terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Saara Marroquino: a defesa da zona tampão de Guergarate

 

Do Jean-Yves de Cara, Theatrum Belli, 15 de novembro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 8 de dezembro de 2020.

[Nota: As opiniões expressas nesse artigo pertencem ao seu autor e não representam, necessariamente, àquelas do blog Warfare.]

No dia 13 de novembro, diante das graves e inaceitáveis ​​provocações a que as milícias “Polisário” se engajaram na zona tampão de Guergarate no Saara marroquino, “o Marrocos decidiu agir, respeitando suas atribuições, em virtude de seus deveres e no pleno respeito à legalidade internacional”, anunciou o Ministério dos Negócios Estrangeiros, da Cooperação e dos Marroquinos residentes no estrangeiro (Ministère des Affaires étrangères, de la Coopération et des Marocains résidant à l’étranger). As Forças Armadas Reais (Forces armées royalesFAR) estabeleceram um cordão de segurança para garantir o fluxo de mercadorias e pessoas através da zona tampão de Guerguerate que liga o Marrocos à Mauritânia. Esta medida decorre, em particular, do bloqueio do trânsito rodoviário por um grupo de pessoas formadas por milicianos armados da Polisário.

Militantes da Frente Polisário na Argélia. Ao lado, o selo da Frente Polisário.

Esse incidente não é nada novo. Em várias ocasiões, os rebeldes da Polisário, com o apoio da Argélia, tentaram ataques violentos, limitaram as ocupações ou paralisaram o tráfego internacional na área. A travessia do Saara pelo rally anual de automóveis Africa Eco Race já havia gerado especulações sobre as tentativas de bloqueio em 2019 e, de vez em quando, a Polisário alega a perseguição de garimpeiros ilegais ou traficantes de drogas para tentar penetrar na zona.

Zonas tampão sempre existiram. Instituídas pelo Concerto Europeu (Holanda, Escandinávia, Suíça), criadas por potências rivais (Espanha e Reino Unido em Gibraltar), estabelecidas pelas conferências de paz durante o Tratado de Versalhes (Renânia) e pela conferência de Genebra sobre o Vietnã, elas assumem a forma de uma zona desmilitarizada definida pelas partes (trégua de Tangku entre Japão e China em 1933, armistício de Panmunjom na Coréia em 1953), uma zona neutra , uma zona de segurança, uma zona protegida ou uma terra de ninguém (Faixa de Gaza). Com o objetivo de separar as partes de um conflito, a zona tampão é geralmente controlada por uma força de manutenção da paz, muitas vezes sob a responsabilidade da ONU, às vezes da OTAN, entre a Sérvia e Kosovo. Internas a um estado, podem resultar de uma ocupação (linha verde em Chipre), de um conflito interno (zona de distensão na Colômbia no âmbito das negociações com as FARC) ou mesmo de uma tentativa de secessão tal como a zona tampão que separa a Moldávia da auto-proclamada República da Transnístria.

Soldados sul e norte-coreanos se encarando na Zona Desmilitarizada no paralelo 38.

Para o jurista, elas levantam dois tipos de questões que dizem respeito às regras que regem a criação da zona tampão e às aplicáveis ​​dentro da zona tampão.

Como uma ferramenta de gestão de conflitos, essas zonas são frequentemente impostas como parte de um acordo de paz internacional. Elas tendem a resolver ou atenuar tensões políticas, militares e humanitárias complexas, que muitas vezes são duradouras. Elas podem então ser determinados de uma maneira convencional ou por uma instituição internacional para congelar um conflito de fronteira e as forças de segurança nacional das partes são excluídas. Poderes de intervenção também podem procurar impor tal solução para separar as partes ou isolar grupos incontroláveis, mas isso pressupõe o acordo dos Estados interessados.

A Zona Tampão de Guergarate

Finalmente, a zona tampão também pode consistir em um glacis criado por um Estado ao longo de suas fronteiras com o objetivo de proteger seu território contra incursões de tropas estrangeiras, grupos armados pagos por um Estado estrangeiro ou atividades de grupos rebeldes ou terroristas. É o caso da área de Guerguerate no Saara marroquino.

Para proteger o seu território, o Reino do Marrocos construiu um muro de areia, recuado da fronteira e estabeleceu voluntariamente uma zona tampão que recebeu a aprovação das Nações Unidas. Assim, o Marrocos participa tanto na gestão internacional da situação, como protege o seu território e as populações locais.

Guerrilheiras da Frente Polisário.

Nessas circunstâncias, a criação de uma zona tampão implica assegurar que a lei seja respeitada para os civis que nela residem ou que passam pela zona. Igualmente importante é garantir a segurança e a natureza neutra e desmilitarizada da zona tampão.

