivos quixotescos, rivalidades internas e falta de experiência política ou capacidade de manobra para atender às necessidades e queixas das populações locais. Foi esse o caso durante o projeto de governança de curta duração no norte do Mali em 2012. Militantes da al-Qaeda e comandantes locais implementaram interpretações severas da lei Sharia, empregaram violência para impor sua autoridade e destruíram artefatos culturais como os históricos mausoléus de Timbuktu. No entanto, isso contradiz a vontade do líder da AQIM, Abu Moussaab Abdel Wadud. Para ganhar corações e mentes, ele ordenou que os militantes sob seu comando seguissem uma “abordagem gradual suave”, que recebeu críticas da central da al-Qaeda. Para os principais líderes da al-Qaeda, Abu Moussaab era visto como conciliador e excessivamente político.


Cinco anos depois, o mesmo homem estava por trás do esforço que levou à unificação de quatro facções jihadistas no Sahel. Abu Moussab teve sucesso na mediação de disputas entre vários comandantes regionais e, ao mesmo tempo, revigorou uma AQIM enfraquecida na Argélia por meio de um impulso vital mais ao sul, no Mali; o JNIM foi criado sob a bandeira da AQIM em 2017. No entanto, em junho de 2020, as forças de Operações Especiais francesas mataram Abu Moussaab em um tiroteio no norte do Mali. A AQIM é agora chefiada por Abu Ubaïda Yussef al-Anabi, outro cidadão argelino e ex-chefe do "Conselho de Notáveis" da AQIM desde 2010. Ele foi a fonte de inspiração para a abordagem de Abu Moussaab, tentando uma governança "suave" e entrincheiramento na dinâmica local. Essas políticas foram seguidas e implementadas pelo chefe do JNIM, Iyad Ag Ghali, uma figura tuaregue conhecida e um político do Mali antes de se tornar um líder jihadista. O segundo em comando, Mohammad Kuffa, fornece ao grupo acesso ao centro do Mali, Burkina Faso e até a fronteira com Benin, Costa do Marfim, Senegal e Gana, devido à sua capacidade de recrutar entre a comunidade Fulani como pregador Fulani. Conseqüentemente, o grupo tem um alcance além dos recrutas tuaregues e árabes e a capacidade de romper a tradicional organização de casta social entre a comunidade Fulani.

A al-Qaeda tolerou o surgimento do Estado Islâmico no Sahel por quase quatro anos, mas isso chegou ao fim em 2020, causando sérias repercussões para os civis pegos no fogo cruzado. Essa nova realidade de competição entre grupos da região se traduziu em recrutas mais comprometidos de ambos os lados. Combinado com a lacuna de governança e a falta de serviços do Estado em muitas áreas, a repercussão da luta intragrupo está forçando as comunidades locais a buscar proteção do JNIM ou do Estado Islâmico contra ataques de outro grupo, forças de segurança governamentais predatórias ou milícias afiliadas na região da tríplice fronteira (ou seja, Mali, Níger e Burkina Faso).


O JNIM, que inicialmente evitou abordar publicamente o conflito com o Estado Islâmico, sugeriu em janeiro de 2021 a responsabilidade deste último por um massacre contra a comunidade Zarma no Níger e prometeu vingar os mortos. No Níger, pela primeira vez em maio de 2021, o Estado Islâmico reivindicou ataques contra as forças armadas e milícias locais como vingança pelo assassinato de vários tuaregues malinenses pelas forças de fronteira do Níger. Essas reivindicações destacam as intenções do Estado Islâmico de se entrincheirar na dinâmica local do Níger.

Cada grupo parece expressar, ou impor, sua vontade política de maneiras bastante opostas. O JNIM se absteve de implementar regras severas sobre as populações locais e esperou que os moradores buscassem "justiça islâmica", até mesmo tentando fornecer recursos humanos no campo, convocando acadêmicos islâmicos não-afiliados para servirem como juízes; enquanto isso, o Estado Islâmico governou por meio de interpretações estritas da Sharia, e muitas vezes sem qualquer consideração pela dinâmica local. Outra contradição notável entre os dois grupos surgiu em relação aos reféns ocidentais. Por um lado, o JNIM e a AQIM abduzem e mantêm reféns porque possuem as capacidades logísticas necessárias para o fazer. Por outro lado, o Estado Islâmico não possui capacidades de detenção semelhantes e, portanto, tende a executar prisioneiros no local. O JNIM/AQIM mantém atualmente seis reféns estrangeiros no Sahel, entre eles um americano e um francês. Em comparação, o Estado Islâmico executou seis trabalhadores franceses de ajuda humanitária, seu guia local e seu motorista em Kouré, no Níger, no dia 9 de agosto de 2020. Esta estratégia sugere objetivos diferentes - manter reféns pode resultar em uma recompensa financeira, enquanto executá-los imediatamente espalha terror e intimida populações, bem como ONGs estrangeiras.

