terça-feira, 18 de maio de 2021

Guardando a fronteira do Deserto de Gobi: A vida na Fortaleza de Jiayuguan nos anos 1920


Por George Yagi Jr., Military History Now, 31 de março de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 18 de maio de 2021.

“Eles podem conquistar os espaços do deserto e quebrarem seus silêncios, mas nunca podem capturar seu encanto mágico.”

Construídas nas fronteiras da China durante a Dinastia Ming, a fortaleza do século XIV em Jiayuguan desempenhou um papel importante na defesa do império dos invasores nômades e na regulamentação do comércio ao longo da vital Rota da Seda.

Embora o posto avançado fosse importante, as pessoas que o chamavam de casa o achavam muito isolado. Apesar disso, permaneceu habitada por séculos.

Uma fotografia de 1875 da fortaleza de Jiayuguan.

Durante a década de 1920, um trio de missionários britânicos que incluía Mildred Cable e duas irmãs, Eva e Francesca French, aventurou-se no deserto de Gobi para espalhar o evangelho entre as populações chinesa, tibetana, mongol e uigur da região. No curso de suas viagens, eles passaram um período de tempo ministrando ao povo de Jiayuguan.

Enquanto estavam na cidade-fortaleza, as mulheres notaram três grupos sociais que dominavam a vida cotidiana: os habitantes da cidade, os soldados e os viajantes. Embora muitos lutassem para superar o tédio que acompanhava o ambiente recluso, o posto avançado prosperou para o benefício dos viajantes que fizeram a árdua jornada na lendária rota comercial da China.

Localização da fortaleza pelo Google Maps.

Os habitantes da cidade de Jiayuguan suportaram muitas dificuldades em meio ao trabalho penoso diário. Embora a cidade de Jiuquan, também conhecida como Suzhou, ficasse a uma curta distância do posto avançado, muitos residentes do forte nunca haviam visitado lá; as pousadas e lojas da fortaleza eram o centro de suas vidas. Ao visitar os habitantes durante sua estada, Cable aprendeu sobre os efeitos enlouquecedores que o isolamento poderia ter sobre os habitantes locais:

"Eles contaram como o filho do comerciante Chang roubou 60 dólares das economias de seu pai e se juntou ao famoso chefe ladrão Lobo Branco, como Liu, o moleiro, espancou sua jovem esposa e como ela se matou comendo uma caixa inteira de fósforos, como Li o o filho do ferreiro era tão perdulário que seu pai pegou uma marreta e esmagou sua cabeça enquanto ele dormia. A fofoca daquela cidade sonolenta foi uma longa série de acontecimentos trágicos."

Embora os contos pudessem ter terminado desastrosamente para as partes envolvidas, a fofoca era o passatempo favorito entre os habitantes locais.

Para outros que conseguiram manter a sanidade, Cable observou: "Quando os portões da fortaleza eram fechados todas as noites, eles fechavam as venezianas das pequenas lojas e se escondiam sob cobertores miseráveis para se deitarem sobre kangs de lama [ou leitos de lama aquecidos por uma fogueira], encher seus cachimbos de ópio e escapar para a terra da ilusão e dos sonhos.”

Presos em uma rotina diária, ela acrescentou, “o único horizonte mais amplo que eles conheciam”.


Enquanto os habitantes da cidade buscavam algum alívio para sua existência desolada, os soldados estacionados no remoto deserto da Ásia Central desprezavam sua missão. Eles não se contentavam em viver isolados, principalmente porque a cidade de Jiuquan não ficava longe. Consequentemente, as tropas a visitavam regularmente para escapar da vida no forte. Sobre o seu comportamento, Cable observou:

"Ao contrário dos antigos residentes, os militares odiavam o lugar e aproveitavam todas as chances de ficarem longe dele, ressentindo-se amargamente com a nomeação para um posto avançado tão solitário e desejando serem transferidos para outro lugar. Nada os teria induzido a sair do Portão Noroeste, onde se estendia o fatídico Deserto de Gobi, e seus olhos sempre se voltavam com saudade para a cidade onde, a trinta quilômetros de distância, havia consolo, alegria e vida."