Sem dúvida, o direito internacional se aplica nesses espaços, em particular o direito humanitário no caso de uso de força armada, mas não resolve tudo. Não obstante, nestas áreas, por hipótese pacíficas, podem surgir questões jurídicas relacionadas com o direito civil, a propriedade, o tráfego, o direito penal e, em geral, a ordem pública. Na ausência de uma administração internacional, a prática reconhece uma certa competência no Estado cuja soberania territorial é afetada pelo estabelecimento de uma zona tampão.

Além disso, a manutenção da segurança ou, simplesmente, da tranquilidade pública na área pode justificar uma ação limitada para restaurar a ordem. A urgência, ausência ou fraqueza das forças internacionais permite ao exército ou à polícia nacional intervir para conter uma guerra de guerrilha ou restaurar a ordem. Assim, em 2000, a entrada do exército iugoslavo na zona tampão que separa a Sérvia do Kosovo para pôr fim às infiltrações da guerrilha albanesa.

Necessidade e proporcionalidade

Por analogia com a legítima defesa, a intervenção do poder territorial em causa na zona tampão está sujeita a duas condições: necessidade e proporcionalidade.

A necessidade é a base da competência do Estado para agir. Trata-se de um desmembramento da jurisdição territorial originária que o Estado exercia sobre a área que hoje constitui a zona tampão. As províncias do sul foram, desde tempos imemoriais, território do Império Xarifiano e depois do Reino do Marrocos; este último incluiu a questão do Saara, então ocupado pela Espanha, na agenda das Nações Unidas em 1963. Diante das atividades da Polisário, criada e utilizada pela Argélia desde 1973, o Marrocos, num espírito de consulta e para a manutenção da paz no seu território, criou a zona tampão sobre a qual, em consequência, renunciou temporariamente ao exercício da sua jurisdição territorial. Agora, sobre a zona tampão, essa competência é subsidiária e temporária.

Pacificadores da MINURSO no Saara Ocidental.

Neste caso, através da intervenção das FAR, o Marrocos exerceu uma jurisdição substituta para manter o caráter neutro e pacífico da zona sob o controle da MINURSO (Mission des Nations Unies pour l'Organisation d'un Référendum au Sahara Occidental) e para garantir a circulação num eixo de comunicação internacional. Não se tratava de fazer face a um risco ou de prevenir um ataque, mas de fazer face a uma situação presente e atual, na sequência de várias comunicações dirigidas, durante anos, pelas FAR à MINURSO, nas quais as forças marroquinas se incomodaram com a presença de civis e militares, com as incursões e provocações da Polisário [1]. No entanto, “devido à ausência de jurisdição”, nota o Secretário-Geral da ONU, “esta zona tampão entre os pontos de passagem marroquino e mauritano continuou a representar um certo risco para os observadores militares da MINURSO. , devido à falta de jurisdição na área, o que impede garantir a segurança da Missão”. [2]

[1] S/2020/938, Relatório do Secretário-Geral, 23 de setembro de 2020, pontos 29-31.

[2] Ibidem, ponto 46.

Soldados marroquinos e observadores internacionais no Saara Ocidental.

A intervenção das FAR ficou, portanto, limitada no seu objetivo, satisfazendo assim a condição da proporcionalidade. Por outro lado, o autor dos fatos que condicionaram a ação defensiva, a Polisário, é culpada. A defesa da zona tampão não implica exclusivamente agressão. Os "fatos-condições" que podem ser atribuídos a um ator não-estatal podem ser constituídos por atos limitados ou provocações, incursões, notadas no presente caso pela MINURSO e relatadas pelo Secretário-Geral.

Cabe, portanto, à Polisário acabar com as provocações e violações do direito internacional e dos direitos humanos na região, respeitar o estatuto da zona, "cooperar plenamente com a MINURSO, inclusive no que diz respeito à sua liberdade de interagir com todos os seus interlocutores e de tomar as medidas necessárias para garantir a segurança, bem como a plena liberdade de movimento” [3]. Compete ao Estado que inspirou a criação do movimento que é seu instrumento, a Argélia, retomar as negociações sob os auspícios da ONU, "sem pré-requisitos e de boa fé" [4] para pôr fim ao conflito artificial que criou e permitir ao Marrocos recuperar totalmente a sua integridade territorial.

[3] S/RES/2548 (2020) Resolução do Conselho de Segurança de 30 de outubro de 2020.

[4] S/RES/2494 (2019), resolução de 30 de outubro de 2019.

O Professor Jean-Yves de Cara é Presidente do Conselho Científico do Observatório de Estudos Geopolíticos (conseil scientifique de l’Observatoire d’études géopolitiques).

Leitura recomendada:

Capacetes Azuis Marroquinos: valores e compromissos1º de julho de 2020.

GALERIA: Com os Tirailleurs Marroquinos na Operação Aspic na região de Phu My, 14 de outubro de 2020.

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