Em uma situação em constante mudança com múltiplos atores e interesses, o JNIM, o mais poderoso afiliado da al-Qaeda, pode estar fechando um “capítulo do terror” internacional no solo do continente onde tudo começou. A África testemunhou o impacto da rede internacional da al-Qaeda já em 1998, com os atentados às embaixadas no Quênia e na Tanzânia. O continente africano também foi o primeiro a entrar na fase aberta de “governança jihadista” com a União dos Tribunais Islâmicos na Somália. Foi em solo africano que os primeiros soldados americanos morreram em uma luta que incluiu retornados da al-Qaeda do Afeganistão já em 1993 na Batalha de Mogadíscio. E é na África que estamos testemunhando uma evolução notável de uma das facções mais ativas da al-Qaeda em todo o mundo. Pela primeira vez, uma filial ou filial da al-Qaeda declarou publicamente que a guerra em curso com a França não inclui solo francês. Isso veio na forma de um comunicado escrito em janeiro deste ano. Seis meses depois, o chefe da AQIM enfatizou em sua primeira mensagem de áudio em junho que solo francês nunca foi mirado vindo do Mali. Ao mesmo tempo, os apelos para vingar o Profeta e atingir os interesses franceses no continente africano continuam. No entanto, esta clara evolução do discurso da AQIM deve ser acompanhada de perto e tida em consideração, pois certamente não porá fim ao confronto, mas poderá criar uma abertura para conversas no futuro.


Para conter as insurgências do Sahel, as negociações são uma ferramenta necessária que pode e deve ser utilizada em conjunto com a ação militar e operações cinéticas de contraterrorismo. O JNIM, o único partido jihadista disposto a negociar, usa o terrorismo e as negociações com governos e representantes locais como ferramentas e não como fins em si. No entanto, mesmo com a afiliada da al-Qaeda suavizando sua posição, a França foi incapaz ou não quis capitalizar sobre esse desenvolvimento e usar as negociações como uma ferramenta eficaz com o JNIM.

Após oito anos de intervenção francesa direta, o status quo no Sahel é insustentável. Na esteira do aumento do Estado Islâmico e da possível cooperação entre seus militantes no Sahel e no Lago Chade, os governos regionais e os atores internacionais não devem envolver o JNIM apenas militarmente, mas também politicamente como um ator profundamente enraizado na dinâmica local, desfrutando do apoio e aceitação populares. Quando as populações locais percebem as facções jihadistas como parte da solução para sustentar suas necessidades básicas diárias imediatas, a ação militar, a melhoria da governança e a responsabilização não são suficientes. Antes de abordar a questão do Sahel como parte da Guerra Global contra o Terror, as potências ocidentais devem pressionar os governos locais para tratarem de todo o sistema de compartilhamento de poder e atribuições de terras que devem ser revisadas em uma base local e direcionada. Uma vez que os grupos jihadistas capitalizam e expõem as queixas locais, as soluções também existem nesses mesmos níveis.

Wassim Nasr é jornalista da France24 e especialista em jihadismo. Nasr é o autor do livro "État islamique, le fait accompli" (Editora Plon, 2016). Ele também é consultor do documentário Terror Studios (2016) indicado ao International Emmy Awards (2017). Siga-o em @SimNasr.

Bibliografia recomendada:

Estado Islâmico:
Desvendando o exército do terror.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

Leitura recomendada:

Implicações da al-Qaeda na nova liderança do Magrebe Islâmico, 5 de abril de 2021.

Guerras e terrorismo: não se deve errar o alvo22 de novembro de 2020.

O Estilo de Guerra Francês, 12 de janeiro de 2020.