Os soldados também viram o Deserto de Gobi com pavor. As lendas locais falam de demônios à espreita além dos portões da fortaleza. Segundo a superstição, os espíritos malignos personificavam os perdidos no deserto e gritavam por ajuda. Se alguém corresse em seu auxílio, logo ficariam perdidos, com consequências fatais.

A frustração e o medo do deserto também ecoaram pelas esposas dos soldados que reclamaram: "Não há nada para fazer aqui o dia todo, exceto sentar e ouvir o vento uivante." Em um esforço para dissipar o tédio, os habitantes locais se entregaram ao jogo e ao ópio. A folga durou pouco. “A reação da manhã seguinte trouxe um ódio feroz por este lugar onde os demônios do deserto se escondiam em nuvens de poeira e assobiavam por cada fenda dos prédios malucos,” lembrou Cable.

Pátio da fortaleza com turistas.

Por outro lado, os viajantes vindos a Jiayuguan frequentemente gostavam de suas visitas e animavam a atmosfera para aqueles que chamavam o posto avançado de lar. Por sua vez, as pousadas e lojas existiam para forasteiros; tudo foi feito para atender aos hóspedes. Cable resumiu: "Pela hospedagem da noite, um viajante daria dois pence e, por essa pequena quantia, teria espaço suficiente para se esticar no kang, ter o seu jantar preparado para ele no fogo da cozinha e ter água fervente ilimitada para beber."

Entre as lojas, ela acrescentou: “[alguém] poderia comprar tabaco, cigarros, fósforos e papel áspero feito da folha despolpada da íris anã [e] pequenos parafusos de pimenta vermelha misturada com sal grosso como condimento para a comida insípida da pousada.” Enquanto se moviam entre os habitantes, os viajantes eram recebidos por todas as classes sociais dentro da cidadela. Cable lembrava com carinho:

"Muitas vezes nos sentávamos no banco dos clientes na porta da loja e conversávamos com os antigos moradores, que gostavam de contar as glórias passadas da fortaleza, e muitas horas eram passadas com todos os tipos e condições de mulheres, às vezes em choupanas, às vezes nos fundos das lojas ou em residências particulares, bem como em residências oficiais. Tais conversas sempre foram interessantes e aprendemos muito com elas, todos gostávamos da companhia uns dos outros, então quando chegou a hora de seguir em frente já havia uma raíz que doía rasgar."

Quando chegou a hora de se despedir, os missionários receberam muitos pequenos presentes que variaram de suprimentos úteis a vegetais frescos da horta de um simpatizante. Ao saírem do posto avançado, até os guardas pararam para desejar-lhes uma boa viagem e instaram-nos a atirar uma pedra na muralha da fortaleza para dar sorte. Ao ouvir o chilrear característico do seixo batendo no tijolo - um bom presságio - os soldados informaram alegremente aos visitantes: "Sua jornada será próspera".

Embora as condições em Jiayuguan parecessem desoladas na década de 1920, o posto avançado continuou a funcionar como um importante ponto de passagem para os viajantes ao longo da Rota da Seda. Era um lugar de descanso e hospitalidade e, embora os habitantes não tivessem muito a compartilhar com o mundo exterior, o pouco que faziam era generosamente concedido. As interações entre residentes e viajantes foram uma marca registrada da experiência na cidadela.

Artilharia do KMT atirando contra comunistas no início da década de 1930. A guerra civil da China e a Segunda Guerra Mundial determinaram o fim da fortaleza de Jiayuguan.

Infelizmente, a situação mudaria com a eclosão da guerra civil em 1927 (entre o Kuamintang e os comunistas). Em 1936, quando Cable e seus companheiros missionários fizeram sua jornada ao longo da antiga rota de comércio pela última vez, eles puderam ver os efeitos devastadores do conflito.

O golpe final viria com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a modernização que se seguiu rapidamente. As mudanças radicais ocasionadas pelo conflito alteraram para sempre a vida em Gobi. Refletindo sobre essas transformações dramáticas, Cable lembrou afetuosamente: “Eles podem conquistar os espaços do deserto e quebrar seus silêncios, mas nunca podem capturar seu encanto mágico.”

A Fortaleza de Jiayuguan sobrevoada por um drone. A cidade moderna pode ser vista ao fundo, agora próxima do forte.

Dr. George Yagi Jr. é um autor e historiador premiado da Universidade do Pacífico. (Twitter @gyagi_jr)